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Gênero, corpo e conhecimento

EDITORIAL ESPECIAL

Gênero, corpo e conhecimento

Eleonora Menicucci de Oliveira

Professora Titular do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp; Membro do Conselho de Consultores da Saúde e Sociedade

O conhecimento científico tem caráter aproximado porque é uma construção que se faz a partir de outros conhecimentos sobre os quais se exercita a apreensão, a crítica e a dúvida. São processos de tentativas, o que o feminismo provocou e instaurou, como rupturas nas certezas cartesianas, desconstruindo o "verdadeiro", o medicalizado, o biológico e o fato social, como problemas fixos e imutáveis.

Nesse sentido, o feminismo provoca uma das mais radicais rupturas epistemológicas no âmbito do conhecimento instituído, ampliando e aprofundando a noção de que a descoberta da presença feminina, sempre necessária, mas sempre reprimida, permitirá à mulher pensadora, pesquisadora, recuperar sua "autoafeição" e com ela um novo modo de relacionar-se consigo mesma e com @s outr@s. Esse diferente olhar sobre o modo de ser e de falar coloca em questão as linguagens simbólicas, mas cheias de significantes, de exploração e vitimização das mulheres. Evidencia os núcleos de conflitos e aponta a possibilidade do diálogo entre fronteiras do conhecimento para a apreensão da(s) diferentes possibilidades de conhecimento(s).

Uma das mais importantes contribuições do feminismo aos diferentes campos de conhecimento e, particularmente ao campo da Saúde Coletiva, mais precisamente às pesquisas, foi, sem dúvida, a construção de categorias de análise como o cotidiano, a vivência e a emoção.

Se, por um lado, o pensamento feminista provocou essas rupturas epistemológicas, por outro, a categoria de gênero, como categoria relacional e explicativa dos diferentes lugares que mulheres e homens ocupam nas culturas e nas sociedades, construiu esse processo. No entanto, a categoria de gênero não é fixa nem única, ela é móvel e estratégica, exatamente para contribuir com a visibilização das microrrelações de poder existentes nas diferentes tramas das relações macro e micro, simbólicas e racionais.

Por que articular gênero, corpo e sexualidade neste texto? São campos que se expressam como lócus de sujeitos se colocam no(s) mundo(s) e por onde atravessam todas as relações de poder e dominação. É por essa possibilidade que acreditamos na interrelação entre eles, que mostram as metalinguagens do corpo e da sexualidade, embutidas nas relações de gênero.

A categoria de gênero é rigorosa em sua construção e fala de mulheres e homens em suas múltiplas relações de poder. Aqui, chamo atenção para equívocos teóricos que alguns textos repetidamente cometem: substituir mulher por gênero, ou, então, dizer que se utiliza a categoria de gênero, quando de fato utiliza-se a variável sexo ou o conceito de mulher não na perspectiva relacional.

O uso da categoria de gênero como relacional de poder nos estudos na área da saúde integral da mulher, direitos reprodutivos e direitos sexuais problematiza as práticas e os exercícios das sexualidades ao (des)naturalizar e (des)banalizar as relações entre os sexos e intrassexos. Essa problematização ilumina as expressões das necessidades de saúde articulando-as às necessidades que estão ancoradas nas esferas da subjetividade e mentalidades, como o preconceito e a discriminação.

Assim, para as mulheres, as necessidades de saúde, vistas sob a ótica das relações de gênero, têm o sentido e o significado daquelas que estão no campo da objetividade, como as doenças, a violência, a gravidez e tantas outras, e daquelas que estão no campo da subjetividade, como atitudes, comportamentos, julgamentos, valores morais. É por isso que reafirmamos que a assistência às mulheres em qualquer nível do Sistema Único de Saúde expressa a complexidade dos fatores que devem ser considerados nessa assistência.

A revista Saúde e Sociedade contribui para o fortalecimento do campo dos estudos de gênero, ao dedicar um número especial às pesquisas sobre gênero, corpo e sexualidade e sua intersecção com a saúde coletiva.

Os artigos que compõem este número da Saúde e Sociedade podem ser agrupados em três blocos ou eixos temáticos dentro do campo dos estudos de gênero.

O primeiro bloco, que aborda a questão dos direitos reprodutivos e sexuais, tem foco no exercício da sexualidade como direito de escolha e o acesso das mulheres heterossexuais, lésbicas e transsexuais aos serviços de saúde, chamando atenção para as singularidades nas diferentes queixas e particularidades de cada uma. Chama atenção também para a ética d@s profissionais no atendimento, para que ele se realize sem julgamento e/ou discriminação. Esse bloco chama atenção para a necessária ampliação do conceito de "redução de danos" para além das seqüelas biomédicas, incluindo os danos morais, sociais, sexuais e culturais, decorrentes de um atendimento baseado no preconceito.

O segundo bloco apresenta reflexões sobre o "cuidar" na enfermagem e na saúde mental e como a categoria de gênero pode explicar o "cuidar", enquanto relação de poder que rompe com a "suposta subalternidade" das mulheres no âmbito dessas profissões, dando novo significado ao conceito de mulheres cuidadoras, uma vez que o cuidar é pensado como relação de saber e poder no interior das equipes multiprofissionais de saúde. Essa possível reversão entre o saber e o poder foi capitaneada pelas mulheres que se profissionalizaram como cuidadoras, por meio do cuidado domiciliar com novo significado do existente na tradição familiar, cuidado e tratamento no território que acompanha as diretrizes de descentralização do SUS. Ainda nesse bloco, como prática social relacional, aparece o auto-cuidado no processo de envelhecimento, principalmente aquele realizado pelas mulheres na fase da menopausa, pois são elas que vão às Unidades Básicas de Saúde em busca de informação sobre o cuidar de si.

São as mulheres que continuam freqüentando os serviços de saúde em busca de uma melhoria na qualidade de suas vidas. As experiências de vida, sempre conectadas ao cuidado e ao tempo que não é o tempo do relógio, mas o tempo das perdas e dos ganhos, das lembranças e das memórias, faz com que algumas mulheres rompam com o uso secular da medicalização, passando às práticas de cura alternativas, que causam menos danos à saúde integral. O interessante nesses casos é que essa mudança de atitude em relação ao cuidado de si mostra-se numa relação dialética com as perdas advindas da idade ao longo do tempo.

O terceiro bloco refere-se à loucura feminina, que em sua maioria decorre das interdições sexuais, sociais e culturais. Um quadro já analisado com muita propriedade por Wilza Vilela, em sua tese de doutorado, defendida em 1992 junto ao Departamento de medicina preventiva da FMUSP, de como, em grande parte dos casos de loucura feminina, a relação de poder entre os sexos não só está presente como é desencadeadora dos sinais e sintomas da "loucura de gênero".

Nos três blocos, pode-se observar que nos estilos de vida estão incorporadas imposições sociais normativas, enquanto o conceito de modos de vida aponta para construções sociais, culturais e sexuais, adquiridas por escolhas de vida das próprias mulheres, que necessariamente são exercícios cotidianos de cidadania e autonomia.

Chamo atenção, também, para a mobilidade do conceito de gênero, sobretudo nas abordagens de gênero das teorias da contemporaneidade, que apresentam o conceito de identidades nômades e não fixas, de múltiplos sujeitos, que atuam e constroem diferentes redes fora do "circuito socialmente aceito".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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