Open-access Concepções da saúde sexual e reprodutiva entre mulheres curipacas em situação de mobilidade humana1

Conceptions of sexual and reproductive health in Kurripaco women in conditions of human mobility

Resumo

A migração dos povos indígenas apresenta tensões entre as tradições ancestrais e a visão ocidental com implicações para a saúde pública, especialmente a saúde sexual e reprodutiva. Este texto teve como objetivo analisar as concepções de saúde sexual e reprodutiva de mulheres indígenas curipacas de uma reserva indígena no departamento de Guainía (Colômbia). Trata-se de um estudo de caso, com uma amostra de 40 mulheres indígenas curipacas, residentes na reserva Paujil, em Guainía, provenientes de diferentes comunidades. Foram aplicadas entrevistas semiestruturadas elaboradas com membros da mesma comunidade e traduzidas para a língua curipaca. Três categorias resultaram da análise: impacto da mobilidade de mulheres indígenas; autonomia relativa como estrutura da sexualidade; e concepções da abordagem ocidental da saúde sexual e reprodutiva. Esta última categoria identificou que as participantes não têm conhecimento sobre a saúde sexual e reprodutiva desde o ponto de vista ocidental e vislumbram suas próprias formas de compreender a saúde-doença como parte integrante de todas as dimensões da vida/morte. A inter-relação entre as tradições ancestrais dos povos indígenas e a visão ocidental sobre a saúde requer uma abordagem intercultural de profissionais, serviços e do sistema de saúde para que reconheça a autonomia pessoal e relacional desses povos.

Palavras-chave: Saúde Sexual e Reprodutiva; Povos Indígenas; Migração; Migração Humana; Saúde das Populações Indígenas

Abstract

The migration of indigenous peoples presents tensions between ancestral traditions and the western vision, with implications for public health, particularly sexual and reproductive health. To analyze the conceptions of sexual and reproductive health of Kurripaco indigenous women from a reservation in the department of Guainía. Case study in a sample of 40 Kurripaco indigenous women, residents of the Paujil reservation, Guainía, Colombia, from different communities. Semi-structured interviews built with members of the same community and translated into the native language will be applied. Three categories emerged from the analysis: impact of mobility on indigenous women; Relative autonomy as frameworks of sexuality and conceptions against the Western approach to sexual and reproductive health. In this last category, it is found that the aspects of sexual and reproductive health as a Western construct are unknown by the participants, but instead they glimpse their own ways of understanding health-disease as an integrated part of all dimensions of life/death. The interrelationship between the ancestral traditions of native peoples and the western approach to health requires professionals, services, and the system to adopt an intercultural approach that recognizes relative personal and relational autonomy.

Keywords: Sexual and Reproductive Health; Indigenous Peoples; Internal Migration; Human Migration; Health of Indigenous Populations

Resumen

La migración de pueblos indígenas presenta tensiones entre las tradiciones ancestrales y la visión occidental, con implicaciones para la salud pública, particularmente en salud sexual y reproductiva. Este texto tuvo por objetivo analizar las concepciones sobre salud sexual y reproductiva de mujeres indígenas kurripacos de un resguardo del departamento de Guainía (Colombia). Se trata de un estudio de casos en una muestra de 40 mujeres indígenas kurripacos, residentes en el resguardo Paujil, en Guainía, procedentes de distintas comunidades. Se aplicaron entrevistas semiestructuradas construidas con miembros de la misma comunidad y traducidas a lengua nativa. Tres categorías emergieron del análisis: Impacto de la movilidad en las mujeres indígenas; autonomía relativa como marcos de la sexualidad; y concepciones frente al abordaje occidental de la salud sexual y reproductiva. Esta última categoría identificó que los aspectos de la salud sexual y reproductiva como constructo occidental son desconocidos por las participantes, quienes vislumbran formas propias de comprender la salud-enfermedad como parte integrada a todas las dimensiones de la vida/muerte. La interrelación entre las tradiciones ancestrales de los pueblos originarios y el abordaje occidental de la salud exige a profesionales, servicios y sistema un enfoque intercultural que reconozca la autonomía relativa personal y relacional.

Palabras clave: Salud Sexual y Reproductiva; Pueblos Indígenas; Migración Interna; Migración Humana; Salud de Poblaciones Indígenas

Introdução

Os processos migratórios dos povos indígenas na América Latina são marcados por uma tensão entre as tradições ancestrais e a visão de mundo ocidental. Um dos processos críticos que determinam essa mobilidade está na disparidade existente entre a população rural e a população urbana, originada por modelos político-econômicos que veem as cidades como centros de produção de capital monetário, intercâmbio comercial e consumo de bens e serviços, subordinando a população e os territórios rurais a fornecer matérias-primas e mão de obra necessárias à vida na cidade, tornando-os economicamente dependentes. De fato, os níveis de pobreza da população indígena são maiores nas áreas rurais (49%) em comparação com as áreas urbanas (33,7%) (UNFPA, 2018), e o acesso a serviços sociais torna-se mais difícil no campo, o que leva esses indivíduos e grupos a migrarem para áreas urbanas ou próximas, trazendo impactos significativos nos papéis familiares e de trabalho (Ortiz, 2019).

Nesse contexto vive o povo curipaco, situado na Amazônia colombiana, em fronteira com a Venezuela e o Brasil. Em busca de subsistência, trabalho, educação e saúde, os clãs e famílias do povo curipaco estão sofrendo migrações permanentes, impulsionadas por processos destruidores que os tornam mais vulneráveis à fragmentação de seu território histórico pelos limites fronteiriços desses três países, à degradação de suas terras pelo crescimento de setores da indústria, como a borracha, a coca e a mineração, e consequente poluição de rios, inundações, bem como por conflitos armados. Um desses territórios que receberam o povo curipaco foi a Reserva Indígena Paujil que, apesar de abranger uma ampla extensão da Floresta Amazônica, está localizada em um assentamento próximo ao centro urbano da cidade de Inírida, capital do departamento de Guainía (Colômbia).

Essa situação de mobilidade se torna mais complexa para as mulheres curipacas, já que após o casamento, seguindo a cultura patrilinear, elas devem morar com as famílias do marido, tendo que se adaptar ao novo território, família e regras, uma vez que é o homem quem decide as ações e papéis do grupo familiar.

Diversos estudos relataram os efeitos dessa situação de mobilidade interna na saúde da população indígena até em contextos mais urbanos. Em estudo realizado nos Estados Unidos, Lobo (2021) constatou que a falta de serviços de saúde para a população indígena; o baixo orçamento destinado pelo Estado a essa área, com foco apenas em alguns serviços específicos como a saúde mental; a falta de adaptação dos serviços de saúde às necessidades culturais dessa população e sua dependência econômica e pobreza levam a população indígena a desenvolver condições patológicas com mais frequência, como diabetes mellitus tipo II, câncer, doenças cardiovasculares e até suicídios, do que a população em geral.

Quintero e Hughes (2007) no estudo sobre migrações indígenas internas no Panamá identificaram que, embora a população tenha relatado uma melhora no acesso à educação, alimentação e serviços de saúde devido à migração, também houve impactos negativos, como a perda da cultura e o aumento do consumo de álcool e outras substâncias psicoativas, conflitos e, principalmente, doenças sexualmente transmissíveis relacionadas à mudança de comportamento sexual. Achados semelhantes são apresentados no trabalho de Chávez (2007) sobre migrações no México ao constatar que outras características na saúde sexual e reprodutiva, além do aumento das doenças sexualmente transmissíveis, foram: idade precoce para iniciar as relações sexuais; união conjugal e fertilidade; assimetria na sexualidade na qual apenas o homem toma as decisões; desconhecimento do corpo; falta de proteção nas relações sexuais e gravidez na primeira relação sexual; e submissão da mulher às regras da família patrilinear.

A migração dos povos indígenas amazônicos apresenta tensões e desvantagens sobre a situação do migrante (Dos Santos; Queiroz, 2022), com algumas particularidades designadas pelo contexto de fronteira, como aquela em que o povo curipaco está situada, uma vez que a fronteira significa cenários de mobilidade, encontro e troca entre identidades de povos diferentes ou unificados, mas separados pela imposição dos limites fronteiriços que divide a oferta variada de benefícios para a população dos países limítrofes e estimula a mobilidade da população para buscá-los (Suárez-Mutis et al., 2010). No entanto, as políticas de proteção da população indígena são diferentes entre os países, o que também marcam diferenças na forma de organização política dos migrantes. Por exemplo, na Colômbia, a organização por cabildos e reservas permite aos migrantes receber benefícios do Estado, mas também, ao estar dentro dos limites urbanos, os torna uma população minoritária, com pouca visibilidade e integração na sociedade (Gonzalez; Ortiz; Frausin Bustamante, 2012).

Outro aspecto relacionado à saúde sexual e reprodutiva considerado relevante para a saúde pública é a infecção pelo papilomavírus humano (HPV), o câncer do colo do útero ou lesões precursoras a essa doença. Embora vários estudos realizados na América Latina mostrem uma menor frequência dessa problemática de saúde na população indígena em comparação com a população não indígena (Abritta; Torres; Freitas, 2021), é possível que haja maiores barreiras para a prevenção, diagnóstico e tratamento de processos precursores de morbimortalidade por câncer do colo do útero, bem como outros desfechos de saúde sexual e reprodutiva, que revelam desigualdades associadas ao sistema de saúde do que a características típicas de populações étnicas, apesar de persistir a abordagem fragmentária da saúde em apontar a etnia indígena como fator de risco (Camargo et al., 2011).

Uma dessas barreiras está na abordagem de prevenção essencialmente epidemiológica, que ignora o significado do corpo feminino e os valores e influências histórico-culturais das mulheres e das comunidades das quais fazem parte, além de uma comunicação ineficiente que utiliza uma linguagem com a qual as mulheres não se identificam (Britto; Pimentel, 2008). Até mesmo a pretensão de uma abordagem intercultural pode cair no funcionalismo, uma vez que considera o indígena diferente ou pertencente a outro contexto cultural, sem se atentar para as desigualdades econômicas, políticas e sociais, de modo que as estratégias são orientadas para adequar o comportamento da população à racionalidade do tradicional sistema de saúde ocidental (Ávila; Alves, 2022).

Dessa maneira, o desafio de sistemas de saúde, serviços e profissionais de saúde é considerar a dimensão cultural do corpo e o contexto histórico-cultural (Britto; Pimentel, 2008), sem negligenciar a compreensão da análise das desigualdades políticas, econômicas e sociais para além das diferenças culturais (Ávila; Alves, 2022).

Essas autoras também destacam a importância dos profissionais de saúde, por meio da linguagem verbal e não verbal, demonstrarem sensibilidade e compreensão do significado que o corpo tem para as mulheres e da intervenção a que serão submetidas, como no caso do exame de Papanicolau, além de respeitar e valorizar práticas ancestrais de proteção à saúde, às quais a população indígena demonstra forte apego, inclusive em contextos urbanos (Guerrero et al., 2020).

Visibilizar a saúde sexual e reprodutiva a partir do contexto histórico-cultural possibilita promover um processo de adaptação do sistema de saúde para integrar diretrizes internacionais, como é o caso das recomendações do primeiro Fórum Internacional de Mulheres Indígenas (FIMI, 2008). Esse fórum propõe a necessidade de fomentar a saúde da mulher a partir de uma abordagem intercultural como ferramenta para impactar os indicadores críticos de saúde sexual e reprodutiva nos países da América Latina, ao mesmo tempo os sistemas de saúde e profissionais de saúde devem buscar preservar a autonomia das mulheres e de grupos populacionais específicos, como os povos indígenas. A proposta deve considerar que essa autonomia não é absoluta, já que tanto a decisão quanto a ação são determinadas por processos que ocorrem em uma dimensão mais geral e histórica e que determinam o que acontece no tempo presente a nível individual e local (Breilh, 2021). Portanto, é mais adequado falar em autonomia relativa (Breilh, 2021) e autonomia relacional (Ulloa, 2016), pois esses termos se referem à possibilidade de decisão que as pessoas e os grupos têm diante de pressões externas que demandam negociações contínuas e reconfigurações internas.

Nesse contexto emergiu a necessidade de identificar e analisar as concepções que as mulheres indígenas curipacas da reserva Paujil (Inírida, Colômbia) têm sobre sua saúde sexual e reprodutiva desde um construto ocidental de saúde, dentro de uma estrutura de autonomia relativa e relacional.

Participantes e métodos

Esta pesquisa qualitativa utilizou como método o estudo de casos múltiplos, que permite analisar em conjunto uma série de casos para compreender uma situação ou grupo envolvendo relações complexas, localizadas e possivelmente problemáticas que articulam o que ocorre em habitats naturais com alguns conceitos acadêmico-disciplinares (Stake, 2013) a partir de uma análise crítica, em profundidade e com rigor (Quecedo; Castaño, 2002). A amostra contou com 40 participantes que atenderam aos seguintes critérios: ser mulher pertencente ao grupo étnico curipaco, idade mínima de 18 anos e residência permanente na reserva Paujil, Inírida.

Das etapas de concepção e elaboração da pesquisa participaram ativamente lideranças comunitárias, que foram orientadas pelo grupo de pesquisa no início do estudo sobre procedimentos específicos como coleta de informações, desenvolvimento das entrevistas, sistematização, uso e aplicação do consentimento livre e esclarecido; enquanto as lideranças trouxeram informações ao grupo de pesquisa sobre o contexto étnico, relacionado à visão de mundo, valores e as próprias dinâmicas da comunidade. Para a coleta de dados, foram aplicadas entrevistas semiestruturadas, elaboradas em conjunto com pesquisadores e atores comunitários, traduzidas para a língua curipaco por uma liderança indígena reconhecida pela comunidade e aplicadas algumas adequações a partir de um teste piloto. As entrevistas foram realizadas na língua indígena pela mesma liderança indígena nos domicílios das entrevistadas e gravadas em formato MP3 para, posteriormente, serem transcritas e traduzidas para o espanhol, acompanhando sua redução e categorização. Por último, foram estabelecidas as seguintes categorias de estudo: a) impacto da mobilidade sobre as mulheres indígenas; b) autonomia e sexualidade; e c) concepções da abordagem ocidental sobre saúde sexual e reprodutiva.

A pesquisa cumpriu os critérios éticos, sendo mantida a identidade das participantes em anonimato e obtido o consentimento livre e esclarecido de cada uma. Este estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa de uma das instituições de ensino superior responsáveis pelo estudo.

Resultados

A seguir serão representados os resultados do estudo realizado desde 2017, no qual participaram 40 mulheres curipacas de uma reserva indígena localizada na cidade de Inírida, na Área de Reserva Florestal da Amazônia Colombiana, na fronteira com a Venezuela e o Brasil, às margens dos rios Guainía, Inírida e Atabapo. Com uma área de 52 mil hectares, a reserva foi historicamente povoada pelas culturas piapoco e puinave, que juntamente com os curipacos pertencem à mesma subfamília linguística Maipure. Atualmente, essa reserva tem um assentamento próximo à cidade de Inírida, conferindo-lhe características suburbanas, onde estão a maioria das famílias curipacas (Mora Quintero, 2018). Primeiro, serão apresentadas as principais características sociodemográficas das participantes e, depois, serão descritos os achados de acordo com cada uma das categorias propostas.

A faixa etária das mulheres entrevistadas variou entre 18 e 90 anos, com uma média de 39,3 anos. Em relação ao tempo de residência na reserva, 75% das entrevistadas tinham entre 2 e 20 anos, e todas as participantes migraram de outros territórios vizinhos, devido a trabalho de seus parceiros, busca por melhores condições de vida ou porque foram vítimas de deslocamento forçado por grupos armados.

Quanto à escolaridade, 46% tinham ensino médio ou técnico e 35% nunca foram à escola. Em relação à composição familiar, verificou-se que 78,6% das participantes tinham companheiro estável, e 60,7% tinham de dois a cinco filhos. As funções desempenhadas pelas participantes incluíam realização de trabalhos domésticos, fazer mañoco (farinha de mandioca brava) e cultivo no conuco (local de plantio indígena designado para a família).

Impacto da mobilidade entre as mulheres indígenas curipacas

A inclusão dessa categoria se deu porque todas as participantes eram provenientes de lugares diferentes da reserva, principalmente de comunidades rurais localizadas no departamento de Guainía ou próxima ao departamento de Vichada ou com a fronteira da Venezuela. Ao indagar sobre suas expectativas e adaptação a esse novo território, a maioria das participantes não têm perspectivas de voltar à sua comunidade de origem. Algumas delas disseram que há maiores oportunidades de trabalho, estudo e acesso a serviços de saúde na cidade, além da variedade de alimentos. Os seguintes relatos fundamentam esses achados:

Aqui tem escola, a gente está perto do hospital. Quando ficamos doentes, vamos a um local mais próximo (Entrevistada 1).

Lá seria difícil encontrar as coisas, enquanto aqui eu compro o que quero (Entrevistada 2).

A gente pode conseguir tudo mais fácil por aqui, comida e roupa (Entrevistada 3).

Outro elemento valorizado positivamente por algumas participantes na residência atual diz respeito à privacidade em família, diferentemente do que ocorre na vida em comunidade: “É melhor aqui, porque na comunidade tudo é de todos; as pessoas entram na casa, tem fofoca, mas aqui é diferente” (Entrevistada 4).

Em contraste, parte das entrevistadas avaliam suas comunidades de origem como espaços de socialização e participação, pois era o local de práticas espirituais, assembleias e encontros comunitários, das quais sentem falta, como as tradições relacionadas ao uso de sua própria língua, ao trabalho no conuco, ao preparo e compartilhamento de alimentos e às funções desempenhadas especialmente pelos jovens no trabalho com a terra e a pesca, atividades estas que foram substituídas pelo uso excessivo da tecnologia:

Não fazemos mais casabe; estamos comprando tudo, e nossos filhos já têm vergonha de falar curipaco (Entrevistada 5).

Na minha família paramos de falar a nossa língua curipaca (Entrevistada 6).

[...] éramos mais unidos, comíamos juntos; a gente era feliz nas comunidades. Mas agora é diferente, fazemos nossas refeições aqui em um núcleo familiar (Entrevistada 7).

Os jovens estão diferentes. Hoje são preguiçosos, só se dedicam a ver televisão, não trabalham mais; já os da comunidade, sim, eles trabalham, pescam (Entrevistada 8).

Os jovens não vão mais pescar, não vão mais trabalhar, só estão nos celulares e na internet; já nas comunidades é diferente (Entrevistada 9).

Outra mudança relevante se refere ao acesso aos meios de subsistência e, particularmente, aos alimentos, cuja principal fonte na comunidade de origem é o conuco, enquanto em sua residência atual, devido à proximidade com a cidade, há dependência da economia de mercado:

Na comunidade, eu não tenho que pensar em dinheiro, no que eu vou comer. Compartilhamos tudo na comunidade; mas aqui tudo é dinheiro (Entrevistada 10).

É melhor viver na comunidade porque não temos que ficar pensando em comprar (Entrevistada 11).

Lá, a gente come de graça; mas aqui é preciso de dinheiro (Entrevistada 12).

[...] eu já quero ver minha família de novo, não tem trabalho para mim aqui (Entrevistada 13).

Pode-se concluir que uma das mudanças culturais que essa mobilidade causou nos indígenas foi a perda progressiva de seus saberes ancestrais, costumes e do senso de comunidade, pois a perda da estreita relação com o lugar de origem pode levar ao enfraquecimento, transformação e até de revitalização dos saberes indígenas, uma vez que a natureza desempenha um papel primordial na configuração das culturas indígenas (Gonzalez; Ortiz; Frausin Bustamante, 2012). Portanto, a comunidade de origem é considerada a fonte de subsistência, principalmente na proteção da saúde, alimentação e abrigo, enquanto no assentamento atual essa responsabilidade recai sobre o núcleo familiar e não sobre a comunidade. Apesar disso, as mulheres não têm expectativas de retornarem às suas comunidades de origem. Nesse contexto, Maidana (2013) expõe três fases nos processos migratórios: motivações, transferência ou deslocamento e incorporação em um novo contexto cultural, social e econômico. Nessa última fase estão as mulheres entrevistadas. Esses processos de mudanças, embora presentes desde os tempos pré-hispânicos, com maior ocorrência no período colonial e pós-colonial, foram intensificados ao longo do século XX pelo desenvolvimento comercial e industrial, pela urbanização e consequente aumento da demanda por mão de obra, pelo avance dos mecanismos de expulsão e pela perda de territórios nativos (OIM, 2016), mecanismos impulsionados pela ideia de superação do atraso e da pobreza por meio do fortalecimento das fronteiras nacionais e da consolidação do desenvolvimento fundamentado no crescimento econômico (Hill; Oliver, 2011).

Autonomia pessoal e relacional: contextos para abordar a sexualidade

Como ficou evidente a falta de abertura da população para tratar de questões relacionadas à sexualidade, primeiro foi necessário investigar a autonomia das participantes em se comunicar e atuar nesse tema, de modo que foram identificados dois horizontes de autonomia que compõem essa categoria: a autonomia pessoal, que representa a possibilidade de as mulheres decidirem e agirem, e a autonomia relacional. Embora nessa cultura as decisões sobre ações, comportamentos e funções do grupo familiar estejam nas mãos dos homens, atualmente há um estágio de transição para a negociação da tomada de decisões compartilhadas, impactando diretamente na sexualidade. Entre as mudanças percebidas que refletem um possível ganho de autonomia para as mulheres estão decidir por si mesma quando iniciar as relações sexuais antes do casamento, escolher e trocar de parceiro, e tomar decisões reprodutivas compartilhadas com o parceiro ou apenas pela mulher:

Nós, mulheres, tomamos as decisões porque ficamos em casa (Entrevistada 14).

Nós dois tomamos as decisões; às vezes eu falo para ele “olha, isso é assim” e a gente se ajuda (Entrevistada 15).

[para me prevenir]... decido sozinha, não preciso de permissão (Entrevistada 16).

No entanto, alguns relatos ainda informam que o homem toma as decisões, inclusive as decisões reprodutivas, e as mulheres precisam pedir permissão para tomar medidas preventivas, sair de casa e trabalhar.

A autonomia pessoal também se reflete na busca por conhecimento para tomar decisões conscientes. Embora as participantes tenham afirmado que gostariam de aprender mais sobre saúde sexual e reprodutiva, especialmente sobre a prevenção de doenças para ensinar seus familiares e vizinhas, elas apontaram que não buscam informações por medo de falar de sexualidade com outras pessoas.

Já a autonomia relacional se manifesta na visibilidade das mulheres no âmbito público, na liderança que ocupam dentro da comunidade, na busca pela igualdade de direitos que gradativamente está crescendo e na possibilidade de decidir quais tradições desejam manter, desde seu próprio sistema de crenças, organização, alimentação até práticas individuais e coletivas de cuidado com a saúde. A seguir serão apresentados alguns relatos que mostram essa conquista:

Antes, os homens não ajudavam as mulheres, mas agora têm algumas mulheres que são lideranças na comunidade (Entrevistada 17).

Nós, mulheres, já temos o mesmo papel que os homens, nós trabalhamos, recebemos o mesmo que eles, mas antes, não, ficávamos cuidando dos filhos (Entrevistada 18).

No caso de nós, indígenas, os homens eram machistas. Agora a gente pode trabalhar igualmente como os homens; antes eles eram machistas, mas agora não; agora somos iguais (Entrevistada 19).

Observa-se que as mudanças na estrutura e nos papéis familiares ao longo do tempo e com a mudança de território, quando ocorre de forma voluntária, são percebidas como um ganho na autonomia pessoal, mas a autonomia relacional torna-se menos clara, ou seja, a tomada de decisão compartilhada se dissolve à medida que o sentido de comunidade se desintegra (Ulloa, 2016). No entanto, a possibilidade de se comunicar em seu próprio idioma, de preservar tradições familiares que são compartilhadas com outras etnias e de manter o acesso à terra por meio do conuco são aspectos mais visíveis de preservação e de encontro cultural, limitados por interações e negociações permanentes com atores externos que modulam a manutenção de suas tradições e estruturas, levando, segundo Ulloa (2016), apenas a uma autonomia parcial que não é permanente, mas em constante construção. Isso implica que as decisões tomadas pelas comunidades indígenas, sejam coletivas ou individuais, não são totalmente autônomas, uma vez que são mediadas por sua relação com a visão de mundo ocidental (Noningo Sesen, 2020).

Concepções da abordagem ocidental sobre a saúde sexual e reprodutiva

Desde a perspectiva ocidental, embora a sexualidade seja vista como uma dimensão da vida humana relacionada a uma ampla gama de aspectos, a saúde sexual e reprodutiva é tratada a partir da saúde pública convencional com base em um pequeno número de indicadores e intervenções focados na reprodução e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e do câncer de colo do útero por meio de acesso a serviços baseados em informação, diagnóstico precoce e tratamento. A partir dessa perspectiva, esta categoria busca reconhecer os saberes e práticas das mulheres indígenas.

A primeira subcategoria se refere ao planejamento reprodutivo e identifica se as mulheres conhecem métodos contraceptivos modernos, embora nem sempre os utilizem. Dentre os métodos utilizados pelas participantes, não houve referência a métodos definitivos ou de barreira; em vez disso, elas apontaram ter utilizado métodos hormonais de diferentes tipos, cuja duração esteva sujeita, em vários casos, aos efeitos adversos percebidos por elas:

Eu não me previno mais. Antes eu utilizava injeção, mas foi só por dois meses porque eu não gostei, aumentou muito meu fluxo e por isso deixei de tomar (Entrevistada 20).

Com a pílula dos yaranai que me deram..., mas não me fez bem, aumentava muito meu fluxo e por isso deixei de tomar (Entrevistada 21).

Destaca-se também o uso de práticas tradicionais relatadas por algumas mulheres tanto para facilitar a reprodução quanto para preveni-la:

Eu não sabia por que não estava conseguindo engravidar. Já vivíamos há algum tempo, até que minha família me deu remédio para engravidar (Entrevistada 22).

Eu não uso nada, mas meu avô faz benzimento da água para não ter filhos (Entrevistada 23).

Em contrapartida, as participantes observam, com certa preocupação, algumas mudanças no comportamento sexual, tanto na idade de início das relações sexuais e de casamento quanto na idade de paridade do primeiro filho, afirmando que atualmente isso ocorre em uma idade mais precoce do que antes:

Minha sobrinha se casou aos 35 anos, e antes ela não teve relações com homens; ela se casou quando terminou os estudos, mas isso era antes. Hoje eles se casam aos 12 ou 13 anos (Entrevistada 24).

Eu acho que seria melhor se as mulheres se casassem mais tarde, mas hoje isso já não é a mesma coisa (Entrevistada 25).

Para nós, indígenas, não há idade certa para isso. Depois da nossa primeira menstruação já podemos ter filhos (Entrevistada 26).

Esse achado corrobora outros estudos que indicam uma redução da idade de início da primeira relação sexual de mulheres e homens (Suárez-Mutis et al., 2010).

Em relação às doenças sexualmente transmissíveis, as mulheres informaram que, em geral, sífilis, gonorreia, herpes e aids são doenças transmitidas principalmente de homens para mulheres através do contato sexual. No entanto, metade das entrevistadas mencionou não ter conhecimento sobre o tema, mas destacam a importância da prevenção:

Não sabemos nada, mas devemos dizer às nossas filhas para não ter relação sexual com qualquer um (Entrevistada 27).

Eu não sei muito, mas as mulheres passam doenças para os homens (Entrevistada 28).

Eu acho que os homens têm mais [doenças sexuais], por isso não se deve ter relações sexuais com qualquer homem (Entrevistada 29).

As entrevistas também apontam algumas medidas de prevenção dessas doenças, dando maior relevância ao comportamento sexual, à higiene corporal e limitando as relações sexuais ao casal. Em alguns casos, apontam que o casal não deve ser “yaranai”, termo para se referir a pessoas brancas e mestiças. Em relação ao uso de preservativo, não houve um consenso explícito, já que, por se tratar de uma questão íntima, as expressões são bem gerais do que a própria experiência, mas os relatos das participantes evidenciam o não uso ou desconhecimento desse método. Apenas três participantes indicaram o uso de preservativo como método de prevenção, embora apenas uma tenha relatado efetivamente que utiliza preservativo em suas relações. Os seguintes relatos evidenciam as formas de prevenção de infecções sexualmente transmissíveis:

Seria não ter relações sexuais com pessoas que você não conhece... (Entrevistada 27).

A gente deve se cuidar fazendo higiene pessoal dos órgãos genitais (Entrevistada 28).

A gente deve se cuidar usando preservativo (Entrevistada 29).

A esposa do meu irmão teve uma doença, e eu soube que ela pegou essa doença porque teve relações sexuais com um yaranai (Entrevistada 26).

Outro achado relevante está relacionado com o tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, porque há poucos tratamentos tradicionais ou naturais, o que faz essa população recorrer à medicina yaranai ou acreditar que não há cura para essas doenças. “Gonorreia, só ouço falar disso. Para essa doença, tem um remédio muito bom: abacaxi, cru e verde, é só tomar e pronto! A gente deve se cuidar indo ao médico, e acho que não há cura para as doenças” (Entrevistada 26).

Em relação ao HPV, metade das entrevistadas afirmam não ter conhecimento sobre a doença, nenhuma fez uma associação ao câncer do colo do útero, enquanto algumas apontam que a transmissão dessa doença se dá via sexual, mas como consequência de infidelidade.

Quanto ao câncer do colo do útero, algumas das entrevistadas relatam que já ouviram falar dessa doença apontando que causa dor e sofrimento e que pode levar à morte; algumas enfatizam que não tem cura, enquanto outras atribuem a cura à fé e ao tratamento adequado. Vale destacar a explicação de algumas participantes sobre a origem dessa doença relacionada ao mal causado por outras pessoas ou como resultado de um feitiço, ou como consequência do pecado, razão pela qual devem recorrer, primeiro, aos médicos tradicionais que curam o feitiço. Algumas também mencionam os tratamentos yaranai como métodos de cura.

Câncer é “maricai” (Entrevistada 26).

Já conheci mulheres com esse mal, com “maricai”. Isso é lançado para nós. Uma vez me fizeram mal, me lançaram na porta da minha casa, quase morro. Tem dois tipos, se a gente pisar logo quando é lançado, a gente pode morrer, mas se pisar quando já está frio, pode ter remédio (Entrevistada 27).

Com um remédio chamado creolina eles curaram um homem, porque o câncer é um verme que rói a carne das pessoas (Entrevistada 28).

É claro que tem cura se acreditar em Deus, porque Ele é o único que cura. Confiar em Deus cura (Entrevistada 29).

O método de prevenção do câncer do colo do útero identificado por sete participantes foi o exame de Papanicolau. No entanto, embora a maioria das participantes saibam que se trata de um exame ginecológico, algumas acreditam que é para verificar como está a saúde em geral, mas não relacionam com a saúde sexual ou reprodutiva feminina, nem consideram como um exame para detectar doenças, como sífilis, e infecções em geral. Embora mais da metade das participantes relataram já ter realizado esse exame, a periodicidade não segue o protocolo de saúde pública. Entre as participantes que relataram ter realizado esse exame, apenas uma mencionou que não faria novamente por medo do procedimento, e todas reconheceram a importância de fazer o exame e preferem que seja realizado por uma mulher.

Além dos aspectos de saúde sexual e reprodutiva, verificou-se que os rituais e os cuidados em torno da menarca e da menstruação são importantes para as famílias curipacas, com algumas diferenças em relação às demais etnias. Foi identificado que nas comunidades de origem todas as participantes passaram por um ritual de passagem, que consistiu em ficar um tempo confinada dentro de um quarto a partir do momento da primeira menstruação que variava entre 1 dia e 1 mês, momento em que, segundo relatam as entrevistadas, quatro práticas se destacaram: fazer a dieta, benzer água e a comida, tomar banho com água morna com ervas ao amanhecer e receber conselhos de familiares. “Fazer a dieta” consiste na restrição do consumo total ou parcial de certos alimentos como carne e peixe, frutas ácidas e sal, e até mesmo a privação total de comida e água durante o tempo de confinamento ou a preferência por alguns alimentos como água, mandioca e pimenta; e durante ou após o confinamento, só se deve comer alimentos e beber água benzidos pelas pessoas mais velhas. Já o banho antes do amanhecer com água morna benzida, em alguns casos com ervas como a tsicanta, serve de proteção contra os Yupjinai (ou espíritos da floresta) e para preservar a juventude, enquanto os conselhos de homens e mulheres mais velhos, principalmente da mãe e da avó, tratam sobre como viver bem, ser gentil com os outros e adiar o máximo possível a união conjugal. Em dois casos, cortar o cabelo também foi identificado como parte do ritual. Algumas dessas práticas também consideram cuidados que as mulheres devem ter durante a menstruação, destacando descansar, não trabalhar no conuco, não tomar banho no rio, se molhar ou “pegar friagem” para evitar dores e tomar remédios, como o caroço do abacate raspado ou a camófida cozida, para que “não desça muito sangue”, além da dieta que consiste em não comer peixe ou frutas ácidas como o lulo durante a menstruação.

Parte das participantes menciona que já realizou ou realizará alguns desses rituais com suas filhas; mas algumas consideram práticas antigas, que não são mais realizadas ou que foram proibidas pela religião cristã praticada por grande parte dos curipacos.

Não passei por esse ritual, porque meu pai que é pastor me disse que estava proibido, ele apenas fez o benzimento da água e eu bebi. Não realizamos mais essa tradição (Entrevistada 26).

Fizeram algo especial para sua filha na primeira menstruação?

Não mais. Eu apenas oro a Deus. Um dia eu fiz a dieta dela à tarde, já dei água para ela; os outros eram antiquados. Hoje já é diferente (Entrevistada 27).

Os achados dessa categoria explicam o encontro entre o pensamento ocidental e a cosmogonia indígena. O primeiro se caracteriza pela divisão e especialização do conhecimento e, em geral, de todos os aspectos da vida, a ponto de a saúde, considerada uma dimensão separada das demais dimensões da vida humana, ser subdividida em âmbitos como a saúde mental, a saúde física ou a saúde sexual, para as quais são criados padrões de normalidade como referências para estudar e avaliar outras formas de pensar e existir. Com base nessa perspectiva, os resultados mostram que as participantes têm pouco, nenhum ou impreciso conhecimento sobre a saúde sexual e reprodutiva como uma abordagem construída a partir da perspectiva ocidental de saúde, dada a falta de clareza sobre temas relacionados ao HIV, câncer do colo do útero e doenças sexualmente transmissíveis.

Já a cosmogonia dos curipacos explica a singularidade do ser, não apenas individual e atual, mas coletivo e histórico, na medida em que a doença é atribuída à interrupção das relações entre humanos e seus ancestrais míticos representados por animais, uma ruptura ocorrida tanto pela má intenção dos outros (feitiçaria) quanto pelo descaso de rituais e medidas de proteção, como dieta ou restrições ao banho no rio. Para as mulheres em idade fértil, por exemplo, é proibido consumir determinado tipo de mel vermelho das abelhas, pois causa sangramento menstrual excessivo, um sinal de saúde precária, como mostram algumas das narrativas das participantes e confirmado por Hill e Oliver (2011) em sua extensa pesquisa sobre saúde indígena. Portanto, a manutenção e recuperação da saúde ancestral demandavam ações igualmente abrangentes que buscavam restaurar esse vínculo com os ancestrais para além do mundo dos vivos, o que é obtido pelas ações lideradas por xamãs (malirri) e donos do canto (malikai) que viajam para esse outro mundo com a ajuda da música com características muito específicas, do tabaco e do uso de plantas alucinógenas da família Virola (Hill; Oliver, 2011). Essa concepção de saúde, que escapa à compreensão do olhar ocidental, se concretiza em ações categorizadas novamente pelo Ocidente como práticas espirituais, higiênicas ou alimentares a partir do conhecimento de plantas, de animais, de espíritos, do corpo e dos ciclos da vida. O uso de plantas, os benzimentos, a medicina ancestral, a escolha de alimentos e atividades adequadas no ciclo reprodutivo apontadas pelas participantes são mostras que persistem apesar das proibições em um contexto altamente permeado pelos valores do cristianismo evangélico.

Este último aspecto (a religiosidade) foi de grande relevância na concepção da saúde e suas práticas de cuidado tanto para as participantes quanto para a cultura curipaca em geral e para as demais etnias desta região amazônica, que vivenciaram o processo civilizatório mais intenso dos últimos setenta anos, tendo a evangelização e a alfabetização como estratégias para integrá-los à intenção de desenvolvimento nacional (López, 2008). Dessa forma, a primeira metade do século XX ficou reconhecida como o quarto momento de expansão do cristianismo, por meio das missões da Igreja Católica, mas também de outras religiões cristãs, como a organização Missões Novas Tribos (Becerra, 2021), que chegou ao atual departamento de Guainía em 1943, destacando a americana Sofia Müller, que graças ao domínio da língua curipaca converteu quase todos os indígenas desse território à igreja evangélica, fundando com eles a Igreja Bíblica Unida, religião à qual pertencem todas as participantes deste estudo. Diversas fontes apontam para o impacto da implantação do cristianismo na transformação cultural dos curipacos, por meio da proibição da crença em seus deuses, de seus cantos e danças, de seus remédios e em geral de seus rituais, bem como da instituição da higiene ocidental (Becerra, 2015; Hill; Oliver, 2011).

Considerações finais

Este estudo destaca que a interpretação dos resultados é possível apenas no contexto específico das participantes e não busca fazer generalizações externas ou internas, mas contribuir para o enriquecimento da discussão sobre a perspectiva da saúde sexual e reprodutiva e a necessidade de reconhecimento da perspectiva das mulheres e dos povos indígenas, que se transforma à medida que as mudanças nos processos sociais e históricos, políticos e econômicos a nível mundial, nacional e local favorecem ou limitam a autonomia relativa de indivíduos e grupos.

Diante do exposto, os achados nas três categorias analisadas mostram diferenças entre as participantes quanto à experiência e efeitos do processo migratório, expectativas de retorno e percepção sobre as comunidades de origem, ganhos em relação à autonomia pessoal, consciência quanto à autonomia relacional e noções de abordagem da saúde sexual, seja a partir da visão de mundo como povo indígena ou a partir dos padrões ocidentais. Todos esses aspectos, assim como a rede de processos sociais e históricos que os determinam, devem ser reconhecidos pelos sistemas e prestadores de saúde, a fim de alcançar uma construção intercultural de saúde que supere a visão funcionalista do culturalismo, voltado a manter a hegemonia e buscar adaptar o comportamento das populações às necessidades dos saberes ocidentais em um exercício de poder definitivamente desigual sobre outros saberes (Ávila; Alves, 2022). O compromisso com a interculturalidade deve ocorrer pelo respeito aos saberes, tradições e expressões culturais que as comunidades desejam manter para fundamentar ações que, com base nos saberes ocidentais, contribuam para a proteção de sua saúde (Guerrero et al., 2020), sendo necessário reconhecer e integrar práticas, tradições e rituais dos povos indígenas (Suárez Huertas, 2020).

Os achados deste estudo destacam que os motivos para a migração foram a busca por maior acesso a serviços sociais e, particularmente, aos cuidados de saúde, sendo um elemento relevante nas interações transfronteiriças, conforme outros estudos em contextos amazônicos têm mostrado (Suárez-Mutis et al., 2010). Nesse contexto, a particularidade da análise deve contemplar as demandas das populações fronteiriças não apenas a partir das vulnerabilidades implicadas, mas também a partir das múltiplas possibilidades representadas pela confluência em um mesmo território de diferentes sistemas de saúde, construindo também políticas e ações de saúde transfronteiriças que levem em consideração as particularidades da realidade regional (Suárez-Mutis et al., 2010). A assistência à saúde deve ser levada em consideração pelas políticas públicas para migrantes internacionais em áreas de fronteira, construídas com base em agendas comuns entre os países (Dos Santos; Queiroz, 2022).

Outro elemento coincidente se refere a que a migração das participantes das comunidades de origem não implicou perda total de suas tradições ancestrais, pois se mantém a memória e, em alguns casos, a intenção de preservar suas práticas espirituais e a vida comunitária, reconhecendo a comunidade de origem como garantidora da subsistência apesar das dificuldades de convivência. Segundo Antequera (2019), o senso de comunidade é um dos elementos que, ao permanecerem intactos nos processos de migração para outros territórios, incluindo áreas urbanas e suburbanas, permitem a manutenção da identidade e coesão da população indígena. No entanto, no assentamento atual, apesar de ser uma reserva indígena, a vida comunitária aparentemente gira mais em torno da identidade religiosa coletiva, abandonando algumas tradições culturais, outrora centrais aos curipacos, como a ritualidade xamânica em relação à cura da doença individual e do infortúnio coletivo, com base em suas origens míticas (Hill; Oliver, 2011).

Isso evidencia um processo contínuo de adaptação à visão de mundo ocidental, que também é dinâmica e demanda a transformação do pensamento e da ação de toda a sociedade, apesar de se manter um sincretismo simbólico que reflete uma cosmovisão indígena que ainda não está extinta. Outras experiências registradas na América Latina mostram os esforços de grupos indígenas urbanos para manter suas tradições comunitárias ancestrais, o que não se observa entre as participantes indígenas curipacas por razões que precisam ser aprofundadas, mas que pode ser explicado pela ruptura não apenas com a inserção da religião, mas também pela violência como propulsora de deslocamento, pela procedência de diferentes territórios e não da mesma comunidade, ou pelo desejo de melhorar as condições de vida que envolvem estruturas sociais e familiares.

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  • 1
    Este projeto foi financiado pelo Departamento Administrativo de Ciência, Tecnologia e Inovação (Colciencias).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2023
  • Revisado
    28 Fev 2024
  • Aceito
    13 Abr 2024
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