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Diversidade cultural e os desafios da política brasileira de saúde do índio

EDITORIAL ESPECIAL

Professora do Departamento de Antropologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC

Durante os últimos cinqüenta anos, a posição das minorias perante o Estado se transformou significativamente. Decretos internacionais, bem como a legislação nacional, reconheceram a natureza multiétnica do Estado e a necessidade de assegurar os direitos e o respeito dos diferentes grupos étnicos. No Brasil, essas mudanças legais vieram acompanhadas pelo surgimento de organizações indígenas como força importante dentro da arena política. Maior visibilidade da etnia resultou nas mudanças na política e na organização dos serviços de saúde indígenas.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho assinalou o reconhecimento internacional dos direitos indígenas em 1989. Esse documento foi o primeiro instrumento legal internacional concebido com o objetivo de proteger especificamente os direitos indígenas, exigindo o reconhecimento e o respeito à diversidade cultural dos povos nativos em todas as dimensões, incluindo o emprego, a educação e a saúde entre outros. A Convenção 169 reverteu o ideal de integração dos povos nativos e também substituiu a noção da colaboração eventual dos índios pela da participação ativa nas medidas legislativas e nas decisões que os afetam imediatamente.

O aumento significativo no número de atividades das organizações indígenas nos últimos 25 anos influenciou as mudanças nas políticas relacionadas às minorias étnicas no Brasil, e a Constituição Federal de 1988 afirmou sua composição multiétnica. As questões de poder, etnia, e conflito interétnico dominaram as discussões que concernem às relações do Índio com a sociedade. Embora o povo indígena ainda necessite de uma cidadania plena em uma sociedade sem preconceito e exploração, o surgimento da etnia como uma força política importante teve grandes conseqüências na política de saúde indígena e no papel dos cientistas sociais envolvidos com pesquisa em saúde ou intervenção.

No Brasil, os Índios são minoria numérica e étnica. A população indígena compõe aproximadamente 0,2% da população, e está estimada entre 350.000 e 800.000. Essa população é caracterizada por uma multiplicidade de grupos e idiomas nativos. A maioria dos Índios brasileiros pertence a micro sociedades. Vinte e oito por cento (28,2%) dos 216 grupos indígenas apresentam uma população de menos de 200 indivíduos, e 77% possuem menos de 1000. É impossível caracterizar uma "cultura" indígena única.

Contribuindo para essa situação de diversidade cultural, os grupos se encontram em diversos estados de contato: em um extremo, poucos se mantêm isolados ou semi-isolados e sofrem o impacto da violência e das doenças de contacto. No outro extremo, que é a situação da maioria, os Índios estão em contato freqüente e continuo com a sociedade. Essa última situação caracteriza a maior parte das regiões fora do Amazonas. No Sul, bem como no Nordeste, os Índios enfrentam uma situação de saúde semelhante à da população carente em geral: alta prevalência de desnutrição, tuberculose, problemas dentários, parasitas intestinais, alcoolismo, alta taxa de mortalidade infantil, baixa expectativa de vida, etc. Apesar de não haver estatísticas disponíveis, a AIDS parece poder se tornar a nova epidemia ameaçando a sobrevivência dos povos indígenas.

A Constituição Federal de 1988 foi parte do retorno à democracia no Brasil. Nessa mesma década, a reforma do sistema de saúde com o estabelecimento do Sistema Único de Saúde - SUS delegou maior responsabilidade e poder às prefeituras e ao consumidor. Em face dessa reforma, a Primeira Conferência Nacional para a Proteção da Saúde Indígena foi organizada em 1986, para avaliar sua situação de saúde e para criar uma política especial para eles.

Até o final da primeira Conferência, não havia uma política relacionada à saúde indígena e os serviços de saúde nunca eram adequados. Inicialmente, os missionários forneciam algum atendimento de saúde. A saúde indígena estava entre as responsabilidades do Serviço para Proteção dos Índios (SPI), criado em 1919. Por toda a sua existência, os serviços de saúde eram pequenos em número, esporádicos e desorganizados. Os dados sistemáticos relacionados às condições de saúde não foram mantidos e não havia nenhuma pesquisa. O Serviço Nacional de Tuberculose (SNT) ajudava sua atividade nos anos 50, tratando a tuberculose nas regiões do Alto Xingu e do Araguaia. Em 1956 as Unidades Sanitárias Aéreas -SUSA se uniram para atender populações indígenas isoladas. Os Índios que tinham maior contato com a sociedade nacional não foram cobertos por esses serviços.

A FUNAI – Fundação Nacional do Índio, assumiu as responsabilidades da SPI. Os postos de saúde para a provisão de atenção primária foram estabelecidos dentro das Terras Indígenas – TI. Um único atendente de saúde, que tinha suas atividades complementadas pelas equipes de saúde visitantes, normalmente freqüentava o Posto. Casos difíceis, que necessitassem de tratamento ou diagnóstico sofisticados eram atendidos pelos hospitais locais, os serviços de saúde rural, INAMPS, e as Secretarias de Saúde Estadual, que mantivessem convênios com a FUNAI.

Esses serviços eram altamente insatisfatórios, desorganizados, e ineficientes. Freqüentemente seu papel principal era limitado à distribuição de medicamentos enviados ao local periodicamente. Fora das Terras Indígenas, os Índios sofriam discriminação pelos hospitais locais e outros serviços. As "Casas Indígenas" nos centros regionais eram super lotadas com pacientes e suas famílias e ficaram conhecidas como centros de infecção e disseminação de doenças, incluindo as sexualmente transmissíveis.

Entre a Primeira Conferência Nacional e o estabelecimento do presente Subsistema de Saúde Indígena, diversas tentativas foram feitas para resolver os serviços de saúde indígenas e fazê-lo nos moldes dos princípios do Sistema Único de Saúde, que incluem acesso universal, serviços de saúde humanos e controle social. A responsabilidade pelos serviços de saúde passava entre a Fundação Nacional de Saúde – FUNASA e a FUNAI, e havia problemas crônicos de desorganização, confusão institucional, e falta de verba. Em 1999, o Subsistema de Saúde Indígena, que estabelecia 34 Distritos Especiais de Saúde Indígena – DSEI foi lançado, delegando a FUNASA a responsabilidade total de administrar esse Subsistema. As necessidades que necessitassem atenção além dos Postos de saúde indígenas deveriam ser articuladas com aquelas do SUS. Os princípios de acesso universal, atenção diferenciada, e controle social são os princípios que governam esse Subsistema.

Desde a década de 90, a estratégia de fornecimento de serviços de saúde foi a de criar uma integração entre as instituições governamentais e não-governamentais com as universidades. Seu papel, nem sempre bem definido, incluiu pesquisa, consultas, provisão de serviços, e a provisão de cursos para profissionais de saúde e/ou Índios. A Escola Paulista de Medicina, que estabeleceu o Programa de Saúde do Parque Nacional do Xingu em 1965, foi talvez a instituição mais notável em fornecer serviços de saúde e fazer pesquisa, mas outras instituições também foram importantes. A Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no Rio de Janeiro e Manaus, assumiu um papel importante no treinamento de profissionais e de agentes de saúde. Muitas outras universidades se uniram a essas instituições na última década e houve um crescimento importante dos projetos de pesquisa e intervenção no nível interdisciplinar.

O estabelecimento das 34 DSEIs em 1999 foi acompanhado por um aumento considerável nos recursos financeiros dedicados à saúde indígena e um número cada vez maior de profissionais e programas que se dedicam à saúde indígena. A tendência de mais pesquisa continua e publicações significantes sobre o tema surgiram.

Entretanto, após oito anos, não houve avaliação global do Subsistema. Houve claramente um impacto importante no acesso aos serviços de saúde. Um segundo resultado positivo foi o aumento da participação das Organizações Indígenas. Parte disso foi estimulada pelo estabelecimento de convênios entre tais organizações e a FUNASA para o fornecimento de serviços de saúde às Comunidades Indígenas, eliminando o papel das prefeituras no atendimento primário. Esses convênios causaram conflitos de interesses, e as acusações mútuas entre as partes interessadas podem indicar um aumento do controle municipal na atenção primária nas Terras Indígenas. É muito cedo para avaliar essa situação, mas qualquer que seja o resultado, as Organizações Indígenas fortaleceram seu poder com sua participação.

Apesar dos benefícios positivos, muitas questões importantes ainda necessitam ser respondidas em relação ao sucesso da política de saúde, e os artigos nessa edição são extremamente pertinentes para três questões gerais. A primeira relacionada à situação epidemiológica atual e os problemas com o sistema de informação da FUNASA. Formulado em 2001, o sistema de informação continua enfrentando diversos problemas, impedindo uma avaliação do impacto do número maior de serviços de saúde na prevalência e distribuição de doenças entre a população indígena. Possuímos, como evidência nessa questão, os resultados de pesquisas individuais em situações específicas, que nem sempre indicam resultados favoráveis.

Uma segunda questão tratada nessa edição se refere ao princípio de atenção diferenciada. A atenção diferenciada supõe que profissionais de saúde devem considerar a particularidade cultural da comunidade indígena, e respeitar práticas de saúde tradicionais e curandeiros. Apesar desse princípio ser parte da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, a FUNASA não conseguiu desenvolver diretivas que orientem efetivamente as equipes de saúde. Esforços para oferecer atenção diferenciada são isolados, e há uma tendência a "essencialização" das noções de cultura e tradição, que se tornou centro da luta por poder entre as comunidades e as equipes de saúde.

Uma terceira questão importante se relaciona à eficiência da participação e controle social das comunidades indígenas. Uma hierarquia de conselhos que garanta participação e controle social eficientes foi instituída. Começa com o conselho de saúde local, para o Conselho Distrital, e finalmente para a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena, que reporta ao Conselho de Saúde Nacional. Apesar da participação indígena ser garantida em todos os níveis, pouca pesquisa foi dedicada para examinar se esses conselhos representam processos democráticos e controle social eficiente na prática, ou se de fato eles continuam a ser dominados por grupos de interesse.

  • Diversidade cultural e os desafios da política brasileira de saúde do índio

    Esther Jean Langdon
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2007
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