Resumo
Por meio de um esforço analítico-interpretativo de releitura dos fatos históricos apresentados acerca da ideia, da proposta, do movimento e do processo da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), e à luz das teorias e críticas decolonial e feminista negra, este artigo de cunho ensaístico tem como objetivo propor um giro epistemológico e político para uma práxis sanitária decolonial. Em um primeiro momento, reflete acerca de alguns pontos de incoerência de certas dimensões da RSB que possivelmente contribuíram para que houvesse promessas não cumpridas em sua proposta. Na segunda parte do trabalho, (re)posiciona a analítica concernente à situação de colonialidade no Brasil com relação ao que está em jogo, na tentativa de “redemocratizar a vida” neste país. Finalmente, evidencia-se que, apesar de haver muito a avançar, asseguradamente a RSB não é um “movimento desnaturado”.
Palavras-chave: Reforma Sanitária Brasileira; Feminismo Negro; Decolonialidade; Interpretações do Brasil
Abstract
By an analytical-interpretative effort of re-reading the historical facts regarding the idea, proposal, movement, and process of the Brazilian Health Care Reform (HCR) in light of decolonial and Black Feminist theories and critics, this study aims to propose an epistemological and political turn toward a decolonial health praxis. In a first moment, it reflects about some points of incoherence of certain dimensions in the HCR proposal. The second part of this studyd (re)positions this analysis concerning the coloniality situation in Brazil regarding what lies at stake in the attempt of “life redemocratization” in this country. Finally, it highlights that despite much progress to be made, the Brazilian Health Reform is assuredly not a “denatured movement.”
Keywords: Brazilian Health Care Reform; Black Feminism; Decoloniality; Interpretations of Brazil
Introdução
A Reforma Sanitária Brasileira (RSB) surge no bojo do contexto de “redemocratização” no Brasil, ocasião em que foi possível assistir a abertura de uma janela de oportunidades que propiciaram a articulação em torno de uma ideia organizada como proposta e projeto de um movimento, tendo como objetivo instituir um processo que visa uma revolução capaz de servir de marco civilizatório para a democratização da vida no país (Paim; Almeida-Filho, 2014).
Certamente foi um movimento ambicioso, que contou com atores comprometidos ética e politicamente com a transformação da sociedade brasileira. Com efeito, a RSB abriu um conjunto de possíveis importantes para todos os grupos alvo dos empreendimentos necrobiopolíticos do Estado brasileiro (Bento, 2018) à medida que estabeleceu a saúde enquanto direito disposto na Constituição Federal de 1988, compôs o Sistema Único de Saúde (SUS), e constituiu na Ciência um campo caracterizado pela adoção da concepção ampliada de saúde.
Apesar da intenção revolucionária, uma releitura crítica dos fatos históricos acumulados ao longo desse processo, ainda em vigor, explicita sua incompletude, uma vez que nem sua proposta ou seu projeto foram plenamente concretizados (Paim, 2008). Esse esforço de autoavaliação tem se voltado muito mais aos constrangimentos externos do que aqueles internos; a respeito desses últimos, aponta-se para o privilegiamento da via legislativo-parlamentar em detrimento da sociocomunitária e para a desarticulação dos sujeitos da práxis sanitária, culminando em uma revolução passiva. O resultado é tal como aponta Paim:
Em linhas gerais, esta é a tese defendida: a Reforma Sanitária Brasileira reduziu-se a uma reforma parcial, inscrita nas suas dimensões setorial e institucional com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). O resto é retórica. (2008, p. 309)
Persistiria, então, como mencionado por Paim (2008) quando em diálogo com Teixeira (1989), um dilema reformista no processo da RSB, cuja possibilidade de superação residiria na conformação dos sujeitos de antítese capazes de desestabilizá-lo. Todavia, as promessas não cumpridas também evidenciam a necessidade de repensar e reconstruir o movimento e a proposta em outros termos, a fim de haver a consolidação da aliança necessária para que as movimentações cívicas de sujeitos dissidentes sejam vocalizadas no processo.
Com isso não me refiro apenas a uma mudança de via, outrora legislativo-parlamentar para sociocomunitária, como se fosse apenas um enfoque diferente para se atingir os objetivos esperados pela proposta da RSB, nem tampouco a um movimento campanhista visando angariar aliados. Refiro-me da necessidade de considerar os sujeitos da colonização enquanto sujeitos epistêmicos (não reduzidos ao setor “popular”), e, assim, “construir novas identidades e compromissos político-ideológicos, […] estabelecer novos objetivos finais e intermediários […]” (Paim, 2008, p. 313).
Se partimos de “uma concepção ampliada de saúde que entende que: se tem a ver com gente e com bem-estar de gente e populações, tem a ver com saúde” (Baptista; Borges; Rezende, 2020, p. 5), não seria o momento dos objetivos serem redirecionados ao rompimento do processo de modernidade/colonialidade?
Ou seja, apoiar-se no entendimento de que o processo de descolonização (conjunto de insurgências dos sujeitos colonizados visando a libertação e independência) não implicou na liberação das amarras do colonialismo moderno (responsável por tornar o capitalismo mundial), dado que, mesmo após o fim das colônias formais, mantêm-se a lógica global de desumanização1 e o padrão mundial de poder que impõe o controle/dominação dos meios de produção (trabalho, conhecimento, etc.) e seus produtos, da natureza e de seus recursos e dos modos de ser/estar no mundo aos desígnios do norte global (Curiel, 2020; Maldonado-Torres, 2023; Quijano, 2005).
Como afirma Maldonado-Torres (2023) e evidenciam Abdias Nascimento (2016) e Lélia Gonzalez (2020), a colonialidade é um paradigma de guerra contínua contra os sujeitos colonizados, seus descendentes e tudo aquilo que deles advém (cultura, organização social, língua, episteme, estética etc.), criando-se um estado de exceção em que se naturaliza as violências cotidianas que lhes são impingidas.
Portanto, é possível pensar em “democratizar a vida” sem antes assumir o projeto político decolonial de fazer face à colonialidade? Dito de outra maneira, não seria então o momento de finalmente tornar a “questão sanitária” uma “questão decolonial”? Com base nesse questionamento, tem-se como objetivo, com todas as potencialidades e limitações da posição de outsider within (Collins, 2016) que reflexivamente reconheço me localizar, propor um giro epistemológico e político para uma práxis sanitária decolonial, (trans)feminista, afrolatinoamericana, de fronteira, e de terceiro-mundo.
Como nota metodológica, assumo o compromisso de entreprender reflexões pontuando desde o início que não se trata de mera reunião de considerações próprias, mas de uma construção coletiva e fruto de um esforço analítico-interpretativo de releitura dos fatos históricos apresentados acerca da proposta, do projeto, do movimento e do processo da Reforma Sanitária Brasileira, sobretudo por Paim (2008; & Almeida-Filho, 2023), à luz das teorias e críticas decolonial e feminista negra.
Tal como pontuado por Ana Flauzina (2006), “Falo a partir do acúmulo de homens e mulheres negras que me antecederam e deles compartilho. Faço-o dessa maneira porque, nesse fluxo intenso, não me iludo, as palavras nunca poderiam ser exclusivamente minhas” (2006, p. 11).
Releitura crítica das promessas não cumpridas da Reforma Sanitária Brasileira
Evidentemente, coaduna-se aqui com a compreensão de que não há como esperar que o setor Saúde ou um movimento que foi político-intelectualmente dirigido por atores e atrizes inseridos(as) nos meios produtivos e hegemônicos do ponto de vista colonial - quer se queira reconhecer ou não - seria capaz de solucionar as desigualdades sociais no Brasil.
Quer dizer, objetiva-se uma revolução, mas de que revolução estamos falando? Paim (2008) aponta que a RSB partia do pressuposto de que o capitalismo brasileiro se desenvolveria e da existência de um percurso que visasse a sua superação para o socialismo. Mas, seria mesmo o socialismo, um projeto societário europeu, aquele capaz de incidir na estrutura colonial de uma diáspora africana a fim de ensejar uma democratização da vida?
Mobilizada por essas questões, realizei uma revisão narrativa acerca do racismo em Cuba em função da sua posição quanto ao socialismo, e os resultados convergem para uma constatação: para que a revolução castrista pudesse dar por “resolvida” a discriminação racial no país, fez-se necessário empreender esforços sistemáticos de embranquecer a população, suprimir a organização política dos afrodescendentes e fundamentar a construção da identidade nacional revolucionária no epistemicídio e no mito da democracia racial, sob a égide do que é enunciado no discurso de José Martin, segundo o qual “No hay odios de razas, porque no hay razas” (1991, p. 2, apud Septien, 2018, p. 65).
Tal como discorrido por Aline Helg (2014), na institucionalização da revolução sucedida em 1970 a questão racial foi ignorada. No final das contas, “o racismo e aquilo a que ainda se chamava ‘o problema negro’ estavam ligados ao capitalismo e ao imperialismo dos Estados Unidos” (p. 46). Com efeito, como aponta a socióloga afrocubana e afrofeminsta Rosa Campoalegre Septien:
Tudo o que as instituições estatais deixam de fazer, evitam, não veem, ou na prática invisibilizam em matéria das relações raciais expressa o racismo institucional. Reafirma-se a tese de que em Cuba, assentado no colonialismo e no escravismo, se afiançou um racismo estrutural de longa data, mas que é capaz de se reproduzir sob roupagens nacionalistas e globais, de maneira difusa e controversa até a atualidade. (2018, p. 67, tradução nossa2)
Salvaguardadas toda e qualquer semelhança à realidade brasileira e ao vislumbre de um futuro possível caso não houvesse constrangimentos externos à RSB, o escritor afrocubano Roberto Zurbano reflete acerca da dialética imanente à revolução cubana:
As causas dessas razões repousam na etapa pré-revolucionária; poucos dos nossos autores revelaram os culpados pela herança da colonialidade do poder e do saber em nossa sociedade: os brancos cubanos produtores e herdeiros do poder e de uma ideologia colonial que ainda sobrevive ou reaparece em determinados espaços, artífices e guardiães de uma hegemonia (branca) que a Revolução herdou sem autocriticar-se, tal como pediam os lutadores antirracistas Juan René Betancourt e Walterio Carbonell. (Zurbano, 2011, s/p, tradução nossa3)
O que parece surpreendente é que, na perspectiva do setor saúde, Cuba é considerada uma imagem-objetivo: seu sistema de saúde é do tipo Semashko4, inteiramente público, e universal. Entretanto, é na análise da situação de colonialidade que se desvela a impossibilidade de incorporar referenciais europeus na busca por modificações estruturais efetivas em países colonizados.
Nesse sentido, se fosse feita uma avaliação segundo o Postulado da Coerência de Mario Testa5, concluir-se-ia que não houve observância entre teoria e método para que se conseguisse atender os objetivos civilizatórios esperados pela RSB, dado que desconsiderou a modernidade/colonialidade enquanto ainda vigente. Uma das razões para tal reside no privilegiamento de referenciais europeus (Virgens; Teixeira, 2022) decorrente da colonialidade do saber (Quijano, 2005) que muito se faz presente na produção intelectual brasileira, assim como seu efeito consequente: o epistemicídio (Carneiro, 2005).
Com efeito, Guerreiro Ramos (político e sociólogo, foi professor da Fundação Getúlio Vargas [FGV] e da University of Southern California) publicou sua obra Introdução crítica à sociologia brasileira em 1957, na qual explicitou justamente essa “situação deplorável” de alienação do campo no Brasil, que se vale de modelos advindos de uma sociologia importada (atribuindo-lhe validade absoluta), pré-fabricada no norte global, para deduzir os fatos da vida no país.
E isso, a despeito das obras do próprio Ramos e de outras(os) intelectuais negras(os) brasileiras(os), como Abdias Nascimento (político e panafricanista, Prêmio Nobel em Literatura, em 1986), que publicou a primeira versão do seu livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado em 1978. Ou, ainda, Lélia Gonzalez (Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo), que tratou do caráter interligado dos sistemas de opressão/dominação nos marcos da colonialidade em 1984, no ensaio intitulado “Racismo e sexismo na cultura brasileira”.
Havia também Luiza Bairros (mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, e doutora em Sociologia pela Michigan State University) e a historiadora Beatriz Nascimento (professora da UFF, especialista em História do Brasil), que publicou o ensaio “Por uma história do homem negro”, em 1974, onde teceu críticas à produção científica brasileira defendendo desde aquela época que “um trabalho que trate de um povo como nós tem que levar em conta aspectos não apenas socioeconômicos como também raciais” (1974, p. 34).
Ou seja, tratam-se de contribuições que possibilitariam a elaboração de uma “teoria militante” mais coerente com os objetivos da RSB, mas que não foram efetivamente levadas em consideração. Dessa forma, assiste-se a uma interpretação deturpada da realidade social em que só se vê aquilo que seria possível modificar à luz de teorias importadas (conflitos de classe), para que, caso realizado, culminasse naquilo que se deseja(va): uma sociedade menos desigual, sob ótica esterilizada do complexo sistema de exploração-dominação capitalista colonial-racista cis-hétero-patriarcal.
Como consequência, isso também é observado na produção científica a respeito dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), componente epistemológico da RSB e uma das suas principais contribuições. Ao incorporá-los enquanto objeto central da práxis sanitarista, a Saúde Coletiva se constitui como campo, tomando como ponto de partida o reconhecimento da complexidade do fenômeno saúde-doença-cuidado de forma que não basta identificar a ocorrência e a distribuição de doença e saúde em indivíduos e grupos populacionais, mas compreender indispensavelmente em que circunstâncias isso se dá.
Apesar de provocar um avanço considerável no campo da saúde e servir de anteparo para uma analítica crítica, o constructo dos DSS também pode ser traduzido como uma “conservação-mudança”. Como constatam Joilda Nery et al. (2023), há uma escassez de trabalhos que tomem raça/etnia enquanto determinantes/componentes atuantes na determinação social da saúde, malgrado a quantidade expressiva de produções que objetivam analisar os DSS.
Por meio de uma busca rápida na Biblioteca Virtual da Saúde (BVS) utilizando o descritor “Determinantes Sociais da Saúde” e filtrando apenas os artigos originais, completos, publicados até 2022 e em língua portuguesa, tem-se um total de 1.027 trabalhos. Esse resultado foi exportado como arquivo.csv e importado como DataFrame (dados estruturados em configuração tabular, tal como uma planilha) em ambiente de programação Python, o VSCode.
Como resultado da Análise Exploratória dos Dados, apenas 58 artigos (5.6%) utilizaram algum dos termos “Indígena, Racismo, Raça, Racial, Cor, Etnia”6 como descritor e 158 (15.4%) os continham em seus resumos, juntamente com “preto(a), pardo(a) e negro(a)”. Em contrapartida, 417 (40.6%) trabalhos acionaram algum desses como descritor: “socioeconômico, classe, pobreza, renda, trabalho, ocupação, educação”, e 416 (40.5%) os mencionaram no resumo.
Por entender as diferenças políticas e epistemológicas entre “Determinantes Sociais em Saúde” e “Determinação Social da Saúde”, este último foi tornado descritor e passou pelo mesmo processo de busca. O que se apresenta é que, malgrado ter sido mais utilizado na literatura brasileira (3.117 artigos), termos associados à raça/etnia e ao racismo (10.8% nas palavras-chave; 10.2% no resumo) continuam solapados por aqueles de ordem socioeconômica (27.3% nas palavras-chave; 30.1% no resumo).
Apesar da simplicidade e das limitações desta rápida análise, ela ilustra que há (ou tem havido) uma sobrevalorização da classe social e da tríade de consumo (educação-ocupação-renda). Esse privilegiamento não é aleatório, mas decorrente de um esforço político e epistemológico; quer dizer, da ação articulada de dispositivos de saber-poder responsáveis por engendrar e manter o mito da democracia racial no Brasil (Nascimento, 2016).
Isso é um componente fundamental do projeto de nação brasileira, pois ao inviabilizarem a raça/etnia da produção das desigualdades sociais, ela passa a ser explicada única e exclusivamente pela classe, ainda que a pobreza no Brasil tenha cor. Dessa forma, tem-se um Estado com objetivos claros à manutenção do genocídio da população afro-brasileira e indígena no pós-abolição, sem que se explicite os meios através dos quais isso se dá.
Com efeito, tal como afirma Borde (2014), a abordagem “social” dos determinantes sociais em saúde acaba sendo demasiadamente abstrata e histórica na medida em que circunscreve gênero, raça/etnia e classe de forma descontextualizada, e falha em explicitar “porque as hierarquias sociais têm se configurado em função e em relação ao gênero, à classe social e à raça e etnia e qual o papel da educação, da ocupação e da renda nestas relações” (2014, p. 94).
Quando Rita Barata e Guilherme Werneck (2012) expressam que geralmente as “diferenças entre os grupos raciais estão fortemente associadas às condições econômicas e tendem a desaparecer quando essas são controladas para efeito de análise” (2012, p. 130). Ao mesmo tempo, reconhecem que raça produz efeitos mesmo quando controlados os fatores econômicos, o que se confirma é que:
É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras. (Davis, 2011, s/p.)
Mais recentemente, tem havido um movimento de apropriação da Interseccionalidade7 no campo da Saúde Coletiva, de forma a adotar uma abordagem mais crítica e coerente com a realidade social brasileira para compreender e explicar a produção social da saúde-doença e suas iniquidades (Couto et al., 2019). Não obstante a importância desse esforço, que coaduna muito mais com uma práxis sanitária decolonial do que qualquer outro modelo adotado até então, é preciso vigilância epistemológica para que não se reproduza a lógica dominante moderna-colonial de categorização (Curiel, 2020).
Quer dizer, achar que a sensibilidade analítica da interseccionalidade se reduz à nomeação de múltiplos marcadores como se fossem autônomos e produzissem, cada um a seu tempo, um efeito (nos moldes da epidemiologia dos fatores de risco). Contudo, não basta elencá-los, mas elucidar, de maneira inegociável e compreensiva, os meios através dos quais os sistemas de dominação/exploração racializam, generificam, sexualizam, empobrecem e precarizam os corpos de certos grupos sociais em um dado tempo e território e porque isso se dá, tomando como unidade fundamental suas experiências de vida (Curiel, 2020; Akotirene, 2019).
Dessa forma, modelos que esvaziam de sentido os marcadores sociais da diferença, tornando-os meras “variáveis”, e que seguem uma gramática de “adição” ou “sobreposição” acerca de como interagem - como se tem assistido na maior parte das produções científicas brasileiras até então -, falham em compreender os mecanismos de ação do neocolonialismo e da colonialidade em um país que, historicamente, se serve do racismo como suporte ideológico para se fazer viável (Flauzina, 2006, Gonzalez, 2020).
O projeto e o processo da colonialidade e o Estado brasileiro: o que está em jogo na tentativa de “redemocratizar a vida”?
Não foi o neoliberalismo que substituiu a ideologia da suposta “solidariedade coletiva”, tampouco foi o chamado “capitalismo global”, responsável por quebrar a suposta “aliança histórica entre ‘economia de mercado’, ‘Estado de bem-estar’ e ‘democracia’, […]” (Hespanha, 2017, p. 9), que, segundo a analítica eurocêntrica desse autor, “fundou o projeto moderno de Estado-nação” (Hespanha, 2017, p. 9).
Não foi nesses termos que se deu a gênese dos Estados-nação do Sul Global (Quijano, 2005; Maldonado-Torres, 2023). A crítica decolonial é contundente em explicitar a inseparabilidade da modernidade com o processo de colonização, que permitiu a acumulação primitiva necessária para que países do primeiro mundo se constituíssem enquanto nação às custas de políticas de extermínio, expropriação, extrativismo e objetificação, sob a justificativa de civilizar os incivilizados, e, atualmente, de desenvolver aqueles “não desenvolvidos” ou “em desenvolvimento”.
Um outro ponto de tensão decorrente do privilegiamento de referenciais eurocêntricos diz respeito a linearidade da temporalidade inerente às ciências europeias. Tal como Maldonado-Torres (2023) sublinha, sob essa analítica, a “[…] colonização e descolonização são a soma do visível e/ou dos eventos quantificáveis que aparecem dentro de um certo período de tempo, ambas fundamentalmente pertencentes a um momento passado” (2023, p. 29).
Com efeito, isso é identificado até mesmo em trabalhos do Florestan Fernandes (1973), considerado o autor de “um dos trabalhos mais sérios sobre o negro no Brasil” (Nascimento, 2021, p. 34). Apesar de Fernandes reconhecer que a “descolonização nunca pode ser completa, porque o complexo colonial sempre é necessário à modernização […]” (2021, p. 52), ele trata das especificidades da “modalidade latinoamericana do capitalismo” nos termos de uma trajetória historicamente linear entre “o antigo sistema colonial, a transição neocolonial e o capitalismo dependente propriamente dito” (2021, p. 46).
Se nessa perspectiva historicista se concebe uma trajetória linear, tem-se tacitamente a presunção de que os países do “capitalismo central” percorreram um percurso histórico, político e social que culminou em um ponto do “desenvolvimento” onde foi possível assistir a processos revolucionários e a um conjunto de eventos que propiciaram a dialética imanente de um Estado-nação que é, ao mesmo tempo, capitalista e de “bem-estar social”.
Não “social” porque intervém na sociedade de forma a realizar concessões para se manter viável diante das disputas e tensionamentos que conformaram aquele bloco histórico (em função da hegemonia), ou porque busca aumentar a quantidade e a qualidade da vida da sua população, em exercício do biopoder, para atender às necessidades de reestruturação dos Estados no pós-guerra em função das exigências do capital (Mantovani, 2018). O que se observa é a construção discursiva em torno de um Estado que fora paternalista e de fato social-democrático, em certo ponto até benevolente, e cuja preocupação com o “social” se traduziria pelos possíveis realizados, tal como a ampliação de políticas públicas orientadas pelo conceito ampliado de seguridade social, a exemplo da origem dos sistemas públicos de saúde europeus.
Contudo, tal como Mantovani (2018) apresenta, seja por uma perspectiva de polícia médica mais ideológica como a de Auget de Montyon, “agir em todos os aspectos biológicos da população, preferencialmente de forma imperceptível” e preocupado com o controle da mortalidade, sendo mais coercitiva, tal qual Johann Peter Frank que visa incidir sobre a natalidade, ou mais liberal, é preciso considerar que:
[…] o cuidado com a saúde pública era um ramo da economia política em ambos os casos: os mercantilistas visavam à preservação da saúde e ao prolongamento da vida para aumentar as riquezas. Os liberais também. Afinal, segundo um ditado inglês, “public health is public wealth”. (Jori, 2013, p. 130 apud Mantovani, 2018, p. 9)
Dessa forma, nunca houve “solidariedade coletiva” ou “Estado de bem-estar” na modernidade e na sua posterioridade, haja visto que o próprio projeto e processo da modernidade/colonialidade resultou naquilo que foi designado por Maldonado-Torres (2023) como catástrofe metafísica, muito bem traduzido por Sueli Carneiro (2005) como um dispositivo de racialidade, um processo de “construção do outro como não-ser como fundamento do ser”. Esse giro de interpretação torna possível compreender que há uma dialética ontológica no Estado moderno: malgrado seu interesse em produzir vida e morte, não é a de qualquer um, nem de qualquer forma. Trata-se da necrobiopolítica (Bento, 2018), uma administração da vida por meio de tecnologias de normalização de corpos segundo a lógica da diferença colonial (Mignolo, 2005). Como pontua Alexandra Silva (2011), esse Estado também se vale do mito da possibilidade de igualdade em um sistema de produção estruturalmente desigual, materializado em construções discursivas em torno da democracia formal, da justiça social e da cidadania.
Com efeito, conceitos gramscianos como aquele referente à hegemonia são contribuições oportunas para compreender que, para a manutenção do Estado, faz-se necessário realizar concessões em resposta às pressões da classe dominada. Embora sejam contingenciadas e dependentes do bloco histórico contextual, o paradoxo da democracia possui uma dupla função: a de servir aos interesses do capital e a de engendrar um espaço de disputas de classe pelo poder, criando uma fissura na hegemonia “indispensável àqueles que lutam contra a ordem do capital” (Silva, 2011, p. 134).
Não se questiona que a solidariedade e a democracia devam ser ideais, mas presumir sua materialidade (mesmo que de maneira enunciativa) extrapola os limites da razoabilidade crítica requerida para uma atitude política decolonial e, portanto, sanitária. Não há democracia plena em situação de colonialidade, simplesmente porque não há democracia onde se tem um projeto de genocídio, epistemicídio, e etnocídio em curso; dito de outra maneira, um estado de exceção, um horizonte de morte (Bento, 2018; Nascimento, 2016).
O caráter necrobiopolítico do Estado brasileiro na saúde é ilustrado através do fato histórico apresentado por Chalhoub (1996 apud Ribeiro, 2008). Esse autor retrata que em 1850, na cidade do Rio de Janeiro, houve um surto de febre amarela que acometeu especialmente a população imigrante europeia, advinda do projeto e processo eugenista assistido no Brasil. Apesar da população ainda em situação de escravização ser mais acometida por tuberculose e varíola, as políticas de saúde se voltaram sumariamente ao controle da febre amarela sob a égide de que pessoas negras seriam supostamente mais resistentes às enfermidades.
Esse fato histórico foi discutido por Ribeiro (2008) no contexto de reflexão sobre a tuberculose, ocasião em que ela reposiciona o debate em torno das doenças consideradas negligenciadas: o alvo da negligência não é a doença, entidade biológica, mas as pessoas por ela acometidas, os doentes e seus corpos, que são, por sua vez, objetos da ação do biopoder. Não por acaso, a incidência e a prevalência dessas doenças ditas “dos trópicos” ou de “países subdesenvolvidos” é maior naqueles grupos populacionais subalternizados.
Apesar de reconhecida a existência de uma “transição epidemiológica” no Brasil, o conjunto de trabalhos presentes no livro Negligências e vulnerabilidades: aportes epidemiológicos para a saúde da população negra no Norte-Nordeste do Brasil, organizado por Helton Silva e colaboradoras (2023), nos apontam duas constatações: (1) não houve uma transição efetiva; e (2) quem mais morre e adoece por doenças infectoparasitárias foi, é, e continua sendo a população não-branca, assim como por doenças crônicas e por causas externas.
Com o advento da pandemia da covid-19, manchetes como “pandemia escancara as desigualdades sociais no país” tomaram conta da grande mídia e foram repetidamente proferidas ao longo do transcurso da crise sanitária como se essas estivessem ocultadas, escondidas, “não tão aparentes assim”, desnudando a ordem de um discurso que enuncia um outro mito, segundo o qual as desigualdades sociais (fundamentalmente raciais) no Brasil seriam/estariam, de alguma forma, veladas (Nascimento, 2016).
Como poderia sê-lo, se essa mesma mídia noticia de maneira recreativa a morte e o encarceramento em massa de pessoas negras todos os dias em telejornais como “Na mira” e “Se liga bocão”? O caráter ostensivo do racismo reside nos lastros deixados pela necrobiopolítica estatal, expostos “a céu aberto” nas favelas, outrora cortiços, no inalterado quadro de trabalhadores destituídos do sistema de produção, e nos indicadores sociais e epidemiológicos. A desigualdade está em via pública, em quem está em situação de rua ou de privação de liberdade, em quem vive nas periferias da periférica Améfrica Ladina (Gonzalez, 2020).
Considerações finais
Ter essas dimensões enquanto pressupostos a serem considerados pela RSB, em detrimento da modernização/desenvolvimento do capitalismo e da busca por um socialismo, é fundamental para que não haja espaço para distorções no seio do movimento como aquele presente no informe do Instituto Oswaldo Cruz intitulado “O SUS é racista?”, uma manifestação expressa do pacto narcísico da branquitude (Bento, 2022).
Nesse documento, três pesquisadores brancos consideram “[…] um equívoco a criação de uma política de saúde focalizada na ‘população negra’, formulada por setores do movimento negro, da comunidade científica e de representantes do governo, com o apoio recente do Ministério da Saúde” (Maio; Monteiro; Rodrigues, 2006, s/p). É um exemplo claro da primeira tese da colonialidade defendida por Maldonado-Torres: explicitar a situação de colonialidade causa ansiedade. Como afirma Beatriz Nascimento,
O branco brasileiro de um modo geral, e o intelectual em particular, recusa-se a abordar as discussões sobre o negro do ponto de vista da raça. Abomina a realidade racial por comodismo, medo ou mesmo racismo. Assim, perpetua teorias sem nenhuma ligação com nossa realidade racial. Mais grave ainda, cria novas teorias mistificadoras, distanciadas dessa mesma realidade. (2021, p. 36)
Portanto, é absurdo para esses supostos “sujeitos da práxis” que “[…] parcelas do ativismo negro e seus aliados concebem o enfrentamento das mazelas da discriminação social, inclusive propondo um capítulo sobre saúde no projeto de Estatuto da Igualdade Racial, em tramitação no Congresso Nacional” (Maio; Monteiro; Rodrigues, 2006, s/p).
Se para esses atores “O SUS é o resultado de uma luta antiga, da tradição sanitarista não-racialista” (Maio; Monteiro; Rodrigues, 2006, s/p). Mudar essa tradição fadada ao fracasso é, precisamente, por todos os fatores já aqui elencados, o desafio político da atualização do debate sobre a RSB.
Finalmente, reconheço que esse é um processo já em vias de materialização pelas(os) inúmeras(os) pesquisadoras(es) da Saúde Coletiva, comprometidas com a saúde das populações subalternizadas no país, por atores políticos da RSB como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), com o número temático intitulado “Outros olhares para a Reforma Sanitária Brasileira” da revista Saúde em Debate, e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pela tentativa de convite à reflexão do campo à luz da decolonialidade no 9º Congresso de Ciências Humanas e Sociais em Saúde. Portanto, apesar de haver muito a avançar, asseguradamente a Reforma Sanitária Brasileira não é um “movimento desnaturado” (Paim, 2008, p. 312).
Referências
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A colonização/modernidade só foi possível em função do investimento na diferença subontológica (Maldonado-Torres, 2023), ou seja, a invenção da raça e do gênero (como Maria Lugones elucidou) para criação de um sistema de classificação dicotômico compulsório com base no qual se define o grau de humanidade tomando como referência o homem heterossexual da Europa Ocidental. Isso foi feito a fim de legitimar os empreendimentos coloniais, criar explicações para justificar a violência, o genocídio, e os sistemáticos estupros e sequestros do processo de colonização, endereçados não aos “humanos”, mas às “coisas”, mercadorias, aos bichos macho e fêmea, àqueles desprovidos de alma. Na colonialidade, essas lógicas se mantêm por meio de imagens de controle (Collins, 2016) que imputam nos sujeitos colonizados e em seus descendentes uma força e resistência “sobre-humanas” (para justificar violências ocupacionais e obstétricas; negando-lhes a condição de sujeitos de cuidado), a promiscuidade (para justificar as violências sexuais), a barbárie, a precariedade, a subserviência e a criminalidade (plasmada na figura do bandido, permanentemente suspeito, e “bandido bom é bandido morto”). Outrossim, tem-se a eugenia (desde a esterilização forçada à pressão moral em torno do “pobre não deveria ter filho”) que visa impedir seus descendentes de nascer. Quando nascem, lhes roubam suas potências de vida, ao deixarem de ser crianças e se tornarem “menor”, afinal, “filhinho de peixe, peixinho é” (Gonzalez, 2020). “Eles não viram que eu estava com a roupa da escola, mãe?” foram as últimas palavras de Marcos Vinícius antes de ter sido executado pela polícia, aos 14 anos, na cidade do Rio de Janeiro em 2018. Como se não bastasse “o corpo negro caído no chão”, ainda o acusaram de ser traficante, assassinando também sua biografia.
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No original: “Todo lo que las instituciones estatales dejan de hacer, soslayan, no ven, o en la práctica invisibilizan en materia de las relaciones raciales expresa el racismo institucional. Se reafirma la tesis de que en Cuba, asentado en el colonialismo y el esclavismo, se afianzó un racismo estructural de larga data, pero que es capaz de reproducirse bajo ropajes nacionalistas y globales, de manera difusa y controversial hasta la actualidad”.
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3
No original: “Las causas de esas razones duermen en la etapa pre-revolucionaria; pocos autores nuestros revelaron esa culpa de quienes heredaron la colonialidad del poder y del saber en nuestra sociedad: aquellos blancos cubanos productores y herederos del poder y de una ideología colonial que aún sobrevive o reaparece en determinados espacios, artífices y guardianes de una hegemonía (blanca) que la Revolución heredó sin autocriticarse, tal y como pedían los luchadores antirracistas Juan René Betancourt y Walterio Carbonell”.
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4
Na análise de sistemas de saúde se faz uso de tipologias para classificá-los segundo o grau de participação do Estado, da iniciativa privada e da sociedade civil na regulação, no financiamento e na provisão de serviços. O modelo Semashko surgiu com a Revolução Soviética de 1917 e se caracteriza por ser integralmente estatal (incluindo a propriedade dos estabelecimentos de saúde), todos os profissionais de saúde são empregados públicos, é centralizado e de acesso universal (Lobato; Giovanella, 2012).
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5
Como nos apresentam Lins e Cecílio (1998), para Mario Testa, não há planejamento se não for levado em consideração a realidade social que se visa atuar. Ele só será estratégico (meio através do qual se consegue chegar aos objetivos desejados - a política) caso haja correspondência entre o método (determinado pela teoria sobre o problema), o propósito (determinado pelo papel do Estado) e as organizações (determinadas pela história).
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6
A busca foi feita tanto com os termos em minúsculo quanto tendo suas letras iniciais em maiúsculo, no singular e no plural.
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7
Algumas das críticas feitas à Interseccionalidade foram recuperadas e apresentadas por Akotirene (2019) e repousam sobretudo na maneira que ela foi conceitualizada por Kimberlé Crenshaw, aquela que leva inclusive o reconhecimento por ter cunhado o termo. Contudo, é preciso situar que aquilo que foi nomeado por interseccionalidade não é somente produto intelectual da academia ou do âmbito jurídico, mas da movimentação política e das experiências de vida de mulheres racializadas e dissidentes sexuais. No Brasil temos, por exemplo, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, conquanto nos Estados Unidos essa elaboração analítica surge no seio do coletivo de coalizão Combahee River.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
10 Ago 2023 -
Revisado
06 Dez 2023 -
Aceito
27 Dez 2023