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Os outros são os outros: percepções de homens usuários sobre os efeitos adversos da testosterona1 1 A pesquisa foi conduzida com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Resumo

Este artigo analisa a percepção de homens usuários de testosterona acerca dos efeitos adversos no uso do hormônio, a fim de refletir sobre a eficácia e o alcance de ações em saúde voltadas para essa prática. Os dados empíricos foram obtidos a partir de 21 relatos de história de vida de homens que utilizam a testosterona, com ou sem acompanhamento médico, de perfil variado, coletados em 2016 majoritariamente no Rio de Janeiro. A discussão se apoia nos estudos de gênero e de masculinidades para argumentar como os homens interpretam os impactos do uso da testosterona a partir de uma valorização de características masculinas associadas a um ideal normalizador de masculinidade. Os resultados apontam uma percepção generalizada no campo de que o hormônio causa pouco ou nenhum mal, através de um processo de invisibilização ou ressignificação dos efeitos potencialmente negativos. Além disso, há um movimento de deslocamento dos problemas associados ao uso a personagens estereotipadas, num processo de desresponsabilização de si e reafirmação de atributos de um ideal de masculinidade. Com isso, busca-se contribuir para a construção de ações em saúde mais adequadas ao cotidiano dos usuários e, portanto, mais eficazes.

Palavras-chave:
Testosterona; Hormônios Sexuais; Masculinidades

Abstract

This article analyzes the perception of male users of testosterone about the adverse effects of the hormone, aiming to challenge the effectiveness and scope of health actions for this practice. Empirical data were obtained in 2016, mostly in Rio de Janeiro, from life history interviews with 21 male users of testosterone, with or without medical monitoring, from different backgrounds. In the light of gender and masculinity studies, it discusses how men interpret the impacts of testosterone use from a social valuation of certain traits associated with a normalizing manhood ideal. Results indicate an invisibilization or re-signification of potentially negative effects of the hormone, culminating in a widespread perception that it causes little or no harm. The problems associated with testosterone use acquire stereotyped characters, through a process of denying self-responsibility and reaffirming attributes of an ideal type of masculinity. This study is expected to contribute to the development of more adequate and thus more effective health actions to users’ daily lives.

Keywords:
Testosterone; Sex Hormones; Masculinities

Introdução

A testosterona é um hormônio esteroide produzido prioritariamente pelas gônadas, tanto em homens quanto em mulheres, e associada a uma ampla gama de efeitos, desde anatômicos até comportamentais. É diretamente ligada ao desenvolvimento de caracteres sexuais secundários em homens e, ao contrário de outros hormônios, goza de um lugar de destaque no imaginário popular. A testosterona é ainda descrita, mesmo pela ciência, como o hormônio sexual masculino por excelência, ainda que esta classificação seja questionada em diversas áreas - da bioquímica à antropologia - desde os primórdios da pesquisa científica sobre a molécula (Rohden, 2011ROHDEN, F. “O homem é mesmo a sua testosterona”: promoção da andropausa e representações sobre sexualidade e envelhecimento no cenário brasileiro. Horizontes Antropológicos, [S.l.], v. 17, n. 35, p. 161-196, 2011. DOI: 10.1590/S0104-71832011000100006
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; Tramontano, 2017bTRAMONTANO, L. Testosterona: as múltiplas faces de uma molécula. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017b.). Ainda assim, o senso comum associa a testosterona à masculinidade utilizando um como sinônimo de outro.

Dentre diversas questões que envolvem uma molécula tão carregada de sentido, este artigo foca na percepção dos efeitos indesejáveis no uso, prescrito ou não, do hormônio. A testosterona (como os outros hormônios sexuais) pode ser vista como um caso paradigmático no sentido de se tratar de uma substância sintetizada pelo próprio organismo, que é ainda assim suplementada ou reposta, borrando os limites entre natural e artificial.

Contudo, ela é frequentemente usada por conta própria, amplamente distribuída pelo mercado ilegal e muitas vezes utilizada com fins estéticos. Mesmo o uso médico, como a reposição hormonal, é questionado por ser considerado por críticos e por parcela dos médicos mais um tônico do que um medicamento, e seu valor terapêutico é diversas vezes tratado como um aprimoramento, como demonstram Russo, Faro e Montezuma (2019RUSSO, J. A.; FARO, L. F. T.; MONTEZUMA, A. Controvérsias em torno do “hipogonadismo tardio” e seu tratamento: um estudo das discussões médicas sobre o envelhecimento masculino. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS EM SAÚDE, 8., 2019, João Pessoa. Anais eletrônicos [...]. Campinas, Galoá, 2019. ). Outro uso envolve o trânsito de gênero. Nessa possibilidade específica, os limites da naturalidade do corpo são ainda mais nublados. A concepção do que seria natural ou não é atravessada por posições políticas frente a concepções de sexo e gênero, às quais o conhecimento científico servirá de suporte e não de prova genuína e irrefutável. Pela própria ação fisiológica do hormônio, seus efeitos são múltiplos, difusos e de difícil predição, característica aprofundada pelo caráter simbólico e pela generificação dos hormônios sexuais, conforme aponta Nelly Oudshoorn (1994OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. Londres e New York: Routlegde, 1994.).

Para Nikolas Rose (2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.), o século XXI assiste a uma nova etapa no processo de regulação dos corpos. Seria um aprofundamento da biopolítica, conforme pensada por Michel Foucault (2006FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.), através do avanço de uma “biomedicina tecnológica”, cada vez mais dependente de máquinas e equipamentos, que sustenta e é sustentada por uma visão molecular do corpo e de seu funcionamento, que favorecerá o recurso farmacológico sempre que ele estiver disponível, o que também é percebido por Adele Clarke et al. (2003CLARKE, A. et al. Biomedicalization: technoscientific transformations of health, illness and US biomedicine. American Sociological Review, [S.l.], v. 68, n. 2, p. 161-194, 2003. DOI: 10.2307/1519765
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). A intensa produção de novos diagnósticos, embalada pela necessidade da indústria farmacêutica em tornar comercializáveis seus produtos, leva a uma “farmacologização do cotidiano” que cria uma relação mais frouxa, e mais íntima, com o medicamento (Bell; Figert, 2012BELL, S.; FIGERT, A. Medicalization and pharmaceuticalization at the intersections: looking backward, sideways and forward. Social Science & Medicine, [S.l.], v. 75, n. 5, p. 775-783, 2012. DOI: 10.1016/j.socscimed.2012.04.002
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; Fox; Ward, 2008FOX, N.; WARD, K. Pharma in the bedroom...and the kitchen...The pharmaceuticalisation of daily life. Sociology of Health & Illness, [S.l.], v. 30, n. 6, p. 856-868, 2008. DOI: 10.1111/j.1467-9566.2008.01114.x
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).

É nesta perspectiva que o artigo localiza a percepção de usuários sobre os efeitos considerados negativos, visando problematizar a dicotomia entre natural e artificial à luz do uso da testosterona. A discussão é iniciada com trechos de entrevistas com usuários sobre efeitos adversos, e então avanço sobre estratégias para lidar com os problemas. Na conclusão, são abordadas como características do ideal de masculinidade hegemônica emergem dos relatos, e encerra-se com uma reflexão sobre as potencialidades de resposta da saúde frente ao risco causado pelo uso indiscriminado da testosterona.

Por masculinidade hegemônica, é compreendido o ideal de masculinidade imposto aos homens pelas normas de gênero. George Mosse (1996MOSSE, G. L. The image of man: the creation of modern masculinity. Nova York: Oxford University Press, 1996.) descreve como a construção da masculinidade moderna no ocidente se reflete na exaltação de uma imagem ideal de homem, que modela e é modelada pelos padrões de moralidade e comportamento da burguesia europeia, e marcada por atributos como poder, força física, coragem, competitividade, força de vontade, resiliência e autocontrole. Para Miguel Vale de Almeida (2000VALE DE ALMEIDA, M. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século, 2000., p. 150), “a forma culturalmente exaltada de masculinidade só corresponde às características de um pequeno número de homens”, transformando a masculinidade hegemônica num ideal virtualmente inatingível. Assim, tais atributos não serão exibidos por todos os homens em todos os momentos, e as contradições resultantes se resolvem uma vez que dependem de interpretações e negociações.

Essas interpretações vão depender de outros marcadores da diferença, como classe, raça/etnia, faixa etária e regionalidade. Ou seja, os significados de “ser homem” são múltiplos, porém não individuais, conforme defendido por Raewyn Connell (2005CONNELL, R. Masculinities: second edition. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2005.). Para a autora, não existe um único modelo de masculinidade hegemônica, e é possível que o mesmo homem encarne diferentes modelos em diferentes contextos. Michael Kimmel (1998KIMMEL, M. A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 4, n. 9, p. 103-117, out. 1998. DOI: 10.1590/S0104-71831998000200007
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) concorda e enfatiza como a masculinidade hegemônica se constitui simultânea e opostamente a formas questionáveis ou desvalorizadas de ser homem, o que observamos neste artigo, quando os problemas associados à testosterona são resolvidos através de um artifício presente no modelo ideal, a competitividade. Como veremos, os homens deslocam os efeitos adversos da testosterona de si para outros, que seriam aqueles que verdadeiramente sofrem com o hormônio. Tanto Vale de Almeida (2000VALE DE ALMEIDA, M. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século, 2000.) quanto Mosse (1996MOSSE, G. L. The image of man: the creation of modern masculinity. Nova York: Oxford University Press, 1996.) argumentam como os homens constroem sua masculinidade através da minimização ou negação da masculinidade do outro, tratado como um “contratipo”, a partir do qual se reforçam os (próprios) valores hegemônicos. Portanto, os homens se apresentam como “mais masculinos” através de dois movimentos, representados nas duas seções de discussão do artigo: (1) reivindicando uma resistência ou invulnerabilidade aos efeitos danosos da testosterona2 2 Vale ressaltar que um “mito de invulnerabilidade” é frequentemente associado à masculinidade hegemônica, inclusive fundamentando políticas de saúde voltadas para os homens, como, por exemplo, na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008). ; e (2) acusando outros homens de não exibirem os atributos necessários para um uso considerado seguro do hormônio.

Método

Os dados partem da pesquisa de doutorado do autor3 3 A tese, intitulada “Testosterona: as múltiplas faces de uma molécula”, foi defendida em 2017, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-Uerj), sob orientação de Jane Araújo Russo. , que trabalhou com relatos de história de vida de 21 homens, entre cisgêneros (14) e transexuais (7). Em relação à idade, a amostra variou entre 26 e 66 anos, concentrada na faixa etária de 30 a 40 anos (9). No que tange à raça/cor, houve concentração de homens brancos (15) em oposição a negros (4 pardos e 2 pretos), segundo critérios de autoidentificação. A orientação sexual foi um marcador mais paritário, somando 10 homens heterossexuais e 9 homossexuais, além de 1 pansexual e 1 bissexual. Já em relação à localidade, houve ampla concentração no eixo Rio-São Paulo4 4 A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa em 2016, registrada na Plataforma Brasil sob o número CAAE 48725515.8.0000.5260. . A busca por interlocutores se deu a partir do esquema “bola-de-neve”, o que levou a certa homogeneidade dos entrevistados: brancos, de classe média e nível universitário. Para a análise, é relevante a categorização a partir das finalidades de uso, que podemos, grosso modo, dividir em: fisiculturismo profissional; fisiculturismo amador; e transição de gênero. Essa divisão, contudo, não é estanque, e o mesmo homem pode estar em mais de um grupo ao mesmo tempo.

A escolha por relatos de história de vida se baseou no conceito de vida social das coisas, de Igor Kopytoff (2008KOPYTOFF, I. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In: APPADURAI, A. (Ed.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF , 2008. p. 89-121.) e Arjun Appadurai (2008APPADURAI, A. Introdução: mercadorias e a política de valor. In: APPADURAI, A. (Ed.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008. p. 15-88.), e na biografia do medicamento, conforme Geest, Whyte e Hardon (1996GEEST, S. van der; WHYTE, S. R.; HARDON, A. The anthropology of pharmaceuticals: a biographical approach. Annual Review of Anthropology, [S.l.], v. 25, p. 153-178, out. 1996. DOI: 10.1146/annurev.anthro.25.1.153
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). A ferramenta visava não apenas ouvir a reconstrução biográfica dos interlocutores sobre o uso de uma substância química, mas operar uma estratégia de compreensão da interseção entre duas biografias: a dos homens entrevistados e a da testosterona (em suas vidas). É, portanto, uma biografia dupla, construída na relação entre eles e o hormônio. As entrevistas foram conduzidas pelo autor durante o ano de 2016, com assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e uso de gravador como apoio, e duravam, em média, 1h15. A análise dos dados seguiu o método da análise do discurso, compreendendo que o contexto sócio-histórico e ideológico, assim como a linguagem não-verbal possível pela escolha da entrevista como ferramenta de coleta de dados, são relevantes para a compreensão ampla do sentido de produção e enunciação do discurso dos entrevistados.

“Nada, nada, nada, nada!”: negação e deslocamento

A partir dos relatos, torna-se inegável que a testosterona pode causar problemas, ainda que os homens tendessem a desacreditá-los ou minimizá-los. Porém, há uma hesitação com a ideia de um uso livre, não mediado, da testosterona, o que sugere algo de perigoso no uso do hormônio. Mas o que seria exatamente esse “mal”? Quando perguntados diretamente, a resposta tendia a ser negativa: “eu não tive efeito colateral nenhum” (João Pedro); “Não, eu sempre fazia exame de sangue, acompanhava e não deu nenhuma alteração significativa” (Sílvio); “Não, [...] aparentemente nada. Nada, nada, nada, nada!” (Otávio); “Não, acho...não que eu consiga lembrar [...] nada que cause um...que desagrade” (Flávio)5 5 Nos trechos de entrevista, uso itálico para diferenciar de citações da literatura. Os nomes dos interlocutores são fictícios para garantir o anonimato. .

Porém, nem todos acreditam que tomar testosterona seja assim tão positivo. Evandro, muito crítico, decidiu interromper o uso por apresentar problemas orgânicos difusos e o que define como “psicológico”: “acho que é o desequilíbrio das suas taxas hormonais e do seu metabolismo, porque mexe tanto, até com o seu psicológico”. Frederico também descreve mudanças não físicas com o uso, ainda que, quando perguntado diretamente sobre efeitos desagradáveis, a resposta tenha sido categórica: “Nossa, nenhum!”.

Eu era uma pessoa mais polivalente. Quando eu abria o computador e ia estudar determinado assunto, [...] eu abria várias janelas, [...] e eu dava conta [...] Aí, a partir do momento que eu vim a tomar testosterona, [...] eu brinco, né, eu fiquei mais burro, porque assim, pra eu ter mais atenção com determinado assunto, eu tinha que abrir uma janelinha só, ler tudo, ir do início ao fim, [...] eu fiquei mais disperso. (Frederico)

Augusto também relata problemas que poderíamos chamar de “cognitivos”:

[...] esquecimento! [...] Não só palavras, como eu esquecer o que eu fiz ontem. [...] a palavra tá na minha cabeça, mas eu não consigo, não lembro de falar. E coisas também, tipo, aconteceu anteontem, às vezes eu não lembro, eu tenho que forçar pra lembrar. Colegas meus também, [...] acontece isso.

Outra questão foi relatada por Samuel, uma complicação comum ao uso de injetáveis, principalmente quando aplicados em condições duvidosas: vermelhidão e inchaço local. Relatos semelhantes apareceram no campo, porém, destaco se tratar de um problema na via de administração e não um efeito da testosterona em si. Foram comuns relatos de contusões e lesões variadas na prática da musculação associadas à testosterona. Porém, essa é uma consequência do aumento da força física, que leva o usuário a até dobrar a carga levantada para além dos limites do músculo, não podendo, portanto, ser considerado um efeito direto da testosterona.

Um problema considerado mais grave entre meus interlocutores envolvia uma atrofia, acompanhada de muita dor, que acabou por levar Sérgio à emergência: “eu tive um problema assim...no saco, eu tive um problema de dores incríveis [...] depois que comecei a tomar testosterona, [...] eu tava dentro do trabalho e isso, tipo assim, não tive ereção, não tive nada, e começou a dar essa dor”. Paulo desenvolveu o mesmo efeito, que descreveu de forma mais gráfica: “comecei a ter dor no testículo, e quando eu fui ver, eu tava com o testículo do tamanho de uma azeitona!”. Porém, quando perguntei a Sérgio se tinha percebido alguma diminuição, ele negou, dizendo que só sentiu dores. A atrofia testicular é um efeito esperado da superdosagem de testosterona, devido ao mecanismo fisiológico de feedback negativo6 6 “Entre os mecanismos de controle mais comuns da fisiologia animal está o feedback (ou retroalimentação) negativo, que, de forma leiga, se daria da seguinte maneira: ao identificar o excesso de uma determinada substância, uma alça metabólica é ativada no sentido de inibir a via de produção de tal substância. De forma análoga, pode-se também estimular a produção de outra substância que inative ou degrade aquela em excesso, e constantemente ocorrem ambos os processos simultaneamente.” (Tramontano, 2017a, p.181). , que praticamente interrompe a produção testicular. Claudio explica melhor:

O seu eixo de produção de espermatozoide diminui, é fato, porque o seu LH, FSH, vai quase a zero! [...] Às vezes que eu dei um tempo e fiz uso de estimulante para que o meu eixo voltasse, [...] eu tive resposta positiva, meu LH, FSH, voltou ao normal, mas depois você faz uso de novo das drogas, aí eles abaixam novamente, entendeu? E a quantidade [de esperma] diminui consideravelmente. [Há uma redução no testículo também, uma atrofia?] Há sim, há uma atrofia sim, atrofia, mas quando você faz uso do HCG exógeno, [...] você estimula o testículo, né, e ele volta, não ao tamanho normal, mas [...] desatrofia.

A atrofia não foi um problema apenas para homens cis, os trans também relatam uma atrofia do canal vaginal, muito incômoda para aqueles que têm na penetração vaginal uma prática sexual. Para outros, a atrofia levava a uma preocupação com possíveis problemas de saúde, notadamente câncer. Dentre os trans, Leandro e Renato me relataram esse problema, que encaram de forma bem distinta, em função de suas práticas sexuais. Para Renato, foi uma grande inconveniência.

Fica bem incômodo, [...] até fui na médica pra ela me dar uma pomada e tal para ver se ajuda [...] nesse sentido de atrofiar, diminuir né, e ficar menos produção [de lubrificação]. É, mas é que eu não sei, é muito complicado, porque eu também já conversei isso com outros ali, que daí eles vão dizer que é o contrário, porque dependendo do lance da excitação, como tem mais excitação, também vai ter mais esse tipo de produção e tal, então eu não sei, né? Porque eu acho que talvez...também essas relações com o corpo elas não dependem só de uma coisa fisiológica, né? [...] Digamos assim, de ter uma parte que está meio morta ali, sabe, mas mais [...] por questões...minhas assim, né, de matar aquela parte.

Essa ideia de “matar a vagina” se repete entre homens trans e parece estar associada a uma percepção do órgão genital como eminentemente (e exclusivamente) feminino. Vejamos pela ótica de Leandro:

Bom, teve um processo de matar lentamente a minha vagina. Num primeiro momento, por uma questão de afirmação da expressão de gênero, depois ela foi ficando cada vez mais dolorosa, porque ela vive uma atrofia, então passa a ser uma experiência desagradável. Eu já tinha um desvio no canal vaginal. Isso piorou consideravelmente.

Vale ressaltar que um dos critérios históricos para o diagnóstico de transexualidade (em suas diferentes nomenclaturas) seria a repulsa pelos genitais. Hoje em dia, porém, com a visibilidade que diferentes expressões de gênero passaram a ter na sociedade, surgem discursos mais plurais a respeito do uso ou não do genital por pessoas trans7 7 Em suas últimas edições, tanto o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) quanto a Classificação Internacional de Doenças (CID-11) passaram por reformulações no tratamento dado à transexualidade e travestilidade. No DSM-5, o diagnóstico presente é “disforia de gênero”, focalizando o aspecto do sofrimento resultante da incongruência entre identidade e corpo (e não na incongruência em si). Já no CID-11, “incongruência de gênero” aparece no capítulo de condições relacionadas à saúde, não patológicas, como a gravidez. A efetividade real dessas transformações nas práticas de saúde é algo que só poderá ser observado ao longo dos próximos anos. Para uma discussão específica sobre a realidade brasileira, ver Almeida e Murta (2013). . É o que Ivan, o homem mais velho do campo, com 66 anos, observa, com empolgação: “tem de tudo! Tem trans que usa a vagina agora, não se incomoda de ser passivo, tem de tudo!”.

Em relação a possíveis outros efeitos ruins, Leandro cita várias coisas, mas todas têm outra explicação. Ressalto como os problemas citados são de certa forma característicos do envelhecimento, não necessariamente relacionados à testosterona, e são relativamente comuns em pessoas na faixa etária de Leandro (43 anos).

Tive alteração de glicemia. Foi isso a coisa do pré-diabético [...] Acho que isso também tem a ver com lobby farmacêutico, tem outras questões aí. Mas assim, [...] o teu fígado já não é o mesmo que foi um dia, né? Alguns momentos você sente alterações do fígado, mas o meu está bem ainda [...] Eu já tive também estenose nesse período, que está controlado, mas que também acontece com n pessoas. [...] Osso. Eu faço densitometria com regularidade. [...] Tem um déficit de vitamina D, que também tem que ser corrigido porque a gente tem perda, mas as minhas estão sob controle.

Foi comum o hábito de conferir os efeitos adversos percebidos a outra questão que não seja diretamente o hormônio, o que desresponsabiliza a testosterona (e seu usuário). O argumento envolve a noção do “uso correto”, que, segundo eles, apenas o homem que já tem experiência com a testosterona seria capaz de fazer adequadamente. Cláudio é um deles:

Não vejo efeito negativo, não. Até porque o ser humano é movido à base de hormônios, os hormônios é que determinam tudo em você. O que a gente está fazendo é dando uma carga a mais. Então, [...] aquilo não é uma coisa estranha, [o corpo] conhece, entendeu, uma testo, mesmo que seja exógena, ele conhece! Você está só aumentando os níveis dela. [...] É óbvio que, enquanto estiver fazendo uso do medicamento, você tem que fazer um controle [...] se der alguma alteração, tem que se, óbvio, prezar pela saúde, parar com o uso e consertar o que está ruim. Mas, se você fizer continuamente com acompanhamento, e se você fizer uso corretamente das drogas, não tem o que dar errado! Teoricamente. Óbvio que se a pessoa tiver uma pré-disposição genética, isso não tem jeito. Mas...pode acontecer? Pode, mas...

É interessante como Cláudio reivindica a “naturalidade” da testosterona, que aparece de forma menos explícita em outros relatos. Outro ponto relevante nessa fala é que a assertividade que ele passa ao afirmar que “não tem o que dar errado” é suavizada pelo “teoricamente”. Temos aí uma ambiguidade da testosterona: é natural e não faz mal, mas apenas “teoricamente”. Porém, sempre haverá algum outro fator que irá justificar os casos que dão errado. Essa postura é explícita na fala de Antônio, que diz não ter nenhum efeito colateral, contudo, insistindo, descreve vários, mas rapidamente os justifica de outra forma.

Os efeitos colaterais, o único assim que eu sinto é que eu não consigo dormir. Eu fico com insônia direto quando estou tomando. [...] Impaciente quase todo mundo fica, mas assim agressivo...muito difícil eu ficar [...] muita gente fala, mas é aquilo né, varia do gênio da pessoa. Aquela pessoa que já tem o pavio curto aí, anabolizante, fica mais ainda! [...] A pessoa sabe que aquilo faz mal, quais são as coisas negativas dela e não se previne, por exemplo, não pode beber, não pode ficar comendo comida gordurosa, não pode fazer isso, não pode fazer aquilo, e continua fazendo. Tipo, tomou um negócio, sabe que faz mal, sabe que se tomar as outras coisas vai piorar, então vai lá e faz. [Você falou que dizem que vai ficar broxa] Já ouvi falar, já ouvi falar já que ficou. Às vezes, queda de cabelo. [Você teve?] Não. [E acne?] Eu, quando era mais novo, tomava anabolizante, principalmente a testosterona, e comia bastante besteira e ficava cheio de acne, cheio de espinha. Aí, depois de um tempo, fui mudando a alimentação...sumiu, sumiu tudo! (Antonio)

Assim, a agressividade não é agressividade, mas todo mundo fica impaciente; disfunção erétil, já ouviu dizer, mas não teve; dano hepático, culpa da alimentação de quem faz errado, assim como acne. Entretanto, afirma que “sabe que faz mal”. Logo, algum mal assumidamente o hormônio faz. Jorge, muito precavido e responsável durante toda a entrevista, também acredita que “fazendo direito, não tem problema”.

Eu nem sei se tenho propensão à ginecomastia, que, geralmente, tem gente que toma, primeira semana, já começa a dar o efeito, né? Já nem sei, porque, antes de surgir qualquer efeito, eu já me precavi. Ah, sobrecarrega um pouco [o fígado]! Sobrecarrega, mas, se você tiver com a alimentação legal, fizer o uso de um [protetor hepático], eu mesmo faço uso direto. (Jorge)

Nessa fala, Jorge reivindica sua “boa genética”, que o protege do risco da ginecomastia. Cláudio também faz várias referências a supostas pré-disposições, seja para desenvolver agravos de saúde (notadamente câncer) ou para favorecer os ganhos da testosterona. Esse argumento irrita muito Otávio, que acusa as pessoas de repeti-lo apenas “para dizer que elas são Super Homem, assim, que elas são Mega, Top, Blaster e que, né, genética mega boa”. Infelizmente, Roberto parece não ter a mesma sorte: “Acho que senti uma ginecomastia, sim”. Porém, sua ginecomastia também não foi propriamente um efeito da testosterona; foi porque ele tomou testosterona junto com DHEA8 8 Refere-se à desidroepiandrosterona, um androgênio de ação mais discreta que a testosterona. , amplificando os efeitos. Ao perceber a diferença no peito, ele foi ao médico e pediu para suspender a DHEA, mantendo a testosterona e afirmando que os sintomas da ginecomastia “estão revertendo”.

Analisando o conjunto de falas, percebe-se uma tendência a desculpar a testosterona pelos seus desarranjos, com a reivindicação ora de um conhecimento maior sobre o hormônio, ora de uma vantagem orgânica que protege o usuário dos efeitos adversos. Seja inata ou adquirida, uma superioridade para lidar com a adversidade compõe o ideal da masculinidade hegemônica. À exceção das atrofias, que são difíceis de ignorar, os outros efeitos negativos são relativizados, dissolvidos em fatores alheios à testosterona. Porém, ninguém ignora que existem casos de pessoas que tiveram problemas graves, até fatais, em função do uso de esteroides. Como lidar com essa aparente contradição sem abrir margem para uma vulnerabilização de si?

“Aí já é exagero!”: os outros e a competividade masculina

Os interlocutores deslocam os efeitos adversos da testosterona para um “outro”, que irá concentrar todos os problemas do uso; esse outro será alvo de todos os estigmas que eles descreveram como injustos e hipócritas quando aplicados sobre si. Mesmo quando percebem (ou torna-se impossível disfarçar) consequências negativas do uso, os homens organizavam alguma justificativa que os diferenciava dos outros usuários. Observo, pois, o mesmo que Azize e Araújo (2003AZIZE, R.; ARAÚJO, E. A pílula azul: uma análise de representações sobre masculinidade em face do Viagra. Antropolítica, Niterói, n. 14, p.133-151, 2003., p. 144) acerca dos usuários de Viagra: “No que se refere à construção da masculinidade no campo discursivo, é recorrente o uso de comparações com outros homens. Existe um ‘outro’ que aparece no discurso dos entrevistados, por vezes como uma referência positiva [...] por vezes como uma referência negativa”.

É possível delinear três grandes “outros”: o atleta, fisiculturista profissional; o fisiculturista amador; e o homem trans machista. Os dois primeiros “tipos” são acusações recíprocas: o usuário de “bomba” é o “outro” do fisiculturista profissional, ao passo que o atleta fisiculturista é o “outro” do praticante de musculação. Há um claro deslocamento das injúrias recebidas para alguém que está próximo aos olhos da sociedade, mas é descrito como diametralmente oposto. Frequentemente, tive a sensação de que o outro seria, na verdade, uma hipérbole de si: havia um receio em se tornar o outro, o que exigiria uma vigilância, uma fiscalização de si. Apontar os erros de outros usuários serviria para lembrar do que não se pode fazer. Em alguns casos, esses homens não consideram o corpo do atleta fisiculturista algo tão repulsivo, e chegaram mesmo a pensar, em algum momento de suas vidas, na possibilidade de tornar-se um igual. Isso é muito claro na história de Mateus, que cresceu fascinado com o fisiculturismo, mas para quem os fisiculturistas de hoje não têm o glamour que ele admirava:

Na minha visão, o corpo ideal é muito próximo, lógico, não de um bodybuilder de competição como a gente vê hoje, [...] os caras já perderam a mão...então, visualmente as barrigas muito inchadas, figadão, aquela gordura por dentro, barriga de sapo, assim, você vê o cara gigante com a barrigona inchada, mas isso não é o que eu quero!

A retórica do excesso é acionada também por Fernando, para quem as principais vítimas da testosterona seriam aquelas que tomam por conta própria, “que já passou do ponto”, e sem acompanhamento médico, o oposto das suas escolhas. Para Sérgio, “geralmente é fisiculturista que morre por causa disso”, apesar de, entre os entrevistados, os fisiculturistas não relatarem efeitos adversos graves.

Demostrando a reciprocidade da acusação, para os atletas, quem sofrerá com os efeitos adversos serão os que “não sabem tomar”. “Não sabem a dosagem certa, não sabe a hora de parar” (Antônio). Seguindo uma diferença que marcou esses dois grupos, os atletas irão expor os “erros” dos amadores com riqueza de detalhes, provando seu vasto conhecimento sobre o uso, ao mesmo tempo que desqualificam o conhecimento dos outros. Jorge chega a ser agressivo ao apontar esses erros dos “leigos”:

Tem um amigo que [...] de tanto tomar anabolizante, zerou a testosterona dele! Foi num médico, e o médico receitou pra ele, se não me engano, foi cipionato, para fazer a reposição hormonal. No primeiro dia que o cara aplicou, já tava falando que já era outro, que não sei o quê e tal, eu falei, “maluco, esse troço nem tá na sua corrente sanguínea ainda!” [...] Foi falar isso pro médico, e o médico disse a mesma coisa. Falei, “é lógico, idiota, você acha que é no mesmo dia?” Geralmente você vai começar a sentir diferença com duas, três semanas a partir da primeira aplicação. [...] não é mágico!

A crítica de que a testosterona não funciona magicamente diz menos respeito aos efeitos reais da testosterona do que a uma suposição de que a transformação seria fácil e rápida. Há aqui uma contradição com uma percepção dos efeitos considerados positivos, que são descritos como rápidos e incisivos, reproduzindo molecularmente características da masculinidade, num processo de generificação hormonal (Oudshoorn, 1994OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. Londres e New York: Routlegde, 1994.). Porém, a negação de uma ação rápida da testosterona nesse contexto específico é útil em dois aspectos, interligados: (1) ela valoriza o esforço e a dedicação que esses homens têm com a testosterona; e (2) serve para denunciar os fóruns e sites da internet que dão a impressão de que basta querer (e tomar testosterona) para crescer.

Entretanto, ainda que a crítica seja feita de forma pungente, ela pode ser completamente ignorada pelos que usam “errado”, que podem exibir uma total indiferença, ou mesmo um deboche, dos riscos. Vejamos como Paulo responde a isso:

Eu acho que primeiramente não é o uso do anabolizante [...] que mata ninguém. [...]o que ferrou a vida do Igor foi o uso do diurético [Mas ele não passa a tomar o diurético em consequência do anabolizante?] Sim, pra poder tirar o líquido, porque vai retendo [Essa retenção, não seria consequência do anabolizante?] Então, é consequência, mas não foi o anabolizante que matou! [Você chegou a ter algum problema de retenção de líquido?] Sempre tem, mas eu tenho meu diurético!

Esse desdém certamente deixaria Jorge furioso, mas é bem ilustrativo de seus argumentos, já que, para ele, o problema é que tem

muita gente leiga aí, que não sabe nem o que está fazendo...95% são adeptas do Broscience! [...] Às vezes eu entro nesses blogs para dar um pouco de risada, aí a pessoa: “nunca tomei nada, o que vocês recomendam?” Aí vem neguinho botando uma lista de troços pra pessoa tomar que eu nunca tomei na minha vida! “Iniciante tem que tomar isso, isso, isso e isso”, aí eu, “gente, que absurdo!” Eu que estou macaco velho já na história, não tomo aquilo tudo!

Os efeitos adversos se tornam consequências de três situações: (1) o recurso à broscience, maneira jocosa como o atleta se refere às prescrições e explicações sobre o uso em fóruns da internet, uma espécie de ciência paralela “dos brothers”; (2) um erro médico, já que é comum entre os usuários a argumentação de que a medicina é hipócrita e preconceituosa com o uso, repetindo informações incompletas ou mesmo falsas; e (3) a falta de disciplina, condição para a obtenção de resultados favoráveis. Assim, Jorge desconstrói efeito por efeito. Acne? “drogas feitas em fundo de quintal”; “suplemento vagabundo”; “comer porcaria”. Crescimento excessivo de pelos? “o cara preferiu raspar, começou a crescer. É porque raspou”. Calvície? “Aí você tem que ver se é da alimentação ou se é da droga vagabunda que o pessoal está usando, ou se está tomando demais”. Problemas de ereção, libido, atrofia testicular? “É do mal uso! Neguinho vai, fica tomando um ano, um ano e meio. [...] Aí, para de tomar, a produção de testosterona dele estava zerada”. Problemas no fígado? “o cara senta o pau no frango que é uma ignorância! [...] E isso aí sobrecarrega o fígado [...] é o conjunto, é o anabolizante, é a má alimentação”. Ginecomastia? “um médico [...] mandou ele tomar HCG [...] você tá jogando três Durateston por semana, você já tá tendo aromatização. O excesso disso já tá virando estrogênio. Você ainda vai e me joga estrogênio pra dentro?”.

Outros homens apresentam a diferença em relação ao “outro” na forma de uma vantagem moral ou intelectual, como Sílvio:

Você vai encontrar gente que faz realmente um culto ao corpo excessivo e fica completamente bitolado nisso, e outras pessoas que eram, como no meu caso, era uma coisa mais de autoestima, de superação de si mesmo, até mais para se auto aceitar, [...] mas também tem as pessoas que, de fato, estão ali por outros motivos.

Ou seja, para Sílvio, as pessoas que estão ali por esses “outros motivos” é que são o problema. Sílvio reivindica o discurso da “superação de si”, os outros o fazem pelo “culto ao corpo excessivo”, valorado negativamente. De fato, parece que os homens encontram diversas maneiras de disputar masculinidade. Entre os trans, por exemplo, algo que se repetiu em todas as entrevistas foi a denúncia da reprodução acrítica de um estereótipo de masculinidade, considerado negativo.

Eu acho que eles estão é querendo ser homens cis, na verdade. Estão querendo fazer uso de outras coisas aí do universo masculino [...] se mostrar o cara fodão, macho alfa, sabe? [...] tem também caras que falam que só começa a ser homem depois que toma testosterona, porque aí ele vai ser homem porque ele está com testosterona no corpo (Augusto).

Ao se apresentarem como “machos alfa”, esses homens não estariam apenas reproduzindo uma masculinidade sexista, mas também fazendo um “uso errado”. Ele continua:

Acontece que tem os caras que usam a testosterona de maneira irregular, e nem todo organismo está preparado. [...] O que acontece é que as pessoas nem sempre fazem uso como o médico manda, tomam de uma maneira diferente e acaba acarretando problemas [...] depois tem AVC, tem derrame, tem um monte de coisa.

Logo, também entre os trans, quem morre é o outro que “não sabe tomar”. O mais interessante nesse comparativo é perceber como esse “outro” trans é aquele que reproduz a masculinidade hegemônica, representada, nas palavras de Flávio, pelo “homem cis branco hetero”. Independente de diferenças pontuais, a conclusão que podemos tirar é que o “outro” costuma ser uma figura hipermasculina, no sentido que algum dos atributos da masculinidade estará hiperbolizada nessa experiência; o “outro” representa o excesso, o exagero, o que passou do ponto. Em suma, ao “outro” falta a característica mais essencial do homem moderno apontada por Mosse (1996MOSSE, G. L. The image of man: the creation of modern masculinity. Nova York: Oxford University Press, 1996.): o autocontrole.

Considerações Finais

É interessante notar como a descrição desse outro (exagerado, inexperiente e/ou indisciplinado) é decorrente de uma posição relativa dos homens frente a diferentes imagens de masculinidade. George Mosse (1996MOSSE, G. L. The image of man: the creation of modern masculinity. Nova York: Oxford University Press, 1996.) descreve como a masculinidade depende, para se estabelecer como norma, da comparação com um contratipo (countertypes), que concentra as características consideradas negativas. Seguindo Raewyn Connell (2005CONNELL, R. Masculinities: second edition. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2005.), atributos serão considerados hegemônicos ou subordinados a partir da localização relativa dos homens numa interseção entre diferentes marcadores sociais da diferença. Assim, características que eram apontadas como muito positivas num contexto, para um certo tipo de homem, eram justamente aquelas descritas como indesejadas por outros. O que escapava ao desejado era o que pertencia ao “outro”.

A discussão aqui proposta é uma contribuição para a promoção da saúde e prevenção de agravos no que tange ao uso da testosterona. Dialogando com Farias, Cecchetto e Silva (2014FARIAS, P. S.; CECCHETTO, F.; SILVA, P. R. P. Homens e mulheres com H(GH): gênero, masculinidades e anabolizantes em jornais e revistas de 2010. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 417-446, jan./jun. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8645128 >. Acesso em: 13 set. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
), um tabu em abordar com franqueza esse uso, a partir de um temor da “apologia ao uso de drogas”, leva a uma dificuldade de diálogo com os usuários e a uma fragilidade na formulação de políticas e ações de saúde. “Se a ANVISA proibiu, é bom”, dizia um meme que circulava entre alguns usuários, o que explicita a distância entre o discurso oficial da ciência e da saúde e o cotidiano do usuário. Portanto, uma resposta eficaz deve considerar a experiência vivida dos usuários que se consideram aptos a gerenciar o risco sanitário de suas práticas. É possível pensar ações em saúde que pareçam menos estereotipadas e preconceituosas, como diversas vezes foram qualificadas as falas dos profissionais de saúde durante a pesquisa.

Agradecimentos

Agradeço a leitura atenta e os comentários precisos das/os pareceristas, incorporados na versão final deste artigo.

Referências

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  • VALE DE ALMEIDA, M. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século, 2000.
  • 1
    A pesquisa foi conduzida com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • 2
    Vale ressaltar que um “mito de invulnerabilidade” é frequentemente associado à masculinidade hegemônica, inclusive fundamentando políticas de saúde voltadas para os homens, como, por exemplo, na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (Princípios e Diretrizes). Brasília: Ministério da Saúde, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_atencao_homem.pdf >. Acesso em: 13 set. 2021.
    https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
    ).
  • 3
    A tese, intitulada “Testosterona: as múltiplas faces de uma molécula”, foi defendida em 2017, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-Uerj), sob orientação de Jane Araújo Russo.
  • 4
    A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa em 2016, registrada na Plataforma Brasil sob o número CAAE 48725515.8.0000.5260.
  • 5
    Nos trechos de entrevista, uso itálico para diferenciar de citações da literatura. Os nomes dos interlocutores são fictícios para garantir o anonimato.
  • 6
    “Entre os mecanismos de controle mais comuns da fisiologia animal está o feedback (ou retroalimentação) negativo, que, de forma leiga, se daria da seguinte maneira: ao identificar o excesso de uma determinada substância, uma alça metabólica é ativada no sentido de inibir a via de produção de tal substância. De forma análoga, pode-se também estimular a produção de outra substância que inative ou degrade aquela em excesso, e constantemente ocorrem ambos os processos simultaneamente.” (Tramontano, 2017aTRAMONTANO, L. A fixação e a transitoriedade do gênero molecular. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 23, n. 47, p. 163-189, jan./abr. 2017a. DOI: 10.1590/S0104-71832017000100006
    https://doi.org/10.1590/S0104-7183201700...
    , p.181).
  • 7
    Em suas últimas edições, tanto o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) quanto a Classificação Internacional de Doenças (CID-11) passaram por reformulações no tratamento dado à transexualidade e travestilidade. No DSM-5, o diagnóstico presente é “disforia de gênero”, focalizando o aspecto do sofrimento resultante da incongruência entre identidade e corpo (e não na incongruência em si). Já no CID-11, “incongruência de gênero” aparece no capítulo de condições relacionadas à saúde, não patológicas, como a gravidez. A efetividade real dessas transformações nas práticas de saúde é algo que só poderá ser observado ao longo dos próximos anos. Para uma discussão específica sobre a realidade brasileira, ver Almeida e Murta (2013ALMEIDA, G.; MURTA, D. Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 14, p. 380-407, 2013. DOI: 10.1590/S1984-64872013000200017
    https://doi.org/10.1590/S1984-6487201300...
    ).
  • 8
    Refere-se à desidroepiandrosterona, um androgênio de ação mais discreta que a testosterona.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2021
  • Revisado
    27 Jul 2021
  • Aceito
    03 Set 2021
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