Resumos
Nos últimos anos, no Brasil, observa-se um aumento da violência urbana. A cidade de Londrina, no estado do Paraná, particularmente, vem assistindo a um preocupante aumento dos índices de violência. Isso tem levado as lideranças da cidade a se mobilizarem. O objetivo deste estudo é levantar qual a visão que lideranças comunitárias de duas regiões da periferia da cidade de Londrina, que apresentam diferentes níveis de mobilização popular, têm da atuação de serviços de saúde sobre a problemática da violência. A abordagem utilizada é de pesquisa qualitativa. Foi utilizado o referencial teórico das Representações Sociais e a técnica da análise de conteúdo de Bardin. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com lideranças identificadas a partir do processo chamado de "bola de neve" ou amostragem em rede. As entrevistas foram realizadas até que se atingiu a saturação das representações sociais, totalizando vinte e seis entrevistas, treze em cada região pesquisada. Os resultados mostraram que, de modo geral, a atuação dos serviços de saúde é considerada precária na visão das lideranças comunitárias. Na região onde a comunidade é mais mobilizada, porém, essa atuação ocorre de maneira mais articulada. Já na região menos mobilizada, a atuação é mais pontual e foram relatados alguns casos de violência contra o profissional de saúde. Este estudo mostra que é necessário que a saúde invista mais na questão da violência, valorizando a parceria com segmentos organizados da comunidade.
Violência; Participação comunitária; Pesquisa qualitativa; Serviços de saúde; Recursos humanos em saúde
In the last few years Brazil has been experiencing an increase in urban violence. Particularly in the city of Londrina (state of Paraná), there has been a disturbing growth of violence rates which has caused the city leaderships to take action. The aim of this study is to investigate what community-based leaderships think about the health team's performance regarding the violence issue. The leaderships are from two regions on the periphery of Londrina which have different levels of community mobilization. This is a qualitative study that used the theoretical framework of the Social Representations and Bardin's content analysis technique. Semi-structured interviews were conducted with leaderships chosen through the "snowball" process or network sampling. Interviews were conducted until a saturation of social representations was reached, totaling 26 interviews, 13 in each researched area. Results showed that, in general, the health team's performance is considered poor by the community-based leaderships. In the region where the community is more proactive, this performance is more articulated, whereas in the less proactive one, the performance is more focused and violence against the health professional has been reported. This study shows that it is necessary for health teams to give more attention to the violence issue, forming partnerships with organized segments in the community.
Violence; Community Participation; Qualitative Research; Health Services; Health Manpower
ARTIGOS
A atuação do serviço de saúde na violência sob o olhar de lideranças comunitárias de Londrina (PR)
The health team's performance in the context of violence under the perspective of community-based leaderships in Londrina (PR)
Marcia Caroline Portela AmaroI; Selma Maffei de AndradeII; Mara Lúcia GaranhaniIII
IMestre em Saúde Coletiva. Professora da Faculdade Pitágoras - Campus Metropolitana de Londrina. Rua Edwy Taques de Araújo, 1100, Gleba Palhano, CEP 86047-500, Londrina, PR, Brasil. E-mail: mcpa12@hotmail.com
IIDoutora em Saúde Pública. Professora Associada do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Londrina. Av. Robert Koch, 60, Vila Operária, CEP 86038-350, Londrina, PR, Brasil. E-mail: semaffei@uel.br
IIIDoutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina. Av. Robert Koch, 60, Vila Operária, CEP 86038-350, Londrina, PR, Brasil. E-mail: maragara@dilk.com.br
RESUMO
Nos últimos anos, no Brasil, observa-se um aumento da violência urbana. A cidade de Londrina, no estado do Paraná, particularmente, vem assistindo a um preocupante aumento dos índices de violência. Isso tem levado as lideranças da cidade a se mobilizarem. O objetivo deste estudo é levantar qual a visão que lideranças comunitárias de duas regiões da periferia da cidade de Londrina, que apresentam diferentes níveis de mobilização popular, têm da atuação de serviços de saúde sobre a problemática da violência. A abordagem utilizada é de pesquisa qualitativa. Foi utilizado o referencial teórico das Representações Sociais e a técnica da análise de conteúdo de Bardin. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com lideranças identificadas a partir do processo chamado de "bola de neve" ou amostragem em rede. As entrevistas foram realizadas até que se atingiu a saturação das representações sociais, totalizando vinte e seis entrevistas, treze em cada região pesquisada. Os resultados mostraram que, de modo geral, a atuação dos serviços de saúde é considerada precária na visão das lideranças comunitárias. Na região onde a comunidade é mais mobilizada, porém, essa atuação ocorre de maneira mais articulada. Já na região menos mobilizada, a atuação é mais pontual e foram relatados alguns casos de violência contra o profissional de saúde. Este estudo mostra que é necessário que a saúde invista mais na questão da violência, valorizando a parceria com segmentos organizados da comunidade.
Palavras-chave: Violência; Participação comunitária; Pesquisa qualitativa; Serviços de saúde; Recursos humanos em saúde.
ABSTRACT
In the last few years Brazil has been experiencing an increase in urban violence. Particularly in the city of Londrina (state of Paraná), there has been a disturbing growth of violence rates which has caused the city leaderships to take action. The aim of this study is to investigate what community-based leaderships think about the health team's performance regarding the violence issue. The leaderships are from two regions on the periphery of Londrina which have different levels of community mobilization. This is a qualitative study that used the theoretical framework of the Social Representations and Bardin's content analysis technique. Semi-structured interviews were conducted with leaderships chosen through the "snowball" process or network sampling. Interviews were conducted until a saturation of social representations was reached, totaling 26 interviews, 13 in each researched area. Results showed that, in general, the health team's performance is considered poor by the community-based leaderships. In the region where the community is more proactive, this performance is more articulated, whereas in the less proactive one, the performance is more focused and violence against the health professional has been reported. This study shows that it is necessary for health teams to give more attention to the violence issue, forming partnerships with organized segments in the community.
Keywords: Violence; Community Participation; Qualitative Research; Health Services; Health Manpower.
Introdução
A violência urbana é hoje um problema que afeta cada cidadão residente nos municípios brasileiros, mesmo nos de menor porte, levando a diversas consequências na área da Saúde Coletiva. Observa-se, na história do país, um aumento significativo da violência urbana a partir da década de 1980. Em consequência, em grande parte, da decadência econômica do período e da crescente ausência de perspectivas de vida para a camada mais jovem e pobre da sociedade, que passou a se vincular ao narcotráfico, como forma mais fácil e rápida de se inserir no mercado de consumo e, assim, na sociedade, conforme a lógica capitalista (Minayo, 2006a).
O contexto atual da cidade de Londrina, situada no norte do Paraná, com população projetada para o ano de 2007 de 495.696 habitantes (Brasil, 2007a), aponta para um crescimento acelerado da violência. Em termos estatísticos, a escalada da violência se refletiu na cidade acentuadamente a partir do ano 2000, quando o número de homicídios passou a crescer progressivamente, ultrapassando os acidentes de trânsito no percentual do total de causas externas em 2001 (Silva, 2002). Os jornais retratam diariamente essa escalada da violência, manifestada de diversas formas, além dos homicídios. Mesmo veículos de imprensa pertencentes ao poder público reconhecem e noticiam o aumento da violência na cidade (Londrina, 2002).
A filósofa judeu-alemã Hannah Arendt (19061975) destaca como um dos principais traços da violência a imprevisibilidade (Arendt, 1973). Talvez seja essa a grande dificuldade para os pesquisadores de todas as áreas, inclusive da Saúde Coletiva, em se estudar a violência. Sendo um fenômeno altamente complexo, pluricausal, multivariado e polissêmico, nunca será fácil estudar e compreender a violência, mas isso não justifica que não se faça o esforço (Minayo, 2005).
Arendt (1973, p. 97-98) destaca a negligência com esse tema inclusive nas ciências humanas:
Ninguém ocupado em pensar sobre história e política pode ficar alheio ao imenso papel que a violência sempre desempenhou nos assuntos humanos, e à primeira vista é surpreendente como tal violência é raramente escolhida para considerações especiais. [...] Isto mostra até que ponto a violência e suas arbitrariedades têm sido levadas em conta, e consequentemente, como têm sido negligenciadas; não se interroga ou investiga o que é evidente para todos.
A Saúde Coletiva talvez seja o campo do saber humano em que deságuam todos os problemas sociais. Nela, de alguma forma, a injustiça, a miséria, a fome, a corrupção e, sem dúvida, a violência vão emergir sob o aspecto da doença e da morte, ou seja, o evidente para todos, que Arendt menciona, ganha palco e aparece de forma altamente dramática, pois, nesse cenário, a vida é afetada de forma direta.
Se a inclusão da violência é difícil em outras áreas tidas como mais "sociais", ou genuinamente "humanas", no setor Saúde, devido, em maior parte, à herança do modelo biomédico, a introdução do tema da violência tem sido ainda mais difícil (Minayo, 2006).
Por muito tempo, encarou-se a violência como mero "caso de polícia", resultado simplesmente da "falta de caráter" e da delinquência juvenil. Seguindo a lógica da medicalização do modelo biomédico, a "doença" violência seria tratada, de forma rápida, simples e segura, com o "medicamento" das ações punitivas e, preferencialmente, mais violentas que as que originaram a punição, desconsiderando-se assim toda a dimensão subjetiva e complexa da violência (Guedes e col., 2006). Essa linha de pensamento, muito afeita à lógica cartesiana, é incapaz de lidar com a pluricausalidade e a imprevisibilidade da violência. Daí o desafio de se discutir a violência enquanto problema da Saúde Coletiva, embora muitas pesquisas e esforços já se tenham delineado no país (Minayo, 2005).
A área da saúde deve manter, portanto, uma postura de diálogo multidisciplinar e intersetorial, incluindo aí os segmentos da educação, os serviços sociais, a segurança pública, a justiça e, de forma especial, os movimentos sociais.
Merecem destaque os movimentos sociais, uma vez que estudos feitos em diversas partes do mundo têm evidenciado que a existência do chamado "capital social" é um ótimo fator de proteção contra a violência (Kawachi e col., 1997; Macedo e col., 2001).
Além disso, no Brasil, a participação da comunidade na gestão da saúde está garantida na Constituição Federal (1988) e regulamentada pela Lei Federal 8142/90. Assim, segmentos da sociedade civil organizada podem desempenhar papel decisivo na regulação da saúde, agindo como importantes parceiros na prática diária dos serviços.
Porém, as dúvidas que surgem são: como está essa parceria no cotidiano dos serviços de saúde, especificamente na atuação contra a violência? Como o grau de mobilização comunitária influencia a visão das lideranças da comunidade sobre os serviços de saúde?
Neste estudo, procuraremos enfocar a questão de um ponto de vista menos abordado na área da saúde: o da liderança comunitária. Para isso, estudamos duas comunidades com diferentes níveis de mobilização popular. Acreditamos ser importante que se abra um diálogo entre profissionais da saúde e comunidade. Por isso, o objetivo buscado neste estudo é levantar qual é a visão que lideranças comunitárias têm da atuação dos serviços de saúde na complexa e atual problemática da violência.
Trajetória Metodológica
Este artigo apresenta parte dos resultados de uma dissertação de mestrado em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Londrina sobre as representações e as estratégias de enfrentamento da violência a partir do olhar de lideranças da comunidade.
Para contextualizar a trajetória metodológica aplicada, é preciso antes considerar que a violência não é simplesmente um fato da vida humana, mas constitui um fenômeno, ou seja, algo que passa pela ordem do vivido, mobilizando emoções e demandando um grau de elaboração interna de quem o vivencia ou presencia (Minayo, 2006b). Devido a isso, e buscando corresponder ao objetivo pretendido neste estudo, a pesquisa foi realizada com a metodologia qualitativa. Essa abordagem permite uma melhor aproximação das questões que dizem respeito à percepção mais profunda dos fenômenos, permitindo desvendar as construções teóricas que embasam a visão de mundo dos entrevistados. Para auxiliar nesse processo, aplicou-se neste estudo o referencial teórico das representações sociais.
A teoria das representações sociais se difundiu a partir de 1961 com a publicação do livro La psychanalyse, son image et son public pelo psicólogo social francês Serge Moscovici, como um processo de renovação da psicologia social, no qual se abria espaço para uma interface com a sociologia.
Moscovici preocupava-se em decodificar o conhecimento das pessoas comuns (Sá, 1999). Isso constitui a razão pela qual foi feita a opção pelo referencial teórico das representações sociais nesta pesquisa. Aqui, os entrevistados são lideranças comunitárias, que trazem no seu discurso saberes e questionamentos do cotidiano, construídos ao longo de comunicações informais.
Além disso, a violência urbana e a insegurança do cidadão figuram entre os assuntos sobre os quais as representações sociais incidiriam (Sá, 1999).
Denise Jodelet, principal colaboradora e continuadora de Moscovici, definiu Representações Sociais como uma forma de conhecimento específico, o saber do senso comum, cujos conteúdos manifestam a operação de processos socialmente marcados (Jodelet, 1984).
Porém, como Jodelet destaca, o fato de estarem focadas no conhecimento do cidadão comum não significa que as representações sociais não apresentem características específicas no plano da organização dos conteúdos, das operações mentais e da lógica (Jodelet, 1984).
Assim, a escolha desse referencial teórico para a pesquisa ocorreu partindo-se do fato de que existe no senso comum de boa parte da população o mito da inevitabilidade e da falta de controle da violência, especialmente na classe dos profissionais de saúde (Minayo, 2005). Esse mito pode ser considerado uma representação social que se tem sobre a violência e que pode, portanto, ser analisado por meio da pesquisa científica.
A pesquisa foi realizada na região urbana da cidade de Londrina, no norte do Estado do Paraná, Brasil. Sendo uma cidade que apresenta uma complexa realidade urbana, com regiões de periferia heterogêneas entre si, optou-se por eleger duas áreas nos seguintes termos:
região de periferia com contexto de mobilização popular ainda incipiente, denominada neste estudo como região A;
região de periferia que tivesse um contexto de mobilização popular mais desenvolvido, denominada como região B;
As regiões foram escolhidas com base no conhecimento prévio das autoras, no levantamento do histórico das regiões e em informações colhidas junto a membros das equipes das Unidades Básicas de Saúde.
Com a escolha das regiões, pretendeu-se retratar duas realidades diferentes do ponto de vista da organização social e da mobilização popular que, como já foi dito, é fator preponderante para a transformação de realidades complexas, como se dá no caso da problemática da violência.
O processo de escolha das pessoas que participaram da pesquisa se iniciou com a busca de informações com as coordenadoras das Unidades Básicas de Saúde (UBS) de cada região escolhida para a pesquisa. Essas profissionais não foram entrevistadas, mas desempenharam o papel de ponto de partida para o processo conhecido como "bola de neve" ou amostragem em rede (Matos, 2006), com o qual se obteve a seguinte sequência: a coordenadora da UBS indicou lideranças comunitárias que pudessem ser entrevistadas; em seguida, cada uma dessas lideranças indicadas também indicou outros nomes para serem entrevistados, e assim por diante, até que se atingiu a saturação das representações sociais. Foram entrevistadas lideranças formais (pessoas que ocupam algum cargo ou função dentro da comunidade, como presidentes de associações de moradores, associações de mulheres, coordenadores de creches, diretores de escola, etc.) e informais (pessoas que exercem papéis de liderança, porém sem estarem investidas de algum cargo ou função, como comerciantes, moradores antigos dos bairros, estudantes universitários, etc.).
No final, totalizaram-se 13 entrevistas em cada região. Na região A, aconteceram duas recusas. O fato de o número de entrevistas ser igual nas duas regiões não foi intencional.
Os dados da pesquisa foram coletados mediante aplicação de entrevistas semiestruturadas, compostas de cinco perguntas abertas. Neste artigo, abordaremos os resultados obtidos na última pergunta da entrevista, que foi: Como você vê a atuação dos serviços de saúde no enfrentamento da violência?
Optou-se pela entrevista por esta permitir maior aproximação de fenômenos complexos, como a violência. Segundo Chizzotti (2000), a entrevista possibilita um contato imediato com questões relevantes e pode aprofundar a significação dos fenômenos estudados.
As entrevistas, realizadas de fevereiro a abril de 2007, foram gravadas em fita cassete e posteriormente transcritas na íntegra do texto gravado, pela autora principal deste estudo.
Tomando por base o referencial teórico escolhido, optou-se pela técnica de análise de conteúdo. Segundo Bardin (2004, p. 27), a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações. É ainda um método empírico, que permite uma maior flexibilidade mediante o tipo de falas que se obtêm nas entrevistas e o tipo de interpretação pretendida, segundo o objetivo do estudo (Bardin, 2004).
As etapas da análise de conteúdo realizadas neste estudo foram:
leituras flutuantes de todas as entrevistas coletadas e transcritas, para apropriação pela pesquisadora do teor do material;
destaque das unidades de registro, ou seja, palavras, expressões, frases e trechos que continham o significado central trazido pelo(a) entrevistado(a);
definição das categorias empíricas, construídas a partir das unidades de registro encontradas;
estabelecimento das seguintes categorias de análise:
- a não-atuação dos serviços de saúde;
- profissionais da saúde: violentados e violentadores;
- as possibilidades de atuação dos serviços de saúde.
O projeto deste estudo foi apresentado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina, e obteve sua aprovação nos termos da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (parecer CEP/UEL 288/06).
A Autarquia do Serviço Municipal de Saúde de Londrina autorizou a realização da etapa de busca de informações sobre as regiões junto às equipes das Unidades Básicas de Saúde.
No início de cada entrevista, foi solicitada a concordância do participante mediante explicação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias, ficando uma com o(a) entrevistado(a) e outra com a pesquisadora.
A fim de garantir o anonimato absoluto de todos os participantes deste estudo, os entrevistados estão identificados na seção Resultados e Discussão pela letra da região à qual pertencem, seguida de um número. Nos trechos das falas selecionados, foram omitidas todas as menções a nomes de lugares ou pessoas que pudessem permitir a identificação dos entrevistados ou de suas regiões de origem.
Resultados e Discussão
Após a análise das respostas das 26 entrevistas coletadas nas duas regiões, os resultados foram reunidos em três categorias que, correspondendo ao objetivo aqui proposto, versam sobre a atuação dos serviços de saúde na questão da violência sob a ótica de lideranças da comunidade.
Entre as respostas, observou-se a predominância das falas no sentido da não-atuação. Algumas citam as duas coisas. Outras não souberam responder.
A não-atuação dos serviços de saúde
A não-atuação dos serviços de saúde foi identificada de maneira semelhante nas duas regiões, o que leva a crer que esse fenômeno ocorra em ambas, apesar das diferenças no aspecto da mobilização popular. Foram encontradas representações que abordam as falhas na interação entre profissionais da saúde e comunidade, como ilustra a seguinte fala de uma liderança:
Muito ruim [a atuação do serviço de saúde na questão da violência]. Muito ruim, não... é... despreparadíssimo. Muito dinheiro para capacitação na humanização do atendimento, e as pessoas não têm preparo nenhum. Isso seja nos hospitais... mas nos postos de saúde é pior. [...] [o profissional de saúde] não entende o lado do outro pra poder discutir essa questão da violência. (B3)
Representações como essa retratam uma grave situação de alheamento do serviço de saúde para com o problema da violência, postura que vai na contramão do que se defende na literatura. O setor saúde trata o tema da violência tradicionalmente como "problema social", que nada tem a ver com seu campo da atuação, mostrando assim um viés do modelo biomédico (Minayo, 2006a), que será discutido mais profundamente adiante.
É importante ressaltar a menção da liderança B3 sobre a capacitação em humanização, política nacional da área da saúde no Brasil, e que, segundo ela, não tem surtido efeito na prática dos serviços. De fato, Fortes (2004) afirma que o conceito de humanização se confunde historicamente com a luta por direitos dos pacientes/usuários.
Angulo-Tuesta (1997) chegou a uma conclusão parecida sobre a não-atuação da saúde no seu estudo sobre a perspectiva de profissionais de saúde do Rio de Janeiro e Niterói com relação à violência doméstica contra a mulher. Constatou que a atuação do profissional da saúde nos casos de violência doméstica conjugal é ainda muito restrita e marcada por estigmas sociais.
Para Brás (2006), há razões profundas do relacionamento humano para se adotar uma postura distante e negligente em relação à violência: "A violência remete, em nível individual e coletivo, à questão das diferenças, porque as diferenças implicam, na maior parte das vezes, em intolerância" (Brás, 2006, p. 45).
Quando se levam em consideração os diferentes aspectos sociais implicados na relação entre o profissional da saúde, geralmente advindo das classes média e alta da sociedade, e uma comunidade carente, somados à lógica curativista do modelo biomédico, que não abarca a complexidade da violência, pode-se ter uma noção da dimensão da dificuldade na relação entre o setor saúde e a problemática da violência. Muitos profissionais ainda hoje se restringem a reproduzir estigmas sociais no atendimento de casos de violência, o que acaba por amplificar e perpetuar o problema (Skaba, 1997).
A difícil inserção do tema da violência no campo da saúde tem uma estreita relação com as marcas do modelo biomédico, como já mencionado. Neste estudo, elas emergiram também na visão da liderança comunitária:
A saúde? Mas a... Para atender, você fala? [...] Ah, eu não vejo que tem algum relacionamento [entre a atuação do serviço de saúde e a violência]... acho que não. Eu acho que [o serviço de saúde] tá lá, pra quem vai lá, atende... (B2)
Outra liderança, entretanto, manifestou uma visão bastante clara de quanto o modelo biomédico prejudica a sensibilidade dos profissionais de saúde na atuação em questões de cunho social:
Eles estão muito preocupados com os exames mensais, quem que colheu o exame, quem não colheu, se chegam as guias elas encaminham, né? vão às casas das pessoas, pra quem já tá com a guia ali pra poder fazer, pra enfrentar as filas do bendito Cismepar [serviço de especialidades médicas], né? então eu vejo a demanda do posto de saúde é com o Cismepar e o Cismepar é com o posto de saúde. (A11)
O modelo biomédico é marcado pela lógica que estabelece relações lineares de causa e efeito entre os fenômenos. Além disso, outra característica própria desse modelo é a reificação da doença (Camargo Júnior, 2007), ou seja:
... doença pode ser entendida como um artefato teórico e heurístico, que organiza o conhecimento disponível [...] ao delimitar uma classe de problemas em que a intervenção técnica é não apenas justificada como eticamente mandatória, circunscreve a esfera de atuação dos profissionais de saúde... (Camargo Júnior, 2007, p. 71-72).
O problema surge justamente no fato de que a violência é uma epidemia social (Silva, 2002) que não aceita os reducionismos impingidos pela reificação do modelo biomédico. Trata-se de um fenômeno de ordem complexa, com múltiplas causas e efeitos que se integram e influenciam mutuamente (Minayo, 2006b).
Além disso, conforme a citação de Camargo Júnior (2007), o modelo biomédico circunscreve a atuação dos profissionais de saúde a um campo restrito pela medicalização, a qual não se aplica ao imbricado universo da violência.
Por outro lado, se pensarmos em políticas de saúde com lógicas inovadoras como o Programa Saúde da Família (PSF), constataremos que a prática desse modelo de atenção também pode apresentar falhas, que se relacionam com problemas pontuais do relacionamento das equipes com a comunidade.
Essa situação emergiu na fala de uma liderança da região B:
O médico de família, eles estavam participando mais. Hoje, é algumas vezes. É uma vez por semana, é por setores que eles fazem. [...] Não é aquela coisa assim, vamos supor se eu chegar lá agora e falar: "Ô fulano, lá na minha rua tem uma senhora assim, assim e assim". "Ah, mas hoje não é meu dia de passar lá". "Então tá bom". Eu vou voltar quieta e vou falar "tá bom". Porque isso já aconteceu várias vezes aqui. (B11)
Esse caso apresenta uma situação de não-seguimento da lógica do PSF, segundo a qual é por meio do estabelecimento de vínculo entre as equipes de saúde e a comunidade que a atenção básica expande-se e qualifica-se (Brasil, 2007b). O fato do não-atendimento, quando solicitado, pode evidenciar um alheamento da equipe em relação à comunidade, que acaba dificultando outros vínculos que visem a formar parcerias para o enfrentamento de realidades complexas como a da violência.
Profissionais da saúde: violentadores e violentados
Em contrapartida às situações de estigmatização e mau relacionamento entre profissionais de saúde e comunidade, surgem as situações de violência praticadas contra o profissional da saúde, que geram mais uma razão para a não-atuação na questão da violência, segundo as representações das lideranças entrevistadas. Essa situação foi relatada de maneira semelhante nas duas regiões, o que leva a crer que ocorra em ambas, apesar das diferenças referentes à mobilização popular. O medo de sofrer retaliações do crime organizado seria mais uma razão para a não-atuação na questão da violência. A "lei do silêncio" parece atingir também os profissionais da saúde, segundo algumas lideranças:
... eles não se envolvem porque... senão eles vão acabar saindo. Se eles começam a se envolver com isso, eles vão ter que ir embora. Se eles se envolverem com isso, eles vão ser... vão ser... como se diz, né? ameaçados. Eu creio que eles não se envolvem... (A13)
Porque daí... pra eles [criminosos] é tudo pessoal de fora, né? quem trabalha no posto de saúde. E pra eles [profissionais da saúde] é assim, é uma repressão muito grande, [...] acho que é medo mesmo... (A2)
Dentro da questão da violência sofrida pelo profissional da saúde, um dos pontos principais, quando se pensa na atenção básica realizada nas periferias das cidades de médio e grande porte, é a ameaça constante de retaliações, praticada principalmente por líderes do tráfico de drogas. Na região A, a representação dessa realidade emergiu de forma clara nas falas das duas lideranças citadas.
Essa situação traz em si um alto nível de complexidade, envolvendo questões ligadas à desigualdade socioeconômica, chamada de violência estrutural por Minayo, 2005, que impera no Brasil e, muitas vezes, funciona como barreira entre o profissional de saúde e a comunidade.
Abrange também a problemática do tráfico de drogas que, constituindo uma espécie de "estado paralelo" em muitas periferias do país, impede serviços públicos de desempenharem seu trabalho em segurança.
Assim, observa-se uma complexa situação de ambivalência em que se encontram os serviços de saúde, bem como outros serviços públicos (educação, previdência social, conselho tutelar, polícia, etc). A mesma comunidade que identifica neles fontes de violência (como é o caso do mau-atendimento, da falta de diálogo e da estigmatização no atendimento de casos de violência), reconhece que eles próprios são também vítimas da violência, principalmente sob a forma da delinquência. Esses serviços são, a um só tempo, violentadores e violentados. A fala da liderança abaixo ilustra essa situação:
Então [as pessoas da comunidade] acabam se violentando, e com essa mesma agressividade vão para as filas do INPS, vão para as filas dos postos de saúde, e eu vejo aí onde existe um choque muito grande. [...] os professores acabam também sendo agressivos. Eu percebo que não existe mais aquele educador, extremamente educado. Acabam sendo os violentados, e também eles são violentadores... (A11)
As situações de violência contra o profissional da saúde são mais um tema ainda pouco estudado. Encontram-se poucos artigos científicos sobre o assunto. Um deles, de Abdalla-Filho (2004), aborda uma questão que talvez seja uma das razões para esse não-olhar dos pesquisadores sobre as situações de violência a que o profissional da saúde está exposto. Trata-se da condição de detentor do poder conferida especialmente à figura do médico, mas que pode se fazer presente na visão do profissional da saúde em geral. Essa postura dificulta ao profissional admitir a própria fragilidade na relação com o paciente/usuário e, portanto, não conseguir se reconhecer como vítima nessa relação.
Essa condição se constituiria como um peso social e psíquico a ser sustentado pelo profissional no seu cotidiano de trabalho (Abdalla-Filho, 2004, p. 125). Além disso, essa condição de detentor do poder pode acabar aumentando o distanciamento entre o profissional da saúde e a comunidade, dificultando ainda mais a desejada formação de parcerias, que pressupõem requisitos como respeito mútuo, confiança e segurança para que ambas as partes assumam suas realidades de vida e trabalho.
Outra consequência é o pouco respaldo que o profissional passa a ter para dar encaminhamentos práticos às situações de violência com as quais se depara no seu cotidiano.
As possibilidades de atuação dos serviços de saúde
Nessa categoria emergiram mais diferenças entre as duas regiões, provavelmente associadas aos respectivos contextos de mobilização popular. Entre as formas de atuação do serviço de saúde identificadas nas entrevistas, é importante destacar que, quando se fala de combate à violência, emergem representações que trazem as ideias de parceria e participação na região B, onde há maior mobilização da comunidade. Os entrevistados dessa região que afirmaram que há atuação dos serviços de saúde disseram que ela ocorre por meio de uma relação de confiança mútua conquistada pelos profissionais de saúde junto à população e pela atuação do conselho local de saúde. Na região A, essa parceria ocorre de forma mais limitada e menos frutífera, focando-se apenas na convocação de reuniões, que acabam sendo pouco frequentadas, justificativa considerada suficiente para se desistir da mobilização popular.
Eles tentam. Eles tentam, mas não conseguem. [...] Elas tentam! Fazem reunião, só que o pessoal não participa... (A10)
Isso [ganhar a confiança da comunidade] é o que leva a tá ajudando, a tá ajudando a combater isso aí, né? A própria violência. Porque quando é bem recebido, a própria área de saúde apoia a população. Eu tenho certeza de que eles apoiam. [...] hoje aqui dentro do nosso bairro o pessoal chega, faz o trabalho, o trabalho que eles tão fazendo não tem empecilho no meio, ninguém mais fuxica, deixam eles fazer o serviço. Eu acho que isso aí... sabe o que que tá deixando eles entrarem, é o respeito, né? Eles ganharam a confiança da comunidade. E a comunidade tem a confiança deles, né? (B1)
A atuação dos serviços de saúde na problemática da violência é um tema ainda muito pouco discutido na literatura. Isso reflete, de alguma forma, a própria pouca atuação do segmento nessa questão. A atuação desses serviços está quase sempre associada ao atendimento das vítimas de violências (desconsiderando o universo da prevenção), ou ao combate a doenças "biológicas", passíveis de controle com medicalização (Camargo Júnior, 2007).
Merecem destaque também as menções das lideranças ao importante papel que os serviços de saúde podem desempenhar no enfrentamento da violência e o valor da parceria entre a comunidade e o serviço.
Eu acho que teria sim que dar o apoio deles [profissionais da saúde], com o apoio deles a gente se mobiliza de uma forma mais forte e a gente pode tá um ajudando o outro, e a questão da violência pode ser resolvida, né? bem mais fácil. (A1)
A parceria entre serviços de saúde e comunidade é outro tema pouco abordado em estudos científicos. Porém, o valor que a parceria entre esses atores tem para a melhoria da realidade da população é reconhecido inclusive oficialmente, como é o caso do documento do Ministério da Saúde intitulado "Saúde Integral de Adolescentes e Jovens: Orientações para a Organização de Serviços de Saúde" (Brasil, 2005). Nele, o Ministério faz, em diversos pontos, orientações claras aos serviços de saúde direcionadas ao valor que as alianças e parcerias têm para a melhoria do desempenho dos próprios serviços.
A importância das pesquisas acadêmicas sobre o tema também foi mencionada por uma liderança:
... tem que fazer essas pesquisas que vocês estão fazendo nos bairros... (A4)
Um dado positivo, que vem ao encontro do anseio manifestado pela liderança A4, é o que Minayo (2006a) traz. Houve um significativo crescimento da produção científica na área da saúde sobre a violência: 90% nos últimos 25 anos.
Dentro de modelos de atenção que ultrapassam a barreira da visão biomédica, como é caso do trabalho realizado pelas agentes comunitárias de saúde do Programa Saúde da Família (PSF), é possível já se contemplar mudanças na atuação dos serviços de saúde:
... essas agentes comunitárias, eu as vejo mais envolvidas na questão polêmica do bairro do que propriamente a saúde em si. (A11)
À semelhança do observado nessa fala, Oliveira e colaboradores (2003), num estudo descritivo com 180 famílias cobertas pelo Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), no município de Anastácio (MS), constataram o bom desempenho que esses profissionais têm perante a avaliação da comunidade, que os vê como elemento de ligação entre esta e os serviços de saúde.
No caso específico da violência, Biancarelli (2006) cita, como uma das iniciativas que ajudaram a reduzir a violência em Diadema (SP), o treinamento de agentes de saúde para atuar como mediadores de conflito. O contato direto com os moradores oportuniza ao agente comunitário atuar em questões relacionadas a desavenças familiares ou entre pessoas que se conhecem.
Considerações Finais
Este estudo constatou que, na ótica das lideranças comunitárias, a atuação dos serviços de saúde no enfrentamento da violência urbana ainda é precária, fato comum às duas regiões. Isso pode demonstrar que a não-atuação da saúde ocorre de forma independente da mobilização popular. Porém existem possibilidades, mediante a formação de parcerias com a comunidade.
Entre as causas para essa não-atuação estão as falhas na interação com a comunidade, que levam o profissional da saúde a não desenvolver sua sensibilidade para o contexto social da comunidade. Além disso, ainda são muito fortes as marcas do modelo biomédico, que podem perpassar inclusive a visão das próprias lideranças comunitárias, que passam a não ver o profissional da saúde como um possível parceiro no enfrentamento da violência.
Ainda é preciso também superar as falhas de aplicação do modelo de atenção básica, como é o caso do PSF. Essas falhas podem constituir outra causa para a não-atuação da saúde em questões do contexto social, como a violência.
É preciso também que se tenha outro olhar sobre as condições de vida e trabalho do profissional da saúde que pode, além de desempenhar o papel de violentador, tornar-se um violentado, mediante o complexo quadro socioeconômico e delinquencial vivido em muitas comunidades no Brasil. Esse relato também emergiu nas entrevistas das duas regiões.
Em tempos de acirramento da violência urbana, é necessário que haja uma conscientização por parte do segmento da saúde para a relevância do tema na qualidade de vida da população. Um serviço de saúde que esteja realmente empenhando em promover a qualidade de vida, não pode deixar de lado o valor do pleno exercício da democracia e a luta por justiça social. Deve articular-se intersetorial, multiprofissional e interdisciplinarmente e com organizações da sociedade civil e comunitária. Conforme emergiu na terceira categoria deste estudo, quando há o exercício mais efetivo da cidadania e maior mobilização social, a perspectiva da parceria torna-se mais próxima e real.
É preciso que se intensifiquem os estudos e planejamentos para a prevenção de agravos decorrentes da violência. Além dessas ações, são de suma importância os investimentos nas mudanças na formação do profissional de saúde e nos processos de educação permanente, visando a criar uma nova geração de profissionais mais sensíveis às questões sociais e às reais necessidades da comunidade.
Recebido em: 30/08/2007
Reapresentado em: 17/07/2008
Aprovado em: 18/07/2008
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Set 2008 -
Data do Fascículo
Set 2008
Histórico
-
Aceito
18 Jul 2008 -
Revisado
17 Jul 2008 -
Recebido
30 Ago 2007