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Concepções dos gestores municipais de saúde de Pernambuco sobre a destinação e gestão dos gastos com saúde

Concepts of municipal health managers of Pernambuco about the allocation and management of health spending

Resumos

O artigo trata da questão do financiamento da saúde e da forma como os secretários municipais lidam com as regulamentações sobre os gastos no setor. O estudo objetivou ouvir os gestores a respeito de sua concepção sobre gasto em saúde, conhecimento acerca dos instrumentos legais que direcionam o financiamento e sua participação nas definições para alocação dos recursos. Foram selecionados 10 (dez) municípios do Estado de Pernambuco para abordagem através de entrevistas semiestruturadas aos seus respectivos secretários de saúde. A seleção foi aleatória, sorteando-se 05 (cinco) municípios dentre os de melhor desempenho do Estado - quanto à regularidade da alimentação do Sistema de Informação sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops) e quanto ao cumprimento da Emenda Constitucional nº 29 - e os 05 (cinco) piores com relação aos mesmos critérios. As respostas foram analisadas através da técnica de análise de conteúdo. Nos resultados identificou-se que, para esses gestores, apenas despesas em ações e serviços próprios da saúde devem ser consideradas gastos para fins de pagamento com recursos destinados ao setor. Alguns secretários conhecem e especificam a regulamentação sobre gastos em saúde, participam na definição do orçamento municipal e gerem os recursos do Fundo Municipal de Saúde. Apesar da não uniformidade das respostas, observou-se que os secretários estavam motivados para participar da discussão sobre financiamento e de atuarem ativamente, junto aos demais órgãos da Administração Pública Municipal e do Prefeito, da alocação dos recursos, de acordo com as necessidades de saúde da população.

Sistema Único de Saúde; Legislação; Financiamento; Governo local


This article discusses the issue of health financing and the way district secretaries deal with municipal regulations on spending in the sector. We heard managers regarding their idea of spending in health, their knowledge of legal instruments that direct financing and their participation in resources' allocation. The health secretaries of 10 (ten) municipalities in the State of Pernambuco were approached through semi-structured interviews. The criteria for inclusion in the study referred to regularity of data feeding into SIOPS (Information System in Public Health Budgets) and the fulfillment of Constitutional Amendment nº. 29: five municipalities were chosen among those with the best records within the State, and 05 (five) among those with the worst records. Content analysis was used for treating interviews' data. Results showed that these administrators admit payments using health resources only for expenses in actions and services specific of the health field. Some secretaries know and are capable of specifying legal parameters for health expenses. They take part in the district's budget decision making process and also manage resources from the Municipal Fund for Health. Despite the differences while responding, it was noticed that the secretaries were willing to discuss financing and took an active role in resources allocation with other Municipal Public Administration bodies, in order to attend to population's health needs.

National Health System; Legislation; Financing; Local Governmen


PARTE II - ARTIGOS

Concepções dos gestores municipais de saúde de Pernambuco sobre a destinação e gestão dos gastos com saúde1 1 Fonte de Financiamento da Pesquisa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Concepts of municipal health managers of Pernambuco about the allocation and management of health spending

Renata Alves Gomes VillaniI; Adriana Falangola Benjamin BezerraII

IMestre em Saúde Coletiva. Endereço: Av. Prof. Moraes Rego, 1.235, Cidade Universitária/UFPE, CEP 50740-600, Recife, PE, Brasil. E-mail: rgomes.villani@gmail.com

IIDoutora em Nutrição e Saúde Pública. Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco. Endereço: Av. Prof. Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária/UFPE, CEP 50740-600, Recife, PE, Brasil. E-mail: afalangola@uol.com.br

RESUMO

O artigo trata da questão do financiamento da saúde e da forma como os secretários municipais lidam com as regulamentações sobre os gastos no setor. O estudo objetivou ouvir os gestores a respeito de sua concepção sobre gasto em saúde, conhecimento acerca dos instrumentos legais que direcionam o financiamento e sua participação nas definições para alocação dos recursos. Foram selecionados 10 (dez) municípios do Estado de Pernambuco para abordagem através de entrevistas semiestruturadas aos seus respectivos secretários de saúde. A seleção foi aleatória, sorteando-se 05 (cinco) municípios dentre os de melhor desempenho do Estado - quanto à regularidade da alimentação do Sistema de Informação sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops) e quanto ao cumprimento da Emenda Constitucional nº 29 - e os 05 (cinco) piores com relação aos mesmos critérios. As respostas foram analisadas através da técnica de análise de conteúdo. Nos resultados identificou-se que, para esses gestores, apenas despesas em ações e serviços próprios da saúde devem ser consideradas gastos para fins de pagamento com recursos destinados ao setor. Alguns secretários conhecem e especificam a regulamentação sobre gastos em saúde, participam na definição do orçamento municipal e gerem os recursos do Fundo Municipal de Saúde. Apesar da não uniformidade das respostas, observou-se que os secretários estavam motivados para participar da discussão sobre financiamento e de atuarem ativamente, junto aos demais órgãos da Administração Pública Municipal e do Prefeito, da alocação dos recursos, de acordo com as necessidades de saúde da população.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde; Legislação; Financiamento; Governo local.

ABSTRACT

This article discusses the issue of health financing and the way district secretaries deal with municipal regulations on spending in the sector. We heard managers regarding their idea of spending in health, their knowledge of legal instruments that direct financing and their participation in resources' allocation. The health secretaries of 10 (ten) municipalities in the State of Pernambuco were approached through semi-structured interviews. The criteria for inclusion in the study referred to regularity of data feeding into SIOPS (Information System in Public Health Budgets) and the fulfillment of Constitutional Amendment nº. 29: five municipalities were chosen among those with the best records within the State, and 05 (five) among those with the worst records. Content analysis was used for treating interviews' data. Results showed that these administrators admit payments using health resources only for expenses in actions and services specific of the health field. Some secretaries know and are capable of specifying legal parameters for health expenses. They take part in the district's budget decision making process and also manage resources from the Municipal Fund for Health. Despite the differences while responding, it was noticed that the secretaries were willing to discuss financing and took an active role in resources allocation with other Municipal Public Administration bodies, in order to attend to population's health needs.

Keywords: National Health System; Legislation; Financing; Local Governmen.

Introdução

A necessidade de fontes seguras de recursos financeiros tem acarretado diversas discussões e modificações acerca do financiamento da saúde pública. Desde a industrialização do País, no início do século passado, com a criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) - posteriormente com a união destes nos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) - passando pela criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1967, quando houve a uniformização dos benefícios dos diversos contribuintes, começando a ser gerido exclusivamente pelo Estado.

A 8ª Conferência Nacional de Saúde (Brasil, 1986) propôs uma modificação no Sistema de Saúde do Brasil, que deveria receber recursos advindos de diferentes receitas. A Conferência aprovou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

O processo de unificação das ações e serviços públicos de saúde em programa de acesso universal e de direito da cidadania foi consagrado na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988) quando a Saúde, juntamente com a Previdência e a Assistência Social, passou a compor o campo da proteção social no Brasil com a extinção do INPS e criação do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Ao combinar direitos individuais e coletivos, a nova visão de proteção social integrou padrões distintos de financiamento, baseados em impostos e contribuições sociais e recursos de dois orçamentos, o Orçamento Geral da União e o Orçamento da Seguridade Social (Dain, 2007).

A partir de 1993, diante dos aumentos da despesa previdenciária, os recursos arrecadados pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), antigo INPS, deixaram de ser repassados ao Ministério da Saúde, sendo exclusivamente destinados à Previdência. Novos eventos contribuiriam para comprometer o financiamento da saúde, destacando-se a inflação, persistente até o Plano Real (1994), o baixo crescimento da economia e o crescimento dos gastos com aposentadorias e pensões, levando a previdência a absorver parcelas crescentes do Orçamento da Seguridade Social (Brasil, 2011a).

Com o objetivo de definir fontes seguras de financiamento da saúde e participação efetiva das três esferas de Governo, foi aprovada, em 2000, a Emenda Constitucional nº 29 (EC 29/2000) (Brasil, 2000). Segundo seu texto, no primeiro ano de sua vigência, os Estados e municípios deveriam alocar pelo menos 7% das receitas de impostos e transferências constitucionais, sendo que esse percentual deveria crescer anualmente até atingir, para os Estados, 12% em 2004 e, para os municípios, 15%. Para a União, definia, no primeiro ano, o aporte de pelo menos 5% em relação ao orçamento empenhado do período anterior; nos seguintes, o valor apurado no ano anterior seria corrigido pela variação do PIB nominal. A aprovação da EC 29/2000 foi, sem dúvida, um avanço na definição das fontes de financiamento do SUS, pois além de definir a participação de cada esfera de governo, garantia um mínimo de recursos (Marques e Mendes, 2003).

A EC 29/2000 foi recentemente regulamentada pela Lei Complementar nº 141 de 13 de janeiro de 2012 (LC 144/12) (Brasil, 2012), o que definiu para os gestores do SUS quais tipos de ações e serviços podem ser considerados como de saúde. De acordo com Ribeiro e colaboradores (2007), os gestores se deparavam com as mais diferentes interpretações sobre os recursos que deveriam ser destinados a essas atividades e acabavam financiando iniciativas diversas como, por exemplo, a inserção de outros gastos no montante que deveria ser destinado exclusivamente para a saúde, como o combate à fome e o saneamento.

Considerando o conceito ampliado de saúde, a responsabilidade dos municípios na execução das ações e serviços, prevenção e promoção da saúde, requer esforços para além da secretaria de saúde, o que exige a integração dos diversos setores da administração municipal.

Por isso, levando em consideração as diversas dificuldades de interpretação do que poderia ser considerado gasto em saúde, no ano de 2003 o Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou a Resolução nº 322/03 (Brasil, 2003), que esclarecia a questão, apesar de não ter força de Lei. O estudo que originou este artigo foi realizado em 2007, quando a EC 29 ainda não havia sido regulamentada e a Resolução representava importante instrumento de orientação aos gestores do SUS. A LC 141/2012 - que regulamenta a EC 29/2000 - ratificou as orientações da Resolução 322/2003.

Este artigo tem por objetivo, portanto, apresentar a concepção do gestor municipal de saúde sobre o que ele considera gastos a serem pagos com os recursos do setor; seu conhecimento acerca dos documentos formais que orientam o financiamento; e a participação dele nas definições de alocação e destinação dos recursos financeiros da saúde no município.

A referida Resolução 322/2003, bem como a LC 141/12 adotam o Sistema de Informação sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) como a referência para o acompanhamento, a fiscalização e o controle da aplicação dos recursos vinculados em ações e serviços públicos de saúde. De acordo com Silva e colaboradores (2010), os dados gerados pelo SIOPS constituem também insumos para o planejamento e gestão, para a elaboração e implementação dos Planos Diretores de Regionalização (PDRs) e dos Planos Diretores de Investimentos (PDI) dos Estados.

Metodologia

Os sujeitos entrevistados foram os gestores (secretários) de saúde dos municípios selecionados.

A seleção dos municípios buscou os 05 dentre os municípios do Estado de Pernambuco com melhor desempenho - quanto à regularidade da alimentação do Siops e cumprimento da EC 29/2000 - e 05 dentre os que obtiveram piores resultados, em relação aos mesmos critérios. Esses municípios estavam distribuídos do litoral ao sertão do Estado, contemplando as 11 Gerências Regionais de Saúde (Geres)2 2 A partir de 2012, o Estado de Pernambuco oficializou e passou a constar em seu Plano Diretor de Regionalização a 12a Geres. .

As entrevistas foram do tipo semiestruturadas. Pope e Mays (2005) definem esse tipo de entrevista como aquela que é conduzida com base numa estrutura, pelo menos inicialmente, e a partir da qual o entrevistador ou o entrevistado podem divergir, a fim de prosseguir com uma ideia ou uma resposta em maiores detalhes. As entrevistas foram gravadas em equipamento de áudio e posteriormente transcritas.

Os dados foram classificados em categorias e analisados através da técnica de análise de conteúdo. De acordo com Minayo (2002), a palavra "categoria" pode ser entendida como um conceito que abrange elementos ou aspectos com características comuns ou que se relacionam entre si. Trabalhar com categorias significa agrupar elementos, ideias ou expressões em torno de um conceito capaz de abrangê-los.

A análise de conteúdo representa o instrumento de pesquisa empregado para determinar a presença de algumas palavras ou conceitos dentro de um texto ou conjunto de textos e também a partir da análise dos dados e das relações entre eles, com a finalidade de fazer inferências sobre as mensagens contidas no texto. A análise de conteúdo categorial é alcançada por operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias, segundo agrupamentos analógicos, e caracteriza-se por um processo estruturalista que classifica os elementos, segundo a investigação sobre o que cada um deles tem em comum (Kurtz, 2005).

Resultados e discussão

Os resultados estão expostos nos trechos das falas dos entrevistados. As categorias emergiram dessas falas, a partir de cada questão abordada na entrevista semiestruturada. As questões estão relacionadas com os objetivos do estudo. A primeira questão tratou da concepção do gestor sobre o termo "gasto em saúde". Nenhum entrevistado relacionou ações ou serviços não específicos do setor saúde. Das respostas emergiram duas categorias: em que devem ser gastos os recursos da saúde e o que não deve ser considerado gasto em relação aos recursos da saúde:

"Na saúde preventiva, como é hoje [...] Eu acho que o dinheiro para ser empregado na saúde como está se mostrando e se fazendo hoje é todo no caminho de saúde preventiva"; "Olha, eu acho que deve ser usado mais para estruturação mesmo da saúde, empregar em hospitais e posto de saúde, capacitação de pessoal que eu acho que é essencial"; "Todo recurso oriundo da saúde, além do que é repassado pelo município em termo de FPM, a mais em torno ele é repassado dentro da saúde básica."; "Na prevenção, nas ações de campanhas educativas da própria rotina da unidade, nas ações da assistência na atenção básica, principalmente eu acho que os recursos de saúde devem ter um incremento maior na atenção básica à saúde."; "Bem, eu penso que tudo o que reduz problemas de saúde, que previne doença, que trabalhamos na linha de promoção e que realiza um atendimento de assistência seja em hospitais, seja em postos de saúde, policlínicas, pronto atendimento, serviços de urgência, nós podemos e devemos aplicar sim esses recursos financeiros na área da saúde nessas áreas que relatei."; "Saúde engloba muita coisa, eu acho que ela deveria ter mais recursos para a gente ter abertura, para a gente aplicar."

Os entrevistados têm o entendimento de que os recursos ficam restritos às ações e serviços de saúde. Observamos que os termos "prevenção" e "atenção básica" foram amplamente citados, áreas incorporadas pelos gestores como prioritárias na alocação dos recursos financeiros e de responsabilidade da esfera municipal.

A municipalização e descentralização das ações e serviços de saúde tornaram o secretário municipal de saúde um elemento fundamental no tocante à gestão e organização desse setor. De acordo com Bodstein (2002), o processo de descentralização se acelerou a partir de 1996, quando foram implementadas medidas de incentivo, expressas, sobretudo, na Norma Operacional Básica /1996 (Brasil, 1996) para que os municípios assumissem a gestão da rede de serviços locais de saúde.

As normalizações do SUS definem as responsabilidades dos municípios, Estados e União sobre a prestação de assistência e financiamento da rede de saúde. O Pacto pela Saúde, expresso na Portaria nº 399/2006 (Brasil, 2006) define como deverá se organizar a rede de serviços, de maneira a contemplar as necessidades de cada localidade. Assim, o município é responsável pela atenção básica dos seus munícipes, porém, precisa também garantir, através de pactuações com demais gestores municipais e estaduais, o acesso e atendimento de sua população nos demais níveis de complexidade do Sistema. O sistema de saúde municipal deve ser capaz de oferecer atendimento integral à sua população, mesmo que este não ocorra em seus limites territoriais.

Analisando as respostas dos entrevistados que priorizaram ações preventivas, curativas e integrais, observa-se que, de certa maneira, eles comungam de uma mesma base de pensamento. Essa questão é tratada por Pinheiro e Mattos (2007). Os autores referem que um dos significados de integralidade diz respeito à articulação em ações preventivas e assistenciais. As atividades assistenciais respondem a uma percepção das necessidades de saúde por parte dos usuários, enquanto as ações preventivas se enquadram na perspectiva de modificar o quadro social de uma doença, podendo inclusive modificar a demanda futura por serviços assistenciais. Ambas, quando adequadas, constroem a legitimidade das políticas integrais de saúde.

De maneira geral, os entrevistados estabeleceram parte de um todo para definirem suas prioridades e identificaram setores do sistema de saúde para alocação dos recursos não elegendo, entretando, atividades específicas.

Quanto ao que não deve ser considerado gasto em saúde, tivemos as seguintes afirmativas: "Recursos financeiros da saúde nós podemos dizer que ele não pode ser empregado, por exemplo, para contratar professor, para educação, pra contratar outros profissionais que não estão vinculados à área de saúde no que diz respeito à contratação de RH. Depois também poderemos falar algumas áreas, por exemplo, fazer obras de construção de praça, comprar veículos que não sejam para o fim de assistência e atendimento à saúde, podemos comprar veículos para vigilância à saúde, mas não podemos comprar, por exemplo, um veículo que vai servir à secretaria de obras, à secretaria de infraestrutura ou outra secretaria que são alguns exemplos entre outros que podemos estar aqui relacionando."; "Saneamento básico não, isso aí a gente correria atrás de projetos junto ao Ministério da Saúde, junto à Funasa, inclusive agora na décima marcha dos prefeitos, o presidente Lula anunciou que tem recurso disponível justamente nessas áreas dentro do PAC para o desenvolvimento [... para esgotamento sanitário nos municípios onde tá com esses problemas (saneamento, educação, lazer...)."

Ratificando o encontrado na questão anterior, os gestores têm noção de onde os recursos da saúde não podem ser alocados, apesar de não mencionarem nenhuma normalização nas suas respostas. Fica evidente que os gastos são direcionados em ações e serviços de saúde por uma questão de restrição de recursos e não por qualquer norma que especifique sua alocação, já que, apesar das colocações estarem de acordo com o preconizado na Resolução nº 322 do CNS (Brasil, 2003), os gestores entrevistasdos desconheciam sua existência, como será melhor observado mais adiante.

Entretanto, de acordo com estudo realizado por Marques e Mendes (2005), alguns municípios desconsideraram o conceito de ações e serviços de saúde definido na Resolução nº 322 do CNS (Brasil, 2003) e incluíram nas contas da saúde, por exemplo, as despesas com inativos da área. Registrou-se também o conflito entre a área de saúde e a de finanças, esta última pressionando para incluir despesas alheias ao SUS. Os secretários de finanças defenderam, interpretando indevidamente a EC 29/2000 (Brasil, 2000), que o percentual a ser aplicado deveria ser exatamente 15% - quando a emenda aponta esse percentual como mínimo - desconsiderando as necessidades do município.

A segunda questão tratou do conhecimento sobre normalizações acerca do gasto em saúde. Emergiram três categorias - a dos que desconhecem qualquer normalização: "Veja só eu não tenho um amplo conhecimento, passei a ter depois de ser convidado a ser secretário de saúde em dezembro de 2004. Que eu fiz? Eu contratei técnicos de planejamento, de coordenação, certo? Que tem que me dar um suporte, que me dá um conhecimento, assim necessário pra gente administrar, gerenciar e tem dado certo."; "Eu lembrar o nome da lei é difícil, mas tem. Difícil é lembrar assim."; "Eu desconheço." - a dos que referem conhecer, mas não especificam: "É do conhecimento de todo secretário que os recursos destinados, vamos supor PSF - Programa de Saúde da Família, Saúde Bucal, os de atenção básica. Todos eles são aplicados. Vigilância epidemiológica. Eu não vou dizer aqui a você qual a lei, o número da lei, especificamente, né?"; "Conheço uma portaria, o número a gente não tem, não recordo agora toda, a nova portaria que sei do recurso financeiro da saúde. A gente sempre tem que tá lendo e repassando isso, e lá tem uma contadora que cuida somente disso aí. Então ela é quem fica mais atenta a essas coisas. Então eu fico mais na parte administrativa e ela mais diretamente nessa questão do recurso." - e a dos que referem conhecer e especificam alguma norma: "A EC29 que determina que Estados e municípios tenham um termo de uma cota de participação para gastar no município, no caso do município 15% e no Estado 12%."; "Sim, eu conheço a EC29 que define o que é e o que não é despesa com saúde, o que é receita de saúde, então assim, a gente se orienta no município por essas questões aí."

Observa-se que na categoria "Refere conhecer e especifica", os gestores citaram a EC 29 (Brasil, 2000). Notamos que existe um maior conhecimento sobre os gastos de recursos específicos que compõem o Fundo Municipal de Saúde, como os recursos da atenção básica e vigilância em saúde. Entretanto, a alocação dos recursos municipais próprios não é direcionada à luz de qualquer normalização.

A terceira questão tratou da participação do secretário de saúde na gestão dos recursos municipais. Emergiram três categorias - a dos que não participam da elaboração do orçamento municipal: "Não."; "Não, na elaboração não, agora o secretário de saúde ele tem o poder assim, junto ao prefeito, de dizer onde quer que sejam empregados, tanto os recursos que já vem determinado, quanto a parte da contrapartida do município, a gente tem essa abertura pra indicar como deve ser empregado." - a dos que participam com poder deliberativo: "Com certeza. Porque é o próprio secretário que tem que determinar onde aplicar todo recurso destinado à saúde e brigando ainda por mais recurso para que ele realmente, o município trate o cidadão como ele merece para uma qualidade de saúde melhor para o munícipe."; "Participamos. Todo esse recurso nós temos inclusive rediscutido a ampliação e definido em que áreas eles podem ser utilizados, isso é, discutido em reunião de governo, envolvendo outras secretarias como a de finanças, de obra, de educação, então a secretaria de saúde participa dessa decisão." - e a dos que participam porém sem poder deliberativo: "As reuniões na câmara de vereadores, as reuniões no Conselho Municipal de Saúde, e reuniões com o pessoal da prefeitura, parte de finanças o financeiro [...] a gente vai gastar dinheiro nisso, a gente quer fazer isso, mas a decisão final é do prefeito."

O fato de participar na elaboração do orçamento municipal denota uma maior participação do gestor da saúde nas questões relacionadas à alocação dos recursos financeiros no setor. O orçamento público serve de importante instrumento de planejamento econômico, financeiro e administrativo, contribuindo dessa forma para que a administração pública possa cumprir com sua finalidade objetivando a satisfação das necessidades públicas, inter-relacionando com o processo orçamentário e o controle das finanças (Lourençon, 2001).

Apesar de o orçamento municipal ser um exercício de participação e discussão entre os setores da administração pública municipal, ocorre muita centralização de decisões por parte do prefeito. Machado Júnior e Reis (1997) citam o orçamento como mais que uma consolidação de planos físicos e de recursos das mais variadas naturezas; é um instrumento de trabalho. Neste sentido, é possível utilizar o orçamento como meio de descentralização administrativa, de delegação de competência e de apuração de responsabilidades, não só da organização, mas também dos gestores, de modo que a sua aprovação signifique a autorização para a ação e, concomitantemente, o início do processo de controle.

Goulart (2004) comenta sobre o termo "deliberação". Ele refere que os termos poder deliberativo, deliberar e deliberação são qualificados tais como assessorar, formular, avaliar, recomendar, opinar, definir, acompanhar a execução, fiscalizar, etc.

Vemos nessa definição do autor que o secretário de saúde tem o papel de deliberar junto ao prefeito, contudo, mesmo se tratando de assuntos relacionados à saúde, a decisão final é tomada pelo prefeito, figura que representa o poder executivo no município.

A quarta questão tratou da autonomia do secretário de saúde sobre os recursos orçados para o setor. Emergiram três categorias - a dos que não possuem gestão sobre os recursos: "Nós não gerimos esses recursos, então é, não tem como de fato procurar aplicar né, então a gente só trabalha em cima de cobranças [...] o conhecimento que tenho dos recursos do fundo da saúde é através da internet, não é repassado, não é esclarecido nada, apesar de existir o Conselho Municipal de Saúde [...] todos nós sabemos que 15% deve ser para saúde, mas a secretaria de saúde não gere esse fundo, ele chega e permanece na prefeitura, a prefeitura é que fundamenta tudo [...] para o secretário ou equipe de saúde tem que tá cobrando, tem que tá pedindo cada centavo pra você fazer mandar uma entrega, digamos assim, entregar uma documentação, fazer uma marcação de exame numa unidade, você tem que tá mandando pegar ou então se tiver algum carro da saúde disponível mandar [...] todo mando é feito através da prefeitura, a secretaria de saúde não mexe com um centavo de recursos." - a dos que compartilham a gestão dos recursos com o prefeito: "Tudo é gerenciado com o apoio e com a decisão do prefeito [...]. Eu converso com o meu prefeito e ele diz sim ou não." - e a dos que gerem os recursos: "Sim. Onde ele vai ser aplicado e de que forma que vai ser aplicado."; "Totalmente. O Fundo Municipal de Saúde funciona sob a gestão da Secretaria, eu sou a gestora do Fundo, então toda programação orçamentária e financeira passa pela Secretaria de Saúde, a prefeita dá toda autonomia, então assim a gente é totalmente responsável, tanto pelo planejamento, pela execução, pela avaliação dos recursos."; "Eu tenho autonomia plena, o prefeito entende isso muito bem também. Ainda bem que o meu prefeito entende muito bem que a atuação tem que ser voltada ao secretário junto aos técnicos que têm uma compreensão maior desses acordos com a saúde. E a gente trabalha livremente."

A participação do gestor da saúde na alocação dos recursos da área evidencia se a gestão dos recursos, definidos anteriormente no orçamento municipal, é gerida pelo Secretário de Saúde. O recurso pode ser corretamente destinado, como o preconizado na EC 29/2000 (Brasil, 2000), ou seja, mínimo de 15% do total dos recursos dos impostos municipais, contudo, no momento do gasto, a secretaria de saúde pode não possuir autonomia para gastar no que considerar pertinente, estando essa decisão nas mãos dos prefeitos ou de outros setores da gestão municipal.

O poder de decisão do Secretário de Saúde junto ao prefeito depende diretamente da relação política e dos processos de trabalho existentes, já que ambos compõem o poder executivo que deve, teoricamente, ter a mesma orientação quanto às decisões. De acordo com Cohn e colaboradores (2005), do ponto de vista da organização administrativa, a centralização do processo de tomada de decisão não é privilégio do Governo Federal. Nos municípios, sobretudo, nos de pequeno porte, ocorre a centralização do poder de decisão na figura do prefeito.

De acordo com Santos (2005), a configuração do território resultante da municipalização da saúde vai ocorrer diferentemente nos diversos lugares a depender do conteúdo técnico, político e funcional de cada local, garantindo maior poder àqueles que detêm a maior capacidade de organização e controle dos recursos.

Considerações finais

Identificamos nos resultados que os gestores entrevistados consideram que apenas despesas em ações e serviços próprios da saúde devem ser consideradas gastos para fins de pagamento com recursos destinados ao setor, embora nem todos refiram conhecer a normalização sobre o assunto e nem participem da definição do orçamento municipal ou gerenciamento dos recursos do Fundo Municipal de Saúde.

A descentralização das ações de saúde e o estímulo à municipalização colocam o gestor municipal de saúde como ator essencial na consolidação do SUS. As dificuldades enfrentadas por essa esfera governamental são, muitas vezes, resultantes da carência de suporte legal que oriente as práticas e estabeleça limites de poder entre os entes do poder executivo.

A legislação sobre financiamento da saúde no âmbito do SUS é de fundamental importância para o adequado nivelamento das práticas administrativas, de maneira que todos os secretários de saúde tenham autonomia sobre os recursos destinados ao setor e o entendimento de como gastá-los da forma correta.

As novas legislações do SUS como o Decreto nº 7.508 de 28 de junho de 2011 (Brasil, 2011b) - que regulamenta a Lei 8.080/80, trata das responsabilidades orçamentário-financeiras das três esferas de gestão do SUS, inserindo os municípios num contexto regionalizado de redes de atenação à saúde - e a Lei Complementar nº 141 de 13 de janeiro de 2012 (Brasil, 2012) - que regulamenta a EC 29/2000 (Brasil, 2000), e define o que pode ser considerado gasto em saúde e a vinculação de percentual mínimo de impostos nas esferas municipais e estaduais para a saúde - são marcos na consolidação do SUS no tocante à gestão financeira compartilhada, cooperativa e solidária entre os entes federados.

As normalizações para além da esfera administrativa, com regulamentação jurídica, são premissas fundamentais para a consolidação do SUS através das quais será possível o aprimoramento dos instrumentos de monitoramento e avaliação, a exemplo do Siops, e dos mecanismos de combate às fraudes e apropriação ilícita do dinheiro público.

Recebido em: 14/10/2012

Aprovado em: 08/04/2013

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  • 1
    Fonte de Financiamento da Pesquisa: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    A partir de 2012, o Estado de Pernambuco oficializou e passou a constar em seu Plano Diretor de Regionalização a 12a Geres.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      14 Out 2012
    • Aceito
      08 Abr 2013
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