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Práticas integrativas e complementares no Sistema Único de Saúde do Brasil: disputas político-epistemológicas

Integrative and complementary practices in the Brazilian National Health System: political-epistemological disputes

Resumo

Este artigo apresenta um estudo de Epistemologia Política sobre a implementação de Práticas Integrativas e Complementares no sistema de saúde do Brasil. O objetivo foi analisar a controvérsia existente entre as recomendações da Organização Mundial da Saúde, as Portarias do Ministério da Saúde do Brasil e as cartas públicas de instituições científicas. Evidenciamos as visões epistêmicas e os interesses políticos subjacentes presentes em cada um dos documentos.

Palavras-chave:
Práticas Integrativas e Complementares; Política; Epistemologia

Abstract

This article presents a study of Political Epistemology on the implementation of Integrative and Complementary Practices in the Brazilian health system. The objective was to analyze the controversy between the recommendations of the World Health Organization, the Ordinances of the Brazilian Ministry of Health and the public letters of scientific institutions. We highlight the underlying epistemic views and political interests present in each of the documents.

Keywords:
Integrative and Complementary Practices; Politics; Epistemology

Introdução

Práticas Integrativas e Complementares são um conjunto de terapias e práticas medicinais que contemplam as chamadas Medicina Tradicional (MT) e Medicina Alternativa e Complementar (MAC), sendo essas medicinas baseadas em conhecimentos indígenas ou de diferentes culturas que não fazem parte da tradição do próprio país ou da medicina convencional. Utilizadas em conjunto com a medicina convencional ou não, tais práticas visam a manutenção da saúde, prevenção e tratamento de doenças físicas ou mentais de forma integrativa.

No Brasil, no ano 2006, através de uma política pública chamada Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), tais práticas foram legitimadas para serem ofertadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como forma complementar e integrativa de tratamento e cuidado. Anos mais tarde, já em 2017, uma portaria ampliou o número de práticas ofertadas pelo SUS de quatro para 18. A publicação dessa segunda portaria gerou reações contrárias por parte de instituições científicas que se manifestaram através de cartas e notas.

Dado esse cenário, as Práticas Integrativas e Complementares (PIC) tornaram-se um tema de grande relevância na área da Saúde e da Saúde Pública, tendo sido objeto de diferentes estudos (Ruela et al., 2019RUELA, L. O. et al. Implementação, acesso e uso das práticas integrativas no Sistema Único de Saúde: revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 11, p. 4239-4250, 2019. DOI: 10.1590/1413-812320182411.06132018
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; Sousa; Tesser, 2017SOUSA, I. M. C.; TESSER, C. D. Medicina tradicional e complementar no Brasil: inserção no Sistema Único de Saúde e integração com a atenção primária. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, art. e00150215, 2017. DOI: 10.1590/0102-311x00150215
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; Toniol, 2015TONIOL, R. Do espírito na saúde: oferta e uso de terapias alternativas/complementares nos serviços de saúde pública no Brasil. 2015. Tese (Graduação em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.) que abrangem desde sua implementação, regulamentação e avaliação, com seus desafios, até seus benefícios e estudos clínicos.

Neste trabalho, nos propomos a discutir o tema das PIC com o olhar da Epistemologia Política. Segundo Bruno Latour (2004LATOUR, B. Políticas da natureza. Bauru: Edusc, 2004.), a Epistemologia Política difere-se da Epistemologia stricto sensu, uma vez que nessa deve-se tratar simultaneamente da organização da vida pública e das ciências, não privilegiando nem a política, nem a natureza das atividades científicas. Nosso objetivo é apresentar uma discussão sociológica sobre a aprovação, implementação e ampliação de PIC no SUS do Brasil, bem como sobre a resistência apresentada por instituições científicas e profissionais como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Sociedade Brasileira de Física (SBF).

Para tanto, pretendemos discutir, a partir das portarias publicadas pelo Ministério da Saúde (MS), as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e as cartas abertas escritas pelo CFM e a SBF, quais são os aspectos epistêmicos (de validação do conhecimento) e políticos (interesses institucionais, de circulação de poder e econômicos) que estão envolvidos. Apresentamos então uma discussão sociológica, apoiada em elementos de Epistemologia Política, em diálogo com estudos sociológicos e antropológicos sobre as PIC (Andrade; Costa, 2010ANDRADE, J. T.; COSTA, L. F. A. Medicina complementar no SUS: práticas integrativas sob a luz da antropologia médica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 497-508, 2010. DOI: 10.1590/S0104-12902010000300003
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; Ijaz; Boon, 2018IJAZ, N.; BOON, H. Statutory regulation of traditional medicine practitioners and practices: the need for distinct policy making guidelines. Journal of Alternative and Complementary Medicine, New Rochelle, v. 24, n. 4, p. 307-313, 2018. DOI: 10.1089/acm.2017.0346
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) bem como com estudos epistemológicos sobre o mesmo tema (Goldenberg, 2006GOLDENBERG, M. J. On evidence and evidence-based medicine: lessons from the philosophy of science. Social Science and Medicine, Amsterdam, v. 62, n. 11, p. 2621-2632, 2006. DOI: 10.1016/j.socscimed.2005.11.031
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; Kidd, 2013KIDD, I. J. A pluralist challenge to “integrative medicine”: Feyerabend and Popper on the cognitive value of alternative medicine. Studies in History and Philosophy of Science, Amsterdam, v. 44, n. 3, p. 392-400, 2013. DOI: 10.1016/j.shpsc.2013.05.005
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; Parusnikova, 2002PARUSNIKOVA, Z. Integrative medicine: partnership or control? Studies in History and Philosophy of Science Part C: Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, Amsterdam, v. 33, n. 1, p. 169-186, 2002. DOI: 10.1016/S1369-8486(01)00035-8
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).

Quadro teórico-metodológico: Epistemologia Política

Usualmente, política e epistemologia são considerados campos distintos da filosofia. Os Estudos das Ciências, entretanto, têm reiteradamente mostrado que a divisão entre epistemologia (estudo do conhecimento) e política (estudo do poder) é tão artificial quanto a separação entre o Executivo e o Judiciário (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.).É nesse sentido que podemos denominar estudos que revelam e analisam as traduções entre epistemologia e política como estudos de Epistemologia Política.

Latour (2004LATOUR, B. Políticas da natureza. Bauru: Edusc, 2004.) apresenta uma diferenciação entre Epistemologia, Epistemologia (Política) ou Epistemologia Policial, e Epistemologia Política. Para Latour, epistemologia é o estudo das ciências e seus procedimentos; Epistemologia (Política) é aquela para qual o desenvolvimento do conhecimento deve ser distinguido da política a fim de manter controle. Essa deve limitar-se à ciência1 1 A ciência tem ligação direta com a natureza, já as ciências não exigem nenhum tipo de unificação, mas são um método de constituição do mundo comum. As ciências, então, tornam-se ciência a partir da politização pela epistemologia para evitar interrogações sobre as ligações entre natureza e sociedade. Por fim, “chamar-se-á epistemologia política (sem parênteses) à análise da distribuição explícita dos poderes entre ciências e políticas” (Latour, 2004LATOUR, B. Políticas da natureza. Bauru: Edusc, 2004., p. 376). É com base nessa Epistemologia Política, sem parênteses, que esse trabalho foi realizado.

Trajetória metodológica

Este estudo está lastreado teoricamente pelos estudos de Epistemologia Política apresentados na seção anterior. Em especial, o método de pesquisa empregado está de acordo com a proposta da Cartografia das Controvérsias (Venturini, 2010VENTURINI, T. Diving in magma: how to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, Thousand Oaks, v. 19, n. 3, p. 258-273, 2010. DOI: 10.1177/0963662509102694
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), por meio da qual se propõe descrever e analisar controvérsias sociocientíficas e se apresenta três indicações: (1) não restrinja sua observação a uma única teoria ou metodologia, (2) observe o maior número de pontos de vista possível e (3) escute as vozes dos atores mais do que suas suposições teóricas.

O primeiro passo é reconhecer uma controvérsia. Isso pode ser realizado através da leitura de uma reportagem de jornal, uma notícia na televisão ou um artigo especializado. O passo seguinte é escrutinar esse enunciado, buscando em especial descobrir que outros enunciados e atores são mencionados.

Uma vez reconhecidos os atores e enunciados mencionados no enunciado original, começa-se o trabalho cartográfico. Buscam-se os enunciados mencionados ou que foram reconhecidos como influenciadores dos enunciados originais, bem como dados dos atores em questão. Para cada um dos enunciados obtidos, pode-se repetir o processo. O que delimita a extensão da busca cartográfica são as perguntas de pesquisa. Uma vez feita essa cartografia, pode-se questionar: quem são os atores envolvidos? Quais as relações entre eles? Quais os interesses desses atores? Quais os conflitos de interesse? Quais os elementos que são mobilizados para vencer a controvérsia? Para que essas perguntas possam ser respondidas, o pesquisador pode se valer de quaisquer bases teóricas que forem convenientes e, em especial, a cartografia das controvérsias, incentiva o diálogo com diferentes lentes teóricas.

Assim, o enunciado originário deste trabalho foi a carta pública da Sociedade Brasileira de Física (Um basta…, 2018UM BASTA à pseudociência. Sociedade Brasileira de Física, São Paulo, 22 mar. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39Mzsgy >. Acesso em: 2 mar. 2021.
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) se opondo à adoção de novas terapias no SUS. Nesse documento originário, três novos enunciados foram reconhecidos: a carta do CFM (2018)CFM - CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Nota à população e aos médicos: incorporação de práticas alternativas pelo SUS. Febrasgo, Brasília, DF, 18 abr. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/31QRqtT >. Acesso em: 5 abr. 2021.
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, o livro de Weinberg citado na carta e as duas portarias do MS (Brasil, 2006BRASIL. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 maio 2006., 2017BRASIL. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a arteterapia, ayurveda, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa e yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 mar. 2017.). Partimos, então, para o estudo de cada um dos três documentos. Do livro do Weinberg e a carta da CFM, buscamos os argumentos epistêmicos. Da portaria do MS, encontramos a portaria anterior e documentos da OMS. Todos esses documentos foram então analisados em diálogo com elementos de Epistemologia Política e Sociologia da Ciência. Apresentaremos os resultados, entretanto, na ordem inversa. A escolha se deve em razão da ordem cronológica das publicações, de modo que o leitor que não conhece o tema possa entender o contexto.

As PIC na OMS: questões político-epistemológicas

O tema das PIC é discutido pela OMS, pelo menos, desde 1969, quando ocorreu a 22ª Assembleia Mundial da Saúde. Nessa ocasião, foi discutido que o uso generalizado de medicamentos tradicionais em diferentes países deveria ser mais bem estudado, tanto porque sua eficácia e segurança não foram determinados quanto porque representavam um potencial no desenvolvimento de produtos para a indústria farmacêutica (WHO, 1969WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHA 22.54. Geneva, 1969.).

Desse ano, até os dias atuais, foram publicadas pela OMS 16 resoluções e duas estratégias relacionadas às PIC. No geral, a maioria dessas resoluções reconhece o uso das PIC em países não desenvolvidos e seu potencial, tanto terapêutico quanto econômico. Nesse sentido, elas solicitam investimentos, estudos e implantação das PIC pelos Estados-membros. Em contrapartida, pedem por regulação, relatórios de progressos e até mesmo exploração total dos produtos gerados por elas.

A partir da leitura de cada um desses documentos, pode-se reconhecer que as resoluções da OMS apresentam as seguintes visões: A medicina científica é tratada como superior à tradicional. Tal visão é interpretada das diversas vezes em que os documentos dão destaque ao fato de a população de países subdesenvolvidos não ter acesso à medicina científica. Deste modo, a proposta do documento é de que a MT seja uma alternativa para levar algum tipo de cuidado de saúde a essas pessoas. Há interesse econômico em transformar as terapias tradicionais, em especial as plantas medicinais, em produtos do mercado farmacêutico. Essa visão está atrelada à terceira; exigem controle, regulamentação e exploração das técnicas utilizadas, de modo a institucionalizar a MT e poderem usufruir dos produtos gerados por ela.

Em contrapartida a essa linha de controle, regulação e institucionalização, em um trecho das resoluções percebe-se uma preocupação da organização com a propriedade do conhecimento, sua preservação e de certa forma, respeito a ele e às tradições locais (WHO, 2013WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Traditional medicine strategy 2014-2023. Geneva, 2013.). De um modo geral, entretanto, as resoluções não tratam de uma visão integral de saúde2 2 Excepcionalmente, no documento Health Promotion Evaluation (WHO, 1998) encontra-se menção a uma abordagem holística, a qual inclui, também, uma dimensão espiritual da saúde. , mas focam sua preocupação nos países em que não há acesso à medicina científica, vendo a MT como a chance de oferecer cuidados de saúde a essas pessoas. Além disso, nota-se o interesse na exploração econômica dos produtos relacionados à MT, ou seja, transformar o tradicional em científico, apropriando-se.

Desta forma, a OMS consegue prestar suporte de saúde barato a países periféricos - o que de certa forma é uma solução fácil, ao mesmo tempo que, consegue uma rica fonte de dados sobre uso e benefícios da MT que pode ser explorado pela indústria farmacêutica e científica. A ideia de que há um interesse econômico por trás da popularização das PIC é, também, corroborado pela discussão de Parusnikova (2002PARUSNIKOVA, Z. Integrative medicine: partnership or control? Studies in History and Philosophy of Science Part C: Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, Amsterdam, v. 33, n. 1, p. 169-186, 2002. DOI: 10.1016/S1369-8486(01)00035-8
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), que argumenta que a integração das PIC no sistema de saúde alopático tem grandes chances de ter um viés oportunista, uma vez que elas discordam em questões essenciais, como a relação doença-saúde e a visão holística do paciente.

Os dois maiores documentos apresentados pela OMS são as Estratégias de Medicinas Tradicionais para 2002-2005 e para 2014-2023. No primeiro documento de estratégias, a OMS faz a diferenciação de dois diferentes termos para se referir ao mesmo tópico: Medicina Tradicional e Medicina Complementar e Alternativa. Ao fazer essa diferenciação, a OMS traça o que Santos (2019SANTOS, B. S. O fim do império cognitivo. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.) denomina “linha abissal”, uma divisão invisível que separa os países colonizados dos colonizadores. De um lado dessa linha encontram-se os países que admitem a existência de uma ciência hegemônica e, portanto, uma medicina científica hegemônica. Sendo assim, faz sentido que para esses seja usado o nome de MAC que jamais supera a científica, mas pode de alguma forma complementá-la quando conveniente. Do outro lado da linha, estão os países colonizados, para os quais os conhecimentos de suas tribos e culturas são tão válidos quanto qualquer outro produzido em outros contextos, sendo assim, chamam essa medicina MT.

O termo tradicional remete, para os colonizadores, a conhecimentos do passado, estáticos no tempo, enquanto a medicina científica é moderna, atual e se reinventa todos os dias. Segundo Santos (2019SANTOS, B. S. O fim do império cognitivo. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.), essa dicotomia tradicional versus moderno é falsa, mas reforça a divisão abissal, na qual os países colonizadores podem reconhecer a existência de um conhecimento tradicional produzido no passado e apropriar-se dele, porém, esse jamais superará o conhecimento produzido por eles que é científico e “universal”. A noção de que há um viés colonialista na abordagem a PIC também é entendido por Ijaz e Boon (2018IJAZ, N.; BOON, H. Statutory regulation of traditional medicine practitioners and practices: the need for distinct policy making guidelines. Journal of Alternative and Complementary Medicine, New Rochelle, v. 24, n. 4, p. 307-313, 2018. DOI: 10.1089/acm.2017.0346
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), que discutem os impactos dos desafios da regulação solicitada pela OMS e o domínio biomédico desproporcional, principalmente em países do sul.

Para justificar a força da MT em países subdesenvolvidos, bem como reconhecer seu valor, o documento apresenta dados sobre custos e uso de tratamentos para diversas doenças como malária e aids. A resposta da OMS ao uso da MT em larga escala é a regulação (pesquisa, formação, institucionalização).

A segunda estratégia, publicada em 2014, vem para reforçar e atualizar a primeira, mas não para substituí-la. Alguns dos pontos que justificam a necessidade dessa nova estratégia são fornecer informações recentes; a demanda da cooperação entre estados membros; relatar os avanços recentes nas pesquisas; manter o equilíbrio entre pesquisa, desenvolvimento da MT e manter propriedade intelectual; e a integração da MT nos sistemas de saúde. Podemos perceber que se mantém as ideias da estratégia anterior, da exploração da MT, através da regulação, cooperação e do destaque ao seu potencial econômico.

Dado o panorama dos documentos da OMS que tratam sobre as PIC, destacamos as principais conclusões sobre a visão da organização quanto a esse tipo de medicina. Podemos perceber que seu interesse na MT nasce da possibilidade de oferecer cuidados de saúde a populações de países subdesenvolvidos. Essa pode ser interpretada como uma boa ação, se não viesse atrelada a fortes interesses econômicos e de exploração, uma vez que, ao reconhecer a MT como um tipo de assistência válido, abstém de si a responsabilidade de levar a medicina científica até esses países, o que acaba por ser uma opção mais barata economicamente. Além disso, incube os Estados-membros fazer relatórios periódicos sobre o uso desse tipo de medicina, principalmente no que concerne a plantas medicinais. Sendo assim, acaba por ganhar uma fonte de dados, que pode servir tanto para a regulação quanto para pesquisas e geração de produtos que fomentem o mercado farmacêutico, ou seja, os interesses passam a ser claramente econômicos e de exploração.

Por último, destacamos que os documentos, praticamente, não falam de uma visão holística de saúde, ou seja, não parecer ser pretensão da OMS praticar uma medicina que cuide integralmente dos pacientes. Entendemos, portanto, que a visão de saúde da OMS está fortemente fundamentada na visão biomédica de saúde, mesmo que em alguns trechos reconheça que o cuidado individualizado e holístico, partes fundamentais da MT, sejam benéficos, não mostra intenção de adotá-los ou incentivá-los.

As PIC nas portarias do Ministério Saúde do Brasil: da política para a epistemologia

Seguindo as diretrizes da OMS, o Brasil desenvolveu uma política própria para a implantação de Terapias Integrativas no SUS. Na sequência, discutimos os documentos que legitimaram tal política.

A Portaria nº 971/2006 (Brasil, 2006BRASIL. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 maio 2006.), aprova a PNPIC no SUS. O texto menciona a Constituição e as leis nacionais que tenham relação com a aprovação dessa portaria. Primeiramente, considera integralidade da atenção como diretriz do SUS, conforme inciso II do artigo 198 da Constituição, que diz serem prioridade as atividades preventivas, mas sem prejuízo dos serviços assistenciais. Depois faz referência a um trecho da lei que implementa o SUS no Brasil e que diz “garantir […] bem-estar físico, mental e social, como fatores determinantes e condicionantes da saúde” (Brasil, 2006BRASIL. Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 maio 2006.). Considera ainda a estratégia de 2002 da OMS e, por fim, apresenta as quatro terapias que serão aprovadas (acupuntura, homeopatia, fitoterapia e crenoterapia), destacando ser prioridade para o MS a melhoria dos serviços e o incremento de diferentes abordagens, tornando disponível opções preventivas e terapêuticas aos usuários, visando cuidado integral, aumento da resolutividade e incremento de novas abordagens. Nesse trecho, a portaria faz menção a documentos da OMS, entretanto, é interessante notar que essa visão de cuidado integral e acolhedor não aparece, de forma contundente, nas estratégias e nem resoluções da organização, sendo essa ênfase uma novidade nos documentos brasileiros e estando apoiada em políticas nacionais, como a própria formação de um SUS, gratuito e de participação popular. Nesse sentido, a mobilização dos documentos da OMS pelo MS ocorre com uma flutuação da agência original, ressignificando o documento no contexto brasileiro - um fenômeno que Latour (1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.) denomina de “tradução”.

Em seguida, no anexo da portaria, há a PNPIC, a qual apresenta uma síntese do que são cada uma das quatro terapias alternativas aprovadas, descrevendo a história da prática e sua história no Brasil, além de explicitar suas contribuições ao SUS. Na sequência, o documento apresenta os objetivos e diretrizes da política e uma série de diretrizes norteadoras específicas para cada uma das quatro terapias aprovadas, estando entre elas questões sobre regulação, informação e divulgação. Todas essas responsabilidades são reforçadas em uma segunda portaria no ano de 2017.

A Portaria nº 849/2017 (Brasil, 2017BRASIL. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a arteterapia, ayurveda, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa e yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 mar. 2017.) se apoia em uma série de outras portarias e leis nacionais, como a própria PNPIC, a Política Nacional de Atenção Básica, a Política Nacional de Promoção à Saúde, destacando seu objetivo de valorização de saberes populares, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde, além das próprias diretrizes da OMS e da boa aceitação por parte dos profissionais da saúde para com as PIC, para então expandir o número de terapias a serem ofertadas pelo SUS. Em anexo a esse documento, encontra-se uma breve descrição de cada uma das terapias aprovadas, sendo essa muito mais breve do que as descrições da portaria anterior. Esse pode ser um dos motivos pelos quais esse documento sofreu duras críticas de instituições de saúde e da Sociedade Brasileira de Física, ao contrário do seu antecessor.

Os documentos brasileiros apresentam visões epistemológicas muito diferentes das apresentadas pela OMS, a começar pelos objetivos da implantação de tais políticas. No Brasil, o objetivo principal e explícito de adotar práticas integrativas no SUS é o cuidado integral do ser, a humanização dos atendimentos e a atenção primária à saúde; a valorização e atenção à saúde indígena também são apontadas.

Assim, as portarias do MS apresentam uma característica que deve ser ressaltada: por meio de uma política governamental, defende-se um paradigma de saúde distinto do que é denominado de modelo biomédico, que, como discutiremos, é defendido pelo CFM. É, portanto, um ato político, que tensiona os critérios de demarcação entre o científico e o não científico. Ademais, a portaria, ao referenciar as recomendações da OMS, deixa subentendido que tal visão epistêmica é também veiculada pelo órgão internacional, enquanto, como discutimos na seção anterior, a OMS não defende tal paradigma de saúde explicitamente. Como mencionamos, tal flutuação de agência pode ser entendida como um movimento de tradução no quadro teórico da sociologia de Bruno Latour e representa a combinação do programa de ação original da OMS com a intencionalidade do MS.

Uma questão relevante a ser discutida (e que se configura no cerne da terceira onda dos Estudos das Ciências) é até que ponto o Estado pode ou deve tensionar um embate epistêmico. Esse é o tema abordado pelas cartas públicas das instituições científicas e profissionais brasileiras que discutiremos na próxima seção.

As cartas públicas das instituições científicas e profissionais no Brasil: da Epistemologia para a Política

Em 13 de março de 2018, o CFM publicou uma nota à população e aos médicos (CFM, 2018CFM - CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Nota à população e aos médicos: incorporação de práticas alternativas pelo SUS. Febrasgo, Brasília, DF, 18 abr. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/31QRqtT >. Acesso em: 5 abr. 2021.
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) e um reportagem em sua página virtual (Para CFM…, 2018PARA CFM, práticas integrativas incorporadas ao SUS não têm fundamento científico. Conselho Federal de Medicina, Brasília, DF, 13 mar. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3cSSa7S >. Acesso em: 5 abr. 2021.
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). Na nota pública, o CFM apresenta três pontos: (1) as PIC não apresentam resultados e eficácia comprovados cientificamente, (2) a incorporação dessas práticas ignora as prioridades de alocação de recursos no SUS; (3) a prescrição e adoção de terapias sem reconhecimento científico são proibidas aos médicos brasileiros.

Quando a carta fala da prioridade de alocação de recursos do SUS, ignora as várias políticas citadas nas portarias que apoiam esse tipo de prática, como a Atenção Básica, Saúde da Família, Política Nacional de Educação Popular em Saúde, bem como o inciso da Constituição de 1988, que dispõe sobre a integralidade da atenção como diretriz do SUS. Tais políticas mostram que é prioridade do SUS a prevenção, proteção e tratamentos integrativos, visto que corroboram as prioridades de alocação de recursos, entretanto, essa prioridade não está em consonância com os entendimentos do CFM.

Na notícia de 13 de março de 2018, é novamente levantado o ponto sobre a falta de comprovação científica das PIC e a proibição dos médicos de aplicarem terapias não comprovadas cientificamente. Tal tipo de posição suscita a questão da demarcação epistemológica. Esse problema, entretanto, é muito mais complexo do que o levantado pelo próprio CFM. Há estudos, por exemplo, que a partir da Filosofia da Ciência reforçam a importância de se valorizar as PIC como uma forma de aumentar a pluralidade teórica e metodológica e contribuir para o desenvolvimento da ciência (Goldenberg, 2006GOLDENBERG, M. J. On evidence and evidence-based medicine: lessons from the philosophy of science. Social Science and Medicine, Amsterdam, v. 62, n. 11, p. 2621-2632, 2006. DOI: 10.1016/j.socscimed.2005.11.031
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). Por outro lado, há discussões filosóficas que, mesmo valendo-se de argumentos relativistas como os de Feyerabend (1988FEYERABEND, P. K. Contré la méthode. Paris: Seuil, 1988.), apontam que as PIC seriam contraproducentes para a sociedade (Kidd, 2013KIDD, I. J. A pluralist challenge to “integrative medicine”: Feyerabend and Popper on the cognitive value of alternative medicine. Studies in History and Philosophy of Science, Amsterdam, v. 44, n. 3, p. 392-400, 2013. DOI: 10.1016/j.shpsc.2013.05.005
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). Por fim, ainda que se adotasse de forma estrita a ideia de medicina baseada em evidências, deve-se ter clareza que as diferentes PIC possuem diferentes graus de corroboração empírica por diferentes estudos, como pode ser consultado pelo consórcio CABSIn.3 3 CONSÓRCIO Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa, São Paulo, [s.d.]. Disponível em: <https://consorciobr.mtci.bvsalud.org>. Acesso em: 5 abr. 2021. Ademais, a seguinte fala do presidente do CFM chama atenção:

Vital [o presidente] destaca ainda que os médicos só podem atuar na medicina com procedimentos e terapêuticas que têm reconhecimento científico e que nenhuma das práticas anunciadas nesta segunda-feira pelo ministério são reconhecidas - exceto a homeopatia e acupuntura. A acupuntura quando praticada como especialidade médica é feita de maneira completamente diferente do que está colocado no SUS como prática integrativa, ou seja, é feita com base em evidências científicas e atinge alto grau de complexidade. (Para CFM…, 2018PARA CFM, práticas integrativas incorporadas ao SUS não têm fundamento científico. Conselho Federal de Medicina, Brasília, DF, 13 mar. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3cSSa7S >. Acesso em: 5 abr. 2021.
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)

Nesse trecho percebe-se claramente a apropriação de algumas PIC pela medicina, e que esse movimento passaria a legitimá-las. Caso mais grave ainda o da homeopatia, prática severamente criticada por não obedecer aos critérios de validação das Ciências (Spira, 2017SPIRA, B. A homeopatia é uma farsa. Jornal da USP, São Paulo, 15 maio 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3dBuTGP >. Acesso em: 2 mar. 2021.
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).

Assim, a partir dos argumentos apresentados pelo CFM, fica claro que tal instituição não coaduna com a necessidade de um paradigma de cuidado integral no SUS e não apresenta um posicionamento consistente sobre PIC, uma vez que legitima aquelas praticadas pelos médicos - sugerindo uma preocupação maior com uma reserva de mercado do que com uma questão de política pública propriamente. A mesma postura já havia aparecido em um artigo do Jornal da Associação Médica Brasileira intitulado “Portaria equivocada” (2006)PORTARIA equivocada. Jornal da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 47, n. 1343, p. 4-5, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3fJDABO >. Acesso em: 5 abr. 2021.
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, na situação da publicação da primeira Portaria em 2006.

Em 2018, a Sociedade Brasileira de Física divulgou em site uma carta pública, intitulada “Um basta à pseudociência” (2018)UM BASTA à pseudociência. Sociedade Brasileira de Física, São Paulo, 22 mar. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39Mzsgy >. Acesso em: 2 mar. 2021.
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. Como o título sugere, a SBF apresenta, em seu pronunciamento, um posicionamento epistemológico absolutista, isto é, defende uma separação nítida entre ciências e conhecimentos não científicos. Para tanto, abre seu discurso mobilizando um elemento de autoridade apresentando a visão de um “prêmio Nobel” que pode ser entendida como um recurso estilístico para legitimar a visão a ser apresentada. Valendo-se da terminologia do autor americano, a carta fala da “descoberta” de métodos, como se os métodos usados não ciências não tivessem sido criados, mas fossem objetivas e estabelecidos de forma neutra, conforme afirma o autor. Na sequência, a SBF estreita ainda mais sua delimitação epistemológica não falando mais de métodos, mas de método científico:

Hoje sabemos que a ciência avança graças ao chamado método científico. As grandes descobertas têm sempre de passar pelo seu rigoroso crivo antes de serem aceitas pelas comunidades científicas. Entretanto, nós cientistas devemos estar sempre atentos a tentativas de disseminação de “teorias” sem comprovação científica. (Um basta…, 2018UM BASTA à pseudociência. Sociedade Brasileira de Física, São Paulo, 22 mar. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39Mzsgy >. Acesso em: 2 mar. 2021.
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)

A proposição e defesa de um único método científico é usualmente atribuída a Francis Bacon (1979BACON, F. Novum organum. São Paulo: Abril Cultura, 1979.), o qual, adotando uma visão empirista indutivista, defende a noção de uma ciência objetiva e neutra. A adoção da visão baconiana na carta da SBF também se manifesta pela adoção do termo “comprovação científica” - concepção verificacionista da ciência. Tal concepção epistemológica, conquanto isso, é criticada e contestada no âmbito da Filosofia da Ciência há mais de meio século.

A partir dessa concepção epistemológica, a SBF descreve como teorias sem comprovação científica “criacionismo, Terra Plana, movimentos antivacinação, astrologia” e, na sequência, expressa sua visão sobre as PIC:

Nesse sentido, a diretoria da SBF externa sua preocupação em relação à recente inclusão de dez novas “Práticas Integrativas e Complementares” no Sistema Único de Saúde (SUS), tais como bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, imposição de mãos, entre outras, que não foram validadas por testes baseados em evidências científicas. (Um basta…, 2018UM BASTA à pseudociência. Sociedade Brasileira de Física, São Paulo, 22 mar. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39Mzsgy >. Acesso em: 2 mar. 2021.
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)

O discurso da SBF, como qualquer outro, é performático, isto é, não é apresentado, puramente, a partir de uma volição individual, mas é produto de um certo roteiro sociológico. A preocupação expressa por uma comunidade com relação à adoção de uma visão externa a essa comunidade não é uma novidade. Paul Feyerabend (1988FEYERABEND, P. K. Contré la méthode. Paris: Seuil, 1988.), por exemplo, discute que não é um privilégio da comunidade científica apresentar tal tipo de “preocupação”.

Em 1484, a Igreja Católica publicou um manual sobre bruxaria que apresentava as seguintes declarações: “Realmente chegou a nossos ouvidos, não sem nos afligir com amarga tristeza que […] muitas pessoas de ambos os sexos, sem se importar com a própria salvação, se extraviaram da Fé católica e se entregaram aos diabos” (Feyerabend, 2011FEYERABEND, P. A ciência em uma sociedade livre. Tradução de Vera Joscelyne. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 115). Do ponto de vista da estrutura frasal e do objetivo almejado, a carta de 2018 da SBF não varia muito com relação ao livro medieval católico. Estaria o Ministério da Saúde entregando-se ao sacrilégio do não cientificismo?

Como defendemos neste artigo, entretanto, os posicionamentos epistemológicos têm implicações políticas, e a visão absolutista, empirista, indutivista e verificacionista da SBF é, na sequência, traduzida em uma proposição política:

De acordo com o Conselho Federal de Medicina, apenas no ano passado o Ministério de Saúde destinou R$ 17,2 bilhões para o programa que financia essas práticas pseudocientíficas, mais de 4 vezes o orçamento de todo o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações. O uso de dinheiro público para custear tratamentos que não possuem nenhum fundamento científico deveria ao menos ser discutido de forma ampla com as sociedades científicas. (Um basta…, 2018UM BASTA à pseudociência. Sociedade Brasileira de Física, São Paulo, 22 mar. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39Mzsgy >. Acesso em: 2 mar. 2021.
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)

A defesa de um ideal epistemológico é feita no sentido de decidir o destino de um orçamento de 17 bilhões de reais. Nesse sentido, a SBF levanta uma discussão relevante sobre como deve ser investido o dinheiro público. Seu posicionamento acerca de tal assunto não é novo e resgata a antiga visão platônica de que, diante do saber técnico, pouco importa a vontade do povo. O “medo demótico” se sobrepõe ao ideal democrático, e a SBF defende que as “sociedades científicas” são quem deve decidir sobre o dinheiro. Tal posicionamento político, sustentado por uma visão epistemológica, é, portanto, autoritário. No argumento da SBF, quem pode decidir sobre o orçamento são as instituições definidas pelo critério de demarcação, o qual, por sua vez, é definido por ela mesma, de forma a incluí-la.

Ademais, a SBF utiliza-se do alto montante de 17 bilhões de reais para reforçar seu argumento, afirmando que as PIC receberam 4 vezes mais dinheiro que todo Ministério da Tecnologia Ciência Inovação e Comunicações, no entanto, a instituição não apresenta as fontes desse dado. Em contrapartida, um artigo publicado no site ObservaPICs4 4 O site ObservaPICs é um portal para reunir e comunicar informações, estudos e experiências relacionadas às PIC. Abrigado na Fundação Oswaldo Cruz, tem apoio do Ministério da Saúde. apresenta dados de uma pesquisa que mostra que os valores destinados as PIC correspondem, na realidade, a 0,008% de todos os procedimentos ambulatoriais e hospitalares, ou seja, o valor real, segundo os autores do artigo, é de cerca de 3 milhões de reais e não 17 bilhões, como afirma a SBF (Almeida, 2019ALMEIDA, V. Gastos com práticas integrativas no SUS correspondem a 0,008% das despesas ambulatoriais e hospitalares. ObservaPICs, Recife, 11 fev. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Q2C2bi >. Acesso em: 2 fev. 2021.
https://bit.ly/2Q2C2bi...
).

Considerações finais

Nesse trabalho, analisamos as recomendações da OMS e as portarias do MS autorizando as PIC no SUS, bem como as cartas públicas do CFM e da SBF se opondo a tais práticas. Em nossa análise, discutimos as visões epistêmicas e os interesses políticos subjacentes aos posicionamentos adotados.

Primeiramente, os documentos da OMS são claros com relações às suas motivações: países subdesenvolvidos não são capazes de adotar medicina científica de forma satisfatória, portanto, a política economicamente viável é adotar as PIC. Ademais, sugerem a adoção de práticas de controle e recomendação, solicitando relatórios dos países-membros, principalmente no que se refere às plantas medicinais, o que pode passar a ser incorporado pela indústria farmacêutica. Não há nenhuma defesa nesses documentos de uma visão epistemológica que coloque as PIC em igualdade à medicina científica.

Nas portarias do MS, por outro lado, a defesa das PIC se dá através da promoção de um paradigma de saúde integral, em complementação ao paradigma biomédico. Nesse sentido, o MS legitima práticas que não são endossadas pelo CFM. Se, por um lado, pode-se reconhecer a necessidade da ampliação do conceito de saúde e a necessidade de promover um cuidado integral do ser, por outro, a legitimação de tais práticas pelo viés político, com um discurso de legitimação semelhante àquele presente nos documentos da OMS, demandaria um debate social muito mais amplo para garantir a legitimidade de tal posicionamento.

Tanto o CFM quanto a SBF posicionam-se sobre o tema de forma autoritária e com uma maturidade incipiente sobre a questão. Primeiramente, o CFM não discute a necessidade de um paradigma de cuidado integral, negligenciando diretrizes já antigas do SUS. Em segundo lugar, adota uma postura inconsistente, defendendo a adoção de PIC como a homeopatia e condenando outras. A SBF, por sua vez, adota uma postura epistemológica ultrapassada e defende uma visão autoritária, entendendo que são as comunidades científicas que devem ser consultadas para tomada de decisão.

A controvérsia gerada pelas PIC apresenta questões políticas e epistêmicas importantes. Como discutido por Parusnikova (2002PARUSNIKOVA, Z. Integrative medicine: partnership or control? Studies in History and Philosophy of Science Part C: Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, Amsterdam, v. 33, n. 1, p. 169-186, 2002. DOI: 10.1016/S1369-8486(01)00035-8
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), a necessidade de regulação evidencia posições colonizadoras da medicina biomédica. Argumentos como o do CFM levantam controvérsias entre a pluralidade dos conhecimentos e a necessidade de critérios rígidos de demarcação (Goldenberg, 2006GOLDENBERG, M. J. On evidence and evidence-based medicine: lessons from the philosophy of science. Social Science and Medicine, Amsterdam, v. 62, n. 11, p. 2621-2632, 2006. DOI: 10.1016/j.socscimed.2005.11.031
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). Dado tal cenário, algumas questões importantes devem ser consideradas: sendo o SUS um patrimônio público, quem deve decidir sobre a alocação de recursos? Quem deve decidir sobre o tipo de tratamento oferecido? Como a PNPIC legitima práticas que não fazem parte da MBE? É realmente essencial que todos os tratamentos oferecidos sejam embasados pela MBE? Como a hegemonia do modelo biomédico e as regulações exigidas pela OMS contribuem para o processo de colonização e apagamento de tradições?

Como discutido ao longo do texto, a gama de práticas oferecidas pelo SUS é bastante ampla e, para muitas delas, existem estudos e evidências de sua eficácia e benefícios. Sendo assim, as respostas para essas questões não são triviais, mas devem ser fruto de debates que envolvam também, mas não somente, as comunidades científicas, as comunidades tradicionais (indígenas, por exemplo) bem como a população em geral.

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  • 1
    A ciência tem ligação direta com a natureza, já as ciências não exigem nenhum tipo de unificação, mas são um método de constituição do mundo comum. As ciências, então, tornam-se ciência a partir da politização pela epistemologia
  • 2
    Excepcionalmente, no documento Health Promotion Evaluation (WHO, 1998WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Health promotion evaluation: recommendations to policy makers. Copenhagen, 1998.) encontra-se menção a uma abordagem holística, a qual inclui, também, uma dimensão espiritual da saúde.
  • 3
    CONSÓRCIO Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa, São Paulo, [s.d.]. Disponível em: <https://consorciobr.mtci.bvsalud.org>. Acesso em: 5 abr. 2021.
  • 4
    O site ObservaPICs é um portal para reunir e comunicar informações, estudos e experiências relacionadas às PIC. Abrigado na Fundação Oswaldo Cruz, tem apoio do Ministério da Saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2020
  • Revisado
    06 Nov 2020
  • Aceito
    15 Dez 2020
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