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Saúde e diversidade

EDITORIAL ESPECIAL

Professor Titular do Departamento de Antropologia - FFLCH/USP

Os médicos sem fronteiras e outros profissionais da saúde que atuam nos países não ocidentais, em especial nos países da África subsaariana, entenderam a necessidade e a importância de trabalhar em estreita colaboração com os antropólogos e outros estudiosos especialistas das sociedades onde prestam serviços. Essa aproximação interdisciplinar nasce justamente da percepção de que, formados numa medicina ocidental baseada numa outra cultura e outra visão do mundo, eles se sentiam bastante limitados em suas intervenções junto às sociedades interessadas. Ou seja, eles começaram a entender que seus conceitos de saúde, de vida, de doença, de cura e de morte eram herdados da educação e da formação ocidentais que nada ou pouco tinham a ver com as realidades do mundo e das sociedades com as quais lidavam profissionalmente.

Entenderam finalmente que nessas diversas sociedades africanas, que são sociedades de culturas antropocêntricas, isto é, onde tudo que existe: os objetos, a natureza e suas contradições, o mundo vegetal, animal e mineral etc. gravitam em torno do ser humano, sem o qual não teriam motivo de existir. Nessa visão antropocêntrica, a saúde, a vida e a morte se originam no próprio ser humano e na sua cultura. De outro modo, a doença, a vida e a morte, contrariamente à visão ocidental, jamais são consideradas como fenômenos naturais, mas sim humanos e culturais e tendo no próprio ser humano e na sua cultura a explicação primeira e fundamental.

Nessa perspectiva de pensamento que considera a pessoa humana e sua cultura como foco central, as principais causas da doença e da morte se resumem a três fatores:

• por inveja ou vingança, uma pessoa pode contratar os serviços de um feiticeiro, isto é, de alguém que conhece e domina as forças da natureza que pode captar e canalizar em forma de energia negativa, que dirigida contra a pessoa visada, a torne doente ou a mate;

• a pessoa doente ou morta pode ter transgredido as normas do grupo, violado os tabus e ofendido os ancestrais ou espíritos familiais. Neste caso, a doença ou a morte é apenas uma punição pelo ato de transgressão. A pessoa doente ou morta pode também ter tentado injustamente castigar alguém por maldade, enviando-lhe um feitiço que se volta contra o próprio feiticeiro, produzindo o efeito bumerangue;

• os deuses, os espíritos da família, os ancestrais podem, na ausência do culto que esperam dos vivos, manifestar seu descontentamento mandando uma doença que atinge ou mata um dos membros do grupo por eles eleito. Neste caso, a doença ou a morte é uma mensagem ou uma advertência para que as providências sejam tomadas urgentemente para regularizar a situação. No caso da morte das pessoas idosas, diz-se que o Deus único ou Ser supremo, que existe em todas as sociedades africanas, as chamam quando chegam ao fim seus contratos de vida.

A boa saúde, a prosperidade, a riqueza, a felicidade e a progenitura numerosa são interpretadas como crescimento da força vital, da energia vital ou do axé. A doença, a morte, a calamidade, a infelicidade, a pobreza, a miséria, etc. são entendidas com diminuição da força vital ou do axé.

Nos casos acima descritos, as origens naturais das doenças, como por exemplo, alimentação insuficiente, acidente, mordida, agentes patogênicos diversos, etc. não são totalmente ignoradas ou negadas, mas são reduzidas a causas condicionantes. Suponhamos que uma pessoa tenha um abscesso intramuscular, vê-se no abscesso em si uma causa, mas não se acredita que o abscesso ter-se-ia formado nessa pessoa particular sem a intervenção de uma força exterior: um feiticeiro, um ancestral, a própria vítima. Se alguém se queima com a água quente, ou se for atropelado por um veiculo, entende-se por aí as causas imediatas e sensíveis da morte. No entanto, o acidente não teria acontecido sem a intervenção de uma terceira força capaz de manipular a energia vital circulante. Uma pessoa com tuberculose e sua família podem até admitir após exame médico nos laboratórios médico-científicos que foi o bacilo de Koch que originou a doença, mas farão a seguinte observação: sendo a vítima a única pessoa da família ou do grupo atingido, ela deve ter sido procurada e achada pelo malefício enviado por uma terceira pessoa. Em outros termos, as sociedades negro-africanas não desconhecem as causas naturais, materiais e fisiológicas das doenças. Mas suas buscas de explicação começam justamente por onde termina a explicação científica, situando as causas verdadeiras de doenças no domínio humano e cultural, sendo as causas científicas consideradas apenas como materialização e meios escolhidos para manifestar a doença. Não se coloca a questão "como aconteceu" que o cientista faria, mas sim a questão "por que só essa pessoa e não aquela outra". Em culturas fortemente socializadas os termos sociais são os que aparecem em primeiro plano. Assim a inveja, o crime e a vingança não devem ser entendidos limitativamente no sentido ocidental.

Por isso, quando se trata ora de medidas e técnicas preventivas, ora do diagnóstico, ora da terapia, só o desdobramento de uma cadeia de significados onde o profano e o mágico-religioso se articulam dialeticamente pode oferecer soluções satisfatórias e eficazes.

As sociedades negro-africanas tradicionais têm uma concepção dinâmica da doença e uma visão holística da pessoa, na qual o espírito e o corpo, o indivíduo e a pessoa são inseparáveis do entorno telúrico, daí também a ausência de separação entre o corpo e os mecanismos inconscientes nos processos terapêuticos.

Um sistema de saúde e uma medicina que ignoram as outras formas de pensamento ou as consideram como anticientíficas ou contra o progresso rejeita os fundamentos culturais do povo no qual atua. Considerar o tradicional como oposto ao moderno é uma visão dualista e maniqueísta que nem sempre corresponde às realidades. O que há contra o progresso no caso de uma pessoa que antes de sofrer uma operação cirúrgica, vai à igreja para rezar a seu deus ou a seus santos ou vai ao candomblé para fazer oferenda a seu orixá? Não é possível pensar a humanidade sem crenças e religiões, assim como é impossível conceber as medicinas e terapias de diversas sociedades sem um pano de fundo fetichista e mágico-religioso.

Quando se trata das sociedades modernas contemporâneas, os sistemas de saúde e a medicina científica também não se dirigem a um mundo único, moderno e universal. As diversidades culturais onde interferem as diferenças religiosas, educativas, étnicas; as diferenças de gênero, de idade, de classes sociais; as diferenças somáticas, regionais e tantas outras colocam novamente os sistemas de saúde e a medicina moderna diante de um universo plural e multifacetado que exige dela atenções e olhares diferenciados. As propostas de intervenção, os projetos e programas de saúde devem ser diversificados e diferenciados. Apesar de a modernidade ser a mesma, ela não pode em prática ignorar as diferenças, as desigualdades e as iniqüidades existentes nas sociedades modernas. Da mesma maneira que uma campanha preventiva contra Aids nas populações africanas não pode ignorar a concepção africana da doença, a mesma campanha na sociedade brasileira não pode ignorar a classe social, a educação, a faixa etária e o gênero. Não pode ignorar a religião das pessoas a que é dirigida. Se a mesma campanha for organizada nos países ocidentais mais conscientizados e mais alertados e também culturalmente diferentes dos africanos e dos brasileiros, creio que os elementos do discurso e os conceitos chave seriam também articulados diferentemente. Em que adiantaria uma campanha de educação alimentar que propõe mudança com base nos alimentos que fazem parte dos tabus alimentares de uma sociedade? Como poderíamos falar da saúde da mulher e de seus direitos sociais e reprodutivos simplesmente em termos gerais sem diferenciá-las em termos de classes sociais, do nível de escolaridade, sem esquecer as interferências de suas religiões. Numa sociedade como a brasileira, onde o imaginário racista perpassa consciente e inconscientemente por todas as relações, incluídas as relações entre médicos e pacientes, não deveríamos quando falamos da saúde da mulher e da saúde reprodutiva, nivelar as mulheres da burguesia e da classe média com as mulheres pobres de todas as cores; não deveríamos deixar de dar uma atenção especial às mulheres indígenas e negras mais fragilizadas e duplamente vítimas de discriminação econômica e racial (raça aqui entendida no sentido social e político como construção e como categoria de dominação e de exclusão). Sabemos também que alguns tipos de doença por questões sociais e até mesmo genéticas se abatem com mais freqüência e mais incidência sobre a população negra ou indígena do que sobre a população branca e vice-versa. É o caso notadamente da anemia falciforme que embora não sirva mais como marcador genético e não pode mais ser classificada como doença racial, pois pode ser encontrada com menos freqüência nas populações não negras, é certamente uma doença genética que incide mais e principalmente sobre as populações da África subsaariana e seus descendentes da diáspora. Deveríamos deixar de dispensar a atenção sobre essa doença com relação à população afro-descendente, vítima potencial mais atingida que a população branca? Ao fazer isso estaríamos racializando o Brasil como pensam alguns estudiosos?

A revista Saúde e Sociedade quer neste número chamar a atenção dos profissionais e conscientizar a população de modo geral sobre os desafios do sistema de saúde e da medicina num universo plural como o brasileiro. Certos segmentos populacionais como a população negra, indígena e comunidades tradicionais como as quilombolas e outras, as mulheres indígenas e negras, as classes sociais menos abastecidas economicamente e as populações menos escolarizadas deveriam receber um tratamento diferenciado em termos de políticas de saúde e uma atenção especial da parte dos profissionais envolvidos com a saúde da população. Se perante a lei somos todos formalmente iguais, deveríamos substancial e materialmente receber tratamentos diferenciados de acordo com nossas especificidades e particularidades, de acordo com nossas diferenças de gênero, de "raça", de classe social, de idade, de cultura e educação. Uma sociedade democrática é aquela onde suas diversidades são eqüitativamente representadas em todos os setores da vida nacional, inclusive no sistema da saúde publica. Certamente não estamos vivendo na África do Sul de antes de 1990, onde as populações brancas e negras conviveram durante o apartheid num sistema de saúde segregado; nem no sul dos Estados Unidos de antes de 1960, onde também as leis segregacionistas do sistema Gim Crow colocaram negros e brancos em sistemas de saúde segregados institucionalmente. Qual é a nossa verdadeira realidade? Se a segregação não foi institucionalizada como nos dois países referidos, podemos perguntar se não temos uma espécie de segregação de fato em termos de saúde, da mesma maneira que temos um racismo à brasileira, velado, não confessado e não assumido, que de qualquer maneira faz suas vítimas?

  • Saúde e diversidade

    Kabengele Munanga
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2007
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