Open-access CLASTRES, OU A GUERRA ENTRE O DOMÉSTICO E O POLÍTICO

CLASTRES, OR THE WAR BETWEEN THE DOMESTIC AND THE POLITICAL

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar a relação entre as noções de guerra e Estado em Clastres, através de alguns de seus debates, especialmente das ligações e rupturas com Marx e Lévi-Strauss. Considero que esses dois autores estão, ainda que de forma às vezes oblíqua, implicados de forma crítica em um ponto central do argumento de Clastres: o de que a condição autárquica da sociedade primitiva tem como requisito a agência de uma força que impede uma disjunção interna (como “classe”) e limita uma conjunção externa (como “grupo de troca”). Essas duas dimensões, interna e externa, têm tanto Marx quanto Lévi-Strauss (e ainda Hobbes e Mauss) implicados, uma vez que Estado, guerra e classes foram atados ao conceito de Modo de Produção Doméstico (MPD), de Marshall Sahlins. Este, por sua vez, estabeleceu tal conceito em diálogo com aqueles autores. Considerando esses pontos, tentarei retomar o problema da guerra e da emergência do Estado em Clastres à luz da divisão político/doméstico, estabelecendo esta como ponto de partida para uma possível crítica.

Palavras-chave:
Guerra; Estado; Doméstico; Político; Clastres

Abstract

This article analyzes the relationship between the notions of war and State in Clastres through some of his debates, especially the connections and ruptures with Marx and Lévi-Strauss. I consider that these two authors are, albeit sometimes obliquely, critically implicated in a central point of Clastres’ argument: that the autarchic condition of primitive society requires the agency of a force that prevents an internal disjunction (such as “class”) and limits an external conjunction (such as “exchange group”). These two dimensions, internal and external, involve both Marx and Lévi-Strauss (and also Hobbes and Mauss), since State, war and classes were tied to Marshall Sahlins’ concept of the Domestic Mode of Production (DMP). Sahlins, in turn, established this concept in dialogue with those authors. Considering these points, I will revisit the problem of war and the emergence of the State in Clastres considering the political/domestic division, establishing this as a starting point for a possible critique.

Keywords:
War; State; Domestic; Political; Clastres

Por vezes acusado de ter repaginado o bom selvagem em contornos etnográficos, é de se espantar que nessa conta tenham esquecido de considerar que Clastres, talvez pela primeira vez desde Hobbes, foi quem deu voz à ideia de que o Estado não é a régua que separa dois mundos. Mal ou bem, a implicação de que existe uma sociedade contra o Estado diz que, de qualquer forma, este já estava lá. Como bem colocou Bento Prado Jr., “na direção da estranhíssima ideia de que uma sociedade sem Estado não desconhece a essência do Estado; que, pelo contrário, é capaz de prevenir-se contra sua emergência! No limite, como não há pensamento pré-lógico, não há paraíso pré-político. Desde a origem, o verme está no fruto” (Leirner et al., 2003: 427). Já se foi cogitada a objeção, talvez correta, de que há muitas evidências empíricas para a ideia de que esse Estado exorcizado pela sociedade primitiva1 seja menos espontâneo do que Clastres diz - com sua retórica do desejo selvagem - e mais concreto em relação a uma possível fuga (Deleuze & Guattari, 1997; Scott, 2017; Graeber & Wengrow, 2022). Por ora, deixarei este ponto em suspenso.

Nos interessa que em um dos seus últimos textos, o capítulo “Arqueologia da Violência: a guerra nas sociedades primitivas” (que repete a parte inicial do título dado ao livro na sua tradução brasileira2), Clastres diminui a dosagem filosófica desse mecanismo e atribui ao motor sociológico da guerra o contrarrestamento do ímpeto estatal. Vista como força centrífuga que inverte um vetor centralizador desse Estado, a guerra clastreana, contudo, carece de maiores explicações sobre sua origem. Ela também está lá. Ainda assim, me parece que, diante de uma especulação que partia do senso comum de que a sociedade primitiva era um oceano de ausências, Clastres teve o grande tino etnográfico de colocar as explicações nativas em pé de igualdade com aquilo que a filosofia política dizia a respeito do problema do Estado e sua relação com a desigualdade, negando ao Estado a chave redentora de um suposto estado de anomia. Dentro dessa condição, a guerra passa a ser fato positivo - ou melhor, constitutivo - antes de ser simplesmente ausência de uma substância.

Estado e guerra, porém, não são dados; mas, em certo sentido, dialogam com aquilo que se pretende a uma universalidade, pelo menos na nossa cosmologia. Olhar para os limites que essa terminologia aponta pode nos levar aos limites a que essa filosofia clastreana também pode chegar. Melhor não ignorar que a ideia de sociedade contra o Estado foi, concomitantemente, parte de um campo de disputas disciplinares que se estabeleceu no confronto sobre a guerra ser um fato social ou natural. A noção de uma natureza humana e a circunscrição da guerra a ela, bem como a emergência do estado de sociedade como sinônimo da sociedade do Estado, são parte de senso comum, volta e meia atualizado a partir de um vocabulário e de um repertório conceitual originalmente grego (e latino) após a emergência do Estado nessas sociedades. É contra muitas dessas noções que Clastres posiciona a filosofia indígena. Se ela é contra o Estado, a teoria de Clastres se coloca, junto a ela, contra uma Filosofia do Estado. Mas, como coloca Bento Prado Jr. (2004), resta saber por que ele continua fiel a um certo repertório de nossa filosofia, e se isso é ou não eficaz para escapar às armadilhas que uma pretensão universalista do pensamento ocidental coloca3. Afinal, por que chamar de Estado aquilo que “não está lá”? Há vantagens estratégicas nisso?

Não sei o quanto Clastres conhecia ou deixava de conhecer da literatura que se produzia nos anos 1960 e 1970 na arqueologia, e que se voltava ao “enigma” da emergência do Estado (ver Yoffee, 2013). Já o campo que se abria no final dos anos 1960, com a assim chamada antropologia da guerra (especialmente a norte-americana) como sugerem Ferguson e Farragher (1988), é parcialmente ignorado nas suas referências, geralmente mais interessado que está em abrir contendas com seus pares franceses4. Finalmente, Clastres passa longe de todas as teorias da guerra que foram produzidas por teóricos da guerra. Nesses diferentes campos e abordagens, o problema da correlação entre guerra e Estado é praticamente onipresente e assume várias posições, o que poderia ter sido levado em conta por ele, a não ser que seu objetivo fosse apenas ajustar contas com outras teorias, especialmente o marxismo e o estruturalismo. Isso pode ter a ver com uma tomada de posição ao levar à frente uma filosofia indígena que coloca de ponta cabeça o ambiente consolidado de uma ciência que atribui um senso “positivo” ao quase duopólio “Estado-Regra”, que, no final das contas, opera como viés de confirmação da condição social ocidental. Se Grécia/Roma se constituíram no “mito de origem” desse duopólio, não foi à toa que Clastres localizou em Hobbes a atualização moderna dessa construção. O que veio depois foi uma “nota de pé de página”, de Clausewitz a Weber, e deste à atual sociologia da guerra. Para o estruturalismo e o marxismo, contudo, a guerra é um tema secundário.

A invenção do divisor que diz onde a guerra começa e termina, apesar de ser algo “absoluto” como humana que é, coincide com seu acoplamento ao Estado (Hobbes, 1974 [1651]; Clausewitz, 2008 [1832]). Portanto, dificilmente se verá um texto que trate da guerra sem falar de política, considerando que esta também foi tomada como propriedade do Estado. Nas teorias da guerra, o teste derradeiro para validar esse plasma é ver se ele passa pela peneira da assim chamada “guerra primitiva”, aquela que é ou não é, por ser ou não “estatal”. Do mesmo modo, a obsessão de estudos dos anos 1960 e 1970 em buscar a “passagem” das chefias para os Estados acompanhava a divisão feud/warfare, o quase-sinônimo de guerras de mentira/verdadeiras, vinganças individuais ou privadas/conflitos sociais ou políticos, como disseram B. Malinowski (1941) e H. Turney-High (1942) e muitos outros além (cf. Ferguson & Farragher, 1988; Fausto, 2001; Leirner, 2005).

Clastres foi o etnólogo que abriu o precedente para que o pensamento ameríndio mostrasse uma inversão arriscada do dogma, seja nascido, seja atribuído, à polis grega, que associa o Estado ao Um e ao bem5. Isso implica em várias coisas; tratarei daquelas que dizem respeito ao par “guerra-política”. Não vou aqui analisar a obra de Clastres em alguns temas que tocam ao problema da guerra e do Estado - entre outros, a demografia, o profetismo, algumas relações que concernem ao próprio papel do guerreiro, como sex ratio-, até porque entendo que eles, de uma forma ou de outra, reaparecem implícitos nos capítulos que interessam diretamente ao que estamos lidando, além de estar consideradas em outras análises6. Além desses pontos, Clastres intuiu e analisou a guerra como se ela fosse uma antítese do Estado, mas nem por isso o Estado, ao capturá-la, realizou sua autoimplosão. Isso, do meu ponto de vista, está conectado a um outro problema, que julgo algo perturbador: para Clastres, o Estado é um “caminho sem volta”, uma espécie de “mordida na maçã” (Clastres, 2004: 163).

Antes de explorar maiores consequências dessa noção de “ponto de não-retorno” (voltarei a isto), gostaria de me ater ao papel dessa entidade-Estado na divisão, pois ela está conectada a um problema de sequências lógicas. Para Clastres, o Estado é um fundamento primário, desencadeador da divisão. Não é uma consequência desta, por exemplo, em classes. Ao dizer que “não é a divisão econômica que cria as condições do poder separado; pelo contrário, é a emergência do Estado ou da divisão social que desencadeia a Necessidade, destino e economia” (Prado Jr., 2004: 11; grifo do autor), Clastres se propõe a inverter a economia política de Marx, e a sociologia troquista de Lévi-Strauss. O problema da divisão está mirando tanto a emergência histórica das classes que Marx detecta na passagem da horda comunal primitiva à sociedade de classes (e assim ao Estado), quanto naquilo que Lévi-Strauss enxerga como contrapartida da troca, que é a exigência da dependência de um grupo pelo outro. Portanto, embora leve a cabo um projeto de revolução baseada em uma filosofia indígena - contra um senso-comum ocidental -, me parece claro que Clastres tem seus alvos preferenciais7.

Vejamos de forma um pouco mais detalhada quais pontos estou considerando esta relação de Clastres com esses dois autores, mas não sem antes notar que ele próprio se encarregou de juntar ambos - senão diretamente, pelo menos no mesmo lugar - em suas análises. Antes que se imagine que estou me referindo apenas às críticas elaboradas especialmente em “Os Marxistas e sua Antropologia” (Clastres, 2004), gostaria de propor a hipótese que há um lugar onde essa junção é tomada de forma mais positiva, que é o desdobramento que Clastres faz de teses de Marshall Sahlins em Arqueologia da Violência (Clastres, 2004).

O DOMÉSTICO E O POLÍTICO, ENTRE MARX, LÉVI-STRAUSS E CLASTRES

As antipatias de Clastres tanto com o estruturalismo, quanto com o marxismo - especialmente o dos etnólogos marxistas8 -, são explícitas (Abensour, 2007 [1987]: 54-55). Numa importante entrevista dada à revista francesa L’Anti-Mythes, em 1974 (Clastres, 2003: 235-272), ele abre seus posicionamentos nas páginas iniciais:

Não sou estruturalista, mas não tenho nada contra o estruturalismo; é que me ocupo, como etnólogo, de campos que, em minha opinião, não são do domínio de uma análise estrutural; quando se trata de parentesco, de mitologia, o estruturalismo aparentemente funciona, e Lévi-Strauss demonstrou isso claramente quando analisou as estruturas elementares do parentesco, ou as mitológicas. Aqui me ocupo, em linhas gerais, digamos, de antropologia política, da questão da chefia e do poder, e aí tenho a impressão de que a coisa não funciona, depende de um outro tipo de análise (Clastres, 2003: 235-236).

Um pouco mais adiante, ele diz:

Mas não há dúvida de que uma reflexão ou uma pesquisa sobre, enfim, a origem da divisão da sociedade, ou sobre a origem da desigualdade, no sentido de que as sociedades primitivas são precisamente sociedades que impedem a diferença hierárquica, uma tal reflexão ou pesquisa pode alimentar uma reflexão sobre o que se passa em nossas sociedades. E aí nos deparamos muito depressa com a questão do marxismo (Clastres, 2003: 237).

Um ponto que entendo ser particularmente problemático em Clastres - talvez porque apareça apenas de forma lateral-, está no fato de que os elementos dos quais ele parte, a divisão social e a hierarquia, podem ser ligados, tanto em Marx quanto em Lévi-Strauss, à antropologia do parentesco. Além disso, certas questões levantadas nas Estruturas Elementares do Parentesco (EEP) (Lévi-Strauss, 1982 [1949]) ligam Marx a Lévi-Strauss de forma subliminar, uma vez que ambos olham para Lewis Morgan e enxergam, em pontos (distintos) do trabalho dele, a chave para explicar uma passagem. A crítica de Clastres ao parentesco é ácida, a ponto de considerar que havia

“entre os etnólogos, uma formidável inflação de estudos de parentesco, que não se cansam de falar do irmão da mãe ou da filha da irmã9. (...) Para que servem as relações de parentesco nas sociedades primitivas? O estruturalismo pode apenas fornecer uma única resposta, maciça: para codificar a proibição do incesto. Essa função do parentesco explica que os homens não são animais, não mais do que isso (Clastres, 2004: 214-215).

Como sabemos, em parte as EEP têm a pretensão de responder a Durkheim o enigma “de onde vem a sociedade?”, considerando que, antes, Durkheim pretendia, nas Formas Elementares da Vida Religiosa (Durkheim, 1989 [1912]), responder à questão de Kant: “de onde vem o conhecimento?” (com a resposta: “Sociedade”). Nas Formas, o espaço privilegiado é o das interdições na vida social observadas nas regras e tabus do totemismo, cuja realização pelo sujeito social vem de uma força transcendente - para os nativos, como religião; para o sociólogo, como sociedade. Nas Estruturas, isso se converte às normas e tabus no parentesco, e a força transcendente é, para os nativos, uma regra de casamento, que está associada ao que é para o antropólogo a regra universal da proibição do incesto. De certo modo, a noção de sociedade de Clastres, em tese, pretende bater de frente com a estruturalista, pelo menos no lugar em que a sociedade como sujeito deve ocupar na análise10:

Quer se aborde o estruturalismo por seu cume (a obra de Lévi-Strauss), quer se considere esse cume segundo suas duas encostas principais (análise do parentesco; análise dos mitos), uma constatação se impõe, a constatação de uma ausência: esse discurso elegante, com frequência muito rico, não fala da sociedade. O estruturalismo é como uma teologia sem deus: é uma sociologia sem sociedade (Clastres, 2003: 216).

À par as polêmicas sobre o estruturalismo ser ou não um kantismo sem sujeito transcendental, ou sem sujeito at all, seria interessante nos determos um pouco sobre o modo como Clastres pretende restaurar a imanência do social na sua análise, especialmente quando, na Arqueologia da Violência, ele não dispensa o estruturalismo (nem o marxismo) como lugar de debate, numa ligação estranhamente atávica. Clastres não abandona nem o “modo de produção”, quando modula o parentesco na chave da autarquia, nem a troca, quando a situa como subsidiária à guerra. Patina, assim, no problema da origem da regra. Porém, ele luta contra a ideia de que o estado de sociedade começa na sociedade do Estado - que seria, etnocentricamente falando, a origem e o fim de toda agência social (mas não para o estruturalismo... nem para o marxismo). Para dar conta dessa altercação, Clastres lança mão de um paradoxo, que é a existência daquilo que não está lá - o Estado -, contra a versão oposta e linear, a de que apenas ainda não está. Este não é um problema de fácil solução, e Clastres se viu diante de uma realidade etnográfica que sugeria a ideia de proto-Estados na paisagem ameríndia, especialmente a quinhentista (Sztutman, 2012: 28; 51 e ss.). Porém, para Clastres este não é um problema histórico. A sociedade primitiva combate um poder que se pretende exteriorizar e falar em nome dela.

A meu ver, isso ata o político à representação externa do social. O Estado se põe como aparelho exterior e diverso da sociedade; mas não se nega a dependência do social em relação à exterioridade, que precisa encontrar meios para ser representada. Nos seus primeiros textos, a Chefia, enquanto forma negativa da reciprocidade, não abandona a ideia de representação, ainda que “negativa”. E, salvo engano, a noção de representação é um ponto crucial na passagem arcaica do universo fragmentário das genos/domus para o centralizado da ágora-polis. A escolha do chefe como um negativo do Estado, assim, acaba levando às impressões digitais deste; talvez por isso, o chefe ao mesmo tempo “fala para ninguém ouvir” (em “Troca e Poder...”), mas também fala “em nome” da sociedade (“Arqueologia...”). Talvez esse seja o sentido de uma sociedade que nasce com uma dívida divina (cf. Gauchet, 1980), mas não transfere o pagamento para seu “porta-voz” (Clastres, 2004: 254)11.

Já nos últimos textos, especialmente na Arqueologia da Violência, o exterior é esquadrinhado na forma da guerra, transferindo a marca “representativa” desta para o guerreiro, que passa a ser o mediador do sentido da socialidade com grupos com quem se estabelece a inimizade. Não se trata, porém, de uma “reciprocidade negativa” (Sahlins, 1972); nem de uma relação que toma sentido pelo conteúdo da vingança. A guerra é, em certo centido, esvaziada de conteúdo, sendo apenas um vetor anti-Estado, canalizado pelo guerreiro, cujo esquema na reciprocidade é análogo e paralelo ao do chefe.

Precisamos ver se a relação guerreiro-guerra opera na chave conteúdo-forma. É verdade que estou mais interessado aqui na tipologia que a guerra, analisada enquanto uma relação geral, encontra impasses na análise clastreana, mesmo correndo o risco de alguém afirmar que ignorei que o dono do “agenciamento” da guerra é o guerreiro. Porém, encaminho a discussão pressupondo que a guerra não se resume ao guerreiro; ela envolve a todos, todo tempo, como um “fato social total”. Cabe notar que Lima e Goldman (2001: 308) entendem que a análise de Clastres tem o mérito de mostrar que a subjetividade selvagem subverte - através do desejo do ser social primitivo, que eles entendem ser a real unidade de análise para Clastres (Lima & Goldman, 2001: 303) - a dicotomia entre indivíduo e sociedade. Nesse sentido, cabe esclarecer que não tomo guerreiro e guerra como traduções dela. Ao mesmo tempo, penso que o artifício retórico que a noção de “desejo” provoca na subjetivação não é, em Clastres, mais que a expressão de um vetor, um “sentido estrutural”. Cada vez que Clastres precisa sair de certa órbita filosófica - até porque ele mesmo diz que a noção de desejo que ele (e Lefort) usam se distancia da de Deleuze e Guattari (2004: 219) -, me parece que as aproximações tanto com Lévi-Strauss, quanto com Marx (e até com Durkheim) ficam mais realçadas12.

Não creio que o problema das dicotomias em Clastres esteja relacionado ao par indivíduo/sociedade. Mas é reposto em interior/exterior. Talvez isso não tenha permitido Clastres chegar a um ponto que, como foi mostrado em outra ocasião, dissolve a dicotomia no ciclo da vingança (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro, 1985). Além disso, tal ciclo só faz sentido quando compartilhado, em múltiplas formas que se estendem à “batalha” (entre elas o festim canibal, cf. Fernandes, 1970). A vingança mobiliza o interior do(s) grupo(s) no seu exterior13, tornando impossível isolar o guerreiro daquilo que acontece em todo ciclo. Mas isso seria suficiente para entender a guerra? Até onde a análise do guerreiro permite entender a dinâmica da relação de inimizade (recíproca)? Com todo mérito da análise de Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985) mostrando a impossibilidade de se isolar unidades funcionais de análise, pois o amálgama entre identidade e alteridade é levado a todas as direções, talvez o maior problema em situar isso no pólo da vingança seja sua pendência a uma explicação de tendência excessivamente subjetivista, senão mesmo algo individualista, que retoma a eterna divisão feud/warfare. No final, o polo forte da relação vai ser mais o guerreiro, e menos a guerra.

Esse, aliás, me parece um ponto um pouco frágil na análise de Clastres sobre o guerreiro, que se dedica muito à função de isolamento deste, a fim de impedir que ele se torne um soberano e, mais uma vez, assim contra-efetuar a emergência do Estado. A essas alturas, a sociedade tem que dar conta de limitar todos aqueles aos quais ela própria investe uma agência para impor limites. São paradoxos e problemas etnográficos - da obra como um todo, e do papel do guerreiro em particular - que deixaram algumas pontas soltas entre os primeiros textos, dedicados à chefia e ao “contra o Estado”, e seu texto final sobre a guerra14. Por isso, prefiro permanecer na questão do lugar da guerra e como isso pode ser pensado diante de outras contradições no plano social mais amplo, sem permanecer exclusivamente em paradoxos e contradições de uma obra que tem mesmo - e é um mérito - um tom bastante ensaístico.

Pois, então, onde enxergo um problema conectado ao anterior, o do Estado que já está lá e do qual não se tem retorno? Para Clastres, uma certa ideia de regra exterior não perdeu lugar. Na “Arqueologia...”, as relações estão na dobradiça entre a guerra, que é movimento bidirecional, em suas relações exteriores na direção “centrífuga”, e nas relações domésticas na direção “centrípeta”; e na aliança, que aparece como subproduto tático dessa grande estratégia de dois vetores:

Não é possível, entre os selvagens, nem ser o amigo de todos nem ser o inimigo de todos. E, no entanto, a guerra pertence à essência da sociedade primitiva, ela é, como a troca, uma estrutura dessa sociedade (...) A impossibilidade da guerra de todos contra todos opera, para uma comunidade dada, uma imediata classificação da gente que a cerca: os Outros são de saída classificados em amigos e inimigos (Clastres, 2004: 258-259; grifo meu).

Pois bem, essa também é uma condição de saída que funcionaria para qualquer cálculo que leve em conta possibilidades e impossibilidades de relação a partir de um “valor intrínseco” (tal como a afinidade, cf. Dumont, 1983). Sendo assim, prescinde da necessidade intrínseca de “grupos” para realização da troca15.

É notável que a noção de grupo resista em Clastres, o que vai ter consequências tanto quando se fala em “grupo exterior”, quanto em “grupo local”. Sua sociedade, ainda que com sua subjetividade e agência restauradas (em relação ao estruturalismo), é grupista. E assim o é porque ela é dependente de um exterior, uma heteronomia, cuja sombra está projetando o Estado. O eco dele, o fantasma de toda sociedade primitiva, é o grupo retroprojetado sem ser reconhecido. A função do Estado, transformar a totalidade una em dois grupos, o do Um e o que fica, já encontra todas as pré-condições para se colocar. Acontece que o Um não pode existir sem o grupo que lhe antecedeu; e esse já não existe mais quando o Um emerge, pois já é outra coisa. O grupo, então, não poderia ser explicado se não fosse a sua predisposição em se tornar outro. Para que o Estado, se o grupo originalmente já reúne as forças para ser o que é? Há uma certa lacuna em explicar, afinal, por que a pré-condição do Estado está ali, só esperando ser acionada, e não se tem absolutamente nada a fazer para cortar o mal pela raiz.

No final das contas, parece que o Estado já está lá para organizar “uma espécie de Juízo Final da Razão, capaz de neutralizar todas as ambiguidades da História e do Pensamento” (Prado Jr, 2004: 8). Se em Hobbes ele neutraliza a natureza, em Clastres ele parece um ser pronto para abrir as portas da percepção a um perigo que os primitivos sabem que existe, mas armam a cena para quase experimentá-lo. Clastres mostrou que o pior clichê sobre sociedades primitivas é aquele que diz que elas ignoram o Estado, a abundância e a história. Tal qual a proibição do incesto - que, como mostrou Dumont (1971), pode ser vista tão e somente como a “teoria ocidental” do parentesco, e que, não à toa, em sua forma puramente negativa, só existe nos sistemas complexos, típicos de “sociedades frias” -, a “passagem para a história”, via Estado, seria como uma espécie de “adesão à [outra] regra”. O “big-bang”: uma vez que você entra, não sai mais. Curiosamente, para Clastres, a sociedade primitiva está constituída na retórica de quem controla seu destino, que só é alterado por acidente. Apesar do contraste com Marx parecer cristalino - por este sempre enfatizar a natureza dialética da vida social -, creio que isto tende a desaparecer quando apontamos para o fato de que as distinções entre os grupos de Clastres e as classes de Marx podem não ser tão salientes quanto aquele gostaria (e, como pretendo mostrar ao final, o problema reside em Clastres ignorar a hipótese da guerra civil)16.

Para Marx (e em certa medida, Hobbes), a natureza guerreira da sociedade primitiva é ao mesmo tempo fonte de sua autonomia e fator de sua transformação (como não poderia deixar de ser, dialética). Nas Formações Econômicas Pré-Capitalistas (Marx, 1986), a condição interna de desagregação da propriedade comunal vem do fato que ela é essencialmente guerreira:

A guerra é, portanto, a grande tarefa que a todos compete, o grande trabalho comunal, e se faz necessária, seja para a ocupação das condições objetivas da existência, seja para a proteção e perpetuação de tal ocupação. A comunidade integrada por grupos de parentesco, é, pois, em primeira instância, organizada militarmente como força guerreira militar, e esta é uma das condições de sua existência como proprietária (Marx, 1986: 69, grifo meu).

Porém, as coisas mudam quando

“na medida em que se acentua a atuação destes fatores, e quanto mais cresce a tendência de se definir o caráter comunal da tribo - enquanto unidade negativa contra o mundo exterior - mais se impõem as condições que permitirão ao indivíduo tornar-se proprietário privado de um lote definido de terra, cujo cultivo corresponderá somente a ele e à sua família” (Marx, 1986: 70).

Parte desse itinerário que Marx elabora, está alavancado pela razão dualista (e evolutiva) que formatava toda etnologia de então, sustentada pela plataforma que dividia os sistemas sociais em “laços de sangue versus laços de solo”. Para Marx, há um motor inerente à formação da “comunidade de guerreiros”, que potencializa sua transformação em classe, no caso, proprietária. Isso não existia enquanto a propriedade era definida “pelo sangue”, e o entendimento dessa relação passa, necessariamente, pela ideia de uma filiação (ou regime de herança) matrilinear. “Laço de sangue”, afinal, encontra na mãe seu ponto irredutível, pelo menos segundo uma certa ideologia da consanguinidade (Schneider, 1980 [1968]). O passo histórico que conectava um sistema a outro, nas Formações... é objeto de análise de três versões diferentes - a selvagem, a grega/romana e a medieval -, e aponta para um certo intercâmbio entre as visões de Lewis Morgan e Marx/Engels, que leva à sincronização entre o aparecimento da propriedade privada e o surgimento de um protoplasma de Estado a partir do que se vê como a passagem da (herança da) propriedade comunal/matrilinear (por exemplo, o que se via nos “iroqueses”) para a privada/patrilinear (por exemplo,. nas hostes gregas/romanas; ver, nesse sentido, Tible, 2012; Leirner, 2016; Álvares, 2019: 162 e ss.).

Deste modo, a guerra produz o Estado, e este retorna como instituição que protege “as novas riquezas individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica”, consagrando “a propriedade privada, antes tão pouco estimada”, e declarando “essa consagração como a finalidade mais elevada da comunidade humana” (Engels 1985: 119-120, grifo meu). Não resta muita dúvida que para Marx/Engels o Estado aparece como função subsidiária das classes. Sua característica é diferente da “constituição social sob a qual viveram e vivem ainda os iroqueses há mais de quatrocentos anos (...). [Seguindo Morgan]”. Isso porque “o Estado pressupõe um poder público especial, distinto do conjunto dos cidadãos que o compõem” (Engels, 1985: 107). Essa me parece uma passagem crucial, pois essa noção de público sempre está imbricada ao político, e não só em Marx/Engels. O Estado implica uma separação que pressupõe a representação da totalidade e, para isso ocorrer, ele necessariamente tem que, ao mesmo tempo, retirar da sociedade essa noção, e se retirar da sociedade como essa representação. O “conjunto social” permanece, mas é percebido como domínio privado, histórica e sociologicamente atrelados à esfera doméstica, que passa a organizar a apropriação do trabalho, embora esta seja percebida como de interesse geral. É aí que o interesse de classe coincide com o interesse do Estado, que passa a ser um ente inseparável da dominação e, assim, coetâneo a ela17.

Guardemos esse ponto, ele será desdobrado em Clastres. Pois, nele também vemos uma separação que toma para si a representação do todo, e implica no aparecimento do mesmo nome, Estado. Na Arqueologia..., (cf nota 12), Clastres é explícito quanto à função do chefe “falar em nome do todo”: “na sociedade primitiva, é o chefe que tem a incumbência de falar em nome da sociedade: em seu discurso, o chefe jamais exprime o capricho de seu desejo individual ou de sua lei privada” (Clastres, 2004: 254; grifo do autor). Nesse ponto, o que diferencia Clastres de Marx/Engels é a organização temporal dos fatores, isto é, quem vem primeiro, o Estado ou a propriedade privada. Não é uma questão menor, pois, no caso de Marx/Engels, a representação da totalidade mascara a noção de que todo trabalho é social; em Clastres, como o Estado é tomado diretamente como classe, elimina-se a intermediação ideológica e aceita-se a ideia de que a relação de subordinação vem de uma “servidão voluntária”, como em La Boétie18. Além disso, é este nome, Estado, que vai administrar o excedente da produção.

Estou ciente que alguém pode abrir a objeção, neste momento, de que estou produzindo uma confusão entre os planos doméstico e privado. Que a propriedade doméstica, tal como, por exemplo, entre os iroqueses, era comunitária e, assim, pública. Que, portanto, o Estado a que Clastres se refere é, no final das contas, uma entidade privada, em contraposição ao chefe, que fala “em nome de todos”. Para prosseguir, é preciso notar um problema precedente. Enquanto estamos falando em sociedades baseadas no “doméstico”, ou no “modo de produção doméstico”, simplesmente não há sentido em se falar de público, pois essa é a ficção que o Estado criou para si. A “separação” que gerou a dicotomia só foi possível quando o Estado finalmente emergiu, antes disso ela não tem sentido. Para escapar a essa profecia autorrealizável, como veremos ao final desse artigo, apontaremos para a possibilidade de que as noções de poder que precipitam as divisões apareceram no interior do vocabulário - e da cognição - do domus. A ideia de “representação” parece, assim, exceder a realidade etnográfica analisada por Clastres. Talvez este não seja um problema de projeção de nossas categorias nos outros (apenas); seja o fato de considerar o Estado “que não está lá” um ente universal. Nesse sentido, cabe pensar também por que a primeira coisa que vem à cabeça de Marx, quando ele fala em classe, é seu anteparo, o Estado.

Há um problema suplementar que deve ser considerado na análise retrospectiva que Marx/Engels/Morgan faziam. Suas análises consideravam a passagem de um “modo” a outro considerando que a todo sistema de parentesco correspondia a um regime de descendência. Esse foi um problema que atraiu Morgan (e não só ele) ao estudo das terminologias de parentesco, e daí à amplitude dos sistemas de “tipo iroquês” (então associados por ele aos sistemas dravidianos, por exemplo). Mas, além disso, essa foi uma questão que se desdobrou por muitos caminhos que praticamente instituíram como regra universal da antropologia que sempre se considerasse em algum nível a diferença entre relações domésticas e políticas. Colocado de maneira curta, e talvez demasiadamente esquemática, isso pode ser visto nos africanistas britânicos com a discussão sobre filiação, descendência e política, bem como na(s) dicotomia(s) endogamia (de classe/de relação) e exogamia de Lévi-Strauss, tomadas no caso limite do casamento entre primos, casáveis ou não, cruzados ou paralelos, e seus descendentes. Descendência e filiação complementar, ou endogamia e exogamia, alternadamente e de forma espelhada, estamos reportando àquilo que se entende pela dicotomia doméstico/político (e não é à toa que neste último polo as relações positivas vão ser chamadas de “aliança”). Esse ponto me parece particularmente interessante pois, com toda a diferença, inclusive de tempo e “tempo de serviço etnográfico” acumulado, Morgan (e por decorrência Marx/Engels) e Lévi-Strauss coincidem.

Ainda que seja forçado dizer que Lévi-Strauss seguia uma pista paralela à de Marx/Engels por conta do desdobramento inevitável que a passagem de “sistemas de consanguinidade” à “sistemas de afinidade” produz na equação troquista,19 é notável o ar de familiaridade com Marx quando Lévi-Strauss sintetiza as três obrigações maussianas justamente na troca de mulheres, olhando para o plano doméstico como forma subsidiária da organização (re)produtiva. Embora ele tenha dito, depois das EEP, algo como “tanto faz, mulheres ou homens”, mas que “na maior parte das vezes são mulheres as trocadas” (Lévi-Strauss & Eribon, 2005: 152), não acho que isso apareceu ali de forma aleatória. O político é identificado à troca, que assume o sentido da totalidade e acaba imprimindo sua marca na organização social, cujas classes vão corresponder ao modo pelo qual mulheres são trocadas (de forma direta, indireta, oblíqua, sem ciclos, com ciclos, de forma alternada ou repetitiva, e por aí vai). No final das contas, cabe se perguntar se a troca, para Lévi-Strauss, não assume um lugar homólogo à produção, para Marx, pelo menos no que diz respeito ao modo como essas operações organizam (e se organizam) a dicotomia doméstico/político. Como já se notou algum tempo depois, muito disso tem a ver com as identificações do feminino ao doméstico e do masculino ao político20. Como lembra C. Fausto, pensando a dicotomia doméstico/político a partir de M. Fortes,

ou bem, a dicotomia é inescapável porque estamos tão impregnados dela que a reencontramos em todos os cantos do globo; ou então, ela de fato corresponde a um modo objetivo e bastante difundido de constituição da sociedade. Temos, assim, ou um resultado inteiramente negativo - a dicotomia não é senão a reflexão de nossa ideologia sobre outras culturas -, ou inteiramente positivo - a dicotomia é um universal abstrato, com colorações diversas conforme a sociedade (Fausto, 2001: 240).

Ainda assim, com todas as críticas à dicotomia, não me parece que o único problema dela seja sua associação ao feminino/masculino, nem à identificação dessas categorias à ação particular/coletiva (Strathern, 1988: 92-97). Se tomarmos a dicotomia como englobamento, como faz Fausto, identificação e negação simultâneas entre todo e parte, em uma escala que a negação é prevista na totalidade por estar contida nela, teremos um regime não excludente - e assim, imanente, ao modo de Clastres e sua restituição do social.

Cabe notar que a ideia de Fausto de propor um englobamento político/doméstico - muito parecida com o “englobamento do contrário” dumontiano, por sinal (cf. Dumont, 1992) -, retoma em princípio algo que já está em Clastres e Lefort, a noção negativa do poder como Um. Nesse sentido, “ali onde ela [a oposição] não está posta (...), ela está pressuposta, existindo como possibilidade objetiva (mas não necessária). Nesses termos, pode-se dizer que ela é (enquanto pressuposição) e não é (enquanto posição) universal” (Fausto, 2001: 242). Isso, em certo sentido, poderia servir para também explicar o paradoxo do “Estado que já está lá”. Mas, ainda assim, não retira da sociedade a dicotomia doméstico/político, que sobrevive à indivisão “desejada” pelo “ser social primitivo”. Pelo contrário. Se entendi direito o problema, Clastres (e Lefort) acaba(m) redobrando a ideia de que o Estado está lá porque, afinal, o doméstico e o político também estão. Mas é só o político que corre risco de ser capturado pelo Estado; o doméstico não somente passa imune a isso, como fornece a fórmula para evitar essa captura.

É evidente que não se solucionará aqui a questão da origem da dicotomia. Talvez ela justamente faça coincidir uma projeção nossa com algo que está em todos os cantos, como sugeriu Fortes. Mais à frente, retomarei o problema do doméstico e sua relação com o poder, tentando chegar, a partir da economia argumentativa de Clastres, numa hipótese não projetiva do Estado como representação do político. Dito isso, antes vejamos onde a dicotomia entra na guerra de Clastres.

CLASTRES E O MODO DE PRODUÇÃO DOMÉSTICO

Para Viveiros de Castro, o antimarxismo de Clastres vinha da constatação que o materialismo histórico não passava de

um elogio etnocêntrico da produção como a verdade da sociedade e do trabalho como a essência da condição humana”. Como “máquinas antiprodutivas”, as sociedades primitivas estabeleciam um “duplo contracontrole”: regime da suficiência sub produtiva e controle social da política, com separação da chefia e poder e submissão do guerreiro ao imperativo suicida da glória (Viveiros de Castro, 2019: 23).

Seguindo essa linha, o anticorpo ao poder não somente se manifesta contra o “continuísmo necessitarista da história” - e a favor do contingente -, mas, também, contra o continuísmo necessitarista que elegeu a precedência do econômico ao político. Esse ponto é cristalino na recuperação que Clastres faz do Modo de Produção Doméstico (MPD) de M. Sahlins, no prefácio de Âge de Pierre, âge d’Aboundance (Clastres, 1976; reeditado como o capítulo “A economia primitiva” da Arqueologia da Violência) a edição francesa de Stone Age Economics (Sahlins, 1972).

Retomando os dados etnográficos do MPD (casos da Melanésia à Amazônia, passando pela África), Clastres plasma a trava da produção de excedentes da “máquina de produção primitiva” no argumento político de que se ela “podendo fazê-lo, (...) não o faz, é que ela não quer fazê-lo” (Clastres, 2004: 179). Assim, não se trata de não conseguir. Isso se dá conforme as características do MPD: “predominância da divisão sexual do trabalho; produção segmentar com fins de consumo; acesso autônomo aos meios de produção; relações centrífugas entre as unidades de produção” (Clastres, 2004: 180), levando à noção de grupo doméstico cuja “unidade funciona como um segmento autônomo. (...) O ideal de autarquia econômica é, na realidade, um ideal de independência política, a qual é assegurada enquanto não se tem necessidade dos outros”, diz ele (Clastres, 2004: 180-181). Se é verdade que um dos maiores problemas sociológicos que a etnologia enfrenta é definir o que é um grupo social, se ele existe ou não (cf. Strathern, 1988; Wagner, 2010 [1974]), se é variável ou contínuo, e a que “unidade”, afinal, encontra-se em alguma substância correspondente (por exemplo: “casa”, “grupo doméstico”, “linhagem”, “clã”, “fratria”, “comunidade”, “tribo”, “etnia”, “zona intertribal”, “casta”, “classe”, etc.), Clastres usou a noção de “grupo doméstico autônomo” talvez menos por ser grupo e mais por ser autônomo. No entanto, a condição da autonomia não deixa de depender da forma-grupo. Se entendi direito, onde a política impõe um interruptor, é onde se coloca a “unidade autônoma” em operação.

Curiosamente, o que seria uma contraprova desse mecanismo pode ser visto na dinâmica de contra-efetuação da expansão da centralização política do big-man melanésio, analisada no clássico texto de Sahlins “Homem Rico, Homem Pobre...” (2007 [1963]). A dialética é mais ou menos a seguinte: ao passo que o big-man usa estratégias de mobilização de força de trabalho para garantir a expansão do círculo de redistribuição de bens que engrandecem seu prestígio (seu “nome”), aumentando a zona de troca “generalizada” (aquela do “free gift”) para longe daquela do grupo doméstico, ele acaba por perder sustentação justamente no círculo de proximidade, ruindo a partir “de dentro”. Em suma, a expansão da reciprocidade generalizada em direção onde só se encontraria “reciprocidade negativa”, faz esta rebater no círculo mais próximo, produzindo uma “guerra civil” dentro do grupo doméstico (ver também Sahlins, 1972: 196-204, a expressão é adaptação minha). Para Clastres, a estabilidade do grupo doméstico seria evidenciada pela necessidade que este teria de manter sua autonomia; e a ruína do nome do big-man, ambicioso em expandir sua esfera de influência, seria o caso melanésio do mesmo tipo de ruína que o guerreiro americano enfrenta quando tenta associar suas conquistas a um poder político.

De um modo ou de outro, o caso melanésio pareceu enunciar uma “rampa” para a emergência do Estado, cuja dinâmica expansionista do big-man daria pistas para entender como as chefias “cônicas” havaianas formariam um protoplasma estatal. Para Clastres, porém, tal ponte talvez esteja ligada a uma confusão mais etnológica do que etnográfica. Segundo ele, há “uma confusão de partida entre prestígio e poder”, desdobrada da dificuldade de aceitar reconhecer o “corte radical que separa as sociedades primitivas, nas quais os chefes não têm poder, das sociedades em que se desenvolve a relação de poder” (Clastres, 2004: 189; grifo do autor). A saída que Clastres oferece para se manter em linha com Sahlins, me parece, foi equacionar esse corte à questão da dívida. Ela sempre existe, o problema reside no vetor: ou é o big-man que está em dívida com a sociedade, ou é esta que está em dívida com o chefe (Clastres, 2004: 190-191). Embora, para Clastres, Sahlins “não formule explicitamente” a questão (Clastres, 2004: 192), este vetor é da ordem do político, e por isso mesmo não pode ser resolvido no interior de um campo marxista - ao qual, não custa lembrar, Sahlins sempre teve alguma identificação.

Vamos guardar, por ora, a questão de que Clastres constrói seu argumento contra uma precedência do econômico, mas não abandona de imediato seu vocabulário, ao sustentar, afinal, que a autarquia tem sua caução no modo de produção doméstico, e que o sentido do poder é perceptível pela ordem da dívida. Em um passo adiante, como sugerido acima, ele, no capítulo “Arqueologia da violência”, embute uma força suplementar à autarquia para solucionar sociologicamente o por que de a sociedade primitiva impor esse bloqueio ao poder separado do corpo social ou, se quiser, da inversão na bússola da dívida. Esse suplemento é a guerra, que, como lembrou Viveiros de Castro (2019: 23), trabalha pela socialidade e não contra. Para escorar a guerra em termos de uma sociologia geral da sociedade primitiva, Clastres vai, mais uma vez, descartar argumentos que, em uma medida ou outra, tenderiam a reproduzir alguma racionalidade econômica, seja ela “natural” ou “social”.

Como ele mostra, argumentos da ordem das “necessidades”, “biológica” (Leroi-Gourhan, 1964), “ecológica” ou “territorial” (David Gross, 1975; Marvin Harris, 1977) têm “n” contraprovas etnográficas - assim como a guerra como consequência da introdução do metal e contato (R. Brian Ferguson, 1995). Enfim, problemas etnográficos e teóricos em se atribuir uma causa externa ou a-social caem por terra com Clastres (ver também Fausto, 2001, esp. cap. 4). O que parece estar no limite de uma tolerância dele a uma certa economia, contudo, tal como o “modo de produção” acima, é aquilo que chama de “discurso relativo à troca”. Nada indica que a troca seja menos arbitrária que a competição por recursos, mas, em relação a ela Clastres, ainda vê alguma positividade.

“Guerras como transações malsucedidas”, diria Lévi-Strauss em duas versões: primeiramente em 1942 (Lévi-Strauss, 1976 [1942]), com o adendo “comerciais” a transações, e, depois, nas EEP na sua forma sintética, simplesmente transações, como “dádivas recíprocas”. Para Clastres, finalmente a guerra teria o devido estatuto sociológico; porém, a continuidade da guerra à troca, por conta de ser apenas definida por uma ausência, rebaixa a primeira à condição “acidental, casual, acessória”, isto é, “como desvio, como movimento em direção à troca, só poderia representar a não essência, o não-ser da sociedade” (Clastres, 2004: 248-249)21. Do contrário, Lévi-Strauss teria se detido na “universalidade da guerra primitiva” (Clastres, 2004: 248-249), algo que passa longe de sua obra. No entanto, buscando sua condição autárquica e antevendo a possibilidade de que a dependência de um outro grupo pode resultar em prejuízo, a sociedade primitiva se adianta na instituição de uma guerra estrutural, anterior, mas formalmente análoga, à troca. Se há aliança, é por decorrência de uma guerra continuada por outros meios: é o acordo que alguém faz para produzir uma vantagem tática em relação a sua posição no “sistema da guerra”.

Há uma consequência interessante em Clastres negar Lévi-Strauss no interior de uma certa linguagem dele22. Para além de ser “constitutiva do social”, ela constitui o social. Para escapar da fórmula do “sujeito transcendental”, Clastres muitas vezes recorre à noção de que, tal como aquela chefia arrestando o Estado, essa condição vem de um desejo da sociedade primitiva. Pura força política, é o desejo que não se separa do corpo (em sentido próximo, ver Lefort, 1987: 135 e ss). Me parece necessária uma certa boa vontade com essa ideia, menos por conta de um purismo idealista - que já foi atribuído a Clastres como atestam inúmeros comentadores (cf. Abensour, 2007 [1987]) -, e mais por conta de uma noção, ao mesmo tempo tão grega e tão nossa, de que a política - como controle social da vida - é o ponto inicial de todos os acordos. É verdade que Clastres aqui subverte a equação onde a variável do acordo é a garantia da paz, mas nem por isso o acordo é a guerra, pois ele subsiste numa aliança subsidiária.

“Inimigos recíprocos” seria uma condição (que se vê na paisagem amazônica, aliás), afinal, essa guerra não se faz sozinho. Porém, parece que Clastres prioriza tanto a condição autárquica que, se não esquece totalmente disso, minimiza. Para além da fronteira do MPD e da “reciprocidade negativa” de Sahlins (1972), sobram a estratégia da guerra e a tática da aliança. Enfim, chegamos ao que, a meu ver, cai em um certo impasse. Como pode esse espaço, consagrado ao político, pode ser ao mesmo tempo o lugar da liberdade, da guerra que garante a condição autárquica da sociedade, mas também da alienação tática, e da condição necessária de uma inimizade recíproca? Aliás, qual a garantia de que a aliança, mesmo residual, tática ou transitória, não ofereça exatamente os mesmos riscos de alienação, divisão, calote etc., que levam a negá-la no “solo primordial” do desejo social? E qual a garantia de que o entorno de um grupo não “deseje” a guerra e provoque um “calote” nessa condição? A recusa à guerra fará o Estado necessariamente emergir? Clastres não explica isto.

Tenho a impressão de que o de menos aqui é apresentar a objeção, certamente bem fundada, de que “sistemas melanésios, em que a circulação de objetos de valor - conchas e porcos - permitem mediar relações entre grupos e pessoas”, ao passo que na Amazônia tal mediação é realizada pelo inimigo (Fausto, 2001: 333), levou à sobreposição de realidades algo incompatíveis23. Ou seja, o modelo de Sahlins não cabe exatamente na paisagem etnográfica que estava mais presente na experiência de Clastres e, no máximo, teríamos um escorregão etnográfico. Mas não é essa a questão aqui. O problema é que o minimalismo autárquico provoca o retorno do doméstico ao ponto de um espaço residual frente a uma guerra que assume o lugar do político24. Seria preciso ver como Clastres lidaria com tantas pesquisas em solo ameríndio que mostram a “repartição” do butim canibal, a economia política da vingança, o “motor” tupinambá (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro, 1985) etc., que tomam lugar posterior ao que realmente “interessa” (a quem?). Se a série guerra-política for o alimento da reprodução social, o doméstico acaba, por assim dizer, se tornando uma espécie de seu sistema digestivo.

Digamos que a ideia de Clastres, de uma sociedade primitiva como “totalidade” - visto que ele que ele não dispensa essa noção - coincida com uma “apresentação do grupo como comunidade política” (Fausto, 2001: 241). Mas por que essa bandeira identitária onde todos, em tese, ocupam uma posição simétrica? A necessidade de se firmar como “comunidade política”, enfim, me parece algo estatal. Para comunidades que visam a fragmentação de umas em relação às outras, evitar o Estado que lhes pode capturar de fora deveria ser tão importante quanto evitar aquele que brota internamente. Afinal, o que garante que a “outra” comunidade, que se vê enquanto totalidade política, não seja o Estado que se quer evitar? A condição simétrica do “outro” na guerra não faria esta operar como troca? Não se restituiria aí o político como um “limite à guerra”, vis-à-vis como acontece com o Estado? Voltamos ao problema do exterior, do qual nunca saímos, aliás. Ele já estava lá na condição de “Estado como chefia malsucedida”.

Talvez seja mesmo complicado realizar a mediação entre o Estado que brota de dentro e a máquina de captura que pode vir de fora. Estou ciente de que os primeiros movimentos de Clastres trataram justamente do político no interior desse espaço que depois, com Sahlins e a sociologia da guerra, vai assumir esse contorno de MPD. É possível, até certo ponto, dizer que a filosofia da chefia ameríndia definiria que, afinal, tudo é político e, assim, que a oposição doméstico/político perde sentido naquele contexto. No entanto, no momento em que Clastres vê na chefia um ordenamento inverso dos “princípios que norteiam a vida social”, isto é, os três fundamentos da reciprocidade - troca de mulheres, bens e palavras - operando com uma interrupção de circuito, restitui-se o mundo dividido. O desejo é social, mas a agência política converge de forma oblíqua para a chefia, e é essa posição que permite ao chefe ser a rolha de contenção que segura o Estado. A ideia de representação, crucial na polis, ainda que negativa na figura de um chefe que “não é”, continua lá. Tenho a impressão de que esse esquema ajudou posteriormente na adesão de Clastres ao entendimento de que o MPD constitui a autarquia primitiva.

Seja como for, tal como na chefia, como em Clastres, a guerra acaba ocupando a mesma posição que o Estado (de Hobbes, por exemplo), o que inclusive a permite ser a realização estratégica de uma agência contra este, seria o caso de se perguntar se no final das contas essa inversão - típica de uma “guerra de posições” gramsciana, aliás - simplesmente não repõe um jogo com as mesmas regras, só que do lado contrário. Será que não patinamos no mesmo problema ao contratar mais uma vez a oposição doméstico/político?

CONCLUINDO: A HIPÓTESE DA GUERRA CIVIL

Ao invés de oferecer a solução para a pergunta acima, prefiro complicar um pouco mais as coisas. Talvez a continuidade da oposição doméstico/político em Clastres seja uma consequência do paradoxo que vimos inicialmente - aquele verme que está na fruta antes de ser comida, o “Estado de Schrödinger” clastreano. Como o Estado não foi eliminado da equação, a oposição doméstico/político, que é própria de sua gramática, acabou de certa forma contaminando a teoria que advoga pelo seu arrestamento. Talvez o principal problema, que vou deixar em forma de um apontamento, é que nada sugere que o poder começou apenas nesse momento mágico em que essas “esferas” foram separadas. Nesse sentido, gostaria de sugerir que o espaço que cria o “poder separado” está imbricado ao doméstico e a emergência do que se chama de “público” - seja o acordo da polis, seja o acordo da guerra clastreana - é uma função subsidiária que a linguagem do Estado criou para se instituir como ente universal, ou seja, um “mito do Estado arcaico”.

Isso leva a uma questão que, apesar de estar apenas engatinhando nos anos 1960-1970 já estava ao alcance de Clastres. O poder que leva à divisão social nasce atrelado ao vocabulário do domus e não da polis. O que sugere, afinal, que houve uma sobreposição ideológica da polis como locus do político, associado a uma “esfera pública”. Permitam-me uma digressão a respeito. Como bem mostrou E. Benveniste (1995 [1969]), aquilo que conhecemos como propriedades da “casa”, muitas vezes esteve associado a um vocabulário institucional com significado político mais amplo. Em um primeiro momento, é possível distinguir o dómos grego e o domus latino, sendo o primeiro entendido como uma “construção-casa” e o segundo no sentido mais próximo do “lar-casa”, aproximado no grego à genos. No vocabulário homérico, essa distinção entre óikos e dómos era irrelevante, sendo o nome-raiz *dm o gerativo das formas *dem e *dom: “O grau zero de *dem, isto é, *dm-, habitualmente é identificado no homérico mesó-dmē, no ático mesómnē, que designa a viga central que une dois montantes, dois pilares no interior da casa” (Benveniste, 1995: 294).

É notável que posteriormente essa mesma raiz *dm- servirá para dois elementos bastante associáveis: o despótes grego e o dominum latino. Ambos estão imbricados à forma de “senhor da casa” (Benveniste, 1995: 294), que efetivamente é a unidade social que nas genos gregas vai ser o portador do diálogo como prática das assembleias que são a base institucional de uma série de noções associadas à política. Este é o território que aproxima o latim domāre e o grego damáō (que no hitita vem como damaš - usar de violência, coerção, sujeição), que “indicava inicialmente o amansamento de cavalos” (Benveniste, 1995: 303). Curiosamente, “o adjetivo grego derivado de agrós ‘campo’ é ágrios, que significa ‘selvagem, agreste’, e que de certa maneira nos oferece o contrário daquilo que em latim se diz domesticus, por aí nos reconduzindo ao domus” (Benveniste, 1995: 310). Não só ágrios pode estar na origem de “agressão”, como se sabe- que, em grego arcaico, tal termo também designava aquilo que estava do lado de fora do habitado: o matagal, o campo inculto, que em latim deriva foresticus, forestis, daí “forasteiro”, “estrangeiro”. A oposição latina domus/foris ainda pode ser remetida a um problema arcaico crucial, pois na época homérica se remetia ao termo mais conhecido, doûlos, o nome do escravo, que, em Homero, encontra-se em palavras como dmōs. Mas o escravo era aquele que justamente pertencia à casa, estava sujeito ao dēspotes, do mesmo derivado potes, cuja raiz greco-latina vai acarretar potedere, ao mesmo tempo “poder” e “possuir”. A posse e o poder estão, assim, algo vinculados com o domus, cuja noção remete ao mesmo tempo ao “dentro”, unidade doméstica por excelência, e ao domínio, em seu duplo sentido, de pertencimento e dominação, coerção. Marx, então, não estava de todo errado.

Quanto mais aglomerações de milhares de anos atrás são desenterradas, mais dados arqueológicos têm apontado que são os elementos próprios à esfera doméstica, como a domesticação de auroques e, especialmente, a constituição de uma noção de masculino ligada à posse do “trabalho animal”, que posteriormente vão se constituir numa matriz de um “poder geral”, religioso e daquilo que posteriormente se identificou como político (Hodder, 1990). Isso, como veremos, pode ser associado ao que Scott (2017) chamou de domus complex, um ecossistema que reúne toda uma série de domesticações ao mesmo tempo. Ao juntarmos essas referências, na hora que esse sistema de domesticação, segundo Hodder, completa a fusão da dominação masculina com a forma da domesticação animal, temos as pré-condições para a emergência do Estado.

Isso poderia resolver a questão do poder deslocando a posição do Estado como força exterior para o interno. Nesse ponto, devemos ter cautela. Dizer que tudo pode ser reduzido à dinâmica interna tem os mesmos problemas de dizer que tudo só adquire sentido a partir do que vem de fora. De fato, há muitos elementos na etnologia amazônica que apontam para um crescente englobamento do interior pelo exterior, considerando, por exemplo, que a essas dimensões correspondam relações de consanguinidade, afins efetivos ou aparentados, afins potenciais ou não-aparentados; inimigos (Viveiros de Castro, 2002: 152 e ss.). Como apontado antes, a partir de Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985), a internalização do inimigo (tupinambá) significava assumir não só seu ponto de vista - exterior -, mas também recapturar os pontos de vista de seus próprios parentes que tinham antes sido absorvidos pelo outro (mas cujo fim não passa pela substância do morto, mas pela vingança em si; mais tarde a noção de ponto de vista será crucial na etnologia amazônica, cf. Viveiros de Castro, 1986)25. Essa engenharia aponta, no final das contas, que é impossível reduzir o problema tanto às dimensões exteriores, como às internas. Se a guerra é a gramática pela qual o texto social se escreve (longe de Geertz, por favor), então podemos considerar que, a cada movimento que ela faz para o exterior, corresponde outro, na mesma medida, para o interior.

Nesse caso, a sugestão aqui é não dissociar a guerra da guerra civil. Uma mobiliza as potencialidades da outra, e isso pode ser um bom indício de por que as sociedades primitivas vivem na tênue linha de um Estado que sempre pode aparecer. De um lado, penso que não se trata, como pretendeu Clastres, de uma potencialidade de conversão da ambição do guerreiro em poder, e como antídoto, a sociedade primitiva, de antemão, traça seu infortúnio, a solidão e a morte gloriosa. Embora também me pareça que ele não esteja errado de todo, pois, na forma, a guerra pode propiciar uma divisão interna, e isso pode parecer um desdobramento da ação do(s) corpo(s) de guerreiros. No momento em que eles passam a ser vistos como classe, é possível que se tenha chegado a um limite; e, por isso mesmo, o antídoto não poderia já estar dado de antemão, já que assim a classe estaria também já constituída. Por outro lado, na contabilidade que pode trazer a emergência do Estado, a guerra externa também tem seu lugar. Acho surpreendente que Clastres tenha atinado para o fato de que a sociedade primitiva evita a troca para não se alienar, mas não coloque nessa fórmula a possível dependência do inimigo também como forma de alienação26. Este é um ponto que já foi notado de outra maneira por C. Fausto, decorrente da ideia - que parte de - de Lévi-Strauss da guerra como troca (Fausto, 2001: 323 e ss.)27. O ponto é a extensão do tempo: se sou o doador de uma violência hoje, a reciprocidade dela chegará amanhã. Se a guerra for unilateral, poderemos ter subjugação28.

Considerando que esses elementos, internos e externos, se alinham ao mesmo tempo, chegamos à possibilidade de que, afinal, a condição de emergência do Estado não é exatamente uma antítese da guerra, mas pode estar imbricada a ela. Uma força a mais dela, no plano interno, ou uma dependência excessiva no plano externo, podem muito bem fazer uma sociedade experimentar a divisão como classe e, juntamente, como Estado. Exemplos de divisões que não redundaram em Estado também abundam,como entre os Parakanã analisados por Fausto (2001), ou na desintegração da comunidade local de um big-man tal como analisada por Sahlins 2007 (1963). Isso sem falar no clássico exemplo iô-iô dos kachim analisados por Leach (2014 [1954]), oscilando entre hierarquia, anarquia e o escape a um reino de tipo feudal (este, aliás, outro autor ignorado por Clastres). De forma mais geral, também é preciso considerar a hipótese levantada por M. Lanna de que Clastres teria se deixado levar por um certo “apego à simetria” (termos meus; ver Lanna, 2005), uma vez que se espera que a sociedade opere por meio da reciprocidade e simetria, e o chefe seja devedor desta. Nesse caso, o Estado “embutido” é a realização desse pressuposto, e sua emergência é a troca de sentido da dívida.

Para Clastres, isso só pode ser da ordem do contingente, tal assimetria não tem lugar na vida social primitiva. Esse é um argumento que encontra algum respaldo em pesquisas que apareceram um tempo depois, sustentando que o Estado pode ter aparecido “sob coerção” externa, casando com condições “internas” de transformação do domus que favoreceram seu acoplamento (Scott, 2017: 232), ou mesmo que sociedades amazônicas teriam conhecimento dos impérios a oeste (Graeber & Wengrow, 2022: 132). De outra forma, a possibilidade de que “há nas sociedades primitivas tanto tendências que ‘buscam’ o Estado, tanto vetores que trabalham na direção do Estado, como movimentos no Estado ou fora dele que tendem a afastar-se dele, precaver-se dele, ou bem fazê-lo evoluir, ou já aboli-lo: tudo coexiste, em perpétua interação” (Deleuze & Guattari, 1997: 119), me parece bem mais realista. Com tudo operando simultaneamente nos dois sentidos, as dicotomias tendem a não produzir seu imprint na análise.

Cabe, então, pensar por que, afinal, o Estado acaba por negar sua forma doméstica e se constitui como forma política, e elaborar uma hipótese para Clastres ter comprado essa noção. Creio só poder esboçar isso, aceitando que o objetivo deste artigo era pensar como a divisão doméstico/político produziu problemas no pensamento de Clastres. Considerando isso, gostaria de retomar um ponto crítico notado por Nicole Loraux na leitura de Clastres:

a oposição, canônica na Grécia clássica, entre polémos e stasis, entre a guerra estrangeira, bela e boa de se pensar, e a guerra civil, tão próxima do homicídio (phonos) ou do enforcamento sacrificial (sphagè) que nos apressamos em esquecer sua memória, interpondo entre o presente e ‘os males do passado’ a memória oculta da reconciliação (Loraux, 2007: 245-246).

Estava também na Grécia Clássica, afinal, a fórmula da guerra externa mais reconciliação interna, guerra mais aliança?

Assim como Clastres não abandonou a oposição doméstico/político, parece, então, ter levado à frente uma certa ideologia da polis grega “contra a guerra civil”. Finalmente, parece-me que temos aqui algo que está no próprio argumento de Clastres, mas não foi levado às últimas consequências por ele. A “boa guerra” não foi a única coisa que ele herdou da matriz grega. Para Clastres (2003: 235), a aliança é uma tática subsidiária para armar-se contra a guerra externa. Não nos surpreende que, em sua crítica ao estruturalismo, ele tenha colocado que o parentesco é algo secundário a uma antropologia política. Diante disso, minha hipótese é que Clastres continuou a operar, ainda que de modo não intencional, no registro da dicotomia que separa “laços de sangue” e “laços de solo”. A ideia de uma esfera pública situada contra o domínio do parentesco é, como sabemos, não somente uma projeção do mundo grego/ocidental, como também do masculino. Do modo como vejo as coisas aqui, o ponto seria olhar não somente para o parentesco como troca, mas também como guerra29 - e sem reificar isso na noção de que a aliança se constituiria numa “esfera pública” (assim como a inimizade), enquanto a consanguinidade apareceria como “esfera englobada”, pacificada pela “esposa trocada”.

A noção de que o acordo de paz equivale a uma certa consanguinização pode ser mais uma dessas projeções que cometemos. Como sugeriu Dumont (1971, 1983), a afinização parece predominar em regimes não ocidentais, ao passo que temos uma certa tendência a projetar nos outros nossa ideologia da consanguinidade tal como se englobasse o parentesco como um todo (ver também, nesse sentido, Schneider, 1980). Resta saber se podemos apostar na conexão entre afinização e guerra, partindo dos pressupostos de Clastres: a guerra está, afinal, circunscrita à afinidade? Exemplos de guerras fratricidas abundam, e irmãos não têm impedimentos a priori para pensar sua relação como uma extensão da guerra por outros meios. De qualquer forma, essa não é só uma questão que poderíamos dirigir a Clastres, mas à etnologia em geral: de onde vem a ideia de que consanguíneos representam uma “paz natural”? “Parente é serpente”, diz o ditado. Afinal, como o próprio Clastres (2003: 251) comentou, “há sempre inimigos em alguma parte”.30

Disponibilidade de Dados

Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do artigo.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Marco Antonio Gonçalves pelo estímulo para escrever este artigo, bem como sua leitura e comentários; a Aline Iubel, pelos comentários; e aos pareceristas anônimos, pelos mais que oportunos comentários e sugestões. Se não consegui contemplar tudo que me foi sugerido agora (também por conta do fato de em muito ter excedido o espaço de um artigo, pelo que agradeço aos editores de Sociologia e Antropologia), tentarei fazê-lo em outras oportunidades.

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  • 1
    Uso o termo seguindo Clastres. Para um tratamento dessa terminologia clastreana, ver Lima e Goldman (2001: 292 e ss.).
  • 2
    Na edição original, o título é Recherches d’Anthropologie Politique. Paris, Editions de Seuil, 1980.
  • 3
    Como se verá ao longo do texto, o problema da “filosofia indígena” em Clastres, está aqui diluído no tratamento que ele dá ao Estado, partindo deste como um ponto de inflexão ocidental (mas indo além). A questão da sua relação com a filosofia, ou com uma certa filosofia, tanto em termos biográficos quanto ao que J. Biehl chama de “polinização cruzada” com (especialmente) Deleuze e Guattari (Biehl, 2013: 575) e como a etnografia se insere no discurso filosófico dos dois (Biehl, 2013: 584 e ss.) é algo que merece ser avaliado, e que entendo já ter sido bem discutido, entre outros, tanto por Biehl quanto por Viveiros de Castro (2019), que dedica boa parte de seu texto a pensar Clastres com a dupla de filósofos; também dele, especialmente o começo do item “Digressão: Paris, Pará”, me parece sintetizar bem o ponto tanto para a etnografia quanto para a filosofia a partir do pensamento indígena (Viveiros de Castro, 1999: 152 e ss.)
  • 4
    Clastres ignorar a produção de Florestan Fernandes realmente surpreende. Não só por tratar de um material absolutamente próximo ao seu, desenvolvido nas duas teses sobre os Tupinambá, como por ser conhecido por Lévi-Strauss, cuja relação com Florestan passou por indelicadezas e menosprezos (Peirano, 1984; Leirner, 2017). Quanto a autores do assim chamado campo da “antropologia política”, ver considerações de Lima e Goldman no Prefácio da edição brasileira mais recente de A Sociedade contra o Estado (Clastres, 2003).
  • 5
    Contra a noção grega, emerge a guarani: “Ser um: é a propriedade das coisas do mundo. Um: é o nome do Imperfeito. Em suma, resumindo a virulenta concisão de seu discurso, o que diz o pensamento guarani? Ele diz que o Um é o Mal” (Clastres, 2003: 189). A análise mais detida sobre a relação de Clastres com noções gregas, como a do Um, está em Loraux (2007), que, inclusive, mostra onde ele acerta e onde escorrega na sua visão sobre a Grécia (ver também Viveiros de Castro, 2019: 28). Cabe acrescentar algo aqui. Me parece que é possível alinhar mais elementos etnográficos à proposição do “contra-Estado” além das variantes condensadas tanto na chefia quanto na guerra analisadas em A Sociedade Contra o Estado e na Arqueologia... Poderíamos buscar uma aproximação a estes pontos nas Crônicas dos Índios Guayaki (Clastres, 1995 [1972]). Ali mesmo, um trecho bastante instigante: “Decerto, os Guayaki nao elaboram a teoría de seu poder político, eles se contentam em por em prática e em manter urna relação inscrita na estrutura mesma de sua sociedade e que se encontra, recorrente, em todas as tribos índias. O ‘poder’, encarnado pelos chefes, nao é aí autoritário, nao no sentido de que essas sociedades primitivas teriam ainda grandes progressos a fazer para chegar a se proporcionar urna verdadeira instituição política (quer dizer, semelhante a que se encontra em nossa própria civilização), mas no sentido de que essas sociedades ‘selvagens’ recusam, por um ato sociológico e portanto inconsciente, deixar seu poder tornar-se coercitivo” (Clastres, 1995: 69). No entanto, entre outras tantas pistas, os Aché mostram de forma bastante explícita uma recusa ao estrangeiro que lhes oferece o Estado: “eles peidam/fedem, nós não” (Clastres, 1995: 65), e a própria indiferença em relação ao etnólogo e sua sede de informações (Clastres, 1995: 19) poderiam povoar indícios de que o problema vai além da Grécia. No entanto, gostaria de insistir que uma certa função “pragmática” dos dois livros, nos quais me detenho mais aqui está nesse debate com a “filosofia”, entendida como aquela cujo protoplasma está, também, na contraposição ao mito, ao arcaico etc. É nisso que o problema do Estado se equaciona, como veremos.
  • 6
    Ver, por exemplo, a coletânea de Abensour (2007 [1987]), Sztutman (2012) e Viveiros de Castro (2019).
  • 7
    A tese de J. Tible (2012) sustenta que é possível também ver pontos de contato entre o horizonte de superação da propriedade privada em Marx e a sociedade contra o Estado em Clastres. Isso coloca questões para o “ponto de não-retorno”. Tenderia a concordar com ele se não fosse pela irreversibilidade histórica que Clastres sustenta com relação ao momento em que o Estado emerge. Para uma crítica aos pontos de Tible, ver Álvares (2017).
  • 8
    Há várias passagens em que Clastres supostamente defende Marx dos marxistas (2004: 193-209), especialmente os que se plasmaram na etnologia francesa sua contemporânea. No entanto, não é possível ver maiores desenvolvimentos, críticos ou não, do pensamento de Marx, exceto pelo que ele pega de mais sintético, que seria a precedência da economia sobre a política (ver Viveiros de Castro, 2019: 72, nota 11). Não há como deixar de notar que a implicância se estende a Engels, que justamente é o organizador das ideias contidas na Origem da Família, da Propriedade e do Estado (Engels, 1985), e que em essência são os escritos que mais guardariam algum diálogo com os problemas tipicamente clastreanos (juntamente com as Formações Econômicas Pré-Capitalistas [Marx, 1986]).
  • 9
    Cabe notar que esses estudos vêm de antes das Estruturas Elementares do Parentesco (1982 [1949]).
  • 10
    Ver, nesse sentido, a leitura, de ecos anti-durkheimianos, de Gustavo Barbosa sobre a socialidade em Clastres (Barbosa, 2002).
  • 11
    Para uma interpretação contrária, ver as elaborações de Lima e Goldman (2001: 298; 301 e ss) sobre o sentido da dívida na constituição do social em Clastres, não apontando para uma exterioridade.
  • 12
    Este é um ponto que vejo particularmente realçado na noção de representação. Segundo Lima e Goldman (2003: 15), “Clastres, em lugar do velho problema da representação do poder, focaliza aquele de seu exercício (...). Como já observava Michel Foucault, A Sociedade Contra o Estado oferece nada menos que uma nova concepção do poder como tecnologia, pronta a emancipar a antropologia do primado da regra e da proibição”. Talvez na “Arqueologia” Clastres tenha recuado em relação à representação: “o chefe fala em nome da sociedade. (...) O legislador também é o fundador da sociedade, são os antepassados míticos, os heróis culturais, os deuses. É dessa lei que o chefe é porta-voz” (Clastres, 2004: 254). Obviamente, não estou imaginando que há aqui a aplicação de uma dicotomia sociológica que opõe ação e representação. A ação se dá também na representação - palavra essa de duplo sentido, aliás: atuação e significação, em que uma só adquire sentido com a outra. Deste modo, a ação política só se dá na sua relação com a representação política, mas não precisa necessariamente ser como representação política, pois nem sempre elas estão de acordo. Ou estão? Até onde percebo, “falar em nome de alguém” não é uma prerrogativa universal.
  • 13
    Aliás, esse é um ponto que encontraria uma tangente interessante no “rei estrangeiro” polinésio - que se recoloca na condição de chefe depois de renascido, através de uma domesticação pelo consumo da carne divina (Sahlins, 1990). É notável, contudo, que a fórmula vai resultar na história oposta: a chefia havaiana trabalha incessantemente pela estratégia de acumulação/expropriação, criação de divisões internas e um direcionamento “rumo ao Estado”, que só é interrompido porque a “base” encontra maneiras de implodir a “pirâmide” cumulativa e de criação de clãs próximos (“cargos”) aos do chefe (cf. Sahlins, 2007 [1963]). Nesse sentido, é notável a perspectiva dialética de Sahlins em ação, possibilitando explicar aquilo que arqueólogos obcecados no tema da “involução” das chefias polinésias de forma bem mais simples do que intrincadas formas matemáticas sobre coesão grupal e meio-ambiente (Renfrew, 1979; Yoffee, 2013). Uma outra explicação sobre ciclos de hierarquização e horizontalização partindo da mesma base etnográfica de Clastres está em Sztutman (2012: 544 e ss.).
  • 14
    Há, ainda, o paradoxo dos “profetas”, contra a centralização política, mas porta-vozes do anúncio do Estado (Sztutman, 2012: 55). A partir disso, cabe notar a solução adaptada por Hélène Clastres, a de separação entre “poder político” e “poder religioso” - que não deixa de ser problemática, aliás, se notarmos que, mais tarde, Clastres vai se fiar na ideia de Marcel Gauchet de “dívida divina” como protoplasma de Estado (Gauchet, 1980). Note-se o seguinte trecho de Clastres: “A religião assegura assim a relação da sociedade com sua Lei, isto é, o conjunto das normas que regem as relações sociais. (...) O que isso quer dizer? Que a sociedade encontra seu fundamento no exterior dela mesma, ela não é autofundadora de si mesma: a fundação da sociedade primitiva não provém da decisão humana mas da ação dos divinos” (Clastres, 2004: 203-204).
  • 15
    Troca que pode ser pensada como pura realização da relação (ver Dumont, 1983); e a elaboração posterior, de Viveiros de Castro (2002: cap. 2, esp. pp. 151-152).
  • 16
    Para uma aproximação do pensamento político de Marx com Clastres, ver Tible (2012, esp. Cap. 2).
  • 17
    Como veremos logo à frente, falo na dicotomia doméstico/político por entender que ela se ajusta mais a todo um conjunto de discussões na antropologia, tanto aquelas do campo africanista, quanto ao estruturalismo, que, enfim, situaram inclusive problemas como a “ausência de Estado” em instituições ou instâncias equivalentes de sociedades ditas “primitivas”. Este problema, às vezes é formulado como a dicotomia doméstico/público (Fausto, 2001), imagino que pela compreensão de que há uma equivalência entre “político” e “público” - coincidentemente com suas etimologias ligadas à polis grega e à res publica romana. Vale lembrar que a distinção privado/público também está presente como substituta da “falsa álgebra do parentesco” em Malinowski, e até no sentido de uma espécie de “campo de acordo” ou consenso em Geertz (“a cultura é pública”, dizia ele). Finalmente, vou insistir no “político” aqui por conta de nosso autor analisado falar de política em sociedades contra o Estado, o que me parece se relacionar mais ao conceito grego do que ao romano.
  • 18
    Nesse sentido, uma aproximação à ideia althusseriana de “interpelação” pode ser interessante: indivíduos “sempre/já interpelados pela ideologia como sujeitos”. Talvez Clastres aí chegasse à noção de que se o Estado está lá, alguma marca dele já está dada (Althusser, 1983: 98). Ver também alusão à interpelação como um tipo de “protoexperiência indígena do Estado” em Viveiros de Castro (2011: 904).
  • 19
    Subtraída toda pretensão evolucionista, contra a qual Lévi-Strauss se volta, não custa lembrar que as EEP são dedicadas a Morgan, e isso não está ali à toa.
  • 20
    Sabemos que muitas críticas e análises desta associação foram produzidas, especialmente após os anos 1980. Não é o caso de retomá-las aqui, pois já estão amplamente debatidas por M. Strathern (1988); ver também Fausto (2001: 239 nota 59 e pp. seguintes).
  • 21
    Como aponta Carlos Fausto, Clastres não considerou a possibilidade inscrita na teoria de Lévi-Strauss de ver a guerra como troca (2001: 323); ver também nota 27, abaixo.
  • 22
    Para uma interpretação de Clastres, tal como Lévi-Strauss, como pensador do “acontecimento como infortúnio”, ver Viveiros de Castro (2019: 23).
  • 23
    A influência de Clastres na etnologia amazonista, contudo, é evidente, conforme M. Teixeira-Pinto (2018: 231).
  • 24
    Talvez fosse o caso de se perguntar o quanto é suficiente a proposta de inversão da dicotomia doméstico/político pela sua associação com feminino/masculino. Este foi um ponto trabalhado em algumas perspectivas feministas tanto para a Melanésia quanto na paisagem ameríndia. Fundamental neste debate, como me alertou um dos pareceristas (a quem agradeço novamente, citando), foi Gayle Rubin (esp. 1975), inspirada “justamente em Marx e Levi-Strauss e orientada por ninguém menos que M. Sahlins”. Note-se que neste texto Rubin aponta para uma atrofia que o marxismo posterior teve em relação à sugestão de Engels em considerar as divisões de gênero e parentesco na composição das instituições primordiais que muito tempo depois levaram ao capitalismo (Idem: 164 e ss.). Para outras considerações a respeito do debate feminista e o político/doméstico, ver Fausto (2001: 240-244).
  • 25
    Para eles, porém, “a vingança não é uma re-ligação dos vivos com seus mortos ou uma recuperação de substância. Não se trata de haver vingança porque as pessoas morrem e precisam ser resgatadas do fluxo destruidor do tempo; trata-se de morrer para haver vingança, e assim haver futuro” (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985: 201). A crítica assim dirige-se não só a Clastres, mas também a Florestan.
  • 26
    Em um sentido diferente, ver crítica de Viveiros de Castro ao problema do Estado em Clastres aparecer como “exteriorização da origem” - e sua solução a partir de Deleuze e Guattari (Viveiros de Castro, 2019: 79).
  • 27
    Cabe notar que Fausto procura resolver certos impasses do troquismo estruturalista, tais como o que fazer com a subjetividade, tanto da vítima, quanto do matador, recorrendo a uma inspiração marxista através da ideia de “consumo produtivo” (Fausto, 2001: 326 e ss.) e, a partir dela, equaciona as relações na guerra - e no xamanismo - na ideia de “predação familiarizante”. A predação assume, em sua forma domesticada de controle político, a forma prototípica “senhor-xerimbabo” (Fausto, 2001: 538-539). Diga-se de passagem, M. A. Gonçalves também sugere algo que, visto agora, poderia ser uma objeção ao argumento clastreano de distinção absoluta entre guerra e caça (Gonçalves, 1988: 181-182). Sobre este ponto, observar também a assimetria (e reversibilidade nela) na posição presa-predador (extensível à guerra), tratada como “inconsistência de reciprocidade” (Gonçalves 2001: 354-355). Finalmente, uma perspectiva que penso se reaproximar de Lévi-Strauss, mas recolocando o dualismo troca/guerra como festa/guerra (e, assim, a festa retoma a posição de “chefe sem poder” de Clastres), está em B. Perrone-Moisés (2025). Neste caso, o chefe “arrasta” seus seguidores (posição, aliás, similar à do Big-Man melanésio visto por Sahlins [2007]). Para ela, tal dualismo teria as posições guerra-festa num contínuo intercambiável, uma pode se converter na outra, como na imagem da garrafa de Klein. Do meu ponto de vista, por mais que festas possam se transformar em guerras e eventualmente vice-versa, isso esbarra no problema da assimetria (como identificaram Fausto e Gonçalves): alguém sempre morre, e a reciprocidade é interrompida. A guerra, portanto, como perspectiva, precederia, ou, em termos dumontianos, “englobaria” a festa.
  • 28
    Note que este também é um problema na análise clastreana em relação à troca de mulheres com as chefias: “recebem mais do que podem dar”. Como argumentou M. Lanna (2005), a “volta” pode estar colocada nas filhas que o chefe acaba doando posteriormente.
  • 29
    Evidentemente, isto é algo análogo ao processo de “familiarização” descrito por Fausto (Fausto, 2001: 538-539), ajustado, para dar conta da análise de Clastres (e Sahlins), à noção de domesticação.
  • 30
    Teremos aqui um fundo cristão em Clastres? Segue o que ele disse: “Eu dizia em que condição uma sociedade podia ser primitiva. Uma dessas condições essencial, é o tamanho da sociedade, da comunidade; penso que não pode haver sociedade ao mesmo tempo grande e primitiva. Para que uma sociedade seja primitiva, ela deve ser pequena. Para que uma sociedade seja pequena, ela deve recusar ser grande, e, para recusar ser grande, há como técnica, universalmente utilizada nas sociedades primitivas e, em todo caso, nas sociedades americanas, a fissão, a cisão. Ela pode ser perfeitamente amistosa. Mas, quando a sociedade julga, calcula que seu crescimento demográfico ultrapassa um certo limiar ótimo, há sempre alguém que propõe a partida a um certo número de pessoas. Em geral, essas separações seguem linhas de parentesco; pode ser um grupo de irmãos que decidem fundar uma outra comunidade, que será naturalmente aliada da que eles abandonam, pois não apenas são aliados como também parentes. Mas eles fundam outra comunidade; logo, há um processo permanente de cisão” (Clastres, 2003: 251; grifo meu).
  • Aprovação do Comitê de Ética:
    Não se aplica.
  • Fonte de financiamento:
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Bolsa PQ 1D).

Editado por

  • Editora responsável:
    Tatiana Bacal (UFRJ, Brasil).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2025
  • Aceito
    28 Jul 2025
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