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Envelhecimento ativo e a indústria da perfeição1 1 Este artigo é parte do projeto de pesquisa EXCEL: The Pursuit of Excellence (PTDC/SOC-ANT/30572/2017).

Resumo

Nas últimas duas décadas, o envelhecimento ativo adquiriu expressão relevante enquanto paradigma de políticas públicas para fazer face aos desafios colocados pelo envelhecimento demográfico. Definido, primeiramente pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de forma a enfatizar a responsabilidade da sociedade no seu conjunto relativamente à qualidade de vida ao longo do processo de envelhecimento, o paradigma do envelhecimento ativo, atualmente, tem vindo a concentrar-se, sobretudo, no adiamento da idade da reforma e na redução dos custos com a saúde nos últimos anos de vida, a partir de uma lógica de responsabilização individual. Para a elaboração deste artigo, foram consultados vários sítios on-line de clínicas médicas portuguesas nas quais se praticam consultas/tratamentos de medicina antienvelhecimento, analisando os anúncios publicitários dos serviços prestados, bem como artigos de opinião redigidos pelos próprios médicos dessa especialidade, dirigidos a um público leigo. Conclui-se que, a par da responsabilização individual pela saúde e, de forma mais geral, pela forma como se envelhece, assistimos hoje à expansão de um amplo mercado de produtos e serviços antienvelhecimento que nos permitem argumentar que o ideal de envelhecimento ativo poderá estar ao serviço de uma indústria da perfeição.

Palavras-chave:
Envelhecimento Ativo; Medicina Antienvelhecimento; Aprimoramento

Abstract

In the last two decades, Active Ageing acquired significant importance in scientific and political forums as a new paradigm of public policies to meet challenges posed by the ageing population. Defined by the WHO as to emphasize society’s responsibility regarding quality of life as people age, the Active Ageing paradigm represents, nowadays, a progressive narrowing of action scope and accountability. In recent years, assuming the logic of individual accountability, it serves as basis for the accusation of individual negligence in not adopting a healthy lifestyle. This study analyses the websites of several Portuguese medical clinics specialized in anti-ageing medicine, where one can find advertisements of the services provided, and, in some cases, opinion articles drawn up by doctors of this medical specialty, for a lay audience. Considering the increasing international dimension of the aesthetic and hormonal enhancement biotechnologies market, the ideal of Active ageing can, today, be at the service of the culture of perfection.

Keywords:
Active Ageing; Anti-Aging Medicine; Enhancement

Introdução

O conceito de “envelhecimento ativo” (EA), adotado e amplamente promovido nos últimos anos pela União Europeia (UE), foi previamente elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) com base em investigação desenvolvida no âmbito de várias áreas científicas. Conforme pode verificar-se, as primeiras publicações que utilizam o conceito de EA têm já duas décadas, datando de finais dos anos de 1990.2 2 Disponível em: <https://www.who.int/ageing/publications/active/en/>. Acesso em: 5 mar. 2020.

Em 2002, a OMS apresentou uma publicação orientada para respostas políticas, tendo em vista a promoção do envelhecimento ativo (WHO, 2002WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Active ageing: a policy framework. Genebra, 2002. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2wABP52 >. Acesso em: 30 jul. 2019.
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), definido como um processo de otimização das oportunidades para promoção da saúde, participação e segurança, com objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas envelhecem. A partir dessa primeira definição, ficam identificados os três pilares essenciais desse novo paradigma: a saúde, a participação e a segurança.

O pilar da saúde transcende o campo estritamente físico para englobar, também, os campos da saúde mental e do bem-estar social, todos estes recomendados para intervenção no nível das políticas públicas. Por outro lado, o conceito de atividade refere-se a uma participação continuada nos domínios cultural e social, económico, da vida cívica e comunitária, e não apenas à permanência ativa no mercado laboral. Por último, é destacada a necessária existência de algum sistema de proteção social (seja ele público ou privado) que garanta nível adequado de segurança socioeconómica, sem o qual se entende que não será possível garantir nem a saúde nem a participação da população idosa.

Para além de destacada a importância das políticas públicas direcionadas à transformação social considerada necessária para uma mais efetiva inclusão da população idosa, verifica-se, igualmente, uma mensagem muito clara de responsabilização individual da população idosa, que deve ela mesma procurar manter-se ativa e empenhar-se em garantir sua saúde, participação e segurança. E deve notar-se que, à medida que esse conceito ganhou força na esfera política, as publicações oficiais a esse respeito tornaram-se, no espaço da UE, cada vez mais focadas num imperativo económico - o da manutenção da população idosa no desempenho de atividades produtivas - com forte ênfase na responsabilidade individual (São José; Teixeira, 2014SÃO JOSÉ, J.; TEIXEIRA, A. R. Envelhecimento ativo: contributo para uma discussão crítica. Análise Social, Lisboa, v. 210, ed. 49, n. 1, p. 28-54, 2014.).

Assim, podemos argumentar que se observa uma progressiva confusão de escalas de análise no nível dessas publicações oficiais no espaço da UE, em que a dimensão social do processo de envelhecimento (o envelhecimento demográfico) se encontra subsumida na dimensão individual do processo de envelhecimento, por meio da promoção de uma norma salutar, assente num ideal de “terceira idade” plena de oportunidades para aqueles que assumam a responsabilidade individual de envelhecer com sucesso (Rowe; Khan, 1987ROWE, J. W.; KHAN, R. L. Human aging: usual and successful. Science, Nova York, v. 237, n. 4811, p. 143-149, 1987.). O locus essencial de intervenção para consolidar a emergência dessa norma salutar é o corpo dos indivíduos que envelhecem, agora convocados a atuarem no sentido de atenuar os efeitos nefastos do processo de envelhecimento (como a doença e a dependência), que deverá ser retardado, ou mesmo, se possível, travado.

É assim que, a par da responsabilização individual pela saúde e, de uma forma mais geral, pela forma como se envelhece, assistimos hoje à expansão de um amplo mercado de produtos cuja finalidade se confunde entre a promoção da saúde e o aprimoramento (Edmonds; Sanabria, 2016EDMONDS, A.; SANABRIA, E. Entre saúde e aprimoramento: a engenharia do corpo por meio de cirurgias plásticas e terapias hormonais no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 193-210, 2016.). Dos fármacos que melhoram o desempenho cognitivo, sexual ou social aos produtos “naturais” desenvolvidos em grandes cadeias de produção e distribuição com a mesma finalidade, passando pela utilização, muitas vezes prescrita, outras vezes ilícita, de terapias hormonais, até ao recurso a cirurgias estéticas ou protésicas e ao uso de cosméticos, alcançando também o campo da medicina regenerativa, as “tecnologias de aprimoramento” são geralmente definidas como intervenções direcionadas para melhorar o funcionamento ou características dos seres humanos para além daquilo que seria estritamente necessário para reparar o corpo, tendo em vista a manutenção da saúde (PCB, 2003PCB - PRESIDENT’S COUNCIL ON BIOETHICS. Beyond therapy: biotechnology and the pursuit of happiness. Washington, 2003. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39rFHnL >. Acesso em: 30 jul. 2019.
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).

Para entendermos esse fenómeno social, devemos observar o papel da biomedicina em anos recentes na disponibilização de toda uma vasta gama de biotecnologias que assistem a natureza humana (Strathern, 1992STRATHERN, M. Reproducing the future: anthropology, kinship and the new reproductive technologies. Nova York: Routledge , 1992.), numa tal fusão entre tecnologia e corpo humano, que nos levam a reconsiderar as tradicionais fronteiras entre “natureza” e “cultura” (Hogle, 2005HOGLE, L. F. Enhancement technologies and the body. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, v. 34, p. 695-716, 2005.) e a delinear a imagética do “Cyborg”, pela qual a antropologia tem debatido a emergência de entidades corpo-máquina (Haraway, 1991HARAWAY, D. Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. Nova York: Routledge, 1991.). A esse respeito, se atentarmos no campo específico da, algo controversa, medicina antienvelhecimento (MAE), observamos por parte dos seus profissionais um recorrente discurso de ênfase na responsabilização individual sobre o processo de envelhecimento, no qual se confunde saúde com aprimoramento, constituindo mais uma evidência da emergência de uma biopolítica (Rose, 2001ROSE, N. The politics of life itself. Theory, Culture & Society, Thousand Oaks, v. 18, n. 6, p. 1-30, 2001.) que pode essencialmente ser caracterizada como uma “salutocracia” (Crawford, 1980CRAWFORD, R. Healthism and the medicalization of everyday life. International Journal of Health Services, Los Angeles, v. 10, n. 3, p. 365-388, 1980.), tal como será desenvolvido mais adiante. É nesse sentido que o EA poderá estar hoje ao serviço de uma indústria da perfeição.

Metodologia

Para uma primeira abordagem ao estudo da MAE em Portugal, com um foco predominante na análise da expressão deste fenómeno na Grande Lisboa, procedi a uma análise documental baseada na consulta dos sítios on-line de diversas clínicas médicas, nos quais se podem encontrar não só anúncios publicitários dos serviços prestados, mas também em alguns casos, artigos de opinião redigidos pelos próprios médicos dessa especialidade, dirigidos a um público não especializado. Foi feita uma análise crítica desse conteúdo em confronto com a literatura científica que nos permite contextualizar esse fenómeno específico, bem como a temática mais abrangente do EA.

Para a elaboração deste artigo, entre abril e julho de 2019 foi analisado o conteúdo dos sítios on-line de um conjunto de clínicas médicas (elencadas a seguir) nas quais se praticam consultas/tratamentos de MAE. A lista de clínicas que foi elaborada procurou ser exaustiva no que se refere à Grande Lisboa, complementada pela análise do conteúdo apresentado nos sítios on-line de algumas clínicas fora da capital portuguesa, pela relevância da informação que apresentavam, tendo em conta os objetivos desta investigação.

Todas as citações presentes no artigo foram retiradas desses sítios on-line até 30 de julho de 2019, sendo a sua proveniência identificada pela referência ao nome da clínica, tal como está listado a seguir, juntamente com o endereço on-line.

A medicina antienvelhecimento

A MAE tem vindo a desenvolver-se de forma mais intensa desde o início do século XXI, com o objetivo explícito de intervir sobre o processo de envelhecimento, entendido pelos seus promotores como estando, fundamentalmente, associado a um declínio, muitas vezes agonizante, que pode e deve constituir um foco de intervenção biomédica. Uma evidência do seu crescimento nas últimas duas décadas é o aumento do número de publicações científicas relacionadas com a temática antienvelhecimento em revistas científicas especializadas na matéria, com divulgação de resultados em conferências científicas, despertando o interesse de empresas de biotecnologia, tendo em vista um crescente mercado de consumo (Mykytyn, 2006MYKYTYN, C. E. Anti-aging medicine: a patient/practitioner movement to redefine aging. Social Science and Medicine, Oxford, v. 62, n. 3, p. 643-653, 2006.). Muitos dos profissionais da MAE são oriundos de diferentes especialidades médicas e até de áreas de intervenção em saúde fora do campo da biomedicina, por exemplo, associados com as designadas medicinas alternativas ou complementares, sendo um campo de intervenção e de pesquisa científica ainda em processo de consolidação e em busca de legitimidade científica e social.

Apesar dessa proveniência disciplinar múltipla, grande parte desses especialistas estão filiados à American Academy of Anti-Aging Medicine, algo que também se verifica com alguns dos especialistas portugueses. De acordo com um dos pioneiros nessa área em Portugal, fundador do Instituto Médico New-Age no Porto, formado em medicina pela Universidade do Porto, com subsequentes formações pós-graduadas realizadas nos Estados Unidos, a MAE pode ser definida da seguinte forma:

É uma medicina preventiva e pro-activa que visa aumentar a longevidade com qualidade de vida, através de um programa médico, nutricional e de exercício físico ajustado a cada paciente. Surgiu há 12 anos nos Estados Unidos e levou à criação da American Academy of Anti-Aging Medicine, uma academia que engloba médicos, naturistas, naturopatas, fisiatras… (Romariz, 2010ROMARIZ, L. O segredo da longevidade: entrevista ao especialista nacional que trouxe a medicina anti-aging para Portugal. SAPO Lifestyle, Lisboa, 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2wA6ejX >. Acesso em: 30 jul. 2019.
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)

Apesar de não haver um consenso perfeito entre tão diversos profissionais de saúde, e sendo que, enquanto alguns direcionam os seus esforços sobretudo para manutenção da saúde à medida que ocorre o processo de envelhecimento, outros procuram ativamente um aumento substancial da longevidade, é bastante recorrente entre os diferentes praticantes da MAE um pronunciado otimismo relativamente aos resultados que estarão para ser alcançados em anos vindouros dentro dessa área de intervenção.

Também no caso desse especialista português o otimismo está presente e não encontra limites para aquilo que a Ciência pode trazer no combate à “doença” do envelhecimento:

A medicina Anti-aging encara o envelhecimento como uma doença incurável, mas cujos sintomas são conhecidos, nomeadamente alzheimer, doença cardíaca, diabetes… O seu objectivo é impedir o aparecimento destes sintomas, fazendo com que as pessoas se mantenham saudáveis durante mais tempo. […] Actualmente o limite máximo conhecido é 122 anos, mas acredito que um dia será possível viver eternamente. (Romariz, 2010ROMARIZ, L. O segredo da longevidade: entrevista ao especialista nacional que trouxe a medicina anti-aging para Portugal. SAPO Lifestyle, Lisboa, 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2wA6ejX >. Acesso em: 30 jul. 2019.
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)

Apesar dessa afirmação contundente, tem sido observado por alguns investigadores da MAE enquanto fenómeno social que a classificação do processo de envelhecimento como uma doença não é muito frequente entre esses profissionais de saúde, para quem, de forma diversa, o envelhecimento é entendido, quase sempre, como um processo “natural”, mas que pode e deve ser alvo de intervenção biomédica. Pois, defendem estes, aquilo que é verdadeiramente emblemático da natureza humana é o esforço contínuo de se libertar dos constrangimentos biológicos e, assim sendo, nada há de mais natural do que procurar uma otimização do processo de envelhecimento (Mykytyn, 2008MYKYTYN, C. E. Medicalizing the optimal: anti-aging medicine and the quandary of intervention. Journal of Aging Studies, Amsterdã, v. 22, n. 4, p. 313-332, 2008.).

Verificando-se diferentes conceções sobre o processo de envelhecimento, num campo de intervenção médica onde coabitam especialistas com diferentes formações de base, oriundos de diferentes países caracterizados por contextos sociais e culturais específicos, observam-se, ainda assim, alguns tópicos recorrentes no discurso publicitário dos defensores da MAE. Na base desse discurso, constata-se, recorrentemente, a possibilidade de uma dissociação entre envelhecimento e doença, desde que seguidas as suas orientações médicas. Isso permite, por um lado, a “medicalização” do processo de envelhecimento, pela qual se exerce um controle social por parte da medicina, conducente a uma perda de autonomia dos indivíduos (Zorzanelli; Ortega; Bezerra Júnior, 2014ZORZANELLI, R. T.; ORTEGA, F.; BEZERRA JÚNIOR, B. Um panorama sobre as variações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1859-1868, 2014.). Por outro lado, paradoxalmente, permite acentuar a importância da responsabilidade individual pela saúde, nomeadamente, pela adoção de um estilo de vida saudável, insistentemente recomendado. De acordo com a diretora de uma clínica médica em Lisboa, fundadora do Grupo de Estudos em Medicina Antienvelhecimento:

Não morremos por termos IDADE. Morremos por causa das doenças degenerativas associadas à idade. […] E se formos a pensar bem, em todas estas patologias, a obesidade por exemplo participa na génese de todas elas. E a obesidade, tal como o tabaco, o álcool, os níveis altos de glucose as dietas ricas em gordura trans ou baixas em ácidos gordos polinsaturados, omega3 frutas e vegetais, tal como a inactividade física, todos estes factores podiam ser trabalhados educando a população e adquirindo “hábitos e estilos de vida saudáveis”. (Clínica Dra. Ivone Mirpuri)

Associadas à responsabilização individual pela saúde, encontram-se frequentemente no discurso dos profissionais da MAE, mensagens de empoderamento dos sujeitos, que, não raras vezes, dão origem aos slogans publicitários que acompanham os produtos ou intervenções de saúde que se pretendem comercializar: “A vontade de mudar a sua vida tem de partir de si […]. O programa anti-envelhecimento pretende ensiná-lo a controlar melhor a sua saúde” (Clínica Dra. Ivone Mirpuri); “Dar vida aos anos e anos à vida […]. A saúde de cada um de nós é o resultado das escolhas que fizemos e fazemos nas nossas vidas” (Clínica Dra. Paula Vasconcelos); “Através de hábitos saudáveis conseguimos prevenir doenças com maior mortalidade e consequentemente conseguir mais anos de vida útil” (Acqua Clinic); “Edificamos, consigo, o seu Poder Pessoal. Trabalhamos para que possa exprimir o seu carisma em pleno, exercendo eficazmente o seu potencial de comando” (Clínica do Poder).

A mensagem de empoderamento está, muitas vezes, associada ao que podemos considerar como uma reconstrução da velhice à luz de um ideal de juventude eterna:

Chegar novo a velho […]. É este o convite que vos faço. A minha missão é implementar um novo modelo de saúde, integrado, com o objetivo de promover, seja qual for a idade, níveis elevados de bem-estar e de saúde. Ensinar a envelhecer sem ficar velho. (Clínica Dr. Pinto Coelho)

Assim sendo, os defensores da MAE procuram definir uma nova norma de saúde otimizada, em que se confunde saúde com aprimoramento e, pelo menos num dos casos analisados, confunde-se o impacto negativo da atividade sobre o envelhecimento com o conceito de envelhecimento ativo:

A todos aqueles que pretendem optimizar a sua saúde, atrasar o ritmo do envelhecimento activo e reduzir a probabilidade do surgimento de doenças (cardiovasculares, osteo-articulares, neurodegenerativas, tumorais entre outras) […]. Em suma, a Medicina Anti-Aging é dirigida a todos aqueles que se sentem velhos por fora e novos por dentro, mas também aos outros, àqueles que se sentem novos por fora mas velhos por dentro! (Clínica Médica do Porto)

A proposta que oferecemos consiste em aproximar os parâmetros biológicos, metabólicos e hormonais dos indivíduos a partir dos 40 anos aos níveis encontrados em uma pessoa saudável de 22 anos. É nesta idade que o ser humano atinge o apogeu do seu desempenho e, como tal, começa a envelhecer. (Clínica Dr. Pinto Coelho)

Advogando uma reformulação do conceito de saúde em direção a um ideal otimizado, os profissionais da MAE defendem, igualmente, uma reformulação da prática clínica característica do modelo biomédico, em direção a uma nova medicina, preventiva e personalizada, baseada em alguns pilares terapêuticos fundamentais:

O que a medicina faz atualmente, muitas vezes, é prolongar a vida do utente à conta de prolongar a doença. Há que pensar-se “antes”, prevenindo e retardando o aparecimento das chamadas doenças degenerativas, e isto hoje consegue-se sim, através de um equilíbrio do nosso corpo trabalhando os cinco pilares em que assenta a medicina anti-envelhecimento: Nutricão, Exercício físico, Suplementação Alimentar, Suplementação Hormonal, fundamental e de facto aquela sobre a qual eu me dedico mais, e a Mudança dos Hábitos de Vida. É da sinergia destes elementos que podemos aumentar a nossa vitalidade, retardar o nosso envelhecimento e estender eventualmente a nossa longevidade. (Clínica Dra. Ivone Mupri)

Verificando-se alguma variabilidade no que se refere à apresentação das valências terapêuticas consideradas essenciais para a caracterização daquilo que constitui uma consulta de MAE, observa-se, ainda assim, a recorrência de uma ênfase colocada na alteração dos hábitos de vida (incluindo, sobretudo, a prática de exercício físico, a gestão do estresse mental e emocional e uma melhor nutrição), bem como a utilização terapêutica de hormonas bioidênticas:

A partir dos 35 anos assiste-se a um decréscimo generalizado da produção hormonal em cerca de 1 a 2% ao ano. Um indivíduo de 50 anos tem em tese metade das hormonas que tinha aos 30. Assim é fundamental medir e restaurar, modulando, as hormonas de qualquer individuo de forma a devolver-lhe os níveis dos seus 35 anos. (Clínica Dr. Pinto Coelho)

Ora, se o enfoque na alteração dos hábitos de vida é algo que já vem sendo defendido pela OMS como campo de atuação fundamental para os profissionais da Biomedicina, pelo menos desde a Carta de Ottawa para a Promoção da Saúde (WHO, 1986WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Ottawa charter for health promotion. Ottawa, 1986. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Tperkc >. Acesso em: 5 mar. 2020.
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), dando lugar à emergência da designada “nova saúde pública” (Lupton, 1995LUPTON, D. The imperative of health: public health and the regulated body. Londres: Sage, 1995.), por outro lado, o recurso à utilização de hormonas com fins terapêuticos tem constituído o foco fundamental da crítica dos adversários da MAE, nomeadamente, por parte dos médicos de outras especialidades, que apontam a sua possível associação com o desenvolvimento de doenças cancerígenas ou do foro cardiovascular:

As terapias denominadas de anti-envelhecimento, que empregam hormônios, vitaminas em doses altas e outros compostos, geram riscos para as pessoas que delas se utilizam e aumentam a probabilidade de câncer, demência e doenças cardiovasculares. São um engodo, a ilusão de uma “fonte da juventude”, e condenadas veementemente pelo Conselho Federal de Medicina e pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. (Tavares, 2017TAVARES, M. Muito cuidado com as terapias antienvelhecimento [entrevista de José Elias Soares Pinheiro]. O Globo, Rio de Janeiro, 12 nov. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://glo.bo/2IkvwVV >. Acesso em: 30 jul. 2019.
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)

A utilização de hormonas no âmbito do tratamento hormonal de substituição (THS) durante a menopausa, com o objetivo de obter um novo equilíbrio, que evite as consequências da privação das hormonas endógenas, tem já uma história longa, que remonta aos anos de 1930.

No entanto, a sua utilização em massa acontece apenas nos anos de 1980/1990, resultante de um processo lento, mas bem-sucedido de “medicalização”, dessa fase da vida da mulher (Lock, 1993LOCK, M. Encounters with aging: mythologies of menopause in Japan and North America. Berkeley: University of California Press, 1993.). Ainda assim, a sua utilização nunca se tornou isenta de críticas, sendo que, a partir da primeira década do século XXI, a controvérsia intensificou-se quando foram publicados alguns estudos científicos que providenciaram evidências para o argumento de que os riscos associados ao THS (sobretudo cancro da mama e problemas cardíacos) suplantavam os seus benefícios (Heiss et al., 2008HEISS G. et al. Health risks and benefits 3 years after stopping randomized treatment with estrogen and progestin. JAMA, Chicago, v. 299, n. 9, p. 1036-1045, 2008.). Estudos posteriores apontaram no sentido contrário, de que os benefícios suplantam os riscos, sempre que o THS seja utilizado em mulheres com menos de 60 anos de idade ou com menos de dez anos de menopausa, concluindo que o risco associado ao uso de estrogénios relativamente ao cancro de mama é mínimo e que o risco de doença cardiovascular é reduzido se o tratamento for iniciado antes dos 60 anos de idade (Shifren; Gass, 2014SHIFREN, J. L.; GASS, M. L. S. The North American Menopause Society recommendations for clinical care of midlife women. Menopause, Nova York, v. 21, n. 10, p. 1038-1062, 2014.). Novos estudos mais recentes vieram trazer novas evidências de risco aumentado de cancro de mama associado ao uso diário de combinados de estrogénio e progesterona (CGHFBC, 2019CGHFBC - COLLABORATIVE GROUP ON HORMONAL FACTORS IN BREAST CANCER. Type and timing of menopausal hormone therapy and breast cancer risk: individual participant meta-analysis of the worldwide epidemiological evidence. Lancet, Londres, v. 394, n. 10204, p. 1159-1168, 2019.).

Para lá da controvérsia científica, existe uma perceção social da existência de riscos associados a esse tipo de tratamento, algo que é evidenciado pelo sucesso comercial de uma nova alternativa que, entretanto, apareceu no mercado - as hormonas bioidênticas. Estas são geralmente derivadas de extratos de plantas, mas quimicamente modificadas em laboratório para se tornarem molecularmente idênticas às hormonas endógenas no ser humano. A terapia com hormonas bioidênticas refere-se geralmente ao uso de hormonas sexuais: estrogénio, progesterona, testosterona (Fishman; Flatt; Settersten, 2015FISHMAN, J. R.; FLATT, M. A.; SETTERSTEN, R. A. Bioidentical hormones, menopausal women, and the lure of the “natural” in U.S. anti-aging medicine. Social Science and Medicine, Oxford, v. 132, p. 79-87, 2015.).

Tendo começado a ser comercializadas por praticantes de MAE, mas também por ginecologistas e alguns terapeutas de medicinas alternativas e complementares, o uso de hormonas bioidênticas veio ao encontro da ânsia de muitas mulheres por uma terapêutica com menos riscos, o mais “natural” possível, eficaz no controle dos sintomas indesejáveis da menopausa, quer exista ou não uma base científica para essas reivindicações.

A utilização de hormonas com fins terapêuticos tem vindo, entretanto, a assumir diferentes configurações em função dos diversos contextos sociais e culturais de implantação, tornando-se um campo relevante de análise social, revelador dos valores e discursos contemporâneos, não apenas em relação à menopausa, como em relação à biomedicina e ao processo de envelhecimento no geral.

Para além disso, a análise etnográfica dos seus usos quotidianos ajuda-nos na compreensão de como esses valores e discursos se entrecruzam com a necessidade de os indivíduos fazerem face a diferentes tipos de problemas sociais, atravessando todas as classes sociais, sobretudo em situações de grande incerteza. Essa análise tem vindo a revelar como o seu uso se estabelece frequentemente numa fronteira muito ténue entre a busca por melhor saúde e a procura de aprimoramento.

É no campo específico da MAE, partindo do seu conceito de “saúde otimizada”, que, mais do que em qualquer outra vertente da biomedicina, essa fronteira entre saúde e aprimoramento se esbate até à quase completa erosão, na medida em que a reposição dos níveis hormonais para o momento do seu auge (fixado, por muitos, em torno dos 30 anos de idade, e por outros em idade ainda mais precoce) se torna um gesto “natural”, ainda que apenas possibilitado pelos mais recentes avanços tecnológicos e científicos:

O envelhecimento é um processo natural, mas é possível retardar o seu aparecimento identificando os factores que o provocam […]. Os avanços científicos e tecnológicos permitem que haja recursos para atrasar o relógio biológico e a medicina anti-Aging usufrui desses avanços desenvolvendo programas de nutrição personalizada, optimização hormonal, exercício físico adequado e eventual suplementação. (Clínica Milénio)

Essa intervenção médica rumo a esse ideal de saúde otimizada torna-se não apenas natural, como desejável - uma norma de saúde idealizada -, sendo que alguns profissionais da MAE chegam mesmo a destacar a importância da sua especialidade na resolução dos desafios colocados pelo envelhecimento demográfico, a partir de uma intervenção à escala individual, encontrando, assim, mais um argumento para a sua legitimação social. Assim, o empoderamento dos indivíduos, por meio da sua responsabilização individual pela saúde, é equacionado como a base da solução para o problema social do envelhecimento demográfico, de forma a que ninguém se torne num fardo para a família e para a sociedade:

A população está a envelhecer e temos de facto de procurar uma via que nos faça gastar menos recursos económicos com a doença. Cerca de 90% dos recursos gastos com a saúde de cada um de nós são usados após os 65 anos de facto […]. Não devíamos querer um dia ser um peso à sociedade nem à família! Daí que há que repensar a medicina e a saúde actuando na prevenção. Para que cheguemos a velhos… novos. (Clínica Dra. Ivone Mupri)

Por contraponto aos seus críticos, nomeadamente aos médicos oriundos de outras especialidades, os profissionais da MAE apregoam o seu relevante contributo para que a sociedade possa fazer face aos problemas associados ao envelhecimento demográfico, nomeadamente os da sustentabilidade dos sistemas de providência social e dos elevados custos com a saúde dos mais idosos. Aliás, de acordo com alguns desses especialistas, a MAE surge, desde o seu início, como uma reação a uma medicina que consideram ser centrada na doença e caracterizada, por isso mesmo, por uma intervenção tardia sobre os problemas de saúde. A MAE deverá, então, servir de referência para a edificação de uma medicina de futuro, preventiva e personalizada, que contribua diretamente para a redução dos custos da saúde:

A Medicina Anti-Aging/Anti-Envelhecimento nasceu há cerca de 20 anos nos Estados Unidos, como um movimento que reuniu, de início 12 médicos, que pela primeira vez pensaram em conceber e promover a saúde de forma diferente. Não aguardar passivamente pelas lesões ou pelas doenças, aqueles médicos imaginaram que seria possível conceber uma estratégia diferente, na qual se passaria a actuar na vida das pessoas de forma preventiva e preditiva, muito antes que as patologias se manifestassem.

Outro factor de grande peso que deu impulso ao movimento foi de ordem económica. Existem, só nos Estados Unidos, mais de cento e dez milhões de pessoas submetendo-se hoje a algum tipo de tratamento ou usando alguma espécie de medicamento apenas para minimizar os efeitos e complicações das chamadas doenças “inevitáveis” da velhice […]. Mantido aquele ritmo resultou em que o sistema de saúde norte-americano está completamente falido e em degradação. (Clínica do Poder)

É também assim que, em busca de legitimidade social, alguns defensores da MAE afirmam o seu contributo para efetiva implementação do EA:

A Medicina Anti Envelhecimento vai assim optimizar o processo de envelhecimento fisiológico, adaptando-se à definição que a Organização Mundial de Saúde fez do envelhecimento activo, melhorando as oportunidades de bem estar físico, social e mental durante toda a vida, e ampliar a esperança de vida saudável. (Clínica Milénio)

Pretendendo afirmar-se como especialidade médica que promove a saúde individual, daí retirando importantes benefícios para a sociedade, para alguns desses profissionais, a legitimação social da sua prática parece assentar num esforço de diferenciação da sua prática clínica, em relação a procedimentos estéticos, procurando traçar uma fronteira entre a área da saúde e a do “aprimoramento estético”: “Ao longo dos anos, muitas pessoas nos perguntaram o que é a Medicina Anti-Aging, ou Medicina Anti-Envelhecimento. Será cirurgia estética? Cirurgia plástica? Ou cosmética? […] Na verdade, a Medicina Anti-aging não é nada disto” (Clínica do Poder).

No entanto, pelo contrário, verifica-se uma recorrente convivência entre serviços terapêuticos e serviços de estética em muitas das clínicas observadas, o que faz com que, por exemplo, no mesmo sítio on-line em que se defende o papel relevante da MAE na implementação do EA se defenda, também, a facilidade atual dos procedimentos da “medicina estética” - diretamente associada com a intenção de disfarçar os sinais de envelhecimento - que permitem “Rejuvenescer à hora de almoço!”, sem efeitos secundários e sem quebra da atividade:

Estamos numa época que reclama tratamentos “express” em que é importantíssimo que o médico tenha conhecimentos, capacitação e experiência de modo a conseguir definir e reavivar a beleza natural de cada um, homens e mulheres, de forma saudável, minimamente invasiva e por isso sem efeitos secundários.

Um procedimento de estética médica não cirúrgica que pode ser realizado “à hora de almoço”, tal é a celeridade e a rapidez com que são realizadas. Isto significa que as pacientes podem levar a cabo as suas técnicas de rejuvenescimento facial sem que isso implique qualquer período de recuperação ou de «baixa» da actividade. (Clínica Milénio)

Essa coabitação entre objetivos estéticos e terapêuticos torna-se possível e recorrente pelo facto fundamental de que o escopo de intervenção da MAE é estritamente individual, sem estabelecimento de qualquer diálogo com a área da saúde pública, negligenciando por completo os fatores sociais determinantes da saúde (Marmot; Wilkinson, 2006MARMOT, M.; WILKINSON, R. (Ed.). Social determinants of health. Oxford: Oxford University Press, 2006.), sendo que a almejada transformação social, que permitiria a implementação do EA, decorre de uma intervenção estritamente individual, no sentido da educação para a saúde.

Considerações finais

Em boa verdade, pouco têm de novidade as críticas que os defensores da MAE movem relativamente aos profissionais de outras especialidades médicas, acusando-os de exercerem uma medicina focada na doença e caracterizada por uma intervenção tardia, sem capacitação do doente para a assunção de responsabilidade individual pela sua saúde, nomeadamente, pela orientação para a adoção de um estilo de vida saudável. Pelo contrário, observa-se que o conceito de “envelhecimento ativo”, na aceção da OMS, foi originado, em grande medida, a partir da investigação realizada por no âmbito de várias especialidades médicas (Foster; Walker, 2015FOSTER, L.; WALKER, A. Active and successful aging: a European policy perspective. The Gerontologist, Saint Louis, v. 55, n. 1, p. 83-90, 2015.), tornando-se, assim, necessário repensar o papel da biomedicina na “medicalização” da velhice. Pois, se por um lado no passado foi criticada por promover a passividade do idoso e a sua dependência em relação aos profissionais de saúde, por outro, assiste-se hoje à promoção dos estilos de vida saudáveis e da responsabilidade individual pela saúde.

É possível traçar o desenvolvimento histórico dessa última tendência, que em certa medida nunca destituiu em absoluto a prevalência da primeira, a partir da emergência de uma “nova saúde pública” (Lupton, 1995LUPTON, D. The imperative of health: public health and the regulated body. Londres: Sage, 1995.), que pugna pela devida consideração de múltiplos fatores explicativos das doenças no âmbito da biomedicina e pela importância da responsabilidade individual pela saúde. Embora, aparentemente, não esteja diretamente relacionado, é no quadro alargado destas transformações, por um lado, e da consolidação do paradigma do EA no plano social e político, por outro, que a emergência da MAE deve ser compreendida.

O conceito de “promoção da saúde”, associado ao conceito de “estilo de vida saudável”, viria a ser adotado pela OMS, desde 1986, tal como se constata na Carta de Ottawa para a Promoção da Saúde. Essa publicação reflete as expetativas sociais por uma nova saúde pública, observáveis, por exemplo, no movimento pela promoção da saúde que se desenvolvera nos Estados Unidos e que pode ser compreendido, fundamentalmente, como a procura por uma redução dos gastos públicos com saúde, enfatizando, para esse propósito, a importância da assunção de responsabilidade individual pela saúde (Minkler, 1989MINKLER, M. Health education, health promotion and the open society: a historical perspective. Health Education Quarterly, Thousand Oaks, v. 16, n. 1, p. 17-29, 1989.).

Essas reivindicações vieram gradualmente a traduzir-se numa monitorização sanitária de comportamentos individuais anteriormente relativamente desconsiderados pela esfera médica, como sejam, os hábitos alimentares, a prática de exercício físico e o consumo de substâncias como o álcool e o tabaco, constituindo-se, assim, como um importante fenómeno de “medicalização” da vida social. Apregoando uma nova norma salutar e os seus perigosos desvios, desenvolve-se progressivamente o que pode ser considerado como uma “epidemia do risco” amplamente difundida pelos media (Forde, 1998FORDE, O. Is imposing risk awareness cultural imperialism? Social Science and Medicine, Oxford, v. 47, n. 9, p. 1155-1159, 1998.), em que a saúde, sujeita a múltiplas ameaças, deve ser preservada por um comportamento individual responsável, assente na informação médica disponibilizada insistentemente pelos organismos públicos de saúde. Uma vez transmitida a informação relevante, será da responsabilidade de cada um zelar pela sua saúde, introduzindo-se, assim, uma importante dimensão moral nessa equação: as doenças de cada um são, em certa medida, merecidas, em função dos comportamentos mais ou menos saudáveis que foram adotados ao longo da vida.

Essa “salutocracia” - ou “healthism” como lhe chamou Robert Crawford (1980CRAWFORD, R. Healthism and the medicalization of everyday life. International Journal of Health Services, Los Angeles, v. 10, n. 3, p. 365-388, 1980.) -, hoje amplamente consolidada, tende a ignorar a extensa investigação realizada em torno da importância de múltiplos fatores sociais como determinantes fundamentais de variadas doenças. Pois, se por um lado destaca a importância dos estilos de vida saudáveis, fá-lo, muitas vezes, por meio de campanhas de índole individual, apesar das evidências de que existem fatores sociais que funcionam como determinantes a priori inclusive da possibilidade de adoção de um estilo de vida saudável (Marmot; Wilkinson, 2006MARMOT, M.; WILKINSON, R. (Ed.). Social determinants of health. Oxford: Oxford University Press, 2006.).

Para além disso, como nos mostra a literatura em torno do envelhecimento bem-sucedido, a adesão ao EA depende, também, dos limites físicos e cognitivos recorrentemente associados com a velhice tardia, que alguns designaram por quarta idade (Baltes, 2003BALTES, P. New frontiers in the future of aging: from successful aging of the young old to the dilemmas of the fourth age. Gerontology, Basel, v. 49, n. 2, p. 123-135, 2003.), e que privam uns, mais cedo do que outros, de grande parte da sua autonomia e sentimento de controlo sobre a sua própria vida, com graves consequências sobre a saúde física e mental.

Ignorar os limites para a adesão individual ao EA, impostos pelos fatores sociais determinantes da saúde, mas, em muitos casos, pelos limites físicos e cognitivos estatisticamente associados aos últimos anos de vida, corresponde a um processo de “reinvenção da velhice”, por meio do qual esses limites são escamoteados pela promoção de representações sociais positivas da velhice e em que as perdas próprias do processo de envelhecimento passam a ser alocadas, fundamentalmente, no domínio da responsabilidade individual, como consequência de um estilo de vida pouco saudável (Debert, 1999DEBERT, G. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Edusp, 1999.).

E é assim que a importância concedida à continuação da atividade se apresenta essencialmente como algo que foi transposto da esfera económica para a individual, uma “ética da atividade” (Ekerdt, 1986EKERDT, D. The busy ethic: moral continuity between work and retirement. The Gerontologist, Saint Louis, v. 26, n. 3, p. 239-244, 1986.) que apregoa o desenvolvimento ilimitado, sem grande consideração pelas particularidades associadas á vivência subjetiva da velhice. Pois, no modelo da MAE, a noção de pessoa não compreende o declínio do corpo, “sendo suas condições constitutivas - autonomia, liberdade, independência - contrapostas à decadência da materialidade orgânica” (Rougemont, 2019ROUGEMONT, F. R. Medicina anti-aging no Brasil: controvérsias e a noção de pessoa no processo de envelhecimento. Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v. 62, n. 2, p. 403-431, 2019., p. 426).

Apesar de toda a investigação, continua a escapar a grande parte dos defensores da MAE esse questionamento crítico em relação à ênfase na promoção dos estilos de vida saudáveis, assente na responsabilização individual pela saúde. E é pela sua imersão profunda nesta “ética da atividade”, onde o conceito de saúde se confunde com o de aprimoramento, que o paradigma do EA poderá estar hoje a potenciar a emergência e expansão de uma indústria da perfeição.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2020
  • Aceito
    01 Fev 2020
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