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Reflexões acerca da gestão em saúde em um município do sul do Brasil1 1 Este trabalho compõe parte das produções provenientes do Projeto de Pesquisa “Práticas de gestão como instrumento para a formulação de políticas públicas de saúde: a experiência de Sapucaia do Sul”, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) por aprovação na Chamada MCTI /CNPq /MEC/CAPES nº 07/2011.

Health management’s reflections in a southern Brazil city

Resumos

Este artigo busca aprofundar o conhecimento acerca de conceitos de gestão na saúde coletiva e refletir sobre práticas na área, com base na experiência de Sapucaia do Sul (RS). Considerando a complexidade inerente à proposta do Sistema Único de Saúde (SUS), o texto articula teorias que dão visibilidade para modos de gestão que contemplem ações macro e micropolíticas, fortalecendo a efetivação dos princípios do SUS. Nesse sentido, encontrou-se inspiração no pensamento de Koselleck e Morin como potencializador da análise. A contribuição de Morin se dá por meio de operadores conceituais da Teoria da Complexidade, que apontam movimentos de articulação, interação e transformação. Já Koselleck proporciona as seguintes categorias: espaços de experiência e horizontes de expectativas, favorecendo a reflexão, devido à ênfase sobre a análise da construção dos significados dos conceitos em contexto. Desafios de gestão são apresentados em relação à função de administrar, planejar e otimizar interesses do estado e de consumo da saúde, articulando a dimensão política com a técnico-científica. Nesse sentido, pode ser observado um planejamento em saúde que envolve a implementação do apoio institucional, o incentivo à participação popular e o desenvolvimento de ações de educação permanente em saúde que resultam em um cuidado mais humanizado. É importante, ainda, avançar em estudos que identifiquem bases epistemológicas na gestão da saúde para favorecer a identificação de teorias que possam influenciar e justificar tecnicamente as decisões políticas, abrindo espaços dialógicos democráticos para alcançar avanços no SUS.

Gestão em Saúde; Planejamento em Saúde; Sistema Único de Saúde


This article seeks to deepen knowledge on management concepts in collective health and think through practices in the area, based on the experience of Sapucaia do Sul, Rio Grande do Sul, Brazil. Considering the complexity inherent to the proposal of the Brazilian National Health System, the text links theories that provide visibility to management modes that cover macro- and micropolitical actions, strengthening the deployment of the System principles. Thus, we found inspiration in Koselleck and Morin’s thought as booster of analysis. Morin’s contribution takes place by means of conceptual operators of the Complexity Theory, which point out movements of interconnection, interaction, and transformation. Koselleck provides the following categories: experience spaces and expectation horizons, encouraging reflection, due to the emphasis on the analysis of meaning construction for concepts in context. Management challenges are presented in relation to the function of managing, planning, and optimizing the State’s interests and those related to health consumption, interconnecting the political dimension to the technical-scientific one. So, we can observe a health planning that involves the implementation of institutional support, the encouragement to popular participation, and the taking of continued health education actions that result in a rather humanized care. It is also worth going further in studies that identify epistemological bases in health management to favor the identification of theories that can influence and justify on technical terms the political decisions, opening democratic dialogic spaces to achieve advances in Brazilian National Health System.

Health Management; Health Planning; Brazilian National Health System


Introdução

Este artigo tem como proposta discutir e aprofundar concepções e conceitos sobre processos de gestão na saúde coletiva.Com isso, pretende-se compartilhar ideias, interesses, desejos, práticas e experiências que auxiliem pesquisadores, trabalhadores e gestores nas reflexões e práticas cotidianas em saúde especialmente no que se refere à gestão nesse campo.

Para realizar tal proposta, foi desenvolvido o presente relato de experiência, em que foram analisados processos relativos a práticas de gestão de um município no sul do Brasil. O relato de experiência deve privilegiar o registro de situações e questões relevantes sobre o tema enfocado, além de possibilitar o aprofundamento e a ampliação das discussões. Na medida do dinamismo e da complexidade associadas às questões relativas à gestão no campo da saúde pública brasileira, fica evidente a necessidade de produzir reflexões teóricas sobre as práticas desenvolvidas nessa esfera de atuação. No município pesquisado, Sapucaia do Sul, a gestão se depara com a função de administrar, planejar e otimizar interesses do estado e de consumo da saúde articulando a dimensão política com a técnico-científica.

Os desafios na área da gestão são analisados com referência às proposições de Morin (1999aMORIN. E. Por uma reforma do pensamento. In: MORIN, E.; PENA VEGA, A.; NASCIMENTO, E. O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, 1999a. p. 21-34., 2002MORIN. E. Ciência com consciência. 6. ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2002.), que evidenciam a complexidade dessas práticas e a necessidade de refletir criticamente sobre suas rotas, teorias e justificativas. Com isso, são consideradas as relações entre os atores do Sistema Único de Saúde (SUS), percebidos como protagonistas da gestão, independentemente da ocupação de lugares formalmente definidos. As reflexões propostas são complementadas com as categorias: espaços de experiência e horizontes de expectativas descritas por Koselleck (2006)KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-RIO, 2006., que contribuem na compreensão das variadas práticas que se colocam na saúde.

Complexidade das práticas de gestão do SUS

A investigação acerca dos processos de gestão em saúde se adensa à medida que aprofundam-se os debates apoiados no compartilhamento de experiências e o conhecimento produzido sobre o assunto. São muitos e significativos os desafios que se estabelecem nas experiências no campo da saúde coletiva associada à assistência, ao ensino, à pesquisa, assim como à gestão. Além disso, se delineia em todas essas práticas um desafio contínuo e comum: prosseguir às investigações acerca das possibilidades de efetivação dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), entendido como um sistema complexo (Scarparo, 2005SCARPARO, H. B. K. Psicologia comunitária no Rio Grande do Sul: registros da construção de um saber-agir. Porto Alegre: Edipucrs, 2005.; Bedin, 2010BEDIN, D. M. Passos e descompassos: práticas em saúde mental na perspectiva da integralidade. 2010. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.; Bedin e Scarparo, 2011BEDIN, D. M.; SCARPARO, H. B. K. Integralidade e saúde mental no SUS à luz da teoria da complexidade de Edgar Morin. Psicologia: Teoria e Prática, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 195-208, 2011.) e em construção.

Especificamente no que se refere à gestão, podem ser observadas várias possibilidades e arranjos. Estes envolvem desde os planejamentos normativos até outras práticas com metodologias pouco estruturadas. Considerando o caráter complexo que caracteriza a questão, descarta-se de início o interesse pelos normativos (Testa, 1987TESTA, M. Estrategia, coherencia y poder en las propuestas de salud: parte I. Cuadernos Médico Sociales, Rosario, v. 38, n. 4, p. 3-24, 1987.), visto que se mostram necessárias outras práticas dialógicas que busquem a concretização de acordos e compromissos mantenedores dos princípios do SUS, que vislumbram relações democráticas e participativas na construção de práticas voltadas para o cuidado integral no campo da saúde.

Os princípios norteadores do SUS baseiam-se em conceitos que colocam, lado a lado, aspectos operacionais e doutrinários (Brasil, 2000BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília, DF, 2000.). Os operacionais implicam nos processos de busca pela descentralização, participação dos cidadãos, regionalização e hierarquização. Os doutrinários referem-se à universalidade, à integralidade, à igualdade da assistência, à preservação da autonomia, entre outros (Brasil, 1990aBRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990a. p. 18055., 1990bBRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1990b. p. 25694.).

Esses princípios abrem espaços para a criação, pois consideram a complexidade atribuindo-se relevância em investir em uma compreensão do mundo que não seja linear, mas dinâmica e articulada contínua e diversamente. Morin (2002)MORIN. E. Ciência com consciência. 6. ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2002. descreve operadores conceituais que servem como indicadores para se pensar os diversos fenômenos associados a um objeto. Dentre eles os princípios: dialógico, recursivo e hologramático. O princípio dialógico é o entendimento dos fenômenos como simultaneamente antagônicos, concorrentes e complementares. O princípio recursivo afirma que os efeitos de um processo são também co-produtores desse processo. Finalmente, o princípio hologramático propõe que a parte está no todo, assim como o todo pode ser identificado na parte.

A partir desses operadores conceituais fica evidente a premência de considerar os limites das concepções lineares de causa-efeito. Como decorrência, evidencia-se a fragilidade das perspectivas fragmentadas, das propostas de generalizações e de verdades absolutas ainda presentes nas práticas de saúde. Contínuos processos de transformação se impõem ao enfrentarmos os desafios de orquestrar a gestão da saúde, visto que cada serviço e cada servidor desenvolvem trabalhos complementares, muitas vezes concorrentes e antagônicos, e representam em si toda a rede, afetando e sendo afetados por ela. Ao mesmo tempo, experiências e expectativas diversas configuram projetos e práticas multidirecionados.

A complexidade mencionada por Morin (2002)MORIN. E. Ciência com consciência. 6. ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2002. implica, então, compreender os fenômenos de diferentes perspectivas, uma vez que diversos sentidos podem estabelecer-se em variados contextos e para diferentes protagonismos. Desse modo, é relevante refletir sobre os processos de construção dos fenômenos, considerando os significados dos conceitos a eles associados. Nesse sentido, o apoio nas categorias espaços de experiência e horizontes de expectativas (Koselleck, 2006KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos modernos. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-RIO, 2006.) valoriza a articulação de diferentes tempos/lugares no processo de produção de saberes sobre o tema e o contexto. A “experiência” aglutina o passado e o presente, pois os acontecimentos vividos podem ser recordados. A “expectativa”, por sua vez, une presente e futuro, pois acontece no presente e aponta para o que ainda não se viveu. A justaposição entre experiências e expectativas influencia as percepções, prospecções e o planejamento na saúde. Tal abordagem remete ao entendimento da complexidade do SUS, já que as práticas variam de sujeito para sujeito, o que implica considerar a dinâmica da complexidade em contexto.

Exercer a gestão do SUS é uma tarefa complexa, pois envolve incontáveis e incontroláveis relações. É uma tarefa desenvolvida por pessoas com histórias únicas, com experiências e expectativas que, por sua diversidade, provocam encontros dialógicos. Essas diferentes experiências geram percepções antagônicas e concorrentes sobre a gestão e, por isso, podem ampliar seu entendimento, complementando-se. A construção dos conceitos de gestão, por sua vez, aponta para possíveis mudanças de sentido do termo, dependendo do tempo histórico vivenciado por cada gestor. Isso mostra a dinamicidade das compreensões dos conceitos, uma vez que, recursivamente, novas experiências criam novas formas de conceber a gestão e essas novas formas levam a novas práticas, em um circuito incessante.

Todos esses constructos levam a uma compreensão de que os modos de gestão da saúde coletiva não podem ser concebidos como projetos fáceis ou simples de desenvolver, implementar e consolidar. Considerando que a “formulação de políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real” (Souza, 2007SOUZA, C. Estado da arte da pesquisa em políticas públicas. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. p. 65-86., p. 69), é útil pensar na relevância da efetivação de espaços dialógicos para o estabelecimento de bases que sirvam de apoio para o planejamento das consequentes políticas de gestão. Tais espaços, por instituírem-se na relação, contemplariam as especificidades das experiências e expectativas de todos e de cada componente da rede.

Gestão da saúde coletiva: transformação de práticas, conceitos e saberes

A aproximação da lógica com o pensamento complexo, leva ao entendimento de que não existe a possibilidade de consolidar uma “verdade” ou uma generalização para nortear a gestão, como decorrência, não há um único meio correto de fazer gestão. A construção do conhecimento é marcada pela subjetividade dos atores que o produzem, o que impõe a experiência dialógica para a construção e estabelecimento de práticas sociais. Mesmo Popper (1987)POPPER, K. O realismo e o objectivo da ciência. Lisboa: Dom Quixote, 1987., marcado pelo racionalismo do século XX, já colocava que a compreensão de mundo é aprendida por meio da discussão com outros homens. Esse esforço resulta num processo singular e dinâmico de produção do conhecimento, em que a objetividade tão sonhada pela ciência é produzida nesse diálogo crítico entre sujeitos, ou seja, a objetividade é intersubjetiva.

Com base nessa compreensão, a ciência transforma-se permitindo mudanças que abrem espaço para a utilização de um conjunto de técnicas de pesquisa bastante amplo e diverso no campo da Saúde Coletiva no Brasil (Mattos, 2011MATTOS, R. A. Ciência, metodologia e trabalho científico (ou tentando escapar dos horrores metodológicos). In: MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. (Org.). Caminhos para análise de políticas de saúde. Rio de Janeiro: Faperj, 2011. p. 20-51.).

Essa reflexão convida a abandonar de vez aquela noção de que a ciência é uma forma de descobrir a verdade, de demonstrar o que de fato acontece. Essa trajetória no pensamento sobre a ciência nos incita a ver e compreender a ciência como um modo de produzir narrativas, um modo de conversar, um modo de construir argumentos (p. 26).

Essa compreensão de ciência é simultaneamente estimulante e desafiadora. Estimulante pela possibilidade de problematizar, posicionar-se e criar; desafiadora por demandar atos políticos transformadores. Tesser e Luz (2002)TESSER, C. D.; LUZ, M. T. Uma introdução às contribuições da epistemologia contemporânea para a medicina. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 363-372, 2002. também abandonam a ideia da fidelidade de dados independentes como único fundamento do saber, considerando a realidade vivida como sendo formada pela interação do ser com o mundo. A realidade, assim, é acessível a partir da ativa “coconstrução” (Tesser e Luz, 2002TESSER, C. D.; LUZ, M. T. Uma introdução às contribuições da epistemologia contemporânea para a medicina. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 363-372, 2002.) perceptiva (cognitiva) dos que as estudam; é norteada, direcionada e limitada pela estrutura biológica humana e pelo modo como os cientistas pensam, julgam e agem. Assim, as perspectivas de realidade se estabelecem a partir dos pressupostos cosmológicos, culturais e políticos de cada sujeito implicado.

O conhecimento sob forma de representação, mesmo o científico, está enraizado e ligado à comunidade humana específica que o produz, em termos culturais e sociológicos, não sendo parecido com uma fiel representação da natureza ou da realidade (Tesser e Luz, 2002TESSER, C. D.; LUZ, M. T. Uma introdução às contribuições da epistemologia contemporânea para a medicina. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 363-372, 2002., p. 368).

Além de não haver um método único capaz de decifrar e operar a gestão, as diferentes vivências dos sujeitos que se ocupam da gestão da saúde coletiva tornam desafiadora a tarefa de definir objetivos e metas gerais que estabeleçam aonde se quer chegar e como. Merhy (1995)MEHRY, E. E. Planejamento como tecnologia de gestão: tendências e debates sobre planejamento de saúde no Brasil. In: GALLO, E. Razão e planejamento: reflexões sobre política, estratégia e liberdade. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1995. p. 117-149. aponta distintas correntes de planejamento e indica que a execução de tarefas não pode estar descolada de um planejamento. É a ideia anti-Taylorista de pensar os processos, buscando garantir um SUS em acordo com seus princípios norteadores. É a percepção complexa do SUS, que faz com que ele seja visto como um holograma, como uma rede interdependente e interligada. Essa compreensão aponta para a necessidade de questionar o próprio sistema em sua formação linear e hierárquica. Pasche e colaboradores (2011)PASCHE, D. F.; PASSOS, E.; HENNINGTON, E. A. Cinco anos da Política Nacional de Humanização: trajetória de uma política pública. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 4541-4548, 2011. e Neves e Heckert (2010)NEVES, C. A. B.; HECKERT, A. L. C. Micropolítica do processo de acolhimento em saúde. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p.151-168, 2010. contribuem no debate sobre macro e micropolítica reforçando a ideia de que os processos de gestão e as práticas de cuidado não devem ser dissociadas e/ou subordinadas. A macropolítica é entendida como campo em que operam-se transformações de ordem política, econômica e social, enquanto a micropolítica, como o espaço de ação da ordem do individual e do subjetivo. Entretanto, é importante perceber nas duas instâncias “a indissociabilidade entre produção de saúde, produção de subjetividade e produção de mundo, considerando-se que os planos macro e micropolítico se codeterminam e se influenciam mutuamente” (Pasche e col., 2011PASCHE, D. F.; PASSOS, E.; HENNINGTON, E. A. Cinco anos da Política Nacional de Humanização: trajetória de uma política pública. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 4541-4548, 2011., p. 4543).

Além disso, é importante pensar que esses sujeitos que se ocupam da gestão não seriam apenas aqueles formalmente instituídos na função de gestores, mas, de fato, qualquer integrante do Sistema Único de Saúde, especialmente os trabalhadores. Nesse sentido, Cecilio (2001)CECILIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Abrasco: UERJ, IMS, 2001. p. 113-126. entende a integralidade e a equidade na saúde como fatores que levam a uma implicação geral e em uma rede que busque contemplar os princípios do SUS. Coloca que existem três espaços gestores com diferentes graus de governabilidade: o geral, o particular e o singular. O primeiro é ligado aos trabalhadores do Ministério da Saúde, o segundo aos trabalhadores das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde e o último aos trabalhadores dos serviços de atenção. O autor pondera:

se por um lado, há uma forte relação de determinação do espaço geral para o particular e deste para o singular, por outro é importante reconhecer que o espaço singular [...] pode trabalhar, e trabalha, com alto grau de autonomia, podendo gerar contra-vetores com capacidade de determinação das políticas definidas nos espaços “superiores”, em particular se for capaz de escutar e fazer ressoar as necessidades trazidas pelos usuários (Cecilio, 2001CECILIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Abrasco: UERJ, IMS, 2001. p. 113-126., p. 123).

Trata-se de uma trama complexa que envolve relações dialógicas, com tensionamentos recursivos levando a ações que, por fim, se complementam e se diferenciam. Cada espaço gestor apresenta condições de dar visibilidade às necessidades em saúde de uma população. O geral e o particular são fontes para a tomada de decisões, pois encontram maior facilidade em identificar indicadores epidemiológicos e demandas e disputas de atores sociais em arenas políticas, revelando grupos excluídos. Porém, de modo a garantir a integralidade, a equidade e a universalidade, o espaço singular é fundamental por identificar necessidades únicas, individuais e subjetivas que necessitam ser contempladas nas políticas de saúde (Cecilio, 2001CECILIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Abrasco: UERJ, IMS, 2001. p. 113-126.).

É o desafio de estabelecer um cuidado em rede a partir da micropolítica na qual se é atento aos espaços singulares e à macropolítica destinada aos espaços gerais e particulares, mas referindo-se ao SUS em sua totalidade. Dessa forma, se constituem fluxos e articulações potentes para religar os saberes qualificando o sistema (Morin, 2010MORIN. E. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.). Cada parte tem sua contribuição e compromisso, no entanto, examinando complexamente as dinâmicas comunicacionais, facilmente conclui-se que nem sempre há convergência nos processos e articulações.

Um dos obstáculos à comunicação encontra-se na própria formação dos trabalhadores que, profissionalizada ou não, acabou especializando o conhecimento e favorecendo desconexões entre parte e todo. Isso leva a uma apropriação perversa de certos saberes, garantindo reservas de mercado, além da elevação no status dos profissionais (Diniz, 2001DINIZ, M. Os donos do saber: profissões e monopólios profissionais. Rio de Janeiro: Revan, 2001.). Leva também à hierarquização das diferenças, o que gera preconceitos impeditivos do cuidado integral. Por exemplo, a ideia a priori de que todo o profissional é “superior” e digno de confiança, “por preocupar-se com o bem-estar da comunidade em troca de justos e modestos honorários” (Campos, 2001CAMPOS, E. Prefácio. In: DINIZ, M. (Ed.). Os donos do saber: profissões e monopólios profissionais. Rio de Janeiro: Revan: UCAN, Iuperj, 2001. p. V-VIII., p. VI).

Em que pesem as mudanças curriculares recentes relativas à formação/educação dos profissionais de saúde, bem como diferentes maneiras de ensinar e aprender, ainda persiste um ensino direcionado aos aspectos cognitivos e instrumentais. Com isso, o SUS finda por consumir recursos em capacitações e cursos de formação para (des)construir perfis profissionais em desacordo com seus princípios. Como lembra Moysés (2003)MOYSÉS, S. J. A humanização da educação em odontologia. ProPosições, Campinas, v. 14, n. 1, p. 40-74, 2003.:

é cada vez mais premente o necessário desenvolvimento de competências quanto às dimensões ética, política, econômica, cultural e social do seu trabalho. O foco deve ser deslocado para a promoção de saúde, no seu sentido integral que inclui até mesmo a redução de danos, mas com aptidões para trabalhar na saúde coletiva, familiar e individual (p. 35).

Ao mesmo tempo, diferentes cenários de aprendizagem, tanto no espaço acadêmico como no de prática, contam com inovações na formação de outro habitus profissional. Nesta direção, autores destacam que “todas as fases educativas na formação de uma equipe multiprofissional [...] são permeadas atualmente pelo discurso da reorganização dos modelos de atenção e das práticas de saúde” (Mello e col., 2010MELLO, A. L. S. F.; MOYSÉS, S. T.; MOYSÉS, S. J. A universidade promotora de saúde e as mudanças na formação profissional. Interface, Botucatu, v. 14, n. 34, p. 683-692, 2010., p. 683-684). Nesse sentido, a experiência da Secretaria de Saúde de Sapucaia do Sul pode contribuir com esforços para superar a fragmentação dos processos de trabalho, que têm ocorrido por meio da aproximação de gestores, trabalhadores e usuários.

Experiência de gestão em um município do sul do Brasil

Sapucaia do Sul é um município gaúcho, distante 30 km da capital Porto Alegre, com 130 mil habitantes (IBGE, 2010IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: resultados do universo. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=432000>. Acesso em: 20 nov. 2012.
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil....
), com atividade econômica predominantemente industrial. Até 2012, o município contava com 14 Unidades de Saúde da Família, com cerca de 42% de cobertura; cinco Unidades Básicas; uma Unidade Móvel; um Núcleo de Apoio ao Saúde da Família (NASF); dois Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); uma Clínica de Saúde da Mulher; um Ambulatório de Infectologia; um Unidade Central de Especialidades; um Serviço de Pronto Atendimento; e um Hospital Municipal.

Entre 2009 e 2012 houve investimentos direcionados à qualificação das estruturas físicas das unidades de saúde, à garantia de número adequado de trabalhadores nas Unidades de Saúde e à implementação da política de educação permanente aos trabalhadores da saúde, com ênfase na Política Nacional da Atenção Básica (PNAB) e na de Humanização da Saúde.

Também ganharam ênfase as áreas temáticas da saúde mental e a da saúde da mulher (especialmente no cuidado ao período gestacional), em função do relato dos trabalhadores de grande demanda dos usuários e também pela precária sistematização de linhas de cuidado para essas questões. Tais movimentos resultaram na qualificação e ampliação dos serviços especializados nessas áreas, além de sensibilizar as equipes dedicadas à atenção primária para a abordagem desses temas e, principalmente, para estreitar e construir redes de cuidado entre os serviços da saúde e outros setores.

Em 2011 optou-se por investir no debate acerca do processo de trabalho nas equipes da atenção primária, fomentado a partir da implantação do Apoio Institucional na Atenção Primária à Saúde. O Apoio Institucional (AI) é uma estratégia de gestão que visa produzir espaços coletivos de decisão e de trocas, provocando a ressignificação do conhecimento da equipe apoiada sobre o seu trabalho e a capacidade de análise e intervenção dos processos que compõem o seu fazer. Para Campos (2000)CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000., o AI não opera de forma verticalizada, impondo protocolos e normas às equipes como se poderia esperar de um gestor. Sem negar o encontro de diferentes poderes, desejos e interesses, o apoiador institucional reconhece a complexidade do trabalho coletivo e toma problemas concretos, desafios e tensões do cotidiano como “matéria-prima” para o seu trabalho, buscando facilitar a conversão de situações paralisantes em situações produtivas.

A implantação do AI na Secretaria Municipal de Saúde de Sapucaia do Sul foi uma inovação que gerou tensionamentos ao propor mudanças paradigmáticas no modelo de gestão local. Naquele momento a coordenação da Atenção Primária em Saúde era organizada por núcleos profissionais (com coordenação de enfermagem, médica, odontológica, e dos demais profissionais) e contava com referências técnicas em áreas programáticas e ciclos de vida (saúde da mulher, da criança e do adolescente, do idoso e de pessoas portadoras de deficiência). A proposta do AI implicava em uma reorganização tendo como base a “regionalização” do município, isto é, um recorte do território que permitisse à coordenação maior proximidade com as equipes e a definição de regiões de responsabilidade da gestão. Com isso, a partir de reuniões colegiadas, foi realizada uma proposta de quatros regiões de saúde e sugeriu-se a formação de duplas de Apoiadores Institucionais por região, sendo um integrante da coordenação e um da referência técnica. A proposta causou desconfortos, já que desacomodou fazeres e trouxe uma nova lógica operacional. A ideia era ampliar as possibilidades de reflexão sobre os processos de trabalho junto às equipes, ampliando o conhecimento acerca das necessidades territoriais, além de reduzir práticas corporativas e fragmentadas, olhando para os trabalhadores das unidades de saúde como equipes e não somente como realizadores de procedimentos de suas áreas de formação.

Após a definição das duplas, os Apoiadores Institucionais passaram a conhecer suas equipes de referência e ficaram estabelecidas visitas às unidades com frequência aproximada quinzenal. Apesar de inicialmente haver receio dos trabalhadores com a presença dos Apoiadores Institucionais, como se fossem agentes fiscalizadores, gradualmente esse modelo estabeleceu maior aproximação dos trabalhadores com os gestores da Secretaria de Saúde, diminuindo dificuldades comunicacionais e aumentando o fluxo de informações de necessidades de cada lado. Além disso, o Apoio Institucional fomentou, junto às equipes, a importância da implantação do Acolhimento nas Unidades de Saúde, aprimorando e ampliando o acesso aos serviços de saúde pelos usuários, já que até aquele momento se trabalhava com a distribuição de fichas, isto é, centrado na atenção médica, com um número de consultas pré-definidas e atendimento por ordem de chegada.

O Acolhimento na Saúde é uma postura adotada por todos os membros da equipe na escuta do usuário. Estabelece-se na busca por relações humanizadas e no reconhecimento do protagonismo do usuário no processo de saúde e doença e na pactuação do partilhamento da responsabilidade pela resolução de suas demandas, com ativação de redes de compartilhamento de saberes. O debate quanto ao acolhimento junto aos trabalhadores pode ser considerado uma ferramenta que qualifica a escuta do trabalhador, porque, ao mesmo tempo em que o empodera e instrumentaliza para sensibilizar-se a novas formas de acolher as demandas, proporciona a identificação das necessidades que nem sempre estão expressas.

Cecilio (2001)CECILIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Abrasco: UERJ, IMS, 2001. p. 113-126. sugere diferenciar a demanda da necessidade, pois a demanda é o pedido explícito, podendo ser por consultas ou por exames, e a necessidade é o que está oculto no pedido, pode ser de melhores condições de vida, de trabalho ou de relações interpessoais mais satisfatórias. O autor salienta que tudo está ali na “‘cestinha de necessidades’, precisando ser, de alguma forma, escutado, traduzido, pela equipe” (p. 116).

No caso de Sapucaia do Sul, esses tipos de demandas são bastante comuns. Quando não ocorre a identificação da necessidade, as possibilidades de execução de ações integrais de prevenção e promoção ficam reduzidas ou até inexistentes, já que o foco volta-se para a rápida resolução de situações. Contraditoriamente, visando atender demandas dos usuários, equipes definem modos de funcionar como, por exemplo, horários e turnos específicos para vacinas, curativos e demais procedimentos que não contemplam a integralidade da atenção. Assim, o acolhimento abandona sua condição inicial de esforço da equipe em traduzir e atender as necessidades captadas em sua expressão individual e transforma-se em ferramenta com potencial de fazer interferência ao que Feuerwerker (2005)FEUERWERKER, L. C. M. Modelos tecnoassistenciais, gestão e organização do trabalho em saúde: nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do SUS. Interface, Botucatu, v. 9, n. 18, p. 489-506, 2005. chama de modelo hegemônico de saúde. Isso ocorre na medida em que coloca em tensão permanente a saúde como direito do cidadão e a saúde como mercadoria.

Esse modo de demandar apresentado na fala dos usuários (solicitação de consultas e exames, p.ex.) pode ser entendido como resultado de um processo construído socialmente, baseado no modelo hospitalocêntrico e médico centrado, que perdura há várias décadas, desde meados dos anos 1970, identificando saúde com salvação e ritualizando formas terapêuticas e de cura (Laplantine, 1986LAPLANTINE, F. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 1986.). É preciso dizer que ainda persiste em nossa sociedade tal entendimento e enfoque, embora, conforme já sinalizado anteriormente, há mudanças acontecendo tanto no âmbito acadêmico como no dos serviços. Trata-se, então, de pensar essa realidade e pôr em evidência o que ela não diz.

No modelo citado os usuários buscavam os serviços já em estado agravado da doença, recebendo, em geral, atendimento médico. Observa-se, então, que existe uma epistemologia hegemônica, baseada na biomedicina, caracterizada por um paradigma biomecânico, positivista e representacionista, centrado nas entidades “doenças da nosografia” (Tesser e Luz, 2002TESSER, C. D.; LUZ, M. T. Uma introdução às contribuições da epistemologia contemporânea para a medicina. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 363-372, 2002.). Essa lógica de funcionamento tem origem no século XVII, com base no pensamento cartesiano-newtoniano. Na época, buscava-se a compreensão da natureza e dos seres humanos como se fossem máquinas previsíveis e controláveis. Iniciaram-se, dessa forma, modos de pesquisa mecanicistas em áreas como a biologia, medicina, psicologia e economia na busca por leis naturais (Capra, 1982CAPRA, F. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. 25. ed. São Paulo: Cultrix, 1982.). Na área da saúde, os reflexos desse modelo levaram à construção de uma concepção de saúde em que apenas os médicos obtinham o conhecimento necessário para promover ações em saúde. Como decorrência, ficou reforçada, para os usuários, a cultura de que as ferramentas biomédicas apresentavam maior resolutividade e seriedade ganhando, assim, maior prestígio, popularidade e confiabilidade.

Na mesma linha, Illich (1975)ILLICH, I. A expropriação da saúde: nemesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. tece críticas ao modelo biomédico, que medicaliza a vida, tratando os sujeitos por meio do reparo de “peças” disfuncionais. O autor coloca que esse modo industrializado promove ações iatrogênicas, isto é, ações que acarretam mais danos do que benefícios. Além disso, esse modelo desqualifica as influências sociais e culturais das populações, ocasionando a perda da capacidade de ação autônoma das pessoas perante a enfermidade, a dor e o envelhecimento.

Mesmo ocorrendo críticas, historicamente o modelo biomédico de fazer saúde tem ganhado destaque, sendo considerado em muitos espaços como o único modo válido de se fazer e pensar as ciências da saúde. Sustenta-se dessa forma enquanto episteme, isto é, como regime de verdade (Burke, 2003BURKE, P. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.). Nessa abordagem a gestão se depara com a necessidade de enfrentar resistências frente às novas proposições e ressignificar o sentido do cuidado em saúde. Um exemplo disso pôde ser observado, nessa experiência municipal, na medida em que muitos usuários expressaram descontentamentos com a implantação do acolhimento alegando que antes precisavam chegar às cinco horas da manhã na unidade, porém conseguiam garantir seu (ou quiçá de outra pessoa) atendimento médico para o mesmo dia. Isso traz à tona o desafio de estabelecer articulações entre a dimensão política com a técnico-científica, pois o impacto “negativo” percebido politicamente pode comprometer inovações no avanço das políticas sociais.

Para contrapor uma visão de saúde centrada no pronto atendimento são relevantes as experiências que considerem pactuações entre gestores e trabalhadores. Essas visam à construção de modelos que possam contemplar os pressupostos do SUS, garantindo a assistência em saúde ao mesmo tempo que se busca construir mudanças culturais. Identificar com maior segurança as necessidades em saúde já é em si uma mudança nos modos de pensar e fazer saúde que pode levar à qualificação e humanização dos serviços (Cecilio, 2001CECILIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Abrasco: UERJ, IMS, 2001. p. 113-126.). O Apoio Institucional em Sapucaia do Sul conseguiu colocar na roda esse diálogo e continuamente segue encontros que favorecem que o gestor e o trabalhador construam em conjunto planejamentos, fluxos, linhas de cuidado e redes de atenção na saúde, inclusive envolvendo outras secretarias (como a educação, o desenvolvimento social e o trabalho), de modo a construir ações intersetoriais com sinergia entre as políticas públicas (Inojosa, 2001INOJOSA, R. M. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP, São Paulo, n. 22, p. 102-110, 2001. Disponível em: <http://www.pucsp.br/prosaude/downloads/bibliografia/sinergia_politicas_servicos_publicos.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2012.
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). Isso contempla o princípio da integralidade ao mesmo tempo em que reflete as contribuições da teoria da complexidade para pensar as práticas de cuidado, pois, como coloca Morin (1999b)MORIN. E. Complexidade e transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental. Natal: EdufRN, 1999b., a vida está tecida em conjunto, não é possível separá-la. Questiona-se, com isso, não só a organização do SUS como todo o aparato governamental, fatiado por secretarias que aglutinam áreas do conhecimento.

Outro ponto fundamental no debate sobre a gestão macro e micropolítica do SUS envolve a participação da população. Se nas unidades de saúde o acolhimento com identificação de necessidade torna-se efetivo, encontra-se nelas abertura para espaços de estímulo à participação cidadã dos usuários. Em Sapucaia do Sul o AI também possibilitou a problematização desse ponto. Os gestores junto às equipes buscaram a construção de espaços de gestão participativa estimulando a criação de conselhos gestores locais, de espaços de educação popular, de ampliação de espaços de participação democrática, entre outros. Além do Conselho Municipal de Saúde, instituído em 1995, dois outros conselhos locais foram criados após a implantação do AI. Também realizou-se uma conferência de saúde precedida de pré-conferências regionalizadas e muitas assembleias comunitárias ocorreram em diferentes localidades do município.

O trabalho de estímulo à participação popular e ao controle social apresenta desafios em sua concretização em razão das formas que ainda predominam nas relações na saúde, baseadas no modelo biomédico hegemônico que “esquarteja” epistemologicamente o usuário e que propõe mudanças geográficas ou ritualísticas sem considerar transformações paradigmáticas (Tesser e Luz, 2002TESSER, C. D.; LUZ, M. T. Uma introdução às contribuições da epistemologia contemporânea para a medicina. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 363-372, 2002.). Esse modo caracteriza o usuário como paciente, isso é, passivo em seu processo de saúde. O saber biomédico determina as condutas que devem ser seguidas, por meio de prescrições que não considera o usuário como um cidadão.

Em Sapucaia do Sul, o AI propôs, junto às equipes da Atenção Primária, o debate sobre as possibilidades de modificação desse modelo biomédico, incentivando as equipes a perceber o usuário como ator do processo do cuidado em saúde. Com isso, aumentou a mobilização dos trabalhadores resultando na realização das referidas assembleias e na formação de conselhos gestores locais. Entretanto, identifica-se a dificuldade de manutenção desses espaços. Isso pode ocorrer pela inexpressiva participação dos usuários, visto que na maioria das unidades não foi possível constituir conselhos locais. A dificuldade pode ser também atribuída à impossibilidade de manter essa pauta em debate pelo AI e pelos trabalhadores. Cortes (2002)CORTES, S. M. V. Construindo a possibilidade da participação dos usuários: conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde. Sociologias, Porto Alegre, v. 4, n. 7, p. 18-49, 2002. coloca que, mesmo com limitações, as experiências no Brasil em alguns casos têm obtido êxito especialmente pelas características do SUS, pela relação dos trabalhadores com os usuários, pelas características dos movimentos populares e pela postura dos gestores.

Mesmo assim, gradualmente ganha espaço essa ação fundamental de incentivo a autonomia das pessoas que fazem uso ao mesmo tempo em que constroem o SUS. Baseando-se nas prerrogativas da Reforma Sanitária, pode-se dizer que a integralidade é a busca por qualificar a comunicação entre os atores (usuários, trabalhadores e gestores) na tentativa de identificar as necessidades em saúde permitindo um maior conhecimento de fatores que apontarão caminhos para o planejamento e organização dos dispositivos de saúde em uma rede de cuidados que amplie o acesso à saúde e também diminua as desigualdades sociais. Ficam marcados a diversidade de concepções, a complexidade do tema e o desafio de orquestrar todas as ideias para desenvolver um planejamento que leve ao alcance de resultados de interesses comuns.

Considerações finais

Análises e investigações devem seguir em andamento no cotidiano dos trabalhadores e gestores garantindo espaços para pensar as práticas e, a partir disso, produzir conhecimentos. Destacam-se os desafios colocados pela complexidade do tema, o que dificulta a realização de previsões e planejamento. O planejamento usualmente associa-se ao desejo de estabelecer metas e objetivos, na lógica da administração, isto é, lineares e estáticos. Isso parece trazer segurança, porém acaba mostrando-se inviável, caso queira manter os trabalhos na perspectiva da saúde coletiva que embasa as propostas do SUS, sugerindo que o planejamento deva incorporar processos democráticos contínuos e integrados às práticas.

Nesse sentido, como coloca Cecilio (2001)CECILIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Abrasco: UERJ, IMS, 2001. p. 113-126., ganha ênfase a importância da articulação entre a gestão micropolítica, de cada serviço, com a macropolítica, de todos os serviços e das políticas de estado, compondo a rede como um todo, incluindo a participação dos usuários no processo. É uma articulação complexa, visto que os movimentos micropolíticos recursivamente influenciam e são influenciados pelas ações macropolíticas. As ações dos trabalhadores e das equipes de saúde, integrando uma rede de cuidados, dialogicamente complementam a rede ao mesmo tempo em que a questionam e a modificam constantemente.

Por fim, mostra-se a importância no avanço em estudos que identifiquem bases epistemológicas na gestão da saúde como um caminho que pode aproximar o pensar e o fazer, já que essa aproximação favorece a identificação de teorias que podem influenciar e justificar as decisões tanto nos níveis micro, quanto macropolíticos. Isso leva a possibilidade de que sejam analisados os caminhos passados, presentes e futuros, de modo que seja possível em Sapucaia do Sul, ou em outros lugares que têm interesse em seguir aspectos preconizados no SUS, desenvolver uma gestão que concilie os interesses de todos os envolvidos (usuários, trabalhadores e gestores) abrindo espaços dialógicos democráticos para a construção e reconstrução do SUS.

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    Este trabalho compõe parte das produções provenientes do Projeto de Pesquisa “Práticas de gestão como instrumento para a formulação de políticas públicas de saúde: a experiência de Sapucaia do Sul”, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) por aprovação na Chamada MCTI /CNPq /MEC/CAPES nº 07/2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2013
  • Revisado
    11 Fev 2014
  • Aceito
    07 Mar 2014
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