Open-access Relação humano-animal e leishmaniose: repercussões no cotidiano de indivíduos inseridos em região endêmica

Human-animal relationship and leishmaniasis: repercussions in the daily routine of individuals inserted in an endemic region

Resumo

No contexto das zoonoses, a premissa de que o cão é considerado pelos órgãos de saúde pública como um dos componentes da complexa cadeia de transmissão das leishmanioses (sendo recomendada sua eutanásia e, a partir de 2016, o tratamento com medicação específica se os cães forem diagnosticados com essa enfermidade), está permeada de conflitos, especialmente devido ao espaço que tais animais gradativamente ocupam na vida dos seres humanos, sendo até considerados como substitutos de filhos e constituindo o que vem sendo denominado de “família multiespécie”. Neste artigo analisamos a relação humano-animal no bairro de maior soroprevalência canina de leishmaniose em município endêmico, bem como as repercussões sociais percebidas pelos humanos envolvidos no processo. Por meio de entrevistas, identificamos os diversos benefícios decorrentes da convivência humano-animal, especialmente ao proporcionarem um alento à solidão e os impasses envolvidos na entrega do animal para eutanásia pelo serviço de controle de zoonoses.

Palavras-chave: Zoonoses; Leishmaniose; Relação Humano-Animal

Abstract

In the context of zoonosis, the premise according to which the dog is considered by the public health services as a component in the complex chain of proliferation of leishmaniasises (being recommended euthanasia and, from 2016 on, the treatment with specific drugs of dogs diagnosed with this disease), is permeated by conflict, especially due to the space that these animals are gradually occupying in the life of human beings, even being considered substitutes for children and constituting what has been called the “multispecies family.” In this article we analyze the human-animal relationship in the neighborhood with the largest canine seroprevalence of leishmaniasis in an endemic municipality, as well as the social impacts perceived by the humans involved in the process. Through interviews, we identified the various benefits derived from human-animal coexistence, especially for easing solitude, as well as the difficulties involved in the surrendering the animal for euthanasia to the service of zoonoses control.

Keywords: Zoonoses; Leishmaniasis; Human-Animal Relationship

Introdução

Reconhecidas como um importante problema de saúde pública, as leishmanioses representam um conjunto de doenças com amplo espectro clínico e diversidade epidemiológica. Estima-se a exposição de cerca de 350 milhões de pessoas ao risco de contágio, com registro aproximado de dois milhões de novos casos das variadas formas clínicas por ano (Brasil, 2010).

Tais doenças são transmitidas por meio da picada do flebótomo ou, como é popularmente conhecido, “mosquito-palha”, responsável então pela intermediação da contaminação animal à infecção humana (Brasil, 2003). No caso da Leishmaniose Visceral (LV), enfermidade crônica generalizada que pode provocar um estado de debilidade progressivo e até mesmo a morte (Alvarenga et al., 2010), o cão doméstico é apontado como portador, ou reservatório, desta doença (Falqueto; Ferreira, 2005).

Dessa forma, o controle do reservatório canino, com inquérito sorológico e eutanásia dos cães infectados, se configura como uma das estratégias de controle atualmente utilizadas, além de aplicação de inseticidas, diagnóstico e tratamento adequado dos casos registrados. Nesse contexto, este controle por meio da eutanásia ou eliminação desses animais se apresenta como um dos temas mais estudados e controversos no que tange a sua contribuição ou na não redução da incidência das leishmanioses, humanas ou caninas.

Analisando esse panorama e as mudanças na ética das relações com seres de outras espécies, Costa (2011) refere que os cães são, em sua maioria, animais sociáveis e carinhosos, não devendo ser considerados como seres moralmente irrelevantes, passíveis de serem eliminados sem ocasionar dano incontestável aos seres humanos. Para Fighera (2008), isso se dá em razão de que os cães passaram de simples animais domésticos, empregados como instrumentos de trabalho nas mais diferentes atribuições, a membros importantes de muitas famílias.1 Essa transformação ocorreu inicialmente nos países desenvolvidos e gradualmente espalhou-se por várias partes do mundo, inclusive ao Brasil.

Corroborando com essa perspectiva, Tatibana e Costa-Val (2009, p. 13) referem que a estima pelos animais vem gradativamente aumentando, fazendo que esses sejam considerados desde membros da família até mesmo substitutos de filhos e outros familiares, ampliando o “fenômeno de antropomorfização de cães e gatos na sociedade”. Sobre esse fenômeno, Fighera (2008, p. 33) pontua que os cães também desempenham diversas tarefas importantes na sociedade, pois “são guias para cegos, atuam em buscas e salvamentos, são farejadores de drogas e minas terrestres” e essencialmente têm oferecido aos humanos “satisfação pessoal, apoio psicológico, integração social e várias outras vantagens, muito mais de fundo antropológico do que funcional”.

Em direção semelhante, Faraco e Seminotti (2004) caracterizam o fenômeno em questão como a “humanização do animal”, com modificações nos padrões de consumo e aumento do mercado de alimentos e acessórios para animais de estimação. Diante disso, os autores apontam a necessidade de “redefinição de condutas e atuações” dos profissionais que lidam com a interface homem-animal. Para Ingold (1995), “a condição de pessoa dos animais não humanos”, ou a “humanidade animal”, sugere que o limiar entre a espécie humana e as demais do mundo animal não é paralela, ocasionando um cruzamento entre humanidade e animalidade como estados do ser. Assim, não se pode garantir que “as abordagens do campo das humanidades sejam as únicas apropriadas à compreensão das questões referentes aos seres humanos, e nem que as vidas e os universos dos animais não humanos sejam totalmente esgotados pelo paradigma da ciência natural” (Ingold, 1995, p. 9).

Ao mesmo tempo, não obstante aos aspectos positivos demonstrados em diversas pesquisas, os potenciais riscos das relações entre humanos e animais de estimação não devem ser desprezados, tendo em vista que o Brasil vivencia um processo de “duplo perfil epidemiológico”, em que se convive com doenças infectoparasitárias e crônico-degenerativas. Nesse contexto, portanto, encontramos uma série de aspectos ambivalentes advindos da convivência com animais de estimação, como relações de afeto, custos do cuidado, relações de proximidade, aversão e fobia aos animais, além de potenciais riscos de zoonoses, alergias e mordidas (Costa et al., 2009).

No contexto das zoonoses, a premissa segundo a qual o cão é considerado pela literatura científica e pelos órgãos de saúde pública como um dos responsáveis pela proliferação das leishmanioses, sendo recomendada a eliminação se os cães forem diagnosticados com essa enfermidade, está permeada de controvérsias e conflitos, especialmente devido ao espaço que tais animais ocupam na vida dos seres humanos, sendo até considerados como substitutos de filhos e constituindo o que vem sendo denominado de “família multiespécie”. Na cidade de Montes Claros (MG), as leishmanioses são doenças endêmicas. Nos últimos cinco anos, segundo dados do departamento de informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS), foram notificados 175 casos de LV. O controle de zoonoses registrou em boletim a eutanásia de 331 cães infectados com essa patologia no ano de 2013. Cabe relatar que muitos proprietários de cães, mesmo tendo seus animais diagnosticados como infectados com o parasita, portanto possíveis reservatórios, optam por tratá-los (prática permitida, mas não recomendada pelos órgãos de vigilância à saúde), valorizando o afeto pelo animal em detrimento do risco de transmissão de doenças. Corroborando com isso, Lopes et al. (2010) apontam como dificuldades no controle das leishmanioses em Belo Horizonte (MG) a gradativa resistência dos proprietários em possibilitar o acesso dos agentes de saúde a suas residências para controle químico de vetores e coleta de sangue animal, além da recusa para entrega do cão positivo para eutanásia. Em se tratando de uma comunidade de baixa renda socioeconômica, a possibilidade da utilização do tratamento é pequena, contudo novas pesquisas são recomendadas para avaliar a adesão (ou não) do tratamento por parte dos proprietários.

Diante da situação apresentada, questiona-se: de que maneira é vivenciada a relação humano-animal em um ambiente endêmico para leishmaniose? Este artigo pretende, portanto, analisar a relação humano-animal no bairro de maior soroprevalência canina de leishmaniose da cidade de Montes Claros, bem como suas repercussões no cotidiano dos humanos envolvidos no processo.

Para atingir esses objetivos entrevistamos proprietários de animais diagnosticados com leishmaniose. Também foram utilizadas fontes secundárias, como reportagens veiculadas pelos meios de comunicação e documentos oficiais.

A coleta de dados ocorreu nos meses de outubro e novembro de 2014. Inicialmente foi feita uma solicitação ao responsável da Secretaria Municipal de Saúde de Montes Claros. Em seguida, contatou-se o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) do município, que em inquérito censitário realizado no primeiro semestre de 2014, relatou o bairro Clarindo Lopes como o de maior prevalência de cães sororreagentes (9,7%), o que motivou a escolha desse bairro para cenário de estudo.

Além de informar o bairro com maior prevalência de cães soropositivos para leishmaniose, o CCZ de Montes Claros disponibilizou uma tabela com os nomes dos proprietários, endereços e nomes e situações dos animais após os testes diagnósticos. A amostra foi constituída assim por 18 proprietários, donos de 28 animais. Desses 28 animais, 17 foram entregues para eutanásia; sete continuaram com seus donos e quatro morreram ou desapareceram sem registros de sua situação, como podemos visualizar na figura abaixo.

Figura 1
Situação dos animais no bairro Clarindo Lopes

De posse dessa tabela, o trabalho de campo consistiu na visita às residências dessas pessoas para expor os objetivos da pesquisa aos proprietários dos animais e convidá-los a participar do estudo em questão.

Quanto aos aspectos éticos, este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa das Faculdades Unidas do Norte de Minas, vinculada à Associação Educativa do Brasil (Funorte/SoeBras) via Plataforma Brasil, sob parecer consubstanciado nº 804.969, por estar de acordo com as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos, conforme Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Além disso, a fim de preservar a confidencialidade dos dados, os participantes foram identificados com a sigla P seguida de um número aleatório.

Relação humanos e animais no contexto das leishmanioses

Como visto, a relação entre humanos e animais, em especial com os cães, já existe há milênios, sendo que os animais historicamente têm desenvolvido um precípuo papel no relacionamento com as pessoas por servirem de companhia, estímulo e motivação, além de não discriminarem ou segregarem qualquer pessoa (Silveira; Santos; Linhares, 2011). Para Delarissa (2003), a afinidade por cães e gatos em tempos hodiernos se baseia cada vez menos em virtude de funções práticas, e mais no desejo dos humanos de desfrutar da companhia desses animais.

Neste estudo foi perguntado aos participantes o que seus animais representavam, sendo que diversos mencionaram o fato de proporcionarem companhia, como podemos ver nos seguintes depoimentos: pra mim era uma companhia, porque era só eu e ela o dia inteiro e ela [a neta]. Ela brincava o dia inteiro com a cachorra e eu também. […] ela bota a patinha e botava a carinha assim e ficava me olhando o tempo inteiro. Fazia companhia (P04); porque ela era minha companheira, todo mundo saía e ela ficava comigo, né? (P07). O participante P09 salienta esse benefício com a expressão ainda mais eu que moro só, remetendo à ideia de que seu animal seria sua única companhia: Esse cachorro pra mim é tudo, é tudo, tudo, tudo. Ainda mais eu que moro só, né? (P09).

Convém ressaltar que todos os participantes desta pesquisa em algum momento salientaram, formal ou informalmente, a influência da afetividade na interação entre eles e seus animais. Sobre isso, Pastori (2012, p. 23) refere existir, no discurso dos donos de animais de estimação, a constante menção ao apego surgido na relação, ao “amor transbordante recebido de seus animais e que lhes conecta com algo mais amplo, mais elevado, colocando-os em contato com a pureza perdida pelos humanos”. Esses sentimentos provocam, por exemplo, o processo de mediação judicial quando da dissolução da “família multiespécie”, como relata Vieira (2016).

Atualmente, a “questão animal” vem modificando as representações e as relações entre humanos e animais, bem como as “práticas discursivas e não discursivas” entre eles, “tornando-se perceptível por múltiplos indícios, a constituição de um novo estatuto para os animais” (Pastori, 2012, p. 11). Tatibana e Costa-Val (2009) consideram que gradativamente os animais são considerados membros da família, ou mesmo substitutos de filhos e outros familiares, desencadeando um aumento do fenômeno de “antropomorfização” de cães e gatos na sociedade contemporânea. Já Oliveira (2006) refere que parece sempre haver um esforço em compreender o universo do cão sob nossa ótica social, ou seja, conferindo aos animais as categorias e comportamentos humanos.

Na população pesquisada também encontramos esse fenômeno. O participante P04, por exemplo, referiu que o cachorro para ele seria como se fosse um ser humano, uma pessoa, uma criança que está com você dentro de casa, aquele carinho aquela dedicação de dar banho, colocar aqueles lacinhos, sabe? (P04). O participante P07 concorda e ainda atribui características humanas como inteligência a seu cão: E ela era muito inteligente, chamava ela, ela vinha. Eu deitava na cama, ela vinha e deitava no pé da minha cama. Então, é como se fosse uma criança, né? (P07).

Faraco e Seminotti (2004) afirmam que existe, no dia a dia, organizações sociais resultantes do convívio entre homem e animal. Esses grupos familiares muitas vezes nos indica a revisão da própria concepção de família, pois são casos em que o animal é considerado membro, podendo ser inclusive substituto de filhos e de outros familiares. Os autores acrescentam que a humanização avalia o animal além de suas características biológicas, pois esse é recriado com características humanas e tratado como se assim fosse: “o animal com vestimentas humanas antropomorfizado, que fala e pensa de forma semelhante ao homem, a quem se confere sentimentos humanos” (Faraco; Seminotti, 2004, p. 59).

Delarissa (2003, p. 64) reitera que, em tempos governados pela desconfiança, na relação homem-animal encontramos a certeza que este último é capaz de nos disponibilizar um amor incondicional, pois “não olhamos um animal e esperamos nele encontrar princípios éticos. Contudo, olhamos nosso ‘semelhante’ sabendo que nele pode haver esse vazio”.

Para P09, o cachorro é motivo de preocupação e, ainda que não possua valor econômico por não ter raça definida - ser “pé-duro”, como o entrevistado refere - é alvo do seu afeto, como podemos perceber:

ter um cachorrinho assim, esse cachorro pra mim é tanto que, na hora que ele começa a gemer assim eu já fico preocupado, eu falo assim, nem dormir direito eu não durmo, eu levanto de noite pra ver que que ele tem, que que tá acontecendo com ele. […] E no entanto ele é pé-duro, mas eu gosto dele, você entendeu? (P09)

Coradassi (2002) assegura que o número de animais de companhia adquiridos aumenta a cada ano, e sua influência sobre a vida dos seres humanos tem demandado maior atenção, pois eles complementam algumas necessidades emocionais das pessoas e seu valor afetivo é superior ao econômico. Todavia, todas as vantagens dessa convivência podem ser perdidas se a saúde desses animais não for alvo de maiores cuidados, pois estes podem estar envolvidos involuntariamente na transmissão de mais de sessenta infecções zoonóticas e constituir uma importante fonte de infecção por parasitas, bactérias, fungos e vírus (Katagiri; Oliveira-Sequeira, 2007).

Os modos de reprodução de espécies como o cão, com acelerado amadurecimento sexual e proles numerosas, associados à falta de atitudes políticas eficientes e à ausência de orientação sobre a posse responsável, além do crescimento excessivo da população humana e sua carência de condições de educação e higiene, desencadeiam inúmeras condições adversas, ocasionando possíveis abandonos e aumento dos riscos que esses animais podem representar para a sociedade em termos de saúde pública e desequilíbrio ambiental (Lima; Luna, 2012).

Segundo Loss et al. (2002), a Organização Mundial da Saúde estima a existência de aproximadamente 500 milhões de cães abandonados no mundo, sendo que no Brasil esse número chega a 25 milhões, agravando assim os problemas de saúde pública e bem-estar animal. Um aspecto fulcral para o excesso de cães e gatos nas ruas é provavelmente a falta de condicionalidades que influenciem positivamente o comportamento das pessoas que possuem animais domésticos, pois a existência de cães e gatos nas ruas significa que estes possuem donos que não os mantém dentro do domicílio ou que tiveram donos e foram abandonados (Bortoloti; D’Agostino, 2007).

Uma pesquisa realizada em Botucatu, São Paulo (Souza et al., 2002), concluiu que poucos proprietários de cães zelam pela saúde e bem-estar de seus animais, salientando uma possível relação entre a displicência e despreparo dos proprietários com as condições socioeconômicas e fatores culturais da população estudada, pois em muitos casos os animais de companhia são considerados meros objetos de lazer. Outro estudo (Souza et al., 2001) analisa a questão sob o foco econômico e afirma que o custo de manutenção de um animal de estimação é superior à capacidade orçamentária de grande parte da população brasileira. Os autores ressaltam que a maioria dos proprietários de cães e gatos em nosso país não possui situação econômica suficiente para oferecer condições adequadas de higiene, abrigo e alimentação a seus animais, tornando-os mais sujeitos à aquisição de doenças de impacto para a saúde pública, como é o caso das leishmanioses.

Fraga (2012, p. 2-3) enfatiza a centralidade da posse responsável de animais nas estratégias direcionadas ao manejo da população canina nas cidades. Para a autora, o termo “posse responsável” remete ao “conjunto de deveres e obrigações de proprietários de animais para a manutenção da saúde e do bem-estar do animal; e para a prevenção de zoonoses, acidentes de trânsito, contaminação ambiental e danos a terceiros causados por esses bichos”. As campanhas sobre esse tema têm um cunho educativo e são realizadas em locais onde é intenso o problema de cães nas ruas, particularmente junto populações de baixo poder aquisitivo.

Sendo assim, o convívio de animais e seres humanos gera muitas controvérsias, principalmente no âmbito da saúde pública. Pode-se estimular a convivência quando se considera os benefícios trazidos por esta população animal, ou indica-se a eliminação os animais se tornam uma importante fonte de infecção e, possivelmente, uma ameaça à população humana (Magnabosco, 2006).

Nesse sentido, convém salientar que a eliminação dos cães como medida de saúde pública é um dos pontos de tensão entre profissionais, médicos veterinários ou agentes de saúde pública, e donos de animais, pois esse procedimento é motivo de grande sofrimento para estes últimos, como os entrevistados declaram:

olha, eu fiquei chateada, né? Porque o animal que a gente cria com todo carinho, com todo amor, despesas com ele. Eu fiquei muito preocupada né, mas não tinha o que fazer. (P02)

E foi ruim demais. […] aí a casa parece que ficou vazia, eu não podia sair no quintal e ficou aquela coisa ruim demais. A experiência, foi a primeira vez, mas foi uma experiência ruim mesmo, péssima. […] Aí a gente ficou assim, ficou mais ou menos uns quinze dias dentro de casa, bem difícil pra gente. (P05)

Foi difícil! É muito triste, né? Principalmente porque ela não tinha sintoma nenhum, estava boazinha. (P08)

O participante P03 é bastante enfático ao ser perguntado se a entrega de seu animal para o CCZ foi motivo de tristeza: como é que não fica, moça! Um animal que a gente cria de pequenininho. […] E meu menino gostava demais dele, brincava com ele.

Para P07, a situação de sofrimento perante a entrega do animal para o CCZ foi tão intensa que este até referiu não possuir mais desejo de ter outro animal, como podemos verificar:

eu me senti muito triste né? […] Então, fiquei triste, uns três dias triste. Aí levou e agora não quero mais, porque depois adoece e a gente fica aí né? Com problema, a gente fica triste, apega, até as vasilhinhas dela estão aí até hoje, até a ração. E já tem tempo e aí eu fico assim, toda vez que eu pego a vasilhinha dela eu lembro. Então, não quero mais. (P07)

Várias críticas têm sido feitas com relação à eficácia da eliminação de cães para controle das leishmanioses, principalmente no que tange à quantidade elevada de trabalho que provoca, o alto custo e a possibilidade de que um grande número de cachorros infectados, particularmente animais vadios, não venham a ser detectados (Rangel; Lainson, 2003). Os autores enfatizam que, sob supervisão adequada e subsequente monitoração, a utilização de coleiras impregnadas com inseticida pode representar um novo método importante na interrupção do ciclo de transmissão entre cães em área de foco, reduzindo consequentemente a infecção humana. Entretanto, convém lembrar que essa coleira não é acessível a toda a população, em decorrência de seu alto custo. O preço deste acessório varia conforme o tamanho do animal, ficando entre 70 e 100 reais aproximadamente, devendo ser trocada regularmente de quatro em quatro meses. Acreditamos que, por se tratar de um bairro cuja condição socioeconômica é considerada baixa, nenhum dono referiu a utilização da coleira repelente como maneira de prevenir a aquisição da leishmaniose.

O participante P05, por considerar de sua responsabilidade o sofrimento de seu animal, encontrou nesse fato a justificativa para que este fosse entregue para eutanásia, como podemos perceber em seu depoimento: mas a gente achou que seria melhor pra ela. A gente achou que pra ela seria melhor do que fazer o tratamento porque ela ia sofrer né?

No bairro estudado, quatro animais desapareceram ou morreram antes da finalização do caso, ou seja, antes que fosse recomendada aos proprietários a entrega de seus animais para eutanásia. Como vimos nos relatos anteriores, é nítido o sofrimento dos donos de animais ao serem obrigados a escolher entre o animal - responsável por fazer companhia, prover afeto, dentre outras coisas - e o potencial risco à saúde que este representa. Tal dilema pode levar os proprietários a alegar a morte ou desaparecimento de seu animal sem que isso tenha de fato ocorrido, gerando assim uma situação de difícil resolução para os órgãos de saúde pública, por não poderem adentrar nos domicílios e conferir a ausência do animal sem a autorização do proprietário. Nesse aspecto, novas formas de interação com a população e de comunicação de riscos em saúde precisam ser aprimoradas pelos serviços de vigilância em saúde.

Por fim, como diz Faraco (2008, p. 17), a magnitude da relação humano-animal

permanece ignorada e reduzida a olhar ora para um, ora para o outro, e nunca para ‘um e outro’ em interação. Esta perspectiva tradicional ainda impera, limitando o âmbito de observação aos indivíduos da relação e ‘cegando’ o observador para a complexidade das relações do fenômeno estudado, que por sua vez é produzido pela relação entre eles. Assim, o sistema humano-cão permanece oculto, inexplicável e a mercê de interpretações que lhe atribuem propriedades que não possui.

Considerações finais

Um argumento básico a ser observado na interação entre humanos e animais é que seus benefícios estão relacionados a fatores afetivos e emocionais, podendo desempenhar um papel de proteção à saúde, especialmente a psíquica. De outro modo, os riscos existem, materializando-se como zoonoses e agressões, não inviabilizando contudo a convivência com os animais de estimação e o aproveitamento dos ganhos decorrentes dessa relação. Assim, deve-se buscar o equilíbrio entre os participantes dessa relação a fim de que tais benefícios não sejam anulados por danos à saúde dos seres humanos e não humanos (Costa, 2006).

As leishmanioses são um exemplo de como a manutenção do equilíbrio dessa relação é complexa, pois atualmente essas enfermidades constituem um grave problema de saúde pública, representando um desafio para os profissionais da saúde, principalmente ao se avaliar que as medidas de controle da doença implementadas não foram capazes de eliminar a transmissão e impossibilitar a ocorrência de novas epidemias (Nogueira et al., 2009).

Neste estudo, mesmo em um ambiente onde possuir um animal pode representar um risco à saúde da família e comunidade, evidenciou-se a importância que os proprietários conferem a seus animais, muitas vezes considerando estes até mesmo como membros da família. Assim como em outros cenários, apontou-se como um dos principais benefícios advindos da relação humano-animal o fato do animal fazer companhia a seu dono, sendo essa relação um “reflexo da modernização das cidades e da individualização, cada vez mais presente na cultura da sociedade ocidental” (Carvalho; Pessanha, 2013, p. 623).

Entretanto, mesmo com o forte vínculo estabelecido entre humanos e animais, os participantes analisados deram maior valor ao risco à saúde que seus animais constituíam, uma vez que a maioria (60,71%) fez a opção de entregar seus animais para eutanásia. Cabe ressaltar que isso representou um momento de bastante sofrimento, fato relatado por muitos participantes.

Nesse sentido, é precípuo enfatizar o risco da expansão da doença, pois aproximadamente 25% dos indivíduos analisados não fizeram o recomendado pelo CCZ e 14,28% dos animais tem paradeiro desconhecido. Tal risco, aliado à urbanização e a humanização dos animais de estimação, os cães em especial, faz com que a questão da eliminação dos não humanos infectados (sintomáticos ou assintomáticos) surja como grave problema social, necessitando de atenção e tratamento especial pelos serviços de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2018
  • Aceito
    10 Jul 2018
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