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Buscar reconstituir a vida, criar defesas em relação à saúde

EDITORIAL

Buscar reconstituir a vida, criar defesas em relação à saúde

Foram várias as coisas das quais lembrei ao ler e visitar aqueles que chamarei aqui de "artigos âncora" desse número de Saúde e Sociedade. Estes "artigos-âncora" formam quase que um dossiê no qual se coloca em questão a (in)sanidade de situar a saúde no centro da construção do "normal e patológico" no tempo social contemporâneo. Recitando FOUCAULT e o biopoder, as novas normas do saudável vão cada vez mais amparadas na imagem do corpo como um território de intervenção técnica / tecnológica, montada sob uma concepção de "ciência" do corpo como um elemento biológico que aciona partes mecânicas, ideia inspirada na imagem do corpo "ex-machina" do passado. O passado, nesse caso, é a persistência da representação da ciência cartesiana que desvenda as ações para o funcionamento do organismo: máquina que precisa funcionar poupando reparos e ampliando o tempo útil, como um elemento que propulsione o consumo, fora do tempo histórico e das utopias de construção de um estado local/nacional ou das utopias de uma sociedade buscando superar a desigualdade e instituir uma justiça para respeitar a pluralidade e as diferenças. A atuação da "saúde" sobre os corpos os focaliza cada vez mais a partir de indivíduos desligados de qualquer relação de ambiente: histórico, social ou de diversidade humana, e internamente a partir de órgãos que precisam atingir uma determinada normatividade.

Essa linguagem talvez um tanto quanto forçada expressa a relação entre os quatro artigos iniciais, a saber: "Promoção da Saúde e seu alcance biopolítico: o discurso sanitário da sociedade contemporânea"; "Produção da Saúde como afirmação da vida"; "A Patologização do sedentarismo" e, fechando com o recurso necessário à história, "Belisário Penna, combatente: um capítulo da história da saúde pública brasileira".

O primeiro artigo traz talvez como um grande enunciado a proposta de discutir a "Promoção da Saúde", área que sempre teve a pretensão de conceber o "campo da saúde" como um dispositivo que pudesse ser discutido e acionado para além do fato biológico. A Promoção da Saúde é tratada aqui como uma estratégia central da "biopolítica" que age no sentido de esvaziar a perspectiva do "Estado de Bem-Estar Social". Culto à saúde, responsabilização individual, o consumo de saúde como uma estética de vida que regula e calcula o esporte, o lazer, o sexo e a religião são os elementos desse dispositivo tentacular da "Promoção", que, em lugar de trazer uma historicidade ou mesmo de forma mais restrita uma "ambiência" aos corpos, representa um ideário "neoliberal" através de noções como "estilo de vida", "empowerment", voltado ao aperfeiçoamento da vida biológica - a "zoé" grega que se recupera na forma da vida nua contemporânea na referência a pensadores como Agamben. Seriam a recuperação de autonomias, historicidades e a perspectiva de construção de uma vida sem constrangimentos uma nova utopia e forma de liberdade?

Nessa mesma perspectiva crítica, temos um ensaio que procura realizar uma articulação entre a Psicologia social e a Fenomenologia de um pensador contemporâneo, Levinas, como forma de crítica ao modelo biomédico; o ensaio oferece a contribuição da visão e de uma linguagem que não pretende evocativa, mas fiel à própria linguagem da filosofia que compõe a "Produção da Saúde como afirmação da vida"... Retomando o estilo do debate político-filosófico que construiu no passado (?) um campo como o da saúde coletiva, o ensaio pretende uma interlocução com a ação evocando o próprio Sistema Único de Saúde como o interlocutor com esse ensaio filosófico, que propõe a afirmação da vida em lugar da produção da saúde. Foucault aparece novamente, e o artigo encaminha-se para uma reflexão que passa por Nietzsche e traz a polêmica de Deleuze para uma linguagem cifrada, excessiva e reafirmativa no tom das locuções filosóficas. Ele traz uma argumentação convergente com o primeiro artigo, mas que é politicamente divergente quando toma para si uma interpretação quase que libertária dos termos da "promoção da saúde" incorporados às políticas de saúde, como formas de afirmação da vida que busca sair do estreitamento das ações sanitárias para uma necessária "alteridade", uma visão mais utópica de um modelo que se reduz à prática da doença.

"A Patologização do Sedentarismo" vem trazer com clareza quase que didática, através de um exemplo, as perspectivas em discussão nos artigos anteriores. De maneira muito lapidar expõe o rumo histórico tomado pela intervenção médica como modelo central da saúde nas sociedades ocidentais e discute sentidos que diferentes autores dão ao fenômeno da "medicalização" como a prática restrita e restritiva de transformar em "doença" questões socialmente mais amplas e complexas. A partir de um tom de exata ironia, o artigo mostra como a medicalização, exemplificada na aplicação do exercício físico como um "medicamento" de larguíssimo espectro, torna patológico tudo aquilo que não aplica o remédio do movimentar-se os corpos, solução cabal e definitiva para os males - físicos - da sociedade. Trata-se do exemplo mais amplo e didático das discussões até então aqui tomadas.

Por fim, a mão da história nos dirige a conhecer "Belisário Penna, combatente: um capítulo da história da saúde pública brasileira", paragem e passagem necessária para a reflexão. A história como evocadora de um contexto: a formação do estado nacional no Brasil é aqui tratada através de uma personagem transversal a um debate que transigia entre a racialização e a militância. Racialização da sociedade nos moldes do pensamento eugênico, como uma questão para o desenvolvimento, ou militância pela melhoria de um fator infraestrutural como é o "saneamento", naquele momento (e hoje ainda) vinculado à transmissão das endemias. O saneamento permanece altamente problemático no Brasil e no mundo contemporâneo mas é suscetível também de um entendimento muito complexo do que seja essa intervenção, trazendo à tona um embate na própria saúde pública: "sanear os corpos" X refletir sobre a construção social, urbana e ambiental do que são as condições de vida e de saúde. A evocação de Belisário Penna, além de nos trazer informações sobre as sociabilidades e os temas de sua época, traz no fundo a questão tratada nos artigos anteriores. Ela poderia ser evocada como uma antinomia das ações de saúde que acabam por tomar a direção de um saneamento dos corpos, de uma eugenia dos corpos e daqueles que representam o estilo de vida e moral saudáveis ao invés de uma compreensão histórica das condições de produção e consumo da vida e da saúde.

A seguir, os artigos que chamaríamos aqui de temáticos acabam por reconstruir nas suas particularidades, é interessante que se ressalte, uma saúde pública repleta de particularidades - essas grandes questões de fundo tratadas no dossiê inicial.

O artigo "As relações entre saúde e trabalho dos agentes de combate às endemias da FUNASA: a perspectiva dos trabalhadores" não vai tão longe na história como aquele sobre Belisário Penna, mas exemplifica como o desmonte realizado pela visão de um estado mínimo rebate no tema das endemias. Na visão contemporânea que responsabiliza o indivíduo pela própria gestão de sua saúde, por que haveriam de existir ações de saneamento e combate a endemias? O artigo traz a perspectiva dos trabalhadores que se envolviam nessa gestão coletiva e que de repente foram "sucateados", como foi "sucateado" o próprio meio ambiente.

Segue-se um conjunto de artigos que descrevem problemas na "gestão" da saúde dos indivíduos através da "Estratégia da Saúde da Família", trazendo o conflito entre uma visão formatada e programática e o campo de ação dos agentes de saúde. Especificamente, questões voltadas para um pragmatismo na ação que entra em conflito com os temas dos modos de vida e do cotidiano das populações; a formação restrita e reduzida dos agentes e a falta de discussão e compreensão dos temas apresentados, que são rapidamente traduzidos em problemas de saúde. O tema da violência e das condições de trabalho dos policiais, tratado em artigo mais adiante, vem retomar a linha das ações do estado e das condições de vida, trabalho e formação dos trabalhadores públicos.

Outro bloco está dirigido a artigos que tratam da Aids, através de narrativas de jovens e suas expectativas de vida. Analisando aspectos da gestão da política nacional e suas peculiaridades regionais, estes artigos retomam a questão da intervenção técnica e das formas de vida em diferentes dimensões da prática nesse "programa".

Alguns artigos se destacam pela busca de uma politização das ações no campo da saúde e da gestão dos "comportamentos", seja em relação ao tema da humanização, seja em relação ao tema da educação dos jovens. Isto pode ser dito do artigo "A precarização do trabalho e Risco de Acidentes na construção civil: Um estudo com base na Análise Coletiva de Trabalho", que busca problematizar as formas convencionais de estabelecer "prevenção" e "risco" buscando vertentes na versão emancipatória e participativa. Esse tom também se faz presente no artigo que trata da "Reforma Psiquiátrica" e a busca de uma práxis e se insere no corpo de análise das questões relativas a temas tradicionais do campo da saúde pública: por exemplo, o deslocamento da maternidade para gerações mais novas e o tema do abortamento induzido como uma prática contraceptiva cotidiana, mostrando a quantas léguas de distância o cordão da vida saudável é recortado por questões e conflitos de gênero, de poder, de condições de vida e trabalho, da alimentação e das sexualidades. Assim são finalizados os relatos de experiência, nos quais o tema da participação é recorrente nos dilemas das práticas e nos desencontros entre ações políticas e populações.

Rubens de Camargo Ferreira Adorno

Pelo Conselho Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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