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Apoio matricial em saúde mental: alcances e limites na atenção básica

Resumos

As mudanças na atenção à saúde mental no município de Fortaleza têm um processo histórico e político recente, comparada a outros municípios cearenses, que no início dos anos 1990 já se lançavam pioneiros no processo. Fortaleza não implementou as mudanças devido aos interesses dos hospitais psiquiátricos, ambulatórios de psiquiatria da rede pública e dificuldade de gestão dos novos dispositivos e equipamentos de saúde mental presentes na Atenção Básica (AB). No município, a reorganização das ações e serviços de saúde mental tem exigido da Rede Básica o enfrentamento do desafio de atender aos problemas de saúde mental com a implementação do Apoio Matricial (ApM). Mediante o contexto, buscou-se avaliar o ApM em saúde mental em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e identificar alcances e limites nas Unidades Básicas de Saúde com ApM. O presente estudo utilizou uma abordagem qualitativa, tipo estudo de caso. Foram entrevistados doze profissionais das Equipes de Saúde da Família de quatro UBS com apoio matricial implantado. A análise das informações revela que o acesso, a tomada de decisão, a participação e os desafios da implementação do ApM são elementos que se apresentam de forma dialética frágeis e fortes na reorganização dos serviços e das práticas. A presença do ApM na AB ressalta a proposta de trabalhar saúde mental em rede no município. O processo não está findo. Mobilização, sensibilização e capacitação da AB precisam ser incrementadas constantemente, mas a implementação tem possibilitado, ao serviço e aos profissionais, maior aceitação da saúde mental na AB.

Saúde Mental; Atenção Básica à Saúde; Serviços Básicos de Saúde; Apoio Matricial


Changes in mental health care in the city of Fortaleza (Northeastern Brazil) have a recent historical and political process. Compared to other municipalities of the State of Ceará, which in the early 1990s were already pioneers in the process, Fortaleza has not implemented the changes due to the interests of psychiatric hospitals, of psychiatric outpatient clinics of the public network, and because of the difficulty in managing the new mental health devices and equipment present in Primary Care. In the municipality, the reorganization of mental health actions and services has required that the Primary Care Network faces the challenge of assisting mental health problems with the implementation of Matrix Support. In light of this context, we aimed to evaluate Matrix Support in mental health in Primary Care Units and to identify achievements and limitations in the Primary Care Units with Matrix Support. This study used a qualitative approach and was carried out by means of a case study. We interviewed twelve professionals from the Family Health Teams of four Units with implemented Matrix Support. The analysis of the information reveals that access, decision making, participation and the challenges of implementing Matrix Support are elements that are, in a dialectic way, weak and strong in the reorganization of services and practices. The presence of Matrix Support in Primary Care highlights the proposal of dealing with mental health within the network in the municipality. The process has not ended. Mobilization, awareness-raising and qualification of Primary Care have to be enhanced constantly, but implementation has enabled, to the service and professionals, greater acceptance of mental health in Primary Care.

Mental Health; Primary Health Care; Primary Health Care Services; Matrix Support


ARTIGOS

Apoio matricial em saúde mental: alcances e limites na atenção básica1 1 Artigo produzido a partir de Tese de Doutorado em Saúde Pública. Morais, A. P. P. Saúde Mental na Atenção Básica: o desafio da implementação do apoio matricial. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP, 2010.

Matrix support in mental health: achievements and limits in primary health care

Ana Patrícia Pereira MoraisI; Oswaldo Yoshimi TanakaII

IDoutora em Saúde Pública. Docente da Universidade Estadual do Ceará. Endereço: Rua Minas Gerais no 462, Pan-Americano, CEP 60441-035, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: moraisana@uece.br

IIProfessor Titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Endereço: Av. Dr. Arnaldo, 715, Cerqueira Cesar, CEP 01246-904, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: oytanaka@usp.br

RESUMO

As mudanças na atenção à saúde mental no município de Fortaleza têm um processo histórico e político recente, comparada a outros municípios cearenses, que no início dos anos 1990 já se lançavam pioneiros no processo. Fortaleza não implementou as mudanças devido aos interesses dos hospitais psiquiátricos, ambulatórios de psiquiatria da rede pública e dificuldade de gestão dos novos dispositivos e equipamentos de saúde mental presentes na Atenção Básica (AB). No município, a reorganização das ações e serviços de saúde mental tem exigido da Rede Básica o enfrentamento do desafio de atender aos problemas de saúde mental com a implementação do Apoio Matricial (ApM). Mediante o contexto, buscou-se avaliar o ApM em saúde mental em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e identificar alcances e limites nas Unidades Básicas de Saúde com ApM. O presente estudo utilizou uma abordagem qualitativa, tipo estudo de caso. Foram entrevistados doze profissionais das Equipes de Saúde da Família de quatro UBS com apoio matricial implantado. A análise das informações revela que o acesso, a tomada de decisão, a participação e os desafios da implementação do ApM são elementos que se apresentam de forma dialética frágeis e fortes na reorganização dos serviços e das práticas. A presença do ApM na AB ressalta a proposta de trabalhar saúde mental em rede no município. O processo não está findo. Mobilização, sensibilização e capacitação da AB precisam ser incrementadas constantemente, mas a implementação tem possibilitado, ao serviço e aos profissionais, maior aceitação da saúde mental na AB.

Palavras-chave: Saúde Mental; Atenção Básica à Saúde; Serviços Básicos de Saúde; Apoio Matricial.

ABSTRACT

Changes in mental health care in the city of Fortaleza (Northeastern Brazil) have a recent historical and political process. Compared to other municipalities of the State of Ceará, which in the early 1990s were already pioneers in the process, Fortaleza has not implemented the changes due to the interests of psychiatric hospitals, of psychiatric outpatient clinics of the public network, and because of the difficulty in managing the new mental health devices and equipment present in Primary Care. In the municipality, the reorganization of mental health actions and services has required that the Primary Care Network faces the challenge of assisting mental health problems with the implementation of Matrix Support. In light of this context, we aimed to evaluate Matrix Support in mental health in Primary Care Units and to identify achievements and limitations in the Primary Care Units with Matrix Support. This study used a qualitative approach and was carried out by means of a case study. We interviewed twelve professionals from the Family Health Teams of four Units with implemented Matrix Support. The analysis of the information reveals that access, decision making, participation and the challenges of implementing Matrix Support are elements that are, in a dialectic way, weak and strong in the reorganization of services and practices. The presence of Matrix Support in Primary Care highlights the proposal of dealing with mental health within the network in the municipality. The process has not ended. Mobilization, awareness-raising and qualification of Primary Care have to be enhanced constantly, but implementation has enabled, to the service and professionals, greater acceptance of mental health in Primary Care.

Key-words: Mental Health, Primary Health Care, Primary Health Care Services, Matrix Support.

Introdução

O novo modelo de atenção à saúde mental do Brasil tem forte influência das mudanças de paradigmas da saúde no século XX e das políticas públicas sociais. Compreender a configuração e a conformação desse modelo implica em analisar processos históricos de luta sanitária mundial e avaliar a dinâmica e a produção da assistência às necessidades de saúde mental presentes na rede. Destaca-se que avaliar é um processo de medir, comparar e emitir juízo de valor para tomada de decisão (Tanaka, 2004). Nesse sentido implica em estabelecer critérios e parâmetros para a obtenção de resultados que traduzam a capacidade de intervenção em situações-problema. Avaliar passa a fazer parte das ações de saúde, inclusive de saúde mental, pela necessidade de se efetivar uma nova política de serviços e cuidados (Onocko-Campos e Furtado, 2006).

As mudanças na atenção à saúde mental no município de Fortaleza têm um processo histórico e político recente e continua desafiador transformar em realidade a proposta da reforma psiquiátrica brasileira. Se comparada a outros municípios cearenses, que no início dos anos 1990 já se lançavam pioneiros no processo, Fortaleza não implementou as mudanças no modelo hospitalocêntrico, tendo em vista os interesses dos hospitais psiquiátricos e ambulatórios de psiquiatria em postos de saúde pública, e que esbarraram na dificuldade de gestão com os novos dispositivos e equipamentos de saúde presentes na Atenção Básica (AB) e nos serviços especializados em saúde mental, bem como na relação com a comunidade/usuário.

No entanto, apesar das dificuldades encontradas no contexto local, é possível identificar uma proposta de atenção à saúde mental em rede que articula objetos e objetivos da AB e da saúde mental. Essa proposta se encontra atualmente questionada quanto ao alcance das ações de saúde mental na Atenção Básica no município de Fortaleza.

A Atenção Básica no município tem demonstrado um volume de possibilidades e potencialidades capazes de ir além do atendimento à doença, o que torna cada vez mais possível acreditar em ações de saúde mental que visem à produção de estados saudáveis. Essa condição evitaria o isolamento do paciente em hospitais, o sequestro do convívio social, a perda de vínculo familiar e social e prognósticos negativos de doença. (Fortaleza, [s.d.]).

A estratégia de implantação da AB está baseada na expansão das Equipes de Saúde da Família (ESF), as quais se têm deparado com uma realidade até então pouco comum e pouco diagnosticada na AB, pois, segundo o Ministério da Saúde (MS): 56% das equipes de saúde da família referiram realizar "alguma ação de saúde mental". Por sua finalidade e forma de atuação junto à comunidade, a AB apresenta-se potencialmente como elemento estratégico no enfrentamento de agravos vinculados ao sofrimento psíquico apresentados pela demanda. (Brasil, 2003).

Entretanto, não significa que se tenha chegado a uma situação ideal para o atendimento à saúde mental na AB. Isso,mesmo considerando que a implementação da ESF e dos novos serviços substitutivos em saúde mental - especialmente os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) - assinala um indiscutível avanço na política de saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da vinculação entre equipes de distintos níveis de atenção à saúde e do aumento de resolubilidade propiciado pelos serviços substitutivos em crescente expansão, bem como a resolução dos problemas de saúde da população O estudo de Tanaka e Ribeiro (2006) mostra as dificuldades na identificação de problemas de atenção à saúde mental na AB. O estudo identificou que pediatras que atendem nesse âmbito têm a sensibilidade reduzida para reconhecer, intervir ou referenciar crianças com problemas de saúde mental que procuram atendimento em UBS. Como estratégia para minimizar ou mesmo solucionar esse problema, foi proposto o arranjo organizacional Apoio Matricial (ApM), que se configura como um suporte técnico especializado, ofertado a uma equipe interdisciplinar de saúde, a fim de ampliar seu campo de atuação e qualificar suas ações. Trata-se de um dispositivo, segundo Campos (1999), organizacional, que pretende oferecer retaguarda assistencial, um arranjo que visa a aumentar o grau de resolubilidade das ações de saúde, reformulando a organização dos serviços no sentido de uma prática mais horizontal entre os saberes nas equipes interdisciplinares na AB. Campos e Domitti (2007, p. 400) afirmam:

Apoio matricial e equipe de referência são, ao mesmo tempo, arranjos organizacionais e uma metodologia para a gestão do trabalho em saúde, objetivando ampliar as possibilidades de realizar-se clínica ampliada e integração dialógica entre distintas especialidades e profissões.

Com o ApM, o vínculo estabelecido entre usuários e profissionais passa a orientar e regular as ações terapêuticas. Os apoiadores e/ou as Equipes de Referência, em conjunto com as equipes da AB, são horizontalmente responsáveis pelo acompanhamento de cada usuário. Tem-se, dessa forma, condições de se fazer uma reordenação nos processos de atenção à saúde, valorizando outras dimensões que não a biológica, subvertendo o modelo médico dominante, que se identifica na fragmentação do trabalho e no excesso de encaminhamentos desnecessários às diversas especialidades (Campos e Domitti, 2007; Figueiredo, 2005; Onocko-Campos e Furtado, 2006; Campos, 2000).

Nesse sentido, torna-se relevante conhecer como o ApM na rede básica de saúde do município tem estruturado na prática a atenção ao usuário com transtorno mental leve ou com necessidades de atendimento básico em saúde mental. A abordagem para avaliar os serviços de saúde mental requer uma compreensão dialética das dimensões presentes no contexto da saúde mental (Onocko-Campos e Furtado, 2006; Campos 2006).

Objetivos

Considerando a proposta de que o ApM seja um novo arranjo organizacional em saúde na AB, que leva à maior resolubilidade das ações de saúde e reformula a organização dos serviços para uma prática interdisciplinar, buscou-se, na perspectiva dos profissionais, avaliar os alcances e os limites da implementação do Apoio Matricial em saúde mental na AB que podem ser identificados nos aspectos da forma de execução do serviço, da participação dos profissionais e do acesso pelo usuário.

Metodologia

O presente estudo é de natureza qualitativa, do tipo estudo de caso, empregando abordagem avaliativa junto a serviços e práticas de saúde na Atenção Básica. Utilizou-se a abordagem qualitativa em pesquisa, na perspectiva de analisar as interpretações que os sujeitos sociais atribuem aos fatos, práticas e relações quanto às próprias práticas dos sujeitos. (Yin, 2005; Deslandes, 2004).

A abordagem qualitativa em associação com o desenho do tipo estudo de caso são fundamentais quando o fenômeno estudado é complexo, quando o contexto tem peculiaridades e, principalmente, quando o foco da pesquisa é uma intervenção inovadora, com informações parcialmente produzidas e agregadas, que é o contexto do Apoio Matricial em saúde mental na Atenção Básica no município de Fortaleza. Desse modo é possível identificar e construir proposições relativas às ações dos serviços que são delineadas pelo diálogo entre as distintas lógicas culturais em que os serviços, profissionais e usuários estão inseridos. (Yin, 2005; Nogueira-Martins e Bógus, 2004; Hartz, 1999).

O estudo foi realizado no município de Fortaleza-CE. A capital está dividida em seis áreas regionais. Cada região é administrada por uma Secretaria Executiva Regional - SER. Elegeu-se como critérios de inclusão/definição da Regional a ser estudada: SER com a área de contexto histórico de maior oferta de serviços de saúde mental na Atenção Básica, com ApM implantado por mais tempo no município, com maior número de serviços de saúde mental de distinta complexidade, contingente populacional existente significativo e projetos com vínculos acadêmicos. Identificou-se a SER-IV, dentre todas as regiões, que atendia a todos os critérios estabelecidos. A SER-IV é composta por 12 (doze) Unidades Básicas de Saúde (UBS) e, dessas, foram selecionadas as 04 (quatro) UBSs da Regional pioneiras na implantação do ApM no município.

Tendo em vista a metodologia de estudo de caso, os critérios para escolha foram: a) equipes completas e com assiduidade nas atividades de matriciamento; e b) com maior tempo de prática em ApM.

Os sujeitos da pesquisa foram 12 (doze) profissionais das equipes de saúde da família, sendo: 4 médicos, 4 enfermeiros e 4 agentes comunitários de saúde de cada UBS selecionada.

Os profissionais selecionados foram entrevistados individualmente. Foi realizada observação direta pela pesquisadora da prática do atendimento à saúde mental feita pelos profissionais, em cada uma das UBS participantes do projeto.

A análise dos dados primários coletados nas entrevistas buscou melhor compreensão e análise dos processos individuais e coletivos presentes nas falas e atitudes dos sujeitos. Ao final foram constituídas categorias empíricas que permitiram revelar como se reorganiza um serviço de Atenção Básica para o atendimento à saúde mental com o Apoio Matricial (Bardin, 1977; Minayo, 2006).

A pesquisa que origina os dados contidos neste artigo foi submetida e aprovada pelos Comitês de Ética e Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública (COEP/FSP) da Universidade de São Paulo e da Universidade Estadual do Ceará (CEP/UECE), com os respectivos números de processo: COEP/FSP 1718 e CEP/UECE 0818537-0.

Resultados

As informações analisadas permitiram identificar o Acesso e a Operacionalização do Apoio Matricial em Saúde Mental na AB como dimensões estruturais para a Organização do Serviço de Saúde da AB no atendimento aos usuários com transtornos psíquicos. Destaca-se:

Acesso

Identifica-se que o matriciamento em saúde mental na AB possibilita a reorganização da entrada do usuário ao garantir o acesso da demanda de saúde mental. Para esta situação, tomou-se a compreensão de acesso organizada por Travassos e Martins (2004) em que o acesso se dá pelo grau de facilidade com que as pessoas obtêm os cuidados necessários à resolução de seus problemas de saúde. Identificam-se, nas falas seguintes, as características que demonstram esse alcance organizacional possibilitado pela implantação do ApM.

Quadro 1 - Clique para ampliar


Tomada de Decisão

A partir do contexto vivenciado pelos profissionais da Estratégia Saúde da Família junto ao matriciamento, exposto em suas falas, aponta-se a tomada de decisão como aspecto favorecido pela forma como acontece o ApM, pois permite que eles deliberem sobre suas ações, promovam cooperação e decisão coletiva, pactuação com a organização do serviço relativa à disposição da agenda de atendimento e triagem. Demonstra também níveis de sensibilização e compromisso dos profissionais do Programa de Saúde da Família e da UBS com a saúde mental na Atenção Básica.

As falas também demonstram que o processo de matriciamento para o atendimento aos casos de saúde mental é capaz de produzir novas práticas clínicas e institucionais junto às Equipes de Saúde da Família (ESF).

Quadro 2


A Participação dos Profissionais no ApM

De acordo com os profissionais, existem limitações na execução do ApM em saúde mental nas Unidades relativas à participação e ao envolvimento de todos os trabalhadores da saúde das UBS. Os encontros/reuniões revelam a frequência e manutenção de um mesmo grupo, o que pode permitir melhor capacitação profissional, mas também se revela uma prática voluntariosa e de identificação pessoal com a área de saúde mental. As falas a seguir permitem identificar essas limitações:

Quadro 3 - Clique para ampliar


Os Desafios para reorganizar o Serviço

Definir uma agenda para o dia de Apoio Matricial na UBS e orientar as ESF a participarem desse momento não parece ser o suficiente para garantir que o serviço esteja organizado a fim de que os profissionais possam criar e desenvolver novas práticas e condutas no atendimento aos casos de saúde mental. Eles relatam as barreiras enfrentadas com frequência:

Quadro 4 - Clique para ampliar


Cabe ressaltar que o reduzido número de profissionais da AB, o pouco envolvimento e a escassa valorização pelos demais profissionais da Unidade, bem como o Regime de Trabalho e carga horária impõem limites à AB em incorporar as ações de saúde mental. Portanto, a implementação de um arranjo organizacional como o ApM justifica-se como dispositivo para o aprimoramento teórico-prático de saúde mental na Atenção Básica

Discussão

A proposta de avaliar a melhoria da qualidade do atendimento em saúde mental na AB, a partir da incorporação da estratégia do ApM, remete a um dos pontos críticos iniciais nessa questão: tanto a Estratégia Saúde da Família como o Arranjo Organizacional Apoio Matricial fazem parte de uma nova conjuntura de políticas públicas de saúde no Brasil, e em sua implementação rompem com paradigmas e superam saberes e práticas institucionalizados.

Diante do exposto, os resultados apresentados neste estudo suscitam a necessidade de discutir os processos, muitas vezes dicotômicos, que envolvem o atendimento à saúde mental pela AB do município de Fortaleza. O estudo com os profissionais das ESF das quatro UBS pioneiras no atendimento à saúde mental com os do Apoio Matricial (ApM) revela aspectos fundamentais e críticos que ocorrem na implementação desse dispositivo. Nesse sentido, o estudo traz à tona a reflexão de quanto esse processo é capaz de provocar a reorganização do serviço, mesmo que ainda encontre limitações que podem ser consideradas típicas do conflito: atendimento integral na AB e do lugar de especificidade da saúde mental.

Os achados apontam que, nas quatro UBS, o Apoio Matricial propiciou a reorganização do serviço de forma a ampliar o acesso ao atendimento às necessidades de saúde mental dos usuários. A garantia do acesso tem propiciado a chegada aos serviços de saúde de usuários que não eram captados antes do apoio matricial.

Ao considerar que acesso não é somente a entrada do usuário no serviço, verifica-se que a implementação do ApM não garante o acesso integral, pois nota-se falha no subsequente acompanhamento de casos e no atendimento de suas necessidades de saúde. Portanto, existe o comprometimento quer da qualidade na prestação de serviços que fortaleça a construção de vínculos pelos profissionais, quer do acesso integral dos usuários aos serviços.

Ressalta-se que a forma de atuar dos profissionais da AB em relação à assistência em saúde mental revela que as equipes de Saúde da Família negligenciam em ações que podem ser desenvolvidas com o usuário junto à família e à comunidade, pois segundo Machado e Mocinho (2003), as ações de saúde da família podem e devem ser deflagradas no meio onde o indivíduo está inserido, permitindo que acesso e vínculo sejam estabelecidos entre equipe e usuário para que a continuidade da atenção permita que os profissionais tenham maior vivência no trabalho com pessoas com transtorno mental.

Embora não tenha sido objetivo deste estudo mensurar a expansão do acesso dos usuários ao serviço, com as falas e com a observação foi possível identificar o restrito acesso ao ApM, considerando o número de atendimento/dia para o matriciamento e sua periodicidade mensal. Agrava-se a situação quando o atendimento programado na agenda de todos os envolvidos não é consumado por ausência ou redução de critérios para a triagem dos casos e sem os encaminhamentos referenciados pelo CAPS.

As dificuldades identificadas referentes ao acesso remetem a processos dicotômicos na estruturação de um dispositivo como o ApM, pois o serviço e seus técnicos mostram-se passivos mediante a lógica de gestão ainda verticalizada, à espera de comando. Entretanto, quando estão no seu próprio espaço de gestão, o atendimento, buscam maior resolubilidade e se veem obrigados a revisar sua prática e a tomada de decisão. Nesse processo os profissionais se descobrem mais autônomos e mais fortalecidos em sua prática.

Nesse sentido, estudos realizados junto à ESF por Luchese e colaboradores (2009) e por Dimenstein e colaboradores (2009) apontam claramente a importância de um serviço como o ApM em saúde mental para aumentar a resolubilidade dos serviços da AB. Portanto, questiona-se se a AB estaria realmente comprometida com esse novo serviço que implica respeito e incentivo às tomadas de decisão, à autonomia e à participação de todos os profissionais do serviço para melhor qualidade do atendimento prestado à saúde mental.

O ApM, ao favorecer a autonomia e as tomadas de decisão dos profissionais, produz uma resposta direta no atendimento à demanda na AB. É possível identificar que as práticas, quando revisitadas, intimam os profissionais a construir maior expertise no rol das ações da AB, especificamente as destinadas à atenção da saúde mental, o que consequentemente prenuncia a possibilidade de menor demanda aos serviços especializados.

Nessa circunstância, o envolvimento e a participação dos profissionais das ESF são apontados, cada vez mais, como fundamentais para melhor resolubilidade do serviço. Entretanto, o contexto de cada UBS guarda semelhança quanto à carência de recursos humanos e à efetiva participação no matriciamento, pois somente tomam parte os profissionais que possuem maior identificação com a área de saúde mental ou estão sensibilizados por capacitações em saúde da família e ou em terapia comunitária. A restrita participação dos profissionais compromete o cuidado em saúde mental na AB, pois tira do ApM sua função estratégica de favorecer a reorganização do serviço e das práticas e o deixa sob a condição subjetiva da escolha do profissional em incorporar-se ou não ao Apoio Matricial.

De maneira semelhante ao presente estudo, a pesquisa realizada em Natal por Dimenstein e colaboradores (2009) reforça que: não há clareza acerca do papel desempenhado pelo Apoio Matricial na Atenção Básica e os profissionais não se sentem preparados para uma forte demanda de saúde mental.

Diante do exposto, configura-se que o acesso, a tomada de decisão, a participação e os desafios impostos aos cuidados de saúde mental na AB são problemas que remetem ao planejamento, reorganização e avaliação do serviço, pois desde a recepção do usuário na UBS e seu acompanhamento pela equipe de saúde da família, revela-se a necessidade de regulação da porta de entrada e da oferta de serviço potencialmente capaz de atender ao usuário. (Silveira e Vieira, 2009).

Os resultados do presente estudo mostram desafios que ainda se manifestam na organização dos processos de trabalhos dos profissionais da ESF para o atendimento aos casos de saúde mental na AB.

Considerações Finais

O presente estudo reconhece que existem avanços e inovações ao produzir uma atenção qualificada no atendimento à saúde mental com a implementação do ApM no município de Fortaleza. As experiências vividas pelas Unidades de Saúde e os profissionais pioneiros em atuar com o matriciamento no município têm revelado a necessidade de as ações serem estruturadas para uma prática autônoma e consensual, pautada no sujeito, na lógica de território com ações individuais e coletivas necessárias para garantir o atendimento à saúde mental na AB.

A análise das falas dos sujeitos na pesquisa permitiu avaliar que o processo de incorporação do ApM em saúde mental na AB é complexo. Foi possível identificar um processo incipiente de interação com os outros níveis de atenção, com potencial de promover a reorganização dos serviços e das práticas. No entanto, essas mudanças estão sempre mergulhadas nos conflitos inerentes aos serviços e ações da AB.

De acordo com os dados, o reconhecimento da demanda com transtorno mental por parte do serviço e dos profissionais já revela um ganho em potencial para a saúde mental na AB. Ao garantir o atendimento inicial do usuário no serviço, não é possível assegurar o acesso a todos os serviços da rede na busca pela resolução das necessidades de saúde. A Atenção Básica encontra dificuldades em manter o seguimento na atenção aos casos de saúde mental. Constata-se que os usuários recebem o atendimento de forma pontual nos dias dos encontros com o matriciamento, identificando-se a fragilidade do acesso e o comprometimento da integralidade na atenção aos casos de saúde mental. Assim o ApM tende a constituir-se em mais uma atividade especializada na AB.

A pesquisa mostra que o ApM tem o potencial de permitir a construção de novos processos de trabalho que põem em questão a necessidade de deter maior conhecimento teórico-prático e informações de saúde mental, com enfoque multi e transdisciplinar, questionando a formação tradicional nesta área de atenção.

Apesar dos cursos e das oportunidades de educação permanente em serviço ofertados na área de saúde mental pelo município, existe uma carência de capacitação para os aspectos subjetivos do cuidar em saúde mental, como o manejo de crises, o relacionamento interpessoal e instrumental terapêutico, que são apontados como requisitos fundamentais para atuar em saúde mental na AB (Fortaleza, [s.d.]).

O cuidar da saúde mental na AB, incorporando o ApM nos serviços de AB em Fortaleza tem percorrido os primeiros passos, mas ainda tem enfrentado as dificuldades das ESF em assumirem a atenção em saúde mental, bem como a carência de um fluxo adequado entre os distintos níveis de atenção. Apesar dessas limitações, a implementação tem possibilitado, ao serviço e aos profissionais, maior sensibilização na aceitação da saúde mental na AB.

Recebido em: 15/10/2010

Reformulado em: 02/06/2011

Aprovado em: 09/08/2011

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  • 1
    Artigo produzido a partir de Tese de Doutorado em Saúde Pública. Morais, A. P. P. Saúde Mental na Atenção Básica: o desafio da implementação do apoio matricial. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP, 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012

    Histórico

    • Recebido
      15 Out 2010
    • Aceito
      09 Ago 2011
    • Revisado
      02 Jun 2011
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