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A visita domiciliária na Estratégia de Saúde da Família: conhecendo as percepções das famílias

Home visiting in the Family Health Strategy: investigating families' perceptions

Resumos

Entendendo as visitas domiciliárias enquanto tecnologia de interação no cuidado à saúde da família, este artigo teve por objetivo compreender os significados atribuídos por essas famílias à visita domiciliária realizada pela Estratégia Saúde da Família (ESF), com a intenção de reconhecer as dificuldades e potencialidades dessa prática. Nessa perspectiva, utilizou-se abordagem qualitativa, em que os dados foram coletados através de entrevista aberta e analisados segundo a Teoria das Representações Sociais. A pesquisa foi realizada no território de abrangência de uma Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF) localizada na zona leste do município de São Paulo, sendo selecionadas cinco famílias aleatoriamente (sorteio). Os resultados mostraram que a visita domiciliária, apesar de apresentar limitações devido à concentração em torno de práticas curativistas direcionadas aos indivíduos, que tornam secundárias a produção de autonomia e a corresponsabilização das famílias no cuidado à saúde, foi concebida como importante meio de aproximação entre as famílias e a ESF, favorecendo o acesso às ações e aos serviços de saúde, sendo apontada como instrumento de humanização da atenção à saúde ao propiciar a construção de novas relações entre usuários e profissionais e a formação de vínculo entre esses.

Visita Domiciliária; Estratégia Saúde da Família; Representação Social


Understanding home visiting as interaction technology in family healthcare, this article aimed to apprehend the meanings attributed by these families to the home visiting performed by Estratégia Saúde da Família (ESF - Family Health Strategy), with the purpose of recognizing the difficulties and potentialities of this practice. In this perspective, a qualitative approach was used. Data were collected through open interviews and analyzed in accordance with Social Representations Theory. The research was carried out in the catchment area of a Primary Family Health Care Unit, which is located in the east zone of the city of São Paulo, and five families were randomly selected (through a draw). The results showed that home visiting presents limitations because of curative practices directed to individuals, which makes autonomy production and accountability of the families in taking care of their health become secondary. However, home visiting was considered an important way of making the families and ESF become closer, favoring the access to health actions and services. It was pointed as a humanization instrument in healthcare, as home visiting enables the construction of new relationships between users and professionals and the formation of links among them.

Home Visiting; Family Health Strategy; Social Representation


PARTE I - ARTIGOS

Mariene Mirian CruzI; Monique Marie Marthe BourgetII

IGraduada em Odontologia. Pós-graduanda em Saúde da Família - modalidade Residência Multiprofissional. Endereço: Rua Firmino Martins, 34, Conjunto dos Metalúrgicos, CEP 06150-560, Osasco-SP, Brasil. E-mail: marienemc12@yahoo.com.br

IIMédica. Especialista em Medicina de Família e Comunidade. Mestre em Epidemiologia. Endereço: Rua Santa Marcelina, 177, Itaquera, CEP 08270-070, São Paulo-SP, Brasil. E-mail: monique@santamarcelina.org

RESUMO

Entendendo as visitas domiciliárias enquanto tecnologia de interação no cuidado à saúde da família, este artigo teve por objetivo compreender os significados atribuídos por essas famílias à visita domiciliária realizada pela Estratégia Saúde da Família (ESF), com a intenção de reconhecer as dificuldades e potencialidades dessa prática. Nessa perspectiva, utilizou-se abordagem qualitativa, em que os dados foram coletados através de entrevista aberta e analisados segundo a Teoria das Representações Sociais. A pesquisa foi realizada no território de abrangência de uma Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF) localizada na zona leste do município de São Paulo, sendo selecionadas cinco famílias aleatoriamente (sorteio). Os resultados mostraram que a visita domiciliária, apesar de apresentar limitações devido à concentração em torno de práticas curativistas direcionadas aos indivíduos, que tornam secundárias a produção de autonomia e a corresponsabilização das famílias no cuidado à saúde, foi concebida como importante meio de aproximação entre as famílias e a ESF, favorecendo o acesso às ações e aos serviços de saúde, sendo apontada como instrumento de humanização da atenção à saúde ao propiciar a construção de novas relações entre usuários e profissionais e a formação de vínculo entre esses.

Palavras-chave: Visita Domiciliária; Estratégia Saúde da Família; Representação Social.

ABSTRACT

Understanding home visiting as interaction technology in family healthcare, this article aimed to apprehend the meanings attributed by these families to the home visiting performed by Estratégia Saúde da Família (ESF - Family Health Strategy), with the purpose of recognizing the difficulties and potentialities of this practice. In this perspective, a qualitative approach was used. Data were collected through open interviews and analyzed in accordance with Social Representations Theory. The research was carried out in the catchment area of a Primary Family Health Care Unit, which is located in the east zone of the city of São Paulo, and five families were randomly selected (through a draw). The results showed that home visiting presents limitations because of curative practices directed to individuals, which makes autonomy production and accountability of the families in taking care of their health become secondary. However, home visiting was considered an important way of making the families and ESF become closer, favoring the access to health actions and services. It was pointed as a humanization instrument in healthcare, as home visiting enables the construction of new relationships between users and professionals and the formation of links among them.

Keywords: Home Visiting; Family Health Strategy; Social Representation.

Introdução

A família pertence a diferentes estratos e classes sociais configurando-se de forma diferente de acordo com a cultura e a inserção no sistema produtivo. Portanto, existem famílias histórica e socialmente situadas, e não família num sentido universal (Kaloustian, 1994; Gomes, 2005). Considerando a multiplicidade de concepções e organizações familiares, diversas teorias científicas dedicaram-se ao estudo das famílias, sendo a Teoria Sistêmica, surgida no século XX, uma das mais difundidas nesse campo. Nessa perspectiva, a família é vista como um sistema de relações, onde os indivíduos são considerados sistemas por si só, que fazem parte de sistemas mais amplos, como o sociocultural, e assim por diante, em que o comportamento de cada um dos membros afeta e é afetado pelos outros membros do grupo e pelos sistemas mais amplos (Cerveny, 2003).

No entanto, existe um consenso entre essas diversas teorias ao considerar que a família configura-se como o lócus privilegiado para o desenvolvimento humano (Kaloustian 1994; Ciampone, 1999; Cerveny, 2003; Melo Filho, 2004; Sarti, 2004; Gomes, 2005; Dessen, 2007).

Por considerar a influência da família na saúde de seus membros, Kaloustian (1994) discorre da importância de tomar a família como unidade de atenção das políticas públicas, buscando opções mais coletivas e eficazes na proteção dos indivíduos de uma nação. O tema família vem sendo discutido durante décadas no setor saúde. Em âmbito mundial, o interesse na atuação familiar retomou com a escolha do ano de 1994 como o "Ano Internacional da Família" pela Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, na década de 1980, junto às discussões das políticas públicas e à reforma do SUS (Sistema Único de Saúde), esse tema foi consagrado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Kaloustian, 1994; Vasconcelos, 1999), ocorrendo com isso o fortalecimento de programas de inserção da família no cenário das políticas de saúde.

Na tentativa de reorganizar a atenção básica em saúde em substituição à prática assistencial vigente, voltada para a cura de doenças, e também buscando redução de custos e minimização de conflitos sociais, o Ministério da Saúde (Brasil, 1994) assumiu, em 1994, o desafio de incorporar em seus planos de ações e metas prioritárias o Programa Saúde da Família (PSF). Embora rotulado como programa, o PSF, por suas especificidades, foge à concepção usual dos demais programas concebidos pelo MS, pois não é uma intervenção vertical e paralela às atividades dos serviços de saúde. Pelo contrário, caracteriza-se como estratégia (ESF) que possibilita a integração e promove a organização das atividades em um território definido com o propósito de enfrentar e resolver os problemas identificados (SES, 1997).

A ESF incorpora e reafirma as diretrizes e os princípios básicos do SUS (universalidade, equidade, integralidade, regionalização, participação social e descentralização) e se alicerça sobre três grandes pilares: a família, o território e a responsabilização, além de ser respaldado pelo trabalho em equipe. Para a ESF, a família deve ser entendida de forma integral e em seu espaço social, abordando seu contexto socioeconômico e cultural, considerando que é nela que ocorrem interações e conflitos que influenciam diretamente a saúde das pessoas (Brasil, 1997). Para dar corpo a esse modelo, entre as várias ações projetadas e em execução encontra—se a prática sistemática das visitas domiciliárias (VDs), realizadas pelas equipes de saúde da família (ESF).

A visita domiciliária sempre esteve presente no contexto histórico brasileiro, assumindo características diferentes de acordo com os diferentes cenários sociais, políticos e ideológicos pelos quais perpassou. Embora as VDs não sejam uma estratégia inédita na saúde pública brasileira, atualmente apresentam finalidades mais amplas e complexas. Na segunda década do século XX, a visita domiciliária voltava-se para o cuidado do doente e aos fatores relacionados com a sua doença, sem preocupação com a família enquanto grupo social (Fallate e Barreira, 1998). Na proposta da ESF, a visita deve se articular com os desafios presentes, tendo as famílias como unidade central de atenção.

Apesar de a ESF ter caráter excessivamente prescritivo, não se encontram nos documentos oficiais orientações sobre como conduzir a ação profissional frente às questões levantadas pela dinâmica familiar ou de como aplicar a Teoria Sistêmica que a fundamenta (Ciampone, 1999; Ribeiro, 2004; Weirich e col., 2004; Oliveira e Marcon, 2007). Contudo, dentre as atividades que realiza, as VDs se destacam como intervenção capaz de promover ações preventivas, curativas, de promoção e de reabilitação dos indivíduos em seu contexto familiar por permitir uma maior aproximação dos profissionais com a realidade de vida e dinâmica das famílias.

Como estratégia de assistência dentro da ESF, as visitas domiciliárias são atividades preconizadas pelo MS e, quando realizadas, passam a constar mensalmente do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), permitindo-nos perceber por meio de indicadores quantitativos que esta é uma intervenção produzida periodicamente pelos profissionais. Porém, tais indicadores não permitem o monitoramento e acompanhamento da operacionalização das VDs. A busca por informação qualitativa permite maior aprofundamento na subjetividade dos atores envolvidos, por meio da relação entre serviço, profissional e família. Para tanto, fazem-se necessárias análises qualitativas das práticas de saúde e dos processos de trabalho cotidianos na ESF, estando entre eles as VDs (Albuquerque, 2006).

O alcance da qualidade almejada para a ESF requer a consideração aos diversos sentidos atribuídos às suas práticas pelos diferentes atores nelas envolvidos, em especial as famílias atendidas.

O conhecimento das percepções individuais e comunitárias torna-se uma ferramenta de extrema importância para a aproximação e adequação de estratégias que visam à garantia da oferta satisfatória de serviços e produtos para os sujeitos e coletivos (Strassburger, 2007).

Assim, na saúde pública torna-se importante a identificação da compreensão dos aspectos relacionados à saúde pelos sujeitos. A interpretação adequada das ações em saúde por parte das famílias atendidas no PSF colabora diretamente para melhor eficácia das atividades desenvolvidas nas visitas domiciliárias, seja na promoção e educação em saúde ou na prevenção de doenças e agravos.

As concepções das famílias sobre as ações em saúde podem ser compreendidas a partir da Teoria das Representações Sociais (TRS), definida como modalidades de conhecimento prático, orientado para a comunicação e para a compreensão do contexto social, material e ideativo em que vivemos. Apresentam-se como formas de conhecimento que se manifestam como elementos cognitivos (imagens, conceitos, categorias, teorias), sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, contribuindo para a construção de uma realidade comum que possibilita a comunicação (Jodelet, 1989).

Assim, propõe-se entender as RS sobre visita domiciliar elaboradas por famílias atendidas pela ESF, objetivando conhecer suas percepções acerca da importância dessa prática ao ser realizada na Atenção Básica como provável contribuição para a formação de condutas e de orientação da comunicação entre a ESF e as famílias - o foco do atendimento.

Procedimentos Metodológicos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de campo, exploratória, fundamentada na Teoria das Representações Sociais (TRS). Basear esse estudo na TRS pressupõe o entendimento de que o sentido atribuído a determinado objeto se manifesta na conduta das pessoas, influenciando as estruturas e os comportamentos sociais. Além disso, as representações sociais também possuem núcleos de transformação e resistência na forma de conceber a realidade (Minayo, 2004).

Nessa perspectiva, a TRS pode constituir-se em uma forma de abordagem importante das questões referentes às atitudes, resistências, dificuldades pessoais, ou mesmo aspectos favorecedores, na realidade dos serviços, sobretudo nos espaços da Saúde da Família, em que as relações de proximidade se estreitam.

A pesquisa foi desenvolvida no território de abrangência de uma Unidade Básica de Saúde da Família localizada na zona leste do município de São Paulo. Esse território é dividido em três áreas, sendo cada uma delas subdividida em cinco microáreas, atendendo a um total de 2924 famílias cadastradas. Este estudo foi desenvolvido na área de responsabilidade da equipe na qual a pesquisadora foi inserida, sendo selecionadas cinco famílias de microáreas distintas, aleatoriamente (sorteio). Foi escolhido um representante de cada família, maior de 18 anos de idade, de acordo com a disponibilidade do mesmo e de sua presença e participação frequente nas visitas realizadas em seu domicílio pelo agente comunitário de saúde e/ou outros profissionais de saúde (auxiliar de enfermagem, enfermeiro, médico, cirurgião-dentista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional) da UBSF.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Prefeitura de São Paulo sob o protocolo CAAE nº 184/08, parecer 0006/09, atendendo a todos os requisitos exigidos pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, incluindo a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O voluntário foi contatado através de visita domiciliária, visando um contato inicial, realizada pela pesquisadora com a presença do agente comunitário de saúde responsável pela família do voluntário, optando-se pela entrevista aberta, pois a "conversação como principal fonte de dados permite que o pesquisador ajude o informante a descrever suas experiências vividas, sem liderar a discussão", além de acessar o universo simbólico do informante, buscando compreender suas experiências (Polit e col., 2004, p. 209), sendo gravada e posteriormente transcrita. Os dados foram coletados no período de fevereiro de 2009 a março de 2009. A entrevista apresentou a seguinte questão norteadora: Descreva uma visita domiciliária que tenha sido marcante para você por algum motivo.

Para manter o anonimato dos participantes, estes foram apresentados mediante o código "P", significando participante, seguido por um número dado a cada entrevista.

Foram indicados dois locais para a realização da entrevista: o domicílio do voluntário ou a Unidade Básica de Saúde da Família, sendo reservado o direito de escolha de um desses locais pelo voluntário.

Para análise e tratamento de dados foi utilizada a Análise de Conteúdo, que para Bardin (1977) é "um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção [...] destas mensagens".

As entrevistas foram transcritas e submetidas à exploração dos dados, isolando elementos do discurso e organizando-os em unidades agregadoras de sentidos. Em seguida, foram estabelecidas relações entre os dados obtidos e o referencial teórico, tendo como base o material disponível sobre ESF e publicações científicas sobre família.

Resultados e Discussão

Após leitura exaustiva dos discursos foi possível construir quatro categorias que emergiram das falas dos participantes: A VD como meio facilitador de aproximação das necessidades da população; A VD como uma prática rotineira e importante; A VD como instrumento de humanização da atenção à saúde; Práticas focalizadas na doença/modelo curativista:

A VD como meio facilitador de aproximação das necessidades da população

Entre os entrevistados encontra-se de forma recorrente a ideia de que a visita domiciliária é um meio facilitador importante aos serviços e ações de saúde:

"Ela [ACS] vem aqui sempre é saber como vai a gente né, medir pressão né e marcar consulta, um exame [...] trazer algum papel que às vezes a gente vai no médico e o médico encaminha praí [UBSF] num é." (P1)

"Elas [ACS e auxiliar de enfermagem] orientam sobre tudo né. Sobre passar lá [UBSF] caso a gente tenha alguma coisa, mede pressão, tudo." (P3)

"Eu entrego a ela [ACS] [...] aí ela entrega à doutora [médica] C., a doutora C. passa pra mim a receita e aí eu pego lá no posto [UBSF]." (P2)

Nas falas acima, tal importância advém do reconhecimento da visita como um meio facilitador do acesso ao serviço local de saúde no próprio domicílio, a cuidados individualizados e a uma dada tecnologia assistencial valorizada (prescrição medicamentosa).

Entende-se que a visita evita o deslocamento das pessoas até a UBSF para serem atendidas em situações em que se encontram impossibilitadas de se deslocar, por exemplo, por desconforto, doença ou falta de tempo.

Assim, a vivência dessas situações nas famílias dos participantes se expressa na forma de demanda direcionada para as visitas, sendo estas reconhecidas como parte do arsenal social e tecnológico de que se dispõe no enfrentamento de tais situações pela população usuária:

"Sobre minha saúde, às vezes eu não compreendo nada, pra sair aqui eu não saio sozinha [...] quer dizer que elas [profissionais da UBSF] vindo, elas me orientam, pra mim já é um bem." (P5)

"Ela [ACS] pergunta sobre tudo, pergunta como é que as crianças tá, como que eu tô, o L. tá, porque ele teve derrame né e quando tem consulta do tratamento dele quem consegue a medicação é ela, eu vou, entrego a ela, ela entrega à doutora [médica]." (P2)

A partir da caracterização inicial da visita e dos aspectos valorizados pelos participantes pode—se destacar a sua importância como meio facilitador das ações e dos serviços de saúde e para a ampliação da equidade ao permitir a aproximação do serviço das necessidades da população atendida.

Esses dois aspectos são condizentes com os princípios do SUS de universalidade e equidade e com a proposta da ESF, ao ter em vista a ampliação do acesso às ações e serviços de saúde e a atenção à diversidade e particularidade das necessidades das famílias (Brasil, 2006).

A VD como uma prática rotineira e importante

Na caracterização da visita observa-se que ela consiste em prática de trabalho rotineira realizada pelos profissionais da UBSF e é considerada importante para as famílias que a recebem:

"Sempre a doutora [médica] vem aqui [domicílio] também [...]." (P1)

"[...] elas [profissionais da UBSF] sempre vêm, elas vêm aqui [domicílio] [...]." (P5)

"Ah sempre teve [VD], o pessoal do posto [profissionais da UBSF] sempre tá me visitando, então as pessoas sempre tão comigo né, quando num tá uma tá a outra, então outro dia mesmo teve aquela enfermeira que mede a pressão, conversou bastante, então tava a agente [ACS] também, então elas sempre tão aqui conversando comigo." (P4)

Na ESF a visita domiciliária é tida como um dos meios de viabilização de ações integradas de vigilância, reabilitação, prevenção e promoção de saúde, constituindo-se importante ferramenta de trabalho no cuidado estratégico às famílias atendidas ao permitir o acompanhamento in loco da situação de saúde de cada um de seus membros, esperando-se a produção de resultados positivos através da antecipação de diagnósticos personalizados, do atendimento e maior orientação ao indivíduo e sua família (Tulio e col., 2000).

Contudo, é preciso lembrar também que ações no domicílio implicam em desafios para os profissionais ao aproximar suas ações da dinâmica de vida das famílias atendidas, englobando seus aspectos culturais, sociais, religiosos e afetivos na maneira de lidar com questões relativas à saúde de seus membros.

Assim, a aproximação dessas duas perspectivas é essencial para que a ideia de monitoramento do processo saúde-doença, proposta pela política de atenção básica, não se torne uma prática controladora sobre a vida e os comportamentos em saúde das famílias, destituindo-as de autonomia, visto que a visita domiciliária é um espaço privilegiado para o diálogo e a troca de saberes.

A visita como instrumento de humanização da atenção à saúde

O conjunto das entrevistas revela que entre os aspectos valorizados na VD encontram-se o diálogo e a atenção dispensada, promovendo a sensação de bem-estar:

"Então é um momento assim que a gente sente alegria né, depois a gente fica assim com aquela alegria sabendo que as pessoas [profissionais da UBSF] vêm visitar a gente [...] é igual que nem fosse a minha mãe, a minha filha, porque né que viesse me visitar que eu sentisse aquele prazer na minha vida." (P4)

"Eu me sinto bem porque quando a gente conversa com elas [profissionais da UBSF] tem alguma coisa que a gente desabafa né." (P3)

Há especial valorização das relações afetivas estreitas estabelecidas com o profissional por meio da visita, constituindo-se laços de confiança entre a população atendida e os profissionais:

"Eu gostei de falar né e aí então eu fiquei muito feliz de desabafar porque num é pra todo mundo que a gente pode falar a vida da gente, mas a gente confia muito nas pessoas assim do posto [profissionais da UBSF]." (P4)

"É, R. [ACS] sempre vem me visitar né. É a única visita que eu tenho é a dela e ela é uma pessoa muito legal [...]." (P2)

Em uma das entrevistas observou-se o estabelecimento variável de vínculo de acordo com a categoria profissional:

"Essa visita agora é diferente né. Quando a dentista ou a psicólica [psicóloga] fala comigo né, porque quando elas [médica e enfermeira] vêm, elas num é pra desabafar assim né, e a conversa nossa é sobre a cirurgia, é sobre a minha pressão, então é diferente né." (P4)

O respeito à vida privada e o comportamento ético são tidos e percebidos como essenciais à abertura do domicílio às ações profissionais:

"Fica aqui dentro [no domicílio, durante a visita], eu acho que as enfermeiras num têm a capacidade de sair assim falando né, jamais, jamais vai sair falando da minha vida né no ouvido de alguém [...] é uma conversa que a gente num fala lá fora, só aqui dentro." (P4)

A ESF visa a mudança na relação entre os profissionais e a população, resgatando e valorizando conceitos fundamentais de vínculo, humanização, corresponsabilização e respeito às famílias, reorientando o modo de operar os serviços de saúde.

A humanização da atenção encontra-se na base das propostas de transformação dos cuidados em saúde, o que requer considerar a singularidade e a subjetividade de cada sujeito - usuários, trabalhadores e gestores - no processo diagnóstico-terapêutico, incluindo as dimensões subjetivas e sociais envolvidas no adoecimento. Os valores que norteiam essa política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva no processo de gestão (Brasil, 2004).

Nessa perspectiva, a comunicação se constitui em importante instrumento para humanizar o cuidado em saúde na ESF, tornando-se imprescindível uma abertura do profissional para uma escuta qualificada, oferecendo espaço para o diálogo, estabelecimento de vínculo e de laços de confiança, aspectos importantes à mudança das práticas em saúde a serem potencializadas através da visita domiciliária.

Práticas focalizadas na doença/modelo curativista

Na caracterização das visitas destacam-se as prá-ticas dos profissionais centradas na doença, evidenciando-se a adoção de um modelo curativista em contraposição ao modelo adotado pela ESF, que visa ultrapassar o cuidado individualizado, focado na doença, ao buscar construir ações de saúde a partir das necessidades e do contexto familiar:

"Ah, a gente conversa mesmo sobre doença. Elas [profissionais da UBSF] perguntam se tá com alguma febre, alguma gripe, ou sobre medir a pressão." (P3)

"Quando eu cheguei praquí eu vim ruim, eu fiquei ruim [...] elas [profissionais da UBSF] foram me orientando aí elas foram me ajudando e elas me davam remédio, mandava remédio, mandava buscar o remédio." (P5)

"Quando elas [profissionais da UBSF] vêm, a conversa nossa é sobre a cirurgia, é sobre a minha pressão." (P4)

"[...] a pergunta que ela [auxiliar de enfermagem] faz é se tá tudo bem, como é que tá eu e o L., se tem alguém em casa com febre, alguém doente." (P2)

"Quando ela [enfermeira] vem a minha pressão tá boa, se não tá ela manda eu aumentar mais a dose do remédio e por diante né." (P1)

A evolução das políticas públicas de saúde, bem como as reflexões sobre a formação acadêmica dos profissionais inseridos no SUS, suscitam vários desafios. O modelo assistencial de saúde curativista, centrado na doença (em que o indivíduo é visto como um objeto, desprovido de autonomia e tendo seu contexto familiar/social ignorado), que se tenta abandonar, influenciou e determinou alguns marcos na história dessas políticas que, de certa forma, ainda encontram-se no cotidiano das práticas de saúde.

As falas dos atores indicam a valorização do acesso a direitos sociais históricos, como a atenção clínica, através desse modelo assistencial de saúde tradicional - centrado na doença -, porém é preciso considerar que tais direitos expressam necessidades e demandas em meio às adversidades vividas.

Não é possível ignorar direitos - como a assistência à saúde - bem como as dificuldades relacionadas à universalidade do acesso no âmbito do SUS. Assim, a ESF e a prática das visitas domiciliárias devem enfrentar essa questão buscando a efetiva corresponsabilização e participação crítica das Equipes de Saúde da Família e famílias no planejamento e na execução das ações.

Considerações Finais

Ao analisar as concepções sobre a VD das famílias participantes desta pesquisa, foi possível identificar a articulação dessas concepções em torno de suas vivências, o que merece ser considerado na construção da qualidade almejada para a ESF.

A VD, quando realizada adequadamente, é uma das ações que pode facilitar a compreensão e o cuidado às famílias atendidas ao propiciar o conhecimento de seus modos de vida, crenças, cultura e padrões de comportamento, permitindo incorporar tecnologias leves no cuidado, como a humanização. Nesse sentido, os posicionamentos encontrados remetem à reflexão em torno das potencialidades e limitações dessa prática, considerando que além de reafirmarem uma dada perspectiva de direitos também refletem e reforçam o perfil tradicional das práticas em saúde que se busca modificar.

Assim, destacam-se, por um lado, suas limitações, devido à concentração em torno de práticas curativistas/modelo biomédico direcionadas aos indivíduos, que tornam secundárias a produção de autonomia e a corresponsabilização das famílias no cuidado à saúde. Por outro lado, reforçam-se suas potencialidades, sobretudo ao proporcionar a ampliação do acesso aos serviços e ações de saúde e o fortalecimento do vínculo e humanização na atenção às famílias.

Desse modo, evidencia-se a necessidade de reflexão e debate coletivos em torno da contribuição dessa estratégia para a reorientação dos processos de trabalho nas Unidades Básicas de Saúde da Família.

A VD na ESF é um importante instrumento para a prestação de assistência no domicílio, entretanto, o processo de adentrar o domicílio das famílias requer preparo acerca das concepções de espaço público e privado das famílias atendidas e dos profissionais de saúde, de modo que possa contribuir para a efetivação das premissas de assistência e promoção de saúde adotadas pelo SUS no Brasil.

A VD enquanto ferramenta de assistência à saúde objetiva também orientar, educar, reabilitar e fornecer subsídios para que as famílias atendidas tenham condições de se tornarem autônomas e corresponsáveis no cuidado à saúde. Para que isso efetivamente ocorra, é relevante que exista um processo de interação e comunicação horizontal entre os profissionais de saúde e as famílias, em que os sujeitos interajam da mesma maneira e intensidade, e que as representações das mesmas acerca do processo saúde-doença sejam consideradas no planejamento, organização, execução e avaliação das ações promotoras de saúde.

Recebido em: 17/08/2009

Reapresentado em: 21/12/2009

Aprovado em: 01/03/2010

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  • A visita domiciliária na Estratégia de Saúde da Família: conhecendo as percepções das famílias

    Home visiting in the Family Health Strategy: investigating families' perceptions
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010

    Histórico

    • Recebido
      17 Ago 2009
    • Revisado
      21 Dez 2009
    • Aceito
      10 Mar 2010
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