Resumo
O Brasil tem apresentado elevado percentual de homicídio e mortes por intervenção legal. Este artigo faz parte de um estudo qualitativo de casos múltiplos sobre vítimas indiretas que perderam parentes por homicídio devido à ação de agentes de segurança e de policiais no Rio de Janeiro. Os dados provêm de quatro entrevistas individuais com familiares de pessoas mortas por policiais e três familiares de policiais vítimas de homicídio, que foram submetidos à análise temática. Os depoimentos revelaram os impactos da perda do familiar na saúde das vítimas indiretas, como o intenso sofrimento mental e a repercussão negativa em ocupações humanas, como trabalho, lazer, sono e cuidado em saúde. Ante a experiência traumática, o apoio das instituições é limitado, ao passo que grupos ativistas e entidades ligadas aos direitos humanos são relatados, pelos entrevistados, como de grande ajuda na elaboração da dor da perda, sobretudo no grupo dos que perderam seus entes pela ação policial. O estudo indica a necessidade de pesquisas sobre as lacunas entre os equipamentos e políticas públicas e as necessidades das vítimas indiretas.
Palavras-chave:
Vítimas Indiretas; Homicídio; Ocupação Humana; Apoio Social; Estratégias de Superação
Abstract
Brazil has recorded a high percentage of homicides and deaths due to legal intervention. This article is part of a qualitative multiple case study about indirect victims who lost relatives to homicide perpetraded by security agents and police officers in Rio de Janeiro. Data were collected in four individual interviews with family members of people killed by police officers and three family members of police officers who were victims of homicide, and then subjected to thematic analysis. The testimonies revealed the major impacts of the loss of a family member on the indirect victim’s health, such as intense mental suffering and the negative impacts on human occupations such as work, leisure, health care, and sleep. Institutional support is limited in the face of the traumatic experience, whereas activist groups and entities tied to human rights advocacy are of great help in overcoming the pain of loss, especially for those who have lost their family members to the police. Further research is needed about the gaps between public facilities and policies and the needs of indirect victims.
Keywords:
Indirect Victims; Homicide; Human Occupation; Social Support; Coping Strategies
Introdução
A violência é um fenômeno social complexo que varia ao longo do tempo e afeta diretamente a vida humana e os sistemas de saúde, pois demanda recursos de hospitais, emergências e ambulatórios, além de prejudicar a qualidade de vida das pessoas, promovendo danos à saúde física e mental das vítimas diretas e indiretas, e influenciando na taxa de anos potenciais de vida perdidos.
Entre as expressões da violência, pode-se citar o homicídio como uma das formas mais brutais, pois nega o direito básico à vida. É definido como destruição da vida humana por uma pessoa que teve intenção de matar ou ferir outra (Souza; Pinto; Ribeiro, 2020SOUZA, E. R.; PINTO, L. W.; RIBEIRO, A. P. Homicídio: Uma violência interpessoal que impede a vida. In: NJAINE, K. et al. (Org.). Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz EAD/ENSP, 2020.).
O Brasil tem registrado elevadas taxas de homicídio. Em 2018, houve um total de 57.956 mortes por homicídio, o que representa 27,8 mortes por 100 mil habitantes (Santiago; Nunes; Macena, 2021SANTIAGO, M. L. O; NUNES, R. A. L.; MACENA, R. H. M. Tendência temporal dos homicídios no Brasil no período de 2000-2019. Journal of Health and Biological Sciences, Fortaleza, v. 9. n. 1, p. 1-10, 2021. DOI: 10.12662/2317-3076jhbs.v9i1.4140.p1-10.2021
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). Embora se aponte uma redução significativa dos óbitos por homicídios a partir de 2017 no país (com grandes disparidades inter e intrarregionais), pode-se observar, paralelamente, a elevação das variações percentuais anuais médias das mortes por intervenção legal em quase todas as regiões, de 2000 a 2019 (Santiago Nunes; Macena, 2021SANTIAGO, M. L. O; NUNES, R. A. L.; MACENA, R. H. M. Tendência temporal dos homicídios no Brasil no período de 2000-2019. Journal of Health and Biological Sciences, Fortaleza, v. 9. n. 1, p. 1-10, 2021. DOI: 10.12662/2317-3076jhbs.v9i1.4140.p1-10.2021
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). As mortes pela ação de agentes do Estado são consideradas, neste artigo, como homicídios.
Muitos estudos se dedicam às taxas de homicídio e ao perfil dos grupos agentes e vítimas dessas agressões; contudo, pesquisas sobre as vítimas indiretas dessas tragédias cotidianas no país são menos encontradas. Vítimas indiretas são as pessoas, na maioria das vezes familiares, relacionadas àquela que foi morta. Essas pessoas geralmente vivenciam sérios agravos psicológicos e físicos (Hertz Prothrow-Stith; Chery, 2005HERTZ M. F.; PROTHROW-STITH, D.; CHERY, C. Homicide survivors: research and practice implications. American Journal of Preventive Medicine, v. 29, n. 5, p. 288-295, 2005. DOI: 10.1016/j.amepre.2005.08.027
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) que precisam ser visibilizados.
Este artigo apresenta o recorte de um estudo compreensivo mais amplo, intitulado “Narrativas das vítimas indiretas: A voz de familiares de civis mortos por policiais e de policiais assassinados”, que focaliza as experiências dos familiares dessas pessoas, tomando a cidade do Rio de Janeiro como campo empírico. Buscou-se identificar e descrever os impactos do evento traumático na vida das vítimas indiretas. Contudo, frente à abrangência do tema e à necessidade de desdobramentos e aprofundamento teórico e analítico de algumas das questões abordadas na pesquisa mãe, decidiu-se tomar como objetivo geral deste artigo os tipos de apoio recebidos pelas vítimas indiretas após a perda do ente familiar e as estratégias adotadas por elas para superar a dor e tocar a vida.
Assim, o objetivo geral deste artigo é identificar e descrever os impactos na saúde e nas ocupações das vítimas indiretas após o homicídio, e, assim, analisar quais os apoios recebidos pelas famílias das vítimas por parte das instituições governamentais (relacionados à saúde, assistência social, justiça e segurança pública) e não governamentais; também buscou-se compreender quais estratégias foram adotadas pelas vítimas indiretas para superar a experiência traumática.
Material e método
Esta é uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso, de amostra intencional, realizada na cidade do Rio de Janeiro, marcada historicamente por frequentes conflitos entre policiais e a população, assim como entre a polícia e grupos criminosos.
Foram realizadas entrevistas individuais com quatro familiares de pessoas mortas por policiais e com três familiares de policiais vítimas de homicídios, tendo como critério a morte ter ocorrido há pelo menos 2 anos. Tal condição visou garantir um distanciamento do evento violento e, consequentemente, diminuir o afloramento de emoções mais intensas nos entrevistados. As entrevistas ocorreram no segundo semestre de 2019 e foram interrompidas em março de 2020, devido à pandemia de covid-19. Todas as pessoas entrevistadas tinham mais de 18 anos.
Os familiares das vítimas de homicídio foram acessados por meio da técnica de bola de neve (snowball), que é um método útil para pesquisar grupos de difícil acesso ou difíceis de estudar, ou ainda quando não há precisão sobre sua quantidade. Esse método se constitui por uma amostra não probabilística que usa redes de referência e indicações, útil para estudar questões delicadas, de âmbito privado e que, portanto, requerem o conhecimento das pessoas pertencentes ao grupo alvo ou são reconhecidos por elas como informantes para o estudo (Bockorni; Gomes, 2021BOCKORNI, B. R. S.; GOMES, A. F. A amostragem em snowball (Bola de neve) em uma pesquisa qualitativa no campo da administração. Revista de ciências empresárias da UNIPAR, Umuarama, v. 22, n. 1, p. 105-117, 2021.; Vinuto, 2014VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, Campinas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014. DOI: 10.20396/tematicas.v22i44.10977
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).
Partiu-se em busca das indicações de pessoas conhecidas por serem participantes/criadoras/organizadoras de associações de apoio a policiais vítimas de violência e de movimentos sociais que buscam justiça para a morte de parentes por agentes de segurança do Estado. Inicialmente, essas pessoas foram entrevistadas e indicaram outras que tinham passado pela mesma experiência de perda, e assim sucessivamente em cadeias de referência. Contudo, pelo tema e o próprio processo violento vivenciado por esses familiares, foi difícil conseguir adesão ao estudo.
As pessoas convidadas alegaram medo de retaliação, descrença nas instituições e no Estado, desânimo e desgaste diante do doloroso e cansativo processo de busca por justiça, e, ainda, que já haviam dado entrevistas para outras pesquisas acadêmicas. A partir desses argumentos, ampliou-se a busca de outros informantes: profissionais de serviços de saúde que atendiam pessoas com essas experiências e cineastas que haviam realizado filmes com depoimentos dessas pessoas. Ainda assim, algumas indicadas se negaram a participar da pesquisa, sobretudo os parentes de policiais vitimados.
Em pesquisa qualitativa, utiliza-se, muitas vezes, a saturação de dados como critério para o fechamento da amostra, ou seja, “quando nenhum novo elemento é encontrado e o acréscimo de novas informações deixa de ser necessário, pois não altera a compreensão do fenômeno estudado” (Nascimento et al., 2018NASCIMENTO, L. C. N et al. Saturação teórica em pesquisa qualitative: relato de experiência na entrevista com escolares. Revista Brasileira de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 71, n. 1, p. 243-248, 2018. DOI: 10.1590/0034-7167-2016-0616
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, p. 244). Contudo, Fontanella et al. (2011FONTANELLA, B. J. B. et al. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 389-394, 2011. DOI: 10.1590/S0102-311X2011000200020
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) apontam que existem dificuldades para constatar e explicitar objetivamente o processo de saturação, e afirmam que, em amostras não-probabilísticas, a definição de saturação é feita a partir da experiência empírica do pesquisador, orientada por conhecimentos teóricos sobre o objeto de estudo.
O pesquisador considera haver saturação empírica quando constata que já dispõe dos dados necessários para responder às suas questões de pesquisa; e que há saturação teórica quando o campo já não fornece novos elementos que ajudem a aprofundar a teorização (Fontanella et al., 2011FONTANELLA, B. J. B. et al. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 389-394, 2011. DOI: 10.1590/S0102-311X2011000200020
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). Acredita-se que ambos os critérios foram alcançados neste estudo.
As entrevistas foram conduzidas por pesquisador treinado, gravadas em meio digital e transcritas, e tiveram, em média, duração de 90 minutos. Apenas uma participante não permitiu a gravação, e o registro da entrevista foi feito posteriormente. A maioria foi feita em sala fechada, com privacidade e no local solicitado pelos entrevistados, a fim de garantir o sigilo da conversa. A entrevista abordou os seguintes tópicos: trajetória de vida do(a) próprio(a) entrevistado(a); as condições que possibilitaram a ocorrência da morte violenta; os impactos afetivos, psíquicos, sociais e financeiros da morte para o(a) entrevistado(a); os apoios recebidos das instituições/redes sociais; e as estratégias usadas para superação da experiência traumática. Esses dois últimos são o foco deste artigo.
O material coletado foi submetido à análise de conteúdo, modalidade temática, conforme recomendado por Gomes (2015GOMES, R. A Análise de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S; DESLANDES, S. F; GOMES, R (Org.). Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2015. p. 79-108). Essa abordagem consiste na descoberta dos “núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença ou frequência de aparição pode significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido” (Gomes, 2015GOMES, R. A Análise de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S; DESLANDES, S. F; GOMES, R (Org.). Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2015. p. 79-108, p. 92). Os dados passaram pelas seguintes fases de análise: (1) pré-análise: corresponde à leitura flutuante; (2) exploração do material, com leituras sucessivas para a codificação das entrevistas, considerando-se os significados e as recorrências das falas; (3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação: momento em que ocorre a categorização e descrição dos dados (Gomes, 2015GOMES, R. A Análise de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S; DESLANDES, S. F; GOMES, R (Org.). Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2015. p. 79-108).
Cada participante recebeu um código contendo um nome fictício seguido do indicativo de pertencimento a um dos grupos estudados (G1: grupo de familiares de pessoas mortas por policiais; G2: grupo de familiares de policiais mortos).
A pesquisa foi submetida ao comitê de ética e pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e aprovada pelo parecer n. 3.443.421.
A fim de cuidar dos possíveis riscos aos participantes, foram identificados e fornecidos contatos de serviços de saúde ou de profissionais de referência, caso, durante a entrevista, os participantes experimentassem algum desconforto ou estresse psíquico.
Resultados e discussão
Foram entrevistadas sete pessoas, sendo seis mulheres e um homem; quatro são vítimas indiretas da ação da polícia, ou seja, tiveram os filhos mortos/feridos por agentes da segurança e as outras três entrevistadas eram parentes de policiais assassinados pelo fato de serem policiais. Todas as pessoas residem no município do Rio de Janeiro, mesma cidade onde a violência foi perpetrada contra os seus familiares.
Informações como nomes fictícios, idade, sexo, cor, local de moradia, grau de parentesco com a pessoa que foi morta e o ano do óbito podem ser observadas no Quadro 1. As idades das vítimas indiretas variam de 41 a 71 anos e as dos seus parentes mortos variam de 2 a 51 anos; metade se autodeclara como negra; só uma pessoa reside na zona sul do Rio de Janeiro, enquanto as demais moram em comunidades ou bairros periféricos e de classe popular. Os dados são apresentados segundo o pertencimento ao grupo 1 ou ao grupo 2.
A análise temática das entrevistas foi organizada em três categorias: (1) violência e os impactos na saúde e ocupações das vítimas indiretas; (2) apoios recebidos por parte das instituições governamentais e não governamentais; e (3) estratégias adotadas pelas vítimas indiretas para superar a experiência traumática.
Violência e os impactos na saúde e ocupações das vítimas indiretas
Todos os entrevistados, sejam vítimas indiretas das mortes pela polícia ou de policiais mortos, relataram deterioração ou piora no estado de saúde geral após os homicídios, com sintomas semelhantes entre as participantes mulheres e o único homem entrevistado.
No grupo 1, duas entrevistadas relataram que as condições de saúde preexistentes pioraram após a morte dos entes familiares. Chama a atenção que, embora as pessoas entrevistadas relatem o impacto da violência vivenciada em sua saúde, elas salientam que esse impacto se estendeu para mais pessoas, como vizinhos, amigos e, principalmente, outros membros familiares próximos. Estima-se que, para cada vítima fatal, três a sete pessoas sofram intensamente com a perda (Soares; Miranda; Borges, 2006SOARES, G. A. D.; MIRANDA, D; BORGES, D. As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.; Souza; Pinto; Ribeiro, 2020SOUZA, E. R.; PINTO, L. W.; RIBEIRO, A. P. Homicídio: Uma violência interpessoal que impede a vida. In: NJAINE, K. et al. (Org.). Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz EAD/ENSP, 2020.). Essas pessoas também tiveram sua saúde bastante abalada, conforme podemos observar nas seguintes falas:
Desestruturou toda minha família, toda ela adoeceu. Minha avó, que já estava adoecida, agravou ainda mais seu estado de saúde. Meu filho foi assassinado em maio de 2014, minha avó faleceu em setembro do mesmo ano. Muito por conta da morte do João. […] Eles eram muito apegados. O pai dele também adquiriu várias doenças, hoje usa medicamentos para controlar a pressão. (Arlete-G1)
A minha mãe também começou a ficar com a saúde debilitada. Ela já tinha problema de pressão alta, isso já foi desencadeando […] a tristeza faz com que isso, né, desencadeia na gente as emoções, vai aflorando, e acaba que o pior vem, vinha acontecendo. (Débora-G1)
Enquanto algumas pessoas entrevistadas relataram piora das condições preexistentes, outras relataram que, após alguns meses, foram diagnosticadas com hipertensão, diabetes ou tiveram problemas de saúde como aneurisma e paralisia facial. Relatos semelhantes foram descritos por Costa et al. (2017COSTA, D. H. et al. Homicídios de jovens: Os impactos da perda em famílias de vítimas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 685-705, 2017. DOI: 10.1590/S0103-73312017000300016
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) e Costa, Njaine e Schenker (2017COSTA, D. H.; NJAINE, K.; SCHENKER, M. Repercussões do homicídio em famílias das vítimas: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017229.18132016
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). Ainda que não se possa estabelecer uma relação direta entre o homicídio do parente e o surgimento/agravamento de doenças crônicas, os relatos sugerem uma piora no seu estado de saúde geral.
Foi comum a todas as entrevistas o relato de intenso sofrimento mental revestido por sintomas depressivos, tais como insônia, falta de apetite, ideação suicida, além de comportamentos agressivos, compulsão por comida ou compras e sobressalto a estímulos que remetem a tiros. A fala a seguir exemplifica algumas dessas características:
O primeiro ano da morte do meu filho eu pensava em morrer todo dia, todo dia, todo dia. Quando eu chegava em casa e não ouvia o ‘manhê’, que ele falava […], era um desespero muito grande. Eu rezava, eu tava no trabalho e rezava pra não dar a hora de ir embora. Se eu pudesse eu ficava por lá mesmo. […] Eu sentia vontade de morrer todo dia. (Telma-G1)
Sintomas de depressão e ansiedade são frequentemente citados na literatura por pessoas que perderam um familiar de maneira violenta (Connolly; Gordon, 2014CONNOLLY, J.; GORDON, R. Co-victims of Homicide: A Systematic Review of the Literature. Trauma, Violence, & Abuse, v. 16, n. 4, p. 494-505, 2014. DOI: 10.1177/1524838014557285
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), sendo que muitas desenvolvem sintomas relativos ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) ou apresentam a condição de forma completa, sendo a incidência dessa taxa de, aproximadamente, 23% (Hertz; Prothrow-Stith; Chery, 2005HERTZ M. F.; PROTHROW-STITH, D.; CHERY, C. Homicide survivors: research and practice implications. American Journal of Preventive Medicine, v. 29, n. 5, p. 288-295, 2005. DOI: 10.1016/j.amepre.2005.08.027
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).
Os mesmos sintomas e condições de saúde foram relatados pelas entrevistadas que tiveram seus entes policiais mortos, sobretudo no que se refere ao sofrimento mental. Duas entrevistadas disseram que tiveram sintomas depressivos ou depressão, e uma revelou ter síndrome do pânico, que repercutiu de forma negativa até em seu trabalho:
Assim, eu fiquei completamente desorientada. E essa casa que eu tinha no condomínio da Marinha, que eu emprestei pra ela, eu tive que vender pra pagar dívida de cartão, dívida de compra que eu fazia. Eu comprava, comprava, comprava. Eu cheguei a quase 90kg. Eu comia, comia, comia, comia desesperadamente. Eu comia, eu chorava, eu não ia trabalhar, eu faltava. Enfim, eu fiquei completamente descompensada, entendeu? (Zianete-G2)
Eu estou retraída, eu não quero falar com ninguém, eu não quero me dar com ninguém. Eu estou evitando as pessoas, isso é fato. As únicas pessoas que eu não evito é meu filho, minhas filhas, minha mãe e meu marido. (Josélia-G2)
Esse comportamento retraído, caracterizado pela dificuldade de socializar e considerado uma alienação das relações sociais que causa a diminuição da rede de apoio é relatada nos estudos como um desdobramento da violência sofrida por aquele núcleo familiar (Connolly; Gordon, 2014CONNOLLY, J.; GORDON, R. Co-victims of Homicide: A Systematic Review of the Literature. Trauma, Violence, & Abuse, v. 16, n. 4, p. 494-505, 2014. DOI: 10.1177/1524838014557285
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), que afeta diretamente a participação social da vítima indireta em suas relações cotidianas.
Tais narrativas apontam que a carga de sofrimento vivenciada pelas vítimas indiretas, além de provocar adoecimento, fez com que houvesse uma ruptura ou fragilização nas ocupações desempenhadas por essas pessoas. Compreende-se como ocupações as atividades diárias realizadas de forma individual ou coletiva que dão sentido e propósito à vida (Gomes; Teixeira; Ribeiro, 2020GOMES, M. D.; TEIXEIRA, L.; RIBEIRO, J. Enquadramento da Prática da Terapia Ocupacional: Domínio & Processo 4ª Edição. 2021. Versão Portuguesa de Occupational Therapy Practice Framework: Domain and Process 4th Edition (AOTA, 2020). Leiria: Politécnico de Leiria, 2021. DOI: 10.25766/671r-0c18
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). Podemos citar como exemplos de ocupações as atividades de autocuidado, atividades instrumentais da vida diária, descanso, sono, educação, trabalho, lazer e participação social.
Os mais diversos relatos dessas vítimas indiretas apontam para essa restrição e fragilização de suas diversas ocupações, como: não conseguir dormir direito; ter dificuldade de interagir com as pessoas, assim como para trabalhar e estudar; limitar as atividades de lazer; e negligenciar o autocuidado.
Um aspecto que contribui para explicar a carga de adoecimento que culmina de forma tão abrupta nas ocupações está relacionado ao luto dos familiares, muitas vezes, não ser reconhecido e legitimado perante a opinião pública. Isso é observado de forma mais nítida entre os entrevistados do grupo 1, cujos parentes foram mortos por agentes de segurança pública. Nesses casos, devido à demasiada demora de uma resolução judicial do caso, o luto se torna um processo sem fim que modifica os laços familiares com grande impacto sobre essas pessoas (Araújo; Sousa; Silva, 2022ARAÚJO, V. S., SOUZA, E. R., SILVA, V. L. M. “Eles vão certeiros nos nossos filhos”: adoecimentos e resistências de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1327-1336, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022274.06912021
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). Esse processo de luto duradouro, que provoca enorme sofrimento, também pode ser observado nos familiares que tiveram seus entes policiais assassinados.
Vítimas indiretas muitas vezes podem vivenciar isolamento, por sentimento de impotência, falta de segurança e tristeza, o que afeta diretamente o engajamento e motivação para a realização de seus afazeres diários. Segundo Hammel (2020HAMMELL, K. W. Ações nos determinantes sociais de saúde: avançando na equidade ocupacional e nos direitos ocupacionais. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 28, n. 1, p. 378-400, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2052
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), dar oportunidade para as pessoas se envolverem em antigas ou novas ocupações em suas redes de suporte social deve ser encarado como um direito humano básico, ainda que elas frequentemente experimentem o desamparo social, condição que ocorre tanto pela falta de informações em relação ao processo judicial, quanto pela falta de apoio dos equipamentos institucionais que poderiam lhes dar suporte (Costa et al., 2017COSTA, D. H. et al. Homicídios de jovens: Os impactos da perda em famílias de vítimas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 685-705, 2017. DOI: 10.1590/S0103-73312017000300016
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; Souza; Pinto; Ribeiro, 2020SOUZA, E. R.; PINTO, L. W.; RIBEIRO, A. P. Homicídio: Uma violência interpessoal que impede a vida. In: NJAINE, K. et al. (Org.). Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz EAD/ENSP, 2020.).
Os apoios governamentais e não governamentais recebidos pelas famílias das vítimas
Baseado em estudos anteriores que descreveram o desamparo social como uma condição recorrente junto às vítimas indiretas (Araújo; Souza; Silva, 2022ARAÚJO, V. S., SOUZA, E. R., SILVA, V. L. M. “Eles vão certeiros nos nossos filhos”: adoecimentos e resistências de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1327-1336, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022274.06912021
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; Costa et al., 2017COSTA, D. H. et al. Homicídios de jovens: Os impactos da perda em famílias de vítimas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 685-705, 2017. DOI: 10.1590/S0103-73312017000300016
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), buscou-se investigar se houve apoio das instituições governamentais junto a esses familiares. Como exemplos de instituições governamentais estão os equipamentos da saúde, assistência social, justiça e segurança pública, os quais, em maior ou menor grau, são envolvidos em eventos dessa natureza.
Pode-se observar nas falas dos dois grupos estudados que o Estado, aqui compreendido pelas instituições governamentais, pouco prestou qualquer tipo de apoio às vítimas indiretas. Esse pouco ou nenhum apoio institucional é compensado pelo forte suporte vindo de redes informais ou não governamentais de apoio social, conforme enfatizado no grupo que teve seu familiar morto ou ferido por policiais, principalmente no que se refere ao apoio prestado por movimentos ativistas de mães vítimas indiretas da violência e de grupos que reivindicam direitos humanos.
A rede de apoio social pode integrar vínculos familiares, amigos e pessoas da comunidade, e contempla aspectos positivos que fornecem suporte em momentos de crise e, muitas vezes, mitiga fatores que causam estresse (Costa, 2009COSTA, L. G. A rede de apoio social de jovens em situação de vulnerabilidade social e o uso de drogas. 2009. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.). Quanto maior o nível de apoio social, maior a possibilidade de uma pessoa desenvolver estratégias adaptativas para lidar com situações adversas no cotidiano (Costa, 2009COSTA, L. G. A rede de apoio social de jovens em situação de vulnerabilidade social e o uso de drogas. 2009. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.; Pizzinato et al., 2018PIZZINATO, A. et al. Análise da rede de apoio e do apoio social na percepção de usuários e profissionais da proteção social básica. Estudos de Psicologia, Natal, v. 23, n. 2, p. 145-156, 2018. DOI: 10.22491/1678-4669.20180015
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).
Os apoios mencionados pelos entrevistados compreendem: as trocas mútuas de mães que se organizam coletivamente em grupos ativistas; gestos de solidariedade da própria comunidade com as vítimas indiretas, expressos por meio de doação de utensílios ou testemunho do crime na delegacia; e o acolhimento dos demais entes familiares junto a algumas mães.
Três entrevistadas relataram que o apoio de outras mães vítimas indiretas da violência e algumas organizações políticas, representadas aqui pelo ativismo de movimentos sociais, sobretudo daquelas engajadas nesses movimentos, foi um ponto importante de apoio e cuidado:
Na época, quem me apoiou muito foi o Cebraspo [Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos], que foi parceiro e até hoje. […] Aí através deles eu conheci o jornal Nova Democracia, conheci a rede contra a violência, conheci a luta das organizações, Projeto Legal, conheci a Justiça Global, conheci… mais quem? A Anistia Internacional, conheci o Reaja, lá da Bahia, As Mães de Maio. Fui conhecendo outros movimentos. (Débora, G1)
[…] Várias mães que me acolheram […] hoje eu faço parte do grupo delas, as Mães de Manguinhos e familiares de vítimas. […]. Sempre que dá pra mim participar de manifestação eu vou, eu tô lá. Não é sempre que eu vou, por causa do trabalho […]. (Telma, G1)
Araújo, Souza e Silva (2022ARAÚJO, V. S., SOUZA, E. R., SILVA, V. L. M. “Eles vão certeiros nos nossos filhos”: adoecimentos e resistências de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1327-1336, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022274.06912021
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) relatam que existem vários grupos de mães no Brasil que reivindicam justiça; porém, nesse estudo, pode-se observar que os grupos, além de serem organizados para o ativismo, funcionam como espaço de acolhimento, compartilhamento de uma dor que só pode ser vivenciada por outra mãe. Essa ajuda e troca mútua possibilitam novas ocupações e, com isso, a ressignificação de suas vidas.
Gestos de solidariedade da própria família e comunidade com a situação ocorrida foram mencionados por três entrevistadas. Tal apoio é apontado como algo muito significativo para as mães, pois foram tais atitudes que possibilitaram que muitos casos fossem à justiça, por conta do depoimento de vizinhos que foram testemunhas ou porque a própria comunidade ajudou com outros recursos para o cuidado da família.
A gente conversa sobre tudo [se referindo à avó não biológica]. Com ela a gente nunca teve segredo. Nem eu e nem meus filhos. A gente sempre conversou com ela sobre tudo, qualquer tipo de problema, qualquer coisa. Aí com ela eu converso. Todo dia que eu venho do trabalho, ela mora lá do lado da UPA, naqueles apês alí. (Telma, G1)
Ao menos duas outras participantes relataram, também, terem recebido apoio e acolhimento da família para se consolar frente às dificuldades vivenciadas pelo luto, embora seja importante mencionar que a forma como cada família se apoia varia bastante. A reorganização familiar após a perda, em certas circunstâncias, permite que valores como solidariedade e união aflorem no repertório emocional de várias dessas vítimas indiretas (Domingues; Dessen; Queiroz, 2015DOMINGUES, D. F; DESSEN, M. A.; QUEIROZ, E. Luto e enfrentamento em famílias vitimadas por homicídio. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 67, n. 2, p. 61-74, 2015.). Isso ocorreu em alguns casos, conforme o relato:
Meu apoio, em primeiro lugar, Deus, minha família. Toda minha família me apoiou demais, cuidou de mim; fazem isso até hoje. O primeiro apoio foi da minha família, principalmente da minha irmã. (Arlete, G1)
Arlete foi a única entrevistada do grupo 1 que mencionou o trabalho da delegacia no processo do filho em uma perspectiva positiva:
Teve uma investigação que, em relação aos outros casos em que tive acesso, foi rápida. Alguns casos nunca saíram da delegacia. Dez meses depois acontece a primeira audiência do caso do meu filho. Eles não tinham outra opção, foram várias testemunhas: 10 moradores. Além disso, o delegado fez um bom serviço. As armas dos policiais foram apreendidas naquele mesmo dia, eles foram prestar depoimento na DH. O policial que matou meu filho, no primeiro depoimento na DH, negou que tivesse feito disparos. Mas a bala ficou alojada no corpo do meu filho, fizeram exame de balística. Que bom que esse policial estava usando uma arma da corporação, pois geralmente não fazem isso, usam armas “frias”. O exame apontou o policial que atirou. (Arlete, G1)
No grupo 2, somente uma entrevistada relatou ter recebido apoio religioso, que veio por meio de uma pessoa próxima:
Uma amiga, me joga num carro e me leva para a Universal [Igreja]. Eu fui durante um ano. Ela não falhou um dia. Todo domingo, segunda e terça. E lá eu me ergui. Cheguei a ser batizada. Foi o que curou minha depressão. (Verônica, G2)
As demais pessoas entrevistadas, embora tenham afirmado ter uma religião, não mencionaram qualquer apoio dessa natureza.
As vítimas indiretas do grupo 2, assim como as do grupo 1, também pouco obtiveram apoio institucional, sendo o apoio do núcleo familiar o principal suporte mencionado. O apoio que familiares de policiais mortos recebem aparece como mais limitado que o fornecido às vítimas do grupo 1, pois esses conseguem se amparar em ativistas, políticos, familiares e a comunidade.
Não tive nenhuma assistência de nada. E aí comecei a me juntar com algumas mães de polícia. […] E a Secretaria também não dá abertura, não aceita o nosso serviço. Não, a polícia não precisa disso não, eles não querem isso não, isso é uma esmola, isso é uma vergonha’. Vergonha é você ficar em cima da cama, como a gente já encontrou policial. Eles não deixam. (Zianete, G2)
Pode-se observar nesse último discurso que a perpetuação do estigma em relação às vítimas indiretas é vivificada continuamente por esses familiares, o que prejudica a provisão de apoio social formal e informal, haja visto que muitas dessas vítimas acabam não recebendo apoio de nenhuma natureza (Souza Pinto; Ribeiro, 2020SOUZA, E. R.; PINTO, L. W.; RIBEIRO, A. P. Homicídio: Uma violência interpessoal que impede a vida. In: NJAINE, K. et al. (Org.). Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz EAD/ENSP, 2020.).
Os equipamentos do Sistema Único de Assistência Social e do Sistema Único de Saúde não foram mencionados diretamente nas entrevistas. A assistência à saúde por profissional psicólogo foi citado brevemente em poucas entrevistas e sem maiores informações acerca do local do atendimento e sobre como ocorreu o início da assistência. Estudo de Costa, Njaine e Souza (2020COSTA, D. H; NJAINE, K.; SOUZA, E. R.. Apoio institucional a famílias de vítimas de homicídio: análise das concepções de profissionais da saúde e assistência social. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3 e00282114, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00282
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) menciona que profissionais da saúde e assistência social, muitas vezes, têm uma postura pouco ativa no que se refere ao atendimento às pessoas vítimas de violência, isso porque muitos desses profissionais atuam em equipamentos precarizados, com recursos materiais e humanos limitados e vivenciam a sensação de impotência ao lidar com esse tema e público. Vários deles já vivenciaram experiências de violências dessa e de outras naturezas e, por isso, se sentem fragilizados ao lidar com os casos atendidos, além de não contarem com capacitação sobre o tema nos equipamentos. Outro ponto importante destacado neste estudo é que, na própria atuação profissional, existe uma perpetuação do estigma de serem pessoas pretas ou pardas, pobres, moradoras em comunidades periféricas, cujos entes familiares mortos são simbolicamente associados à criminalidade, em relação às mortes por homicídio, ainda que diferentes profissionais tenham diferentes experiências e abordagens quando se confrontam com esses casos (Costa; Njaine; Souza, 2020COSTA, D. H; NJAINE, K.; SOUZA, E. R.. Apoio institucional a famílias de vítimas de homicídio: análise das concepções de profissionais da saúde e assistência social. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3 e00282114, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00282
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).
Estratégias adotadas pelas vítimas indiretas para superar a experiência traumática
Frente à experiência traumática e o apoio institucional limitado, investigaram-se as possíveis estratégias adotadas pelos familiares para suportar o sofrimento vivenciado. Observou-se que o apoio de outras mães e dos movimentos sociais de luta por justiça se mostraram como importante amparo no momento da perda. Seguir no ativismo político e na luta por justiça emergiu das falas como uma das principais estratégias adotadas pelas vítimas para elaborar a perda. Isso surgiu em ambos os grupos, porém foi predominante entre os familiares que tiveram os filhos mortos por policiais.
Segundo Araújo, Souza e Silva (2022ARAÚJO, V. S., SOUZA, E. R., SILVA, V. L. M. “Eles vão certeiros nos nossos filhos”: adoecimentos e resistências de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1327-1336, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022274.06912021
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), o ativismo pode ser lido como uma busca por reparação moral diante da opinião pública, já que muitas vezes essas vítimas indiretas são taxadas de “mães de bandidos”.
A luta por justiça, contra a impunidade ou, como muitos mencionaram, a “necessidade de dar voz” ao familiar assassinado, de não deixar que ele seja esquecido, surge como um esforço para não apagar as histórias familiares. É isso que, embora os faça sofrer por sempre reviver a dor e o trauma da perda, também os alimenta com a força e coragem libertadoras e terapêuticas para seguirem lutando, a fim de conseguir justiça (Vianna; Farias, 2011VIANNA, A.; FARIAS, J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, p. 79-116, 2011. DOI: 10.1590/S0104-83332011000200004
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), não apenas para o seu caso, mas para o de todas as outras mães que tiveram seus filhos mortos. A fala a seguir exemplifica isso:
Estar na luta, hoje, para mim, é uma cura. São nesses espaços que posso […] gritar seu nome, mostrar o que aconteceu com ele. É como se eu o mantivesse vivo e, isso, é importante demais. Manter essa memória, pois nunca vou esquecer, mas quero que as pessoas não se esqueçam também. É o momento que coloco essa dor para fora, grito, abraço outras mães, familiares. Encontrei a cura na luta. (Arlete, G1)
O engajamento no ativismo político para algumas participantes foi e continua sendo tão significativo que gerou oportunidade e motivação para uma delas cursar uma faculdade:
Meu futuro eu só miro a condenação dos réus e, além da condenação dos réus, a minha formação na faculdade pra ajudar outras mães. Já de uma forma diferente. Tipo, hoje, como mãe, eu vejo a dificuldade que é você ter um advogado. (Débora, G1)
O apoio social pode conter três grandes esferas: emocional, que ocorre a partir das relações de confiança e compartilhamento de sentimentos; instrumental, abrangendo ajuda em tarefas e casos de doenças; e informacional, que se constitui por conselhos e orientações (Pizzinato et al., 2018PIZZINATO, A. et al. Análise da rede de apoio e do apoio social na percepção de usuários e profissionais da proteção social básica. Estudos de Psicologia, Natal, v. 23, n. 2, p. 145-156, 2018. DOI: 10.22491/1678-4669.20180015
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). A rede de apoio social constituída entre as vítimas indiretas que tiveram seus filhos mortos por agentes de segurança se organiza em um movimento, no qual, ao mesmo tempo em que se engajam no ativismo e fornecem suporte para mães ou pais fragilizados, buscam contribuir com a organização coletiva, em um ciclo contínuo que gera um novo sentido ao cotidiano dessas pessoas.
Esse cuidado engajado de uma vítima indireta para outra acaba se constituindo como uma coocupação, ou seja, um fazer compartilhado por várias pessoas, com participação ativa em uma relação interativa e de reciprocidade.
Um segundo aspecto, embora menos mencionado nas falas, foi o investimento em ocupações individuais, centradas em atividades de autocuidado, gerenciamento da saúde e do lazer para superar a dor e os problemas de saúde. Entre as atividades citadas estão: frequentar a academia; fazer passeios ou atividades de lazer; e se envolver em atividades religiosas.
E vou à academia todos os dias também […] Eu faço exercício, às vezes eu sento no chão e fico lá até dar 1 hora, tem vezes que eu vejo e tem 2 horas que eu tô lá dentro. Vou todo dia, todo dia. Só sábado e domingo que eu não vou, mas eu vou todo dia. Às vezes eu vou lá e só faço 2 exercícios, mas eu gosto que tem muita gente. Tem umas meninas que gostam de conversar comigo. Às vezes elas nem conversa, que sabe que eu não tô bem. Mas eu gosto de ir todo dia, também me fez bem. (Telma, G1)
Entre as mulheres que tiveram seus parentes policiais mortos, uma entrevistada relatou que buscou concretizar uma organização que agregasse as famílias de policiais sobreviventes da violência, para funcionar como uma associação em que essas mães pudessem se amparar
Aí a gente criou uma associação […] para tentar ajudar os policiais. (Zianete, G2)
Contudo, essa participante relata que há muita resistência da polícia em aceitar qualquer tipo de iniciativa nesse sentido:
Não foi possível, porque a polícia é muito fechada. Ela não dá abertura. Não sei. Sinceramente eu não sei dizer qual é o problema do policial. Ele sofre calado. Eu acho que eles ficam com vergonha de dizer que tá sendo ajudado, e eles se acham uns super-heróis né, só que quando esse “super-herói”, ele é baleado, ele fica aleijado, o Estado nem quer saber mais. Pro Estado eles não são mais nada, não são super-heróis, não são nada. (Zianete, G2)
A fala dessa mãe que teve sua filha policial brutalmente assassinada tem um significado importante, à medida que elucida a fragilidade do Estado em proteger os seus próprios agentes (Duarte, 2019DUARTE, E. N. P. M. O Risco não cessa quando o turno termina: Um estudo sobre a morte de policiais militares fora do serviço. 2019. 112 f. Dissertação (Mestrado em Segurança Pública) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.). Ao ocorrer um homicídio, o Estado frequentemente negligencia os familiares da vítima. O discurso a seguir exemplifica um caso em que o marido policial foi baleado (pouco antes de o genro policial ser vítima letal em um confronto) e teve assistência psicológica, porém nenhuma outra pessoa do núcleo familiar foi contemplado:
Ele teve tratamento psicológico. Ele tem, até hoje. Eu não tenho nenhum. Tipo assim, focaram nele, esqueceram que ele tem família. E eu por sua vez não disse nada. Ele foi no psiquiatra, no psicólogo. Até hoje ele vai. (Josélia-G2)
O relato acima reforça a invisibilidade das vítimas indiretas de violências que sequer são reconhecidas como vítimas, e não recebem qualquer tipo de amparo por parte das instituições (Kamimura, 2009KAMIMURA, A. A efetivação dos direitos humanos: o desafio do direito no atendimento interdisciplinar a vítimas de violência. 2009. 191 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.). As demais pessoas entrevistadas do grupo 2 relataram que atividades religiosas, exercício físico e o amparo mútuo da família foram atividades importantes em suas ocupações diárias para se erguerem e superarem o trauma.
Considerações finais
Este estudo focalizou o impacto do homicídio nas vítimas indiretas, analisou o apoio recebido frente à fatalidade e as estratégias alçadas para superar o evento traumático. Todos os participantes entrevistados relataram piora do quadro geral de saúde, marcado por intenso sofrimento mental, o que repercutiu negativamente nas atividades cotidianas relacionadas ao trabalho, lazer, cuidado em saúde, sono etc.
Um apoio referido pelas pessoas que tiveram filhos mortos por agentes de segurança foi o de grupos ativistas ou de entidades ligadas aos direitos humanos. Esse ativismo, em que muitas se engajaram de maneira direta ou indireta, possibilitou o rearranjo de novas ocupações no que tange à participação social, pois passaram a compartilhar atividades com outras pessoas que vivenciaram o mesmo trauma, envolvidas em atividades semelhantes e com experiências similares, o que pode ser interpretado como uma estratégia coletiva para superar a dor da perda do ente familiar. Outras formas de suporte e estratégias foram citadas; porém, o Estado é o grande ausente no fornecimento do apoio a esses familiares. O que indica a importância de estudos futuros buscarem compreender melhor essa “lacuna” entre os equipamentos e políticas do Estado e as vítimas indiretas, para a adoção ou melhoria dos programas e políticas públicas.
Vale ressaltar que são poucos os estudos que buscaram analisar de um ponto de vista compreensivo as estratégias adotadas para tentar superar a perda e a dor, e tocar a vida em grupos distintos (familiares de pessoas mortas por policiais e familiares que tiveram seus entes policiais mortos), sendo essa uma importante contribuição deste trabalho. Além disso, os resultados encontrados reforçam a necessidade de implementação de políticas que protejam os cidadãos e as famílias, que promovam a equidade e a inclusão para aqueles historicamente mais vulnerabilizados, excluídos e discriminados. Políticas que resultem em benefícios para toda a sociedade, que ultrapassem a visão policialesca com que o tema é restrita e tradicionalmente tratado.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
25 Jun 2023 -
Aceito
28 Jul 2023