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Riscos à saúde em áreas contaminadas: contribuições da teoria social

Health risk in contaminated area: social theoretical contributions

Resumos

Este artigo versa sobre contribuições da teoria social a um estudo sobre o risco à saúde humana e ao ambiente, desenvolvido entre 2003 e 2005 em área urbana contaminada, localizada no bairro Vila Carioca, no sudeste do município de São Paulo, Brasil. Resíduos perigosos provenientes de processo produtivo do setor químico, dispostos inadequadamente na localidade ao longo do tempo, resultaram em contaminação ambiental, cujos efeitos representam riscos à saúde da população local. A investigação foi realizada com o objetivo de identificar interpretações sociais sobre o conceito de situação de risco, condizentes com concepções incorporadoras da dimensão social do risco e voltadas à melhoria das condições de saúde ambiental. Utilizou-se metodologia qualitativa de pesquisa, alicerçada na teoria social, e instrumentos variados de coleta de dados. Os resultados apontaram interpretações sociais diferenciadas sobre o conceito de situação de risco, sugerindo diversidade de concepções entre a população pesquisada a respeito dos problemas ambientais e de saúde que os atingiam. Neste artigo, apresentam-se fundamentos do enfoque do risco, na teoria social e na obra de Ulrick Beck sobre sociedade de risco, a fim de conferir suporte teórico à interpretação dos dados coletados em campo. Tais contribuições da teoria social, em contraponto com abordagens multidisciplinares e ecossistêmicas em saúde e ambiente, são discutidas como forma de incorporar a diversidade de interpretações sociais expressadas pela população, no sentido de favorecer a inter-relação entre portadores de risco e decisões políticas locais sobre a questão do risco, ampliar o escopo dos fenômenos observados e propiciar a busca de melhores condições de saúde dos indivíduos e da qualidade do seu ambiente.

Saúde ambiental; Contaminação ambiental; Risco à saúde humana; Risco na teoria social; Sociedade de risco


Hazardous wastes from chemical productive process, which were disposed in inadequate way throughout the time resulting in contamination of an urban area, which is situated in Vila Carioca, southeast of São Paulo city (Brazil). This environmental contamination has effects that represent health risk to the local population. An investigation in this area, from 2003 to 2005, had as a goal to identify social interpretations about the concept of risk situation (perception). In relation with its social dimension, conceptions of risk in order to improve methodology were used; it is supported by social theory and a variety of instruments for data collection, and it is covered by Ulrick Beck's work about risk society. The results obtained led to distinct social interpretations in relation to risk situation (perception). These results suggested diversity of conceptions in the studied population. In this paper, the focus of discussion is for an adoption of multidisciplinary and use of ecosystemic approach in studies and interventions that involve health risk, and thus evidences the relationship between population at-risk and local political decisions.

Environmental Health; Environmental Contamination; Human Health Risk; Risk in the Social Theory; Risk Society


PARTE I - ARTIGOS

Riscos à saúde em áreas contaminadas: contribuições da teoria social

Health risk in contaminated area: social theoretical contributions

Joyce Maria de AraujoI; Wanda Maria Risso GüntherII

IDoutora em Saúde Pública; Docente das Faculdades Oswaldo Cruz, São Paulo-SP. Endereço: Faculdades Oswaldo Cruz, Rua Brigadeiro Galvão 540, CEP 01151-000, São Paulo-SP, Brasil. E-mail: joycema@usp.br

IIDoutora em Saúde Pública; Professora Doutora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP. Endereço: Av. Dr. Arnaldo 715, Cerqueira Cesar, CEP 01246-904, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: wgunther@usp.br

RESUMO

Este artigo versa sobre contribuições da teoria social a um estudo sobre o risco à saúde humana e ao ambiente, desenvolvido entre 2003 e 2005 em área urbana contaminada, localizada no bairro Vila Carioca, no sudeste do município de São Paulo, Brasil. Resíduos perigosos provenientes de processo produtivo do setor químico, dispostos inadequadamente na localidade ao longo do tempo, resultaram em contaminação ambiental, cujos efeitos representam riscos à saúde da população local. A investigação foi realizada com o objetivo de identificar interpretações sociais sobre o conceito de situação de risco, condizentes com concepções incorporadoras da dimensão social do risco e voltadas à melhoria das condições de saúde ambiental. Utilizou-se metodologia qualitativa de pesquisa, alicerçada na teoria social, e instrumentos variados de coleta de dados. Os resultados apontaram interpretações sociais diferenciadas sobre o conceito de situação de risco, sugerindo diversidade de concepções entre a população pesquisada a respeito dos problemas ambientais e de saúde que os atingiam. Neste artigo, apresentam-se fundamentos do enfoque do risco, na teoria social e na obra de Ulrick Beck sobre sociedade de risco, a fim de conferir suporte teórico à interpretação dos dados coletados em campo. Tais contribuições da teoria social, em contraponto com abordagens multidisciplinares e ecossistêmicas em saúde e ambiente, são discutidas como forma de incorporar a diversidade de interpretações sociais expressadas pela população, no sentido de favorecer a inter-relação entre portadores de risco e decisões políticas locais sobre a questão do risco, ampliar o escopo dos fenômenos observados e propiciar a busca de melhores condições de saúde dos indivíduos e da qualidade do seu ambiente.

Palavras-chave: Saúde ambiental; Contaminação ambiental; Risco à saúde humana; Risco na teoria social; Sociedade de risco.

ABSTRACT

Hazardous wastes from chemical productive process, which were disposed in inadequate way throughout the time resulting in contamination of an urban area, which is situated in Vila Carioca, southeast of São Paulo city (Brazil). This environmental contamination has effects that represent health risk to the local population. An investigation in this area, from 2003 to 2005, had as a goal to identify social interpretations about the concept of risk situation (perception). In relation with its social dimension, conceptions of risk in order to improve methodology were used; it is supported by social theory and a variety of instruments for data collection, and it is covered by Ulrick Beck's work about risk society. The results obtained led to distinct social interpretations in relation to risk situation (perception). These results suggested diversity of conceptions in the studied population. In this paper, the focus of discussion is for an adoption of multidisciplinary and use of ecosystemic approach in studies and interventions that involve health risk, and thus evidences the relationship between population at-risk and local political decisions.

Keywords: Environmental Health; Environmental Contamination; Human Health Risk; Risk in the Social Theory; Risk Society.

Introdução

Uma área urbana na região sudeste do município de São Paulo, Brasil, foi contaminada por resíduos perigosos resultantes de processos produtivos industriais do setor químico. Os resíduos foram dispostos inadequadamente, durante um período estimado de três décadas, e atingiram o ambiente e a saúde de populações humanas, no bairro Vila Carioca. A disposição inadequada dos resíduos no ambiente ocorreu no contexto da ocupação espacial e do adensamento urbano da cidade de São Paulo, característicos da transição da economia brasileira para o modelo industrial e urbano, a partir da segunda metade do século XX, sob o impulso do movimento de reprodução do capital de base urbana e segundo a lógica do crescimento da economia global. A população local se organizou no decorrer de alguns anos; uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instituída pela Câmara Municipal de São Paulo e, em 2002, a justiça pública deflagrou uma ação civil contra a empresa poluidora e o órgão estadual de meio ambiente, no contexto de intensa mobilização de moradores e trabalhadores da comunidade local, os portadores de risco. Estes se empenhavam em comprovar a associação causal entre a contaminação ambiental da área e o quadro de morbidade ali observado, em situações de embate sobre o risco com as empresas poluidoras; buscavam também associar casos de mortalidade, ocorridos no bairro ao longo dos últimos anos, à contaminação ambiental.

As áreas urbanas, ao mesmo tempo em que representaram condição estratégica e suporte para a expansão do capital urbano e industrial, sediando contingentes de força de trabalho facilmente recrutável e favorecendo economias de escala no suprimento de recursos urbanos de toda ordem, também suportaram atividades com efeitos danosos ao ambiente e à saúde humana, especialmente em países menos industrializados (Freitas, 2007). Nesses países, os problemas ambientais e agravos à saúde decorrentes das condições sociais de pobreza, como as doenças respiratórias e parasitárias, vinculam-se à morbidade associada à moradia insalubre, ao saneamento ambiental deficiente ou inexistente, à ocupação urbano-espacial e industrial desreguladas da intervenção do Estado e do controle social, acarretando níveis elevados de poluição atmosférica e de resíduos tóxicos (Freitas, 2007; Freitas e col., 2002).

Outro problema ambiental e de saúde que adquire visibilidade pública a partir das últimas décadas do século XX refere-se à poluição química dos ecossistemas ambientais (solo, recursos hídricos, fauna, flora, ar atmosférico). Freitas e colaboradores (2002) apontam que a comercialização mundial de produtos químicos orgânicos havia crescido mais de cinco vezes entre 1950 e 1990, passando de 63 milhões de toneladas para 300 milhões no período. Segundo os autores, trinta anos após a Conferência de Estocolmo de 1972, a indústria química mundial crescera nove vezes, a uma taxa anual de cerca de 3%, e continuava a manter a tendência de intensificação da produção e comercialização de produtos para as próximas décadas, a partir de 2002. Tais perspectivas apontam para um aumento da contaminação ambiental e da ocorrência de agravos à saúde dos indivíduos expostos ao risco de contaminação, nos países menos desenvolvidos.

Os resultados do processo de expansão urbano-industrial, em termos da contaminação ambiental e dos danos à saúde, são computados como fatores externos às matrizes produtivas, ou seja, são custos de uma transação econômica ou processo produtivo que não são pagos monetariamente, e tampouco são percebidos por aqueles que estão envolvidos no processo de crescimento urbano-industrial. Esses "efeitos colaterais" são relegados para o âmbito das terceiras partes inocentes, que devem arcar, involuntariamente, e ainda que de forma relutante, com os custos do processo.

A ocorrência dos fatores externos, também denominados de custos externalizados ou "externalidades" (termo cunhado em estudos sobre o ambiente por autores da teoria social, comentados por Goldblat, 1998, em estudo sobre teoria social e ambiente), é apontada como um problema da não intervenção política sobre seu controle. A ação política de controle sobre as externalidades teria, como fator limitante, mudanças institucionais e jurídico-legais requeridas para que agentes poluentes, contribuintes e consumidores arcassem com os custos de tais externalidades. Assim, a expansão do número, do volume e da periculosidade dos fatores externos representa um impacto ecológico específico da industrialização, a exemplo dos perigos para o ambiente provocados pela poluição (Goldblat, 1998, p. 69). Os efeitos ecológicos mais predatórios do crescimento industrial, aliados aos impactos negativos do crescimento populacional, ocorreram tanto nas economias capitalistas quanto no socialismo de Estado (Goldblat, 1998, p. 81).

Os resultados da expansão urbano-industrial, em termos de externalidades e de seus efeitos à saúde e ao ambiente, adquiriram visibilidade pública no país a partir do final da década de 1980, quando a sociedade brasileira retomou ou instaurou novas práticas políticas de representação e instituiu um novo código para reger as relações entre sociedade civil e sociedade política. As novas relações entre Estado e sociedade envolveram, também, modificações substantivas decorrentes do processo de aquisição de novos direitos, reivindicados por novos atores sociais em cena, em busca de direitos civis, sociais e políticos. Nesse contexto, verificou-se a organização de diferentes movimentos em torno de demandas sociais diversificadas, dentre as quais o acesso a melhores condições de saúde e ambiente. O evento investigado no bairro paulistano contextualizou-se socialmente no quadro acima esboçado.

A Pesquisa e o Método

Entre 2003 e 2005 desenvolveu-se uma investigação na área contaminada, com o objetivo de identificar interpretações sociais sobre o conceito de situação de risco, em suas diferentes manifestações locais. A abordagem da dimensão social do risco, com suporte da teoria social, e o enfoque ecossistêmico em saúde e ambiente foram selecionados enquanto concepções teórico-metodológicas que propiciassem maior abrangência às interpretações.

Utilizou-se a metodologia qualitativa de pesquisa e recursos metodológicos multivariados de coleta de dados: pesquisa bibliográfica; pesquisa documental; observação de campo; pesquisa de dados êmicos; entrevistas em profundidade; observação participante; discussão de grupo (Bauer e Gaskell, 2002; Denzin, 1970a; Denzin, 1970b; Denzin, 2000; Kvale, 1996; Quivy e Van Campenhoudt, 1993; Triviños, 1995). A interpretação dos dados coletados foi realizada mediante emprego da triangulação múltipla (Adorno e Castro, 1994; Denzin, 2000; Minayo e col., 2005; Patton, 2002). Incorporou-se também a análise temática como procedimento interpretativo para aprofundamento de resultados obtidos por meio da estratégia da triangulação (Bardin, 1995; Minayo, 2004).

O Aporte da Teoria Social

A escolha da metodologia qualitativa decorreu da busca de concepções teóricas e enfoques metodológicos que possibilitassem incorporar, como material de pesquisa, manifestações sociais sobre o conceito de situação de risco, expressadas pela população local. Procurava-se observar as condições de saúde ambiental, na localidade onde viviam e trabalhavam populações humanas atingidas pelos efeitos da contaminação, em interação com processos e manifestações sociais, expressados pelos vários atores envolvidos em situações de vulnerabilidades, ameaças, riscos, perigos.

A teoria social evidenciou-se, na pesquisa bibliográfica, como uma abordagem condizente com as características da investigação: observar e interpretar manifestações sociais locais a respeito do risco. Vários teóricos do pensamento sociológico vêm procurando, especialmente a partir das duas últimas décadas do século XX, abrir novos caminhos para debater a questão do risco na vida social contemporânea, por meio de enfoques integradores e sistêmicos.

Na teoria social, voltada ao tema do risco, buscou-se o conceito de "sociedade de risco", desenvolvido pelo teórico contemporâneo alemão Ulrick Beck (1997a, 1997b, 1999, 2005). O autor propôs que o conceito de sociedade de classes, de uso corrente na teoria sociológica do século XX, fosse substituído pelo conceito de sociedade de risco, ao considerar que as populações humanas, em todo o planeta, estão expostas a situações de risco que se ampliaram e se generalizaram de forma extremamente intensa na contemporaneidade. Contudo, o autor ressalva que os efeitos das situações de risco, propagados de modo desigual, atingem, de forma ainda mais iníqua, países pobres e segmentos populacionais mais pauperizados das sociedades. Outras contribuições da teoria social contemporânea foram selecionadas na obra de Hannigan (1995) sobre construção social do risco.

Além das contribuições da teoria de Beck e de elementos da obra de Hannigan, buscou-se agregar, ao quadro referencial, concepções teóricas e metodológicas multidisciplinares e de cunho intersetorial que favorecessem o diálogo interativo com aspectos da dimensão social do risco. Algumas abordagens integradoras e ecossistêmicas da saúde-ambiente e do risco à saúde-ambiente vêm conformando uma nova linha de reflexão na saúde ambiental brasileira, como subcampo do conhecimento em saúde. Freitas (2000) aponta interações entre abordagens teórico-conceituais dos estudos de percepção de riscos, relacionados aos resíduos perigosos, e as transformações sociais nas formas de decisão da sociedade. O autor discute também sobre inter-relações entre produção e consumo, saúde e meio ambiente (Freitas, 2002). Em estudo de 2003, Freitas aborda a multiplicidade de conexões complexas que envolvem a saúde, no contexto da promoção da saúde. O enfoque sistêmico, interdisciplinar e participativo do risco em saúde e ambiente é objeto de reflexões na obra organizada por Freitas e colaboradores, 2000. Abordagens integradoras do risco são desenvolvidas por Freitas e Sá (2003). Tais abordagens também são destacadas em termos de vulnerabilidades para o campo da saúde pública (Porto e Freitas, 2002) e dos desafios ao construir um modelo de desenvolvimento sustentável à saúde e ao ambiente (Freitas e Porto, 2006). Gouveia (1999) entende que a complexidade e a multiplicidade de causas das questões de saúde, em áreas urbanas, demandam estratégias inovadoras para identificar e reduzir a exposição ao risco ambiental urbano, e propõe para tal a abordagem integradora e intersetorial em saúde e ambiente. Minayo (2002) e Gómez e Minayo (2006) preconizam o enfoque ecossistêmico da saúde como estratégia que contemple interações complexas entre saúde, ambiente e formas de organização social. Nardocci (1999) analisa enfoques integradores que propiciam a abordagem de dimensões sociais e culturais do risco, com o intuito de buscar maior abrangência à discussão do tema.

Contribuições da Teoria Social ao Estudo

Duas contribuições da teoria social são destacadas, no presente artigo, com o objetivo de propiciar um cotejo com situações observadas no estudo de campo: uma categorização analítica, com o intuito de caracterizar papéis dos atores sociais na população em estudo; e alguns fundamentos do enfoque do risco na teoria social e na obra de Ulrick Beck sobre sociedade de risco, enquanto suporte teórico para balizar interpretações sociais dos dados coletados em campo.

Categorização Analítica na Investigação: papéis genéricos na avaliação social do risco

Em capítulo de sua obra no qual aborda a temática do risco sob a ótica da construção social de riscos ambientais, Hannigan (1995) discorre sobre o tema da arena social do risco e apresenta uma discussão sobre os atores que nela interagem, incorporando a contribuição de outros teóricos ao debater o assunto. Assim, Hannigan cita os estudos de Palmlund (1992), que versam sobre seis papéis sociais genéricos na avaliação social do risco, apresentados a seguir: portadores de risco, defensores dos portadores de risco, geradores de risco, investigadores do risco, árbitros do risco, informadores do risco (Palmlund 1992, apud Hannigan, 1995, p. 135).

a) Portadores de risco - refere-se às vítimas que arcam com os custos diretos decorrentes do fato de trabalharem e viverem em ambientes perigosos. No passado, os portadores de risco mais atingidos raramente podiam se pronunciar: permaneciam à margem das discussões e decisões. A partir da ascensão do movimento de justiça ambiental em vários países, os portadores de risco estão ampliando sua participação no poder da sociedade e vêm sendo identificados, cada vez mais, como atores que devem ser levados em consideração na tomada de decisões. Na população em estudo, a categoria de portadores de risco referiu-se aos moradores e trabalhadores do bairro em estudo, expostos à contaminação ambiental.

b) Defensores dos portadores de risco - refere-se aos indivíduos e grupos sociais que adquirem visibilidade pública na busca dos direitos dos atingidos (ou portadores de risco). Incluem-se neste item as organizações da sociedade civil envolvidas com os direitos do consumidor, com melhores condições de saúde, direitos dos trabalhadores e defensores parlamentares congressistas, no poder legislativo. A imagem dos defensores dos portadores de risco é de que são protagonistas e heróis. Na área contaminada em estudo, foram agregados a esta categoria: organizações e movimentos locais de defesa dos direitos de moradores e de trabalhadores; organizações e movimentos externos que apoiaram moradores e trabalhadores locais; profissionais do campo do direito atuantes na defesa jurídica dos portadores de risco.

c) Geradores de risco - trata-se das empresas multinacionais químicas e farmacêuticas, as grandes empresas de serviços públicos, as indústrias. Os defensores do risco afirmam que os geradores são as principais fontes de risco, razão pela qual os geradores de risco são enfocados como vilões. No estudo de campo, esta categoria compreendeu o conjunto de empreendimentos industriais e organizações empresariais a quem foi imputada, na ação civil pública e na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), a responsabilidade pela contaminação ambiental na área de estudo.

d) Investigadores do risco - compreende os cientistas da comunidade acadêmica, os laboratórios governamentais e as agências a quem o poder público delega a competência para colher provas sobre quem (ou o que) é portador de risco, além de como, por que e quando o risco pode ser visto como aceitável ou não. Entretanto, nos casos em que suas descobertas defendem os geradores de risco, tendem a ser identificados com estes. Foram incluídos nesta categoria os órgãos governamentais de saúde e de meio ambiente, quando envolvidos na elaboração de laudos e diagnósticos sobre as condições do ambiente e da saúde de moradores e trabalhadores na área estudada; laboratórios de análises e diagnósticos requeridos por estes órgãos; investigadores da comunidade acadêmica que realizavam estudos na área contaminada, em seu entorno e com a população local.

e) Árbitros do risco - são os tribunais, os mediadores, as agências reguladoras, os representantes parlamentares, os quais tentam determinar, de forma neutra, os níveis de tolerabilidade do risco, as medidas mitigadoras a serem efetivadas e o gerenciamento necessário dos efeitos que sofrem os expostos e o ambiente.

O autor menciona que raramente os árbitros do risco são neutros como deveriam: tendem a se colocar ao lado dos geradores de risco. Na área contaminada em estudo, foram considerados como árbitros, além da justiça pública, os órgãos governamentais de saúde e ambiente, quando buscavam estabelecer índices de contaminação e quadro de morbi-mortalidade associados à contaminação ou dela decorrente; e a representação parlamentar da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instituída pela Câmara Municipal de São Paulo.

f) Informadores do risco - refere-se aos meios de comunicação social, que assumem o papel de mensageiros ou repetidores da mensagem, tornando visíveis as ações sobre a situação de risco, ou divulgando assuntos do risco para a opinião pública e a agenda pública.

O Risco na Teoria Social de Ulrick Beck: suporte analítico à interpretação social

A segunda contribuição da teoria social, apresentada neste artigo, versou sobre alguns fundamentos da abordagem do risco, na teoria social contemporânea e na teoria de Ulrick Beck sobre sociedade de risco. Em seu estudo, Guivant (1998) apresenta uma caracterização exaustiva sobre a abordagem do risco e uma análise da evolução de sua trajetória, até o momento em que o tema passa a assumir papel central na teoria social contemporânea, e nas teorias que Beck elabora a respeito do desenvolvimento da sociedade contemporânea. Alguns aspectos dessa caracterização foram resumidos sucintamente a seguir.

A incorporação da temática do risco pelas ciências sociais teve início nas três últimas décadas do século XX. Até esse período, o risco era enfocado, de forma hegemônica, por meio de análises técnicas e de metodologias quantitativas desenvolvidas principalmente pelas ciências da engenharia, da psicologia comportamental, das ciências epidemiológicas. Estudos para estimar e controlar riscos eram elaborados por técnicos e cientistas altamente qualificados. Os resultados eram direcionados à população leiga da sociedade, a quem caberia acatar as avaliações realizadas pelos peritos, socialmente legitimados como detentores de informações e conhecimentos, e acolher suas orientações. Esse quadro de predomínio técnico no tratamento da temática dos riscos começou a ser questionado, gradativamente, por representantes de algumas áreas e tendências do pensamento social (Guivant, 1998).

Freitas (2000) menciona que, na década de 1980, Mary Douglas, antropóloga social inglesa, com Aaron Wildavsky, cientista político norte-americano, passaram a desafiar as abordagens técnicas na temática do risco, confrontando-as por meio de uma obra publicada em 1982 com o título Risk and culture: an essay on the selection of technical and environmental dangers. A obra alcançou grande notoriedade, por se tratar do primeiro contraponto à concepção tecnológica dos riscos, e o trabalho de Douglas e seus colaboradores ficou conhecido como "teoria cultural dos riscos". Segundo essa teoria, os processos culturais e as formas de organização de uma sociedade seriam fatores mais significativos, na percepção dos riscos e na identificação das situações de perigo por membros dessa comunidade, do que os perigos objetivos a serem identificados em tais sociedades.

Em outra obra intitulada Pureza e Perigo, publicada pela primeira vez em 1966 e considerada referência na teoria cultural dos riscos, Douglas (2000) demonstrava de que modo a crença se constitui em poderoso reforço à coerção social. Assim, a ordem ideal em uma sociedade seria mantida devido aos perigos que ameaçam aos transgressores das normas. A divulgação dos estudos de Douglas nos meios técnico e científico ampliou a discussão sobre o tema do risco, que alcançou dimensão política na sociedade.

A discussão dos riscos sob novos ângulos vinha emergindo desde meados de 1960, em um contexto histórico e social de transformações econômicas, políticas e de ordem cultural, como os movimentos contestatórios de ruptura de padrões culturais hegemônicos, os movimentos de contracultura e de contestação política na sociedade norte-americana e em países europeus (França, Polônia), difundindo-se para outros países e sociedades. Nas ciências sociais, os debates sobre o tema do risco prosseguiram ao longo da década de 1970, obtendo novo vigor quando passaram a ser contextualizados e perpassados pelas questões ecológica e ambiental, difundidas mais intensamente, fora dos círculos científicos, a partir da década de 1980 (Guivant, 1998).

Na década de 1990, a problemática do risco assumiu um lugar de destaque na teoria social, especialmente devido às reflexões desenvolvidas por dois teóricos: o alemão Ulrick Beck (então professor de sociologia em Munique) e o inglês Anthony Giddens (professor de sociologia na Universidade de Cambridge). A partir desse período, a produção teórica desses autores passou a ser intensamente debatida nas ciências sociais e na teoria sociológica. O grande mérito dos dois teóricos, atribuído por vários autores, refere-se ao fato de que conseguiram transformar o problema do risco em tema central na teoria social. A partir de então, a questão do risco tornou-se predominante na teoria sociológica, deixando de ser tratada como assunto restrito às análises técnico-quantitativas ou à teoria cultural do risco.

Tanto Ulrick Beck quanto Anthony Giddens contribuíram, teoricamente, para a construção do conceito de "sociedade de risco", propondo, cada um à maneira de sua concepção teórica, que o conceito de sociedade de classes fosse substituído pelo conceito de sociedade de risco. Porém, no presente artigo foram focalizados alguns fundamentos da concepção desenvolvida por Beck.

Para justificar sua afirmação, Beck argumentou em termos da seguinte ponderação: na sociedade contemporânea, os riscos estavam atingindo os grupos sociais de modo indiscriminado e de forma tão intensa que, na verdade, não se podia mais falar de uma sociedade que distribui seus bens, mas sim de uma sociedade que reparte seus males e danos. A lógica predominante na política contemporânea passou a se constituir, portanto, em uma busca para evitar os males, em vez de repartir os bens. Entretanto, o autor apresenta a seguinte ressalva: os efeitos das situações de risco acabam atingindo, de forma mais iníqua, países pobres e segmentos populacionais mais pauperizados da sociedade. Sendo assim, considera-se que tais efeitos são propagados, na verdade, de forma desigual. Essa lógica de distribuição dos riscos encontra-se diretamente relacionada com a modernização reflexiva; instala-se também no contexto da globalização e dos efeitos dessa globalização que, para o autor, ainda são imprevisíveis; tal lógica condiciona ainda o processo de exportação de riscos de países industrializados para países em desenvolvimento.

Nas teorias que desenvolve a respeito da constituição da sociedade contemporânea, Ulrick Beck (1997a; 1997b; 1999; 2005) confere aos conceitos de risco e perigo um papel central. É na passagem da sociedade industrial (a chamada modernidade simples) para uma sociedade de risco (a modernidade reflexiva) que os riscos produzidos pela própria sociedade são distribuídos, ou seja, é no processo de globalização social e econômica que começa a ocorrer, também, a globalização dos riscos.

Beck (2005) apresenta três cenários para a orientação política nesse contexto: o retorno à sociedade industrial, a democratização do desenvolvimento tecnológico e a emergência de políticas diferentes, o que requer novas instituições políticas e novas deliberações sobre o risco, com envolvimento das organizações e fóruns da sociedade civil.

Para Beck, a sociedade reflexiva do século XXI deve defrontar-se com o enfrentamento de cinco processos, que representam grandes desafios: globalização, individualização, desemprego e subemprego, a revolução dos gêneros e os riscos globais, resultantes tanto da crise ecológica como da turbulência dos mercados financeiros. O autor considera possível que esteja sendo consolidado um novo tipo de capitalismo e um novo estilo de vida, muito diferentes daqueles das fases anteriores do desenvolvimento social. Segundo Beck, essa é a razão pela qual a sociedade necessita, de modo urgente, de novos quadros de referência, seja no plano sociológico, seja no plano político.

Beck (2005, p. 23) apresenta, em sua obra Risk society, produzida em 1986 e reeditada em alguns países, cinco teses para diferenciar a sociedade de risco da sociedade industrial:

1ª tese: Na sociedade de risco, os riscos e perigos diferem essencialmente daqueles da sociedade industrial e da sociedade pré-industrial: induzem a danos irreversíveis e extrapolam as fronteiras do tempo e do espaço. Os riscos de uma sociedade de risco podem atingir outras sociedades; e os riscos de uma época poderão atingir gerações futuras.

Esses riscos geralmente induzem a danos sistemáticos e irreversíveis, permanecem invisíveis para a maior parte dos indivíduos e grupos e baseiam-se em interpretação causal: assim, encontram-se particularmente disponíveis para definição e construção social, podendo ser transformados, dramatizados, amplificados ou minimizados por meio do conhecimento. Cientistas e políticos adquirem posição chave como intérpretes do perigo invisível para a sociedade. Na definição (ou construção social) desses riscos, a comunicação de massa, os cientistas e peritos legalmente especializados em risco também assumem papel fundamental.

2ª tese: Outra tese é a de que há grupos sociais mais afetados na distribuição dos riscos, o que acarreta novos tipos de desigualdade social - as posições sociais do risco. Na lógica da distribuição dos riscos, um desastre ecológico ou atômico não respeita fronteiras. Ricos e pobres sofrem os efeitos da poluição atmosférica e da contaminação dos alimentos. Esses perigos não afetam somente a saúde, mas a propriedade, as práticas profissionais, podendo atingir valores, como o reconhecimento social. Todavia, grupos socialmente favorecidos têm melhores condições (econômicas, sociais, culturais, político-institucionais) de remediar os efeitos do risco, de recuperar-se de agravos decorrentes da exposição a uma situação de risco, e assim resgatar formas de prestígio social eventualmente abaladas.

No contexto da modernização reflexiva, os riscos representam a desvalorização e a expropriação ecológica do capital, diante da universalidade da circulação de poluentes. Os riscos produzem novas desigualdades políticas: primeiramente, entre nações em desenvolvimento e nações industrializadas; depois, entre as próprias nações industriais.

3ª tese: Beck (2005) considera que a difusão e a comercialização dos riscos não contradizem a lógica do desenvolvimento capitalista, mas apresentam novos estágios capitalistas, com novos ganhadores e perdedores. As incertezas provocam uma demanda insaciável por segurança e cresce o mercado de produtos do risco.

4ª tese: A ciência e a tecnologia apresentam-se como as únicas formas possíveis de apresentar perspectivas aos riscos que criam. A consciência exerce um papel no conhecimento e divulgação do risco. As instituições modernas, responsáveis pelo controle dos riscos que surgem na sociedade de risco, tornam-se inoperantes. Com a redução do papel das instituições, resta aos cientistas assumir essa tarefa, tendo a sociologia a possibilidade de agir na divulgação da consciência sobre o risco.

5ª tese: A característica da sociedade de risco é constituir-se como uma sociedade catastrófica, na qual o estado "de emergência" passa a ser aceito pela sociedade e pelos indivíduos enquanto um estado "normal", a exemplo da violência urbana. A sociedade catastrófica, como possibilidade política, requer que o poder e a autoridade sejam reorganizados para dar conta das novas demandas sociais.

Na teoria social desenvolvida por Beck (1997a, 1997b, 2005), são enfocados aspectos relacionados às negociações e às decisões a respeito dos limites toleráveis de risco, a serem tomadas e legitimadas na sociedade. O autor discorre sobre alguns requisitos a serem observados no processo de tomada de decisões sobre os riscos, ponderando que a ambivalência dos processos sociais e as ambiguidades de decisões assumidas pela sociedade são inevitáveis. Diante de tais ambivalências, o autor propõe que sejam estabelecidos fóruns de negociação, com autoridades públicas, setor privado, representantes da sociedade política e civil, por meio dos quais seria decidido, de forma democrática, a respeito de quais riscos seriam tolerados ou não. Segundo a perspectiva dos fóruns para negociação envolvendo vários atores da sociedade (um tema bastante recorrente na obra de Beck sobre sociedade de risco), os padrões de risco a serem adotados e incorporados por uma sociedade não seriam mais estabelecidos unicamente pelo conhecimento científico e técnico. Nos fóruns deveriam ser visibilizadas, para os diferentes atores envolvidos com o debate sobre o risco, as contradições entre os vários interesses em pauta. Embora o resultado de tais fóruns não fosse obrigatoriamente consensual, o assunto dos riscos se tornaria então de domínio público, favorecendo o alcance de melhores condições de ação política naquela sociedade (Beck, 1997a, p. 42-43) e naquele momento histórico.

Beck (1997a, 1997b, 2005) estabelece parâmetros para orientar o processo de negociações, de forma que fossem constituídas políticas para enfrentamento dos riscos, embasadas em interlocuções com atores sociais. Tais parâmetros foram cotejados com dados da investigação realizada na área contaminada, conforme se apresenta a seguir.

a) Segundo Beck, devem-se estabelecer referenciais, a partir de interlocuções com os atores sociais, como fundamento para reconhecer legalmente o dano, em vez de somente buscar uma prova estrita de causa-efeito. Essa prova muito dificilmente pode ser atingida, uma vez que existe a interdependência global para a produção de riscos, segundo o autor.

Na área contaminada em estudo, riscos que teriam sido gerados em meados das décadas de 1960 e 1970, em períodos do desenvolvimentismo e do industrialismo brasileiro, atingiram gerações que apresentariam, em décadas posteriores (por volta de 2000, no auge da economia da sociedade global), eventos de morbidade e casos de mortalidade, cuja associação causal com a contaminação era buscada por vários atores sociais. As ocorrências de morbidade e mortalidade eram reclamadas por portadores de risco, seus defensores, suas organizações locais, representantes parlamentares, como efeitos decorrentes da contaminação ambiental, o que era refutado por aqueles a quem se atribuía o papel de geradores de risco. A associação de nexo causal entre o quadro de morbi-mortalidade e a contaminação ambiental tornava-se complexa, nos moldes dos parâmetros legais e institucionais estabelecidos como prova.

b) O autor propõe que seja modificada a responsabilidade da prova, de forma que agentes industriais e peritos sejam obrigados a apresentar publicamente as justificativas no tocante aos danos causados.

Na área contaminada, observaram-se situações diversas ao postulado de Beck, uma vez que a apresentação das comprovações dos agravos à saúde às autoridades competentes, era atribuída aos portadores de risco e seus defensores. Estes buscavam estabelecer o nexo causal entre contaminação e efeitos à saúde, com o propósito de pleitear a responsabilização pelos danos e seu ressarcimento. Nessa situação, os agentes industriais encontravam-se na condição de respondentes reativos a tais questões.

c) Para Beck, as reclamações e reivindicações por maior segurança devem ser respondidas e asseguradas, com responsabilização pelos danos causados.

Na área em estudo, as exigências por maior segurança eram requeridas pelos portadores de risco e seus defensores. Porém, para que fossem respondidas em termos de responsabilização pelos danos causados, seria necessária a adoção de medidas que se coadunassem ao Princípio da Precaução, aplicado à saúde pública, o que não se verificou no período do estudo. Em abordagens de cunho integrador e ecossistêmico de aspectos da saúde e ambiente, Augusto e Freitas (1998) e Gouveia (1999) postulam, como referência na construção de indicadores de riscos ambientais e à saúde, a adoção do Princípio da Precaução. Esse princípio funda-se na ética da proteção, segundo Schramm e Kotow (2003), e tem por base a incerteza, a indeterminação e a complexidade no tocante - no caso em estudo - aos efeitos das substâncias químicas sobre o ambiente e a saúde humana. Caracteriza-se pela mudança das decisões sobre processos industriais e produtos perigosos, a serem deslocadas da ponta final do processo produtivo em direção à ponta inicial, ainda nas fases de teste do produto ou inovação, como forma de prevenir eventuais danos futuros. Um dos resultados da adoção do Princípio da Precaução seria mudar a responsabilidade das provas científicas, cabendo ao gerador de risco realizar estudos científicos completos para comprovar o efeito inóquo de uma dada substância, antes de usá-la.

Adotar o Princípio Precaucionário como pressuposto envolveria mudar paradigmas na ciência e nas decisões políticas sobre o risco. No tocante às mudanças de paradigmas nas ciências, segundo preconiza Beck (conforme 5ª tese, já citada), os referenciais sobre o risco seriam estabelecidos por intermédio de fóruns de negociação, e não mais somente pelos conhecimentos técnico e científico. Os fóruns de negociação, envolvendo autoridades públicas, setor privado, representantes da sociedade civil e da sociedade política, teriam a finalidade de debater e deliberar sobre os referenciais do risco a serem adotados e endossados por uma sociedade, de forma a decidir, de modo democrático e socialmente construído, a respeito de quais riscos seriam aceitos ou não. Quanto às mudanças nas decisões políticas sobre o risco, além dos fóruns de negociações o autor postula como possibilidade política, ao argumentar sobre a ideia da sociedade catastrófica na 5ª tese mencionada, que o poder e a autoridade sejam reorganizados na sociedade de risco. Tal reorganização implicaria canais institucionais de participação social efetiva, em especial dos atores sociais que se expressavam como portadores de risco.

d) O autor entende que o princípio do poluidor-pagador deva ser reformulado, com o objetivo de criar contabilizações ambientais locais e regionais, de forma a serem atendidos não só os setores econômicos beneficiados, no processo de desenvolvimento de atividades industriais e tecnológicas, mas também os setores prejudicados.

De forma semelhante ao exposto no item anterior, adotar o princípio do poluidor-pagador na área em estudo envolveria mudanças de paradigmas, seja nas ciências envolvidas no conflito instalado na área contaminada (ciências da saúde, ambientais, jurídicas), seja nos processos decisórios sobre o risco.

e) Beck sugere também que, entre os setores industriais de uma região e sua população, sejam sugeridos e negociados, em caráter constante e sistemático, novos acordos sobre o reconhecimento dos danos e sobre pagamentos compensatórios.

No período em estudo, as primeiras negociações entre portadores e geradores do risco na área contaminada em estudo tiveram início mediante a interveniência da justiça pública, depois de consumada a contaminação ambiental. A atribuição da responsabilidade pelos agravos à saúde humana apresentava-se de complexa comprovação, em termos dos métodos adotados para estabelecer o nexo causal entre esses agravos e a contaminação ambiental, nos moldes da ciência aplicada. Tampouco foram identificadas abordagens integradoras ou pertinentes ao enfoque ecossistêmico em saúde e ambiente, cuja aplicação torna-se também complexa.

f) O autor propõe que sejam instaurados comitês e grupos de peritos para esclarecer aspectos ainda não definidos (áreas nebulosas) da política, da ciência, da tecnologia, com a inserção de representações de diferentes disciplinas do conhecimento, de grupos alternativos de peritos e de leigos da sociedade.

Na área contaminada pesquisada não se verificou a instauração de comitês ou grupos de peritos, cuja atuação tivesse tal alcance e poder de intervenção, durante o período em estudo.

Segundo Beck (1997a, p. 43-45), para o estabelecimento de instâncias de negociação nos moldes acima apresentados, alguns requisitos devem ser observados. A seguir são apresentados tais requisitos, também cotejados com aspectos encontrados na área contaminada estudada.

I) A população deve abandonar a noção de que são os administradores e peritos que sempre têm conhecimento sobre tudo, ou que só estes sabem o que é mais recomendável para todos. Tal proposta, se levada à prática, compreenderia uma desmonopolização do saber especialista dos peritos e técnicos, ou seja, um compartilhamento desse conhecimento com os saberes de outros grupos da sociedade e da população envolvida nas situações de risco, ou seja, um saber socialmente construído.

No estudo realizado na área contaminada, observou-se que administradores e peritos eram socialmente reconhecidos, no discurso de vários membros da comunidade local, como os detentores do conhecimento técnico sobre riscos, perigos, ameaças e danos na área contaminada, uma vez que lhes cabia decisões legais e institucionais sobre a matéria. Observou-se que, em encontros coletivos e reuniões, diversas pessoas da comunidade se qualificavam como totalmente desprovidas de saber a respeito do assunto, em contraponto com o saber que entendiam ser atributo de administradores e peritos. Por vezes eram solicitados, pela comunidade, esclarecimentos constantes aos técnicos e peritos, com o intuito de dirimir dúvidas, adquirir informações e acumular conhecimentos sobre vários aspectos do risco ao ambiente e à saúde, o que resultava em referendo ao saber técnico e perito.

II) O conjunto de atores, que devem participar das informações e decisões a respeito do risco, não pode ficar restrito à atuação de especialistas, mas deve ser aberto a todos os atores sociais que estejam diretamente envolvidos no problema debatido. Assim, cria-se o que corresponderia à informalização da jurisdição, equivalente à abertura de novos canais institucionais de negociação com os atingidos ou envolvidos na questão.

No período do estudo, iniciavam-se os primeiros contatos entre especialistas e outros atores sociais, em especial com os portadores de risco, em reuniões na localidade. A par de algumas dificuldades de comunicação, inerentes à diversidade cultural dos vários atores envolvidos, não foram identificados obstáculos à participação de quaisquer atores no debate. Todavia, a adoção dos pressupostos citados pelo autor (informalização da jurisdição ou abertura de novos canais institucionais, no sentido de favorecer a construção social das decisões por meio de processos sociais efetivamente participativos) não se efetivou, pois demandaria medidas transcendentes ao âmbito da arena local, ou seja, novas práticas institucionais que requereriam mudanças tanto nos paradigmas das ciências (jurídicas, da saúde, do ambiente), quanto nas decisões sobre o risco, de cunho político.

III) Todos os participantes do fórum devem acatar que as decisões devem ser de natureza aberta e flexível, de forma a possibilitar ajustes posteriores. Não se trataria apenas da implementação institucional-formal de forma a conferir legitimidade às decisões, e sim de uma transformação da estrutura de tomada de decisões, a partir da abertura de tal estrutura, o que comporta profunda mudança política.

Na área investigada isso não aconteceu, uma vez que não se identificou mudança política profunda na estrutura da relação entre Estado e sociedade, ali representada nas negociações entre autoridades públicas e representantes e indivíduos da população local. As reuniões e encontros observados na localidade não contaram com a presença de todos os setores envolvidos: representantes dos empreendimentos produtivos compareciam a encontros em audiências convocadas pela justiça pública, e não a encontros locais com a população, nos quais, por outro lado, as pactuações eventualmente negociadas não teriam fundamento jurídico-legal.

IV) Os fóruns de debate e negociação devem ser realizados em espaços públicos e em situações de compartilhamento, de tal forma que as negociações não sejam feitas a portas fechadas, ou somente entre técnicos, peritos e pessoas com poder político sobre os processos decisórios. As características da incontrolabilidade dos processos de debate devem ser incorporadas e consideradas como fator de enriquecimento.

As negociações sobre a área contaminada, incluindo as partes envolvidas no conflito, eram realizadas por meio de audiências convocadas pela justiça pública, no período em estudo.

V) As normas estabelecidas por esses fóruns (protocolos, avaliações, formas de votação e de decisão) devem ocorrer a partir de acordos debatidos entre os participantes, passando então a serem autolegisladas.

No período da pesquisa, os acordos introduzidos entre os envolvidos no conflito não foram instituídos a partir de debates e pactuações entre os participantes. Foram instaurados pela justiça pública, sendo debatidos e mediados especialmente em audiências e reuniões preparatórias convocadas para esse fim.

Considerações Finais

Para Beck, há elementos de natureza política nas decisões referentes à forma de lidar com os riscos, conforme se observa em análises do autor destacadas no presente artigo. Tais elementos devem ser discutidos e explicitados entre todos os envolvidos, no sentido de redefinir as características do conhecimento científico e dos peritos.

Na área contaminada, observou-se que as decisões sobre os riscos encontravam uma instância de encaminhamento no âmbito de atuação da justiça pública, e não por meio de discussão e explicitação entre os vários atores que desempenhavam papéis na dimensão social do risco. A existência de discussões políticas, públicas e amplas, e de fóruns da sociedade com a participação dos vários atores sociais envolvidos poderia possibilitar as manifestações desses atores, em especial dos portadores de risco, com relação à forma como interpretavam socialmente os problemas ambientais e de saúde que os atingiam. Processo semelhante poderia ocorrer com relação à incorporação de tais manifestações ao debate e ao processo de decisões sobre a questão do risco, com o intuito de ampliar o escopo dos fenômenos observados em busca de melhores condições de saúde dos indivíduos e do seu ambiente. No entanto, a falta de canais institucionais de participação social, com poder de vazão às demandas locais sobre o risco, dificultava o alcance de tal dimensão.

A incorporação das manifestações sociais, seja no debate, seja no processo de decisão, requereria mudanças profundas em duas direções, conforme já exposto em ideias de Beck: uma mudança nos paradigmas da ciência, em termos das áreas do conhecimento envolvidas na questão da contaminação ambiental na localidade (ciências jurídicas, da saúde, do ambiente, dentre outras), no sentido de acolher redefinições advindas das inter-relações com outros saberes, em fóruns de negociação; a outra mudança requerida refere-se aos processos decisórios políticos sobre o risco, de forma a propiciar, por exemplo, a instituição de fóruns da sociedade no bairro, com capacidade de interagir em decisões sobre o risco na área contaminada.

Na localidade estudada, a estratégia dos atingidos para o enfrentamento do problema da contaminação ambiental resultou em movimentos diferenciados no bairro, que favoreceram a mobilização coletiva de moradores e trabalhadores, não necessariamente confluentes em todos os embates. Todavia, tais iniciativas configuram indícios da organização e da participação social da população local, em busca não apenas de ressarcimento monetário pelos danos, mas de outros aspectos valorizados pela comunidade: melhores condições de ambiente e saúde, melhoria da paisagem, valorização do lugar, melhoria da qualidade de vida, resgate da cultura local, busca também de nova identidade e de vínculos de solidariedade, dentre outros.

No tocante à primeira mudança requerida para estabelecer processos de negociação e constituir políticas de enfrentamento dos riscos, a saber, mudanças no paradigma das ciências envolvidas no enfrentamento da contaminação ambiental na localidade, Zioni (2005, p. 58), em diálogo com autores da teoria social, lembra, ao analisar a relação entre as ciências sociais e o meio ambiente, a pertinência da adoção de concepções de cunho integrador, as quais destaquem a estreita relação que existe entre a degradação da natureza e a degradação da sociedade que essa natureza sustenta.

Quanto à segunda mudança necessária para instituir políticas de enfrentamento dos riscos, fundadas em negociações com atores sociais, ou seja, mudanças nos processos políticos decisórios, retoma-se o debate de Beck, quando este se integra às reflexões de outros pensadores da teoria social, na discussão da ideia de que os desafios serão vencidos se a sociedade for capaz de produzir não só melhores tecnologias e desenvolvimento econômico, mas melhor e maior solidariedade. Tais são as condições para vencer o desemprego, a destruição do ambiente natural, o egoísmo social e assim por diante. Estes são os principais desafios que se apresentam não somente para os portadores de risco e demais atores na área em estudo, mas para todos os atores sociais que representam papéis na dimensão social do risco, cotidiana e inevitavelmente, na sociedade brasileira contemporânea.

Recebido em: 07/02/2008

Reapresentado em: 25/10/2008

Aprovado em: 04/11/2008

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009

Histórico

  • Revisado
    25 Out 2008
  • Recebido
    07 Fev 2008
  • Aceito
    04 Nov 2008
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