Resumo
Neste trabalho, refletimos sobre o modo como diversas figuras de alteridade são alvo de marginalização e o que isso implica em termos de reconhecimento nas gramáticas políticas que estabelecem quem pode se tornar um sujeito da saúde. A partir de contribuições feministas e decoloniais, discutimos algumas premissas ontológicas acerca da relação entre humanos, não humanos e a natureza, para alargar o entendimento da Saúde Única em Periferias. Também incorporamos narrativas de adolescentes que moram na favela Jardim São Remo (São Paulo, SP) e atuam como Agentes Mirins da Saúde Única em Periferias. Em diálogo com eles, exploramos o processo de exclusão constitutiva das favelas, apoiado em retóricas que não reconhecem a pluralidade das configurações coletivas e reforçam a figura das favelas como ameaça à segurança pública. Em contraposição a esse projeto, trazemos os princípios de reflorestamento e da confluência de alteridades significativas para reforçar a justiça multiespécie promovida pela práxis da Saúde Única em Periferias.
Palavras-chave: Alteridades; Periferias; Saúde Única; Feminismos; Decolonialidade
Abstract
In this work, we reflect on how different figures of alterity are targets of marginalization and what this implies in terms of recognition in political grammars that establish who can become a subject of health. Based on feminist and decolonial contributions, we discuss some ontological assumptions about the relationship between humans, non-humans, and nature to broaden the understanding of the One Health of Peripheries. We also incorporate some narratives of adolescents who live in the Jardim São Remo favela (São Paulo, SP) and act as One Health of Peripheries Young Agents. In dialogue with them, we explore the process of constitutive exclusion of favelas, based on rhetorics that do not recognize the plurality of collective configurations and reinforce the figure of favelas as a threat to public security. In contrast to this project, we bring the principles of reforestation and confluence of significant alterities to reinforce the multispecies justice promoted by the praxis of One Health of Peripheries.
Keywords: Alterities; Peripheries; One Health; Feminisms; Decoloniality
Saúde Única em Periferias: alguns pressupostos
A discussão sobre saúde está ligada a reflexão acerca da ontologia do sujeito político que constitui o alvo das ações institucionalizadas, que irão dar conta de seu cuidado. A depender dos pressupostos acerca da natureza do ser, assim serão as táticas e estratégias que serão desenvolvidas para materializar as promessas de cuidado e bem-estar. Assim, o que se entende por saúde, quem tem direito a ela e quais são as urgências em termos de políticas de saúde são questões com importantes implicações políticas, que envolvem tensões e disputas que refletem a ordem social imperante onde tais questões estão inseridas (Baquero, 2021a).
Dentre as áreas de estudo que abrangem este debate, encontra-se a saúde coletiva, que vem assumindo preocupação central com a determinação social da saúde, expandindo as abordagens marcadas pelo reducionismo biologicista e individualista. No entanto, alguns limites têm sido apontados à saúde coletiva, dentre eles o fato de estabelecer a equivalência entre o social e o humano, deixando de fora animais e outros atores sociais, costumeiramente agregados sob o rótulo de natureza. Essa limitação não é intransponível na teoria social e muito menos nas cosmologias indígenas, como pode se observar na afirmação do Ailton Krenak (2020), pensador e ativista da etnia Krenak: “eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza” (p. 16-17).
É deste incômodo, que aliena seres humanos do resto da natureza, que a Saúde Única em Periferias (SUP) emerge como um marco epistemológico, ético e político, interessado por coletivos multiespécies marginalizados. Esses coletivos têm uma particularidade: estão conformados por indivíduos de diferentes espécies que se relacionam entre si e com outros elementos do entorno, dando lugar a ambientes complexos nos quais as decisões políticas e as relações sociais não envolvem apenas os humanos.
Assim, uma das viradas mais radicais que a perspectiva da SUP traz é a crítica à narrativa de um sujeito universal da saúde, desconectado do quadro de relações de poder no qual múltiplos seres estão inseridos. Trata-se da descentralização do humano como alvo exclusivo das políticas e cuidados em saúde, recuperando saberes e práticas das margens para inspirar cosmopolíticas do bem viver. No cerne dessa reflexão, pulsa uma concepção do sujeito ou, ainda, do ser, na sua relação com alteridades significativas, como aponta Haraway (2021). A autora usa essa noção para se opor à dicotomia natureza e cultura, frisando a relacionalidade entre esses domínios. Dessa forma, Haraway pensa em termos de conexões parciais, nas quais os atores não são nem todo, nem parte - o que ela entende como relações de alteridades significativas.
Para a perspectiva da SUP, dentro da qual nos posicionamos, torna-se central a reflexão acerca dos animais, plantas, rios, ar etc, e outros seres de um ambiente relacional, que materializam modos de vida determinados tanto por agenciamentos coletivos oriundos das periferias, quanto pela gestão biopolítica a partir de outras instâncias.
Precisamente, uma das chaves teóricas que condensa esta discussão é a biopolítica do mais-que-humano (Baquero, 2021a), que problematiza a forma de inscrever na cultura a “vida animal e a ambivalência entre humano e animal como via para pensar os modos como nossas sociedades traçam distinções entre vidas por proteger e vidas por abandonar” (Giorgi, 2015, p. 12) ou explorar. Essa perspectiva biopolítica vem avançando em relação a outras abordagens em saúde coletiva que, apesar de considerarem as determinações sociais da saúde, escamoteiam o papel de vidas não humanas na compreensão da saúde e da sua gestão. Trata-se de um quadro de reflexões que desenvolve uma crítica dos dispositivos de marginalização que criam e reproduzem hierarquias com efeitos patológicos em determinados coletivos multiespécies (Baquero, 2021a).
Complementando essa biopolítica do mais-que-humanos que aposta numa desestabilização das premissas individualistas para conceber a Saúde Única em Periferias, no presente trabalho iremos nos deter brevemente em alguns desdobramentos destas reflexões, propondo alianças teóricas entre Saúde Única, feminismos e saberes decoloniais e anticoloniais, como forma de trabalhar duas das sete ações de promoção decolonial da Saúde Única em Periferias, a saber, a desconstrução de dispositivos de marginalização e o enriquecimento da ecologia de saberes (Baquero; Fernández; Aguilar, 2021).
Portanto, nossa aposta neste texto consiste em situar uma leitura feminista, decolonial e anticolonial da saúde de coletivos multiespécies, procurando apontar novas direções, nomeadamente, as conexões entre regimes coloniais e saúde nas periferias urbanas e o modo como a relacionalidade e co-constituição entre espécies pode se tornar um lócus de agenciamentos em saúde. Embora a cartografia periférica trabalhada pela SUP envolva espaços geográficos e simbólicos que excedem as cidades (Baquero, 2021a), a noção de periferias neste texto estará voltada a favelas e outros territórios urbanos biopoliticamente excluídos.
Nossa proposta se fundamenta no que João Manuel de Oliveira (2010) designa como hifenização de saberes, uma forma de hibridização de conhecimentos críticos que, no caso do presente trabalho, visa questionar situações de iniquidade social, somando-se aos esforços teórico-políticos que vêm sendo realizados pela SUP, assim como em outras pesquisas que abordam os coletivos multiespécies em diálogo com as ciências humanas (Cruz, 2020).
É importante antecipar que trazer a discussão acerca de uma ontologia do ser para localizar nossa leitura sobre a Saúde Única em Periferias não se restringe a uma mera questão filosófica. Ao olharmos de forma crítica as premissas ontológicas que orientam as estratégias biopolíticas em saúde das periferias, buscamos explorar os regimes de poder que fazem com que determinadas vidas sejam priorizadas em matéria de saúde, enquanto outras são tratadas como vidas outrificadas, e, portanto, negligenciadas e colocadas nas margens do direito à saúde.
Esta escolha também se sustenta na pluralidade de saberes advogada pela Saúde Única em Periferias (Baquero; Fernández; Aguilar, 2021). Neste escopo, as contribuições feministas e dos estudos decoloniais e anticoloniais são relevantes por se tratar de práticas de interrogação sobre os sistemas de dominação - como gênero, “raça” e classe, impostos na modernidade e mantidos nas atuais relações de colonialidade. Também como parte da problematização desses regimes de dominação, é preciso questionar a própria primazia com que a humanidade é tratada, colocando em causa outras existências.
Dessa forma, a Saúde Única em Periferias se constitui em espaço intersticial crítico, problematizando as hierarquias coloniais que, estando fundadas na distância em relação ao que se conta como humano, acabam induzindo processos de precarização em saúde de determinados coletivos multiespécies.
Buscando contribuir com esse diálogo, na seção a seguir propomos algumas reflexões sobre os coletivos multiespécies. Para tal, utilizamos contribuições do feminismo pós-estruturalista de Donna Haraway (2021), da perspectiva anticolonial guarani, de Geni Núñez (2021), e quilombola, de Antônio Bispo Santos (2015), por se situarem na linha de pensamento contra-hegemônico, que problematiza as lógicas da modernidade/colonialidade (Krenak, 2020). Estes contributos nos auxiliam na tarefa de repensar uma outra ontologia do sujeito político da saúde: do ser com outros, da relacionalidade constitutiva entre espécies (Haraway, 2021; Núñez, 2021; Santos, 2015) alvo da promoção decolonial da Saúde Única em Periferias, que implica, dentre outras coisas, “desconstruir, por meio da ecologia de saberes, os dispositivos marginalizantes subjacentes às iniquidades em saúde sofridas por coletivos multiespécies” (Baquero; Fernández; Aguilar, 2021, tradução nossa).
Na terceira seção do texto focamos nas narrativas de adolescentes integrantes do projeto Agentes Mirins da Saúde Única em Periferias (AM-SUP), que em 2021 e 2022 aconteceu no Jardim São Remo e na Serra Pelada, favelas da Zona Oeste e da Zona Norte do município de São Paulo, respectivamente. O AM-SUP é um projeto coordenado pela Rede SUP, no qual crianças e adolescentes, em semelhança aos Agentes Comunitários de Saúde, trabalham pela promoção da saúde dos territórios em que habitam. No referido período, os Agentes Mirins da SUP trabalharam pela promoção da saúde de coletivos multiespécies junto a um grupo de estudantes de diversos cursos da Universidade de São Paulo, pesquisadores, articuladores comunitários e instituições socioeducativas atuantes no Jardim São Remo e na Serra Pelada, num esforço de integração de saberes acadêmicos e periféricos para quebrar o solipsismo epistêmico (Grosfoguel, 2013) que dá visibilidade apenas às produções dos primeiros.
Visando nos distanciar de qualquer tentativa de (aparente) neutralidade nas reflexões propostas, neste texto adotamos uma política de localização (Rich, 2002), considerando que os conhecimentos que produzimos são afetados pelos lugares que habitamos, começando pelo nosso próprio corpo enquanto território mais próximo. Assim sendo, na produção deste texto confluem vários corpos-territórios.
Nós, que escrevemos este texto, atuamos como acadêmicos da USP, somos pessoas racializadas e estrangeiras de Cuba e da Colômbia morando no Brasil, marcadores que implicam ao mesmo tempo alguns lugares de privilégio, sobretudo acadêmico, e algumas vulnerabilidades. Nossa localização geopolítica influencia o texto porque nossos corpos estrangeiros compõem a paisagem das outridades que, no Brasil, são tidas, entre outras coisas, como invasoras ou perigosas. Não é segredo que habitar o território brasileiro sendo um estrangeiro branco e oriundo de um país dito desenvolvido garante um acolhimento que não é igual quando se trata de pessoas vindas do Haiti, da Colômbia, da Venezuela ou de Cuba. O xingamento “vai para Cuba” traduz não só uma postura anticomunista, que é marcante no Brasil, mas expõe que as políticas de acolhimento são diferentes para os diversos corpos estrangeiros que habitam o país.
Neste sentido, a nossa condição de migrantes de Cuba e da Colômbia constitui um vetor que atravessa nossa análise, por se tratar de um lugar de partida que condiciona o que vemos e aquilo que escapa às nossas percepções. Dessa forma, se nossas posições fossem outras, ainda assim, não seriam neutras.
Sobre o território em que se situam nossas análises, é preciso apontar que o Jardim São Remo é uma comunidade da Zona Oeste do município de São Paulo. O território é delimitado pelo campus da Cidade Universitária (USP) no leste e sudeste, pelo 16° Batalhão da Polícia Militar no norte e noroeste, e por bairros residenciais no oeste e sudoeste. Atualmente compreende área de 64.000 m2 e abriga mais de três mil famílias. A história da formação da São Remo é similar à de outras favelas da metrópole paulistana. A sua constituição foi marcada pela procura de formas improvisadas de acesso à terra e autogestão de moradia, diante da ausência de políticas formais que viabilizassem o acesso a condições dignas de vida. Atualmente, é um bairro estabelecido que continua na disputa por reconhecimento. Sua dinâmica social é intensa, envolvendo comércios, opções de lazer, esporte e manifestações culturais que a colocam no mapa da cidade (Grinover; Zuquim, 2019).
A São Remo é um dos territórios que fazem parte do Projeto AM-SUP da Rede SUP, que, em 2021, foi iniciado com oito adolescentes com idades entre 13 e 16 anos, sendo seis de gênero feminino. A totalidade de adolescentes foi considerada racializada conforme os marcos de inteligibilidade racial que operam no Brasil (Schucman, 2012). À exceção de uma delas que, em suas palavras, veio do “interior do Brasil” para morar na São Remo, o restante do grupo nasceu e tem crescido em São Remo e Serra Pelada. Para os propósitos deste texto focaremos principalmente em narrativas de adolescentes da São Remo, que foram registradas em reuniões por videoconferência e em grupos de WhatsApp durante a pandemia de Covid-19, embora também tenhamos nos apoiado em falas das Agentes Mirins da Serra Pelada.
As discussões elencadas apontam caminhos para pensar a Saúde Única em Periferias como um projeto de justiça social que, por um lado, recusa a reprodução de hierarquias coloniais que subjugam determinadas vidas, territórios e saberes, e por outro, interessa-se por formas de promover o florescimento da alteridade significativa (Haraway, 2021; Núñez, 2021). Esboçamos alguns desses caminhos nas considerações finais, sem pretensão alguma de torná-las um manual.
Uma ontologia do ser com outres: inspirações feministas, anticoloniais e decoloniais da saúde multiespécie
“Os trilhões de microrganismos que convivem em mim, em nós, não me deixam reivindicar a autoria individual do ser que somos” diz um fragmento da poesia de Geni Núñez (2021, p. 5), uma das interlocutoras que trazemos para esta análise. Os versos são uma síntese de pressupostos anticoloniais da cosmogonia indígena guarani. Consideramos que esta última pode inspirar leituras produtivas acerca dos coletivos multiespécies, pois a autora questiona o individualismo, além do binarismo ontológico que naturaliza a divisão entre humano e não humano. Além disso, Núñez problematiza as violências decorrentes desse sistema de classificação social de raiz colonial. É precisamente essa centralidade do humano branco, cisgênero, heterossexual, sem deficiências, de classe média e morador da cidade, tido como representante de uma ordem superior, “civilizada” e contraposta à ofensa que viria a ser o animal, que se cria uma hierarquia que reifica o humano, e, com isso, autoriza a violência, extermínio e exploração de outros seres (Núñez, 2022).
Essa ontologia do ser que ignora que não somos autossuficientes e que precisamos do ar, da água, da terra e do alimento tem efeitos excludentes (Núñez, 2021). Decerto, as ciências têm esmiuçado processos metabólicos e relações ecológicas envolvendo os humanos, mostrando que dependemos de outros seres. Entretanto, a instrumentalização dessas ciências e a limitação do seu domínio de validez têm preservado o mito da superioridade humana e sofisticado a exploração de não humanos e sub-humanos. Em outras palavras, as ciências também são usadas para atender preferencialmente os interesses daqueles que melhor se ajustam ao modelo capitalista e racializado do humano, enquanto a sua superioridade é reforçada, sem oferecer fundamentos científicos sobre a conveniência de escolher tais critérios antropocêntricos (se o critério for a adaptabilidade, a força, a capacidade sensorial etc., o ser superior não seria um humano - pense nos insetos, no búfalo, no morcego…). Assim, somos incitadas a pensar a Saúde Única em Periferias e sua gestão biopolítica enquanto um processo que não começa nem acaba no humano, mas que que se situa na contramão das lógicas coloniais.
Os próprios modos de vida que emergem nas periferias e têm sido mapeados em diversas pesquisas e produções acadêmicas vêm nos mostrando a configuração mais-que-humana dos coletivos marginalizados que adoecem. Um censo multiespécie realizado nas favelas Jardim São Remo e Jardim Keralux mostrou que, nos domicílios, os animais de companhia eram mais numerosos que as crianças e tanto moradores como pesquisadores de campo referiram-se ao estatuto de membros da família em relação a animais não humanos, principalmente caninos e felinos (Baquero; Peçanha, 2021). Assim, “insistir na imposição de um retrato puramente humano das famílias periféricas, é mais um ato de desconsideração da forma em que essas famílias se entendem” (Baquero; Peçanha, 2021).
É preciso tomar esse ato de desconsideração das formas de organização familiar das periferias como um gesto que expõe a violência colonial que atinge sujeitos subalternizados, os quais têm seus saberes e formas de vida desqualificados, inferiorizados e expostos a uma espécie de genocídio cultural (Santos, 2015). A insistência em um retrato das periferias que não condiz com seus arranjos relacionais, apagando espécies não humanas que fazem parte dessas configurações familiares, mostra os ecos contemporâneos dos regimes coloniais. O apelo à homogeneização como forma de extermínio simbólico dos diversos modos de vida é um dos pilares do pensamento colonial.
De acordo com Antonio Bispo Santos (2015), uma das técnicas de adestramento colonial é o não reconhecimento das matrizes simbólicas e culturais que diferentes grupos usam para se autodefinir. Sobre isso, o autor demonstra que impor denominações generalizadas é uma forma de quebrar as identidades dos povos que não se entendem a partir dos dispositivos de matriz eurocêntrica. Neste caso, a tentativa de imposição nas periferias de um modelo de família que incluiria apenas humanos faz parte desse projeto de adestramento colonial no qual a primazia do humano implica na exclusão constitutiva de animais não humanos e da separação entre sociedade e natureza.
Na contramão desse projeto de adestramento colonial, a promoção decolonial da Saúde Única em Periferias busca operar na direção daquilo que Foucault (2000) nomeou como exercício de dessubjugação de saberes das margens, daqueles permanentemente submetidos a diversas formas de apagamento pelos saberes instituídos. Neste caso, nos interessa o acúmulo de experiências e conhecimentos que circulam na periferia de São Remo sobre diversas formas de construir territórios de cuidado, saúde e amparo, com ênfase no coletivo. Entendemos que nas periferias há saberes que, enquanto práxis, contestam o projeto civilizatório eurocêntrico e seu limitado cardápio de monoculturas ocidentais (Núñez, 2021). Da mesma forma, buscamos refletir sobre como esses saberes periféricos ajudam a repensar, refutar e expandir nossos entendimentos acerca da Saúde Única em Periferias.
No Relatório “Vivências da pandemia na São Remo: um discurso coletivo” (Faria, 2021) fica evidente que as relações entre espécies se tornam relevantes não só como parte de arranjos familiares contra-hegemônicos, mas no que tange a construção de espaços de acolhimento em situações de vulnerabilidade, como a da pandemia de Covid-19. Um dos registros que consta no discurso coletivo desse relatório expressa que:
O convívio com os animais tornou-se essencial no enfrentamento do vírus, […] Eles são uns bichos companheiros, dóceis, […] que estão nas horas de felicidade, de tristeza, de alegria e nas horas boas. Por isso, temos que acolhê-los, dar-lhes mais atenção, uma vez que é recíproco o que eles fazem conosco. (Faria, 2021, p. 21, grifo nosso)
Podemos derivar daqui algumas inspirações para repensar a saúde não como algo que vem depois, como consequência, mas como algo que está imbricado no próprio tecido artesanal das relações cotidianas entre espécies. Se dentro de uma lógica colonial a centralidade do humano é ponto de partida da negligência de múltiplas vidas a partir de regimes de racialização, acreditamos que a descentralização do humano e a atenção para as alianças que se tecem entre diversas figuras de alteridade que ocupam as margens do corpo político, mostram que é nessas relações de co-constituição que existem maiores possibilidades de construir territórios de cuidado e saúde.
Assim, compreender as fundações contingentes entre espécies e o modo como criam possibilidades de coabitação pautada pelo bem viver permite apontar novas direções para conceber a saúde de coletivos multiespécies a partir de perspectivas mais abrangentes. Um dos fios que conecta as dimensões ontológica e a ético-política da saúde multiespécie é o princípio da floresta descrito por Núñez (2021). Enquanto uma inspiração cosmológica guarani, o princípio da floresta aposta na ideia de que:
Só é possível existir na convivência de muitos mundos, plurais, em relações de co-dependências partilhadas e concomitantes com a infinidade de seres que torna a vida possível. Nisso vemos potência de descentralização, não só no campo das relações interpessoais entre humanos, como também da própria descentralização do humano como centro do mundo. Somos apenas parte, um dentre muitos elementos que constituem a vida. (Núñez; Oliveira; Lago, 2021, p. 85)
O princípio da floresta aposta na potência da descentralização do humano, reconhecendo a relevância da concomitância como horizonte político e ético das relações entre espécies. O princípio da floresta envolve, assim, a criação de novos imaginários sobre o mundo, que se distanciam dos imaginários hegemônicos que, ao estarem baseados na colonialidade do ser e do saber, impõem hierarquizações entre viventes, epistemicídio, etnocídio e genocídio cultural. Como referido: “pautamos ainda a importância da descentralização, da interdependência coletiva, da concomitância e da convivência como princípios de uma existência para além das monoculturas” (Núñez; Oliveira; Lago, 2021, p. 86).
A proposta de Núñez (2021), localizada no campo da cosmologia anticolonial guarani para tensionar as colonialidades de gênero, se mostra útil para questionar também o monoespecismo. O caráter emancipatório desta proposta consiste na afirmação do direito radical que cada ser tem de exercer a vida. Assim, tal princípio constitui fundamento para políticas de saúde que não impliquem o negligenciamento de nenhum vivente nem dos ambientes onde se inserem. Portanto, o princípio da floresta, além de ser elaboração desenvolvida no contexto brasileiro atual, compondo a cosmogonia indígena guarani, constitui “uma importante aliada às demais lutas anticoloniais, em conexão com o combate ao capitalismo, ao machismo, ao racismo e ao ecocídio” (Núñez; Oliveira; Lago, 2021, p. 86).
O princípio da floresta dialoga, no nosso ver, como o que Santos (2015) nomeia como princípio da confluência, presente nos modos de vida dos quilombos no Brasil. A confluência faz parte da cosmovisão politeísta que defende a relação de convivência respeitosa entre elementos vitais, considerando a natureza, humanos e não humanos (Santos, 2015). Ambos os princípios se situam no âmbito dos esforços contra-coloniais que compõem a trajetória de povos indígenas, quilombolas, camponeses e classes populares, como as periferias brasileiras. Sobre a contra-colonização, Santos (2015, p. 48) aponta que se trata de “todos os processos de resistência e luta em defesa dos territórios dos povos […,] os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses territórios”. O autor acrescenta que essas cosmovisões estão presentes no dia a dia e fazem parte do processo organizativo da coletividade desses povos.
Como apontado por Núñez (2022, p. 54) , “quando não estamos em rede, adoecemos, algo que a vida nas cidades e no seu ritmo individualista compele a todo momento”. Essas redes costumam ser pensadas no âmbito restrito dos humanos, ignorando que a existência humana se inscreve no mundo através de múltiplas relações com outros viventes. Com base nas ideias discutidas até aqui, podemos nos perguntar: de que modo estes princípios - floresta e confluência - podem se somar à perspectiva decolonial da Saúde Única em Periferias?
Mesmo que não seja possível uma resposta exaustiva a essa pergunta nos limites deste texto, as próprias reflexões que aqui tomamos como guias parecem abrir caminhos. Como foi referido:
Também contam como rede de apoio, saúde, encanto e afeto os pássaros, o vento, as joaninhas, os rios, a terra [… O] reflorestamento aqui importa como um processo de cura […] também do nosso imaginário […, para] cultivar, artesanalmente em nossas singularidades coletivas, meios de relações não mediadas pela propriedade, controle, hierarquia”. (Núñez, 2022, p. 58)
O projeto AM-SUP apresenta-se como um cenário favorável para pôr em prática o reflorestamento dos nossos imaginários em torno da saúde. Isso porque a implementação desse projeto viabiliza a troca coletiva de saberes que tem por fim, dentre outras coisas, a crítica dos processos políticos e sociais que marginalizam as favelas, visando a construção de políticas públicas de saúde a longo prazo.
Quanto ao envolvimento de relações de qualidade entre espécies como uma condição para a produção de existências saudáveis, cabem algumas considerações que, por enquanto, abrem mais questões do que propõem respostas. Se é nessa teia multiespécie que a saúde tem amplas possibilidades de ser cultivada e agenciada coletivamente, o que essa premissa parece indicar é a necessidade de prestar atenção aos modos com que o colonialismo e seus mecanismos de reprodução capturam a diversidade multiespécie.
Nessa captura destaca-se, por um lado, a insistência na primazia do humano como o único sujeito inteligível nas gramáticas políticas hegemônicas que estabelecem quem pode ser cuidado ou se tornar uma figura central nos retratos da família brasileira. Por outro, parafraseando Santos (2015), são notáveis as tentativas de aniquilamento simbólico das cosmovisões politeístas dos povos marginalizados. Estas cosmovisões envolvem a elaboração de saberes que organizam as diversas formas de vida e de resistência comunitária, em que a relação intrínseca com elementos da natureza é fundamental. Diante das tentativas de aniquilamento simbólico, a resistência envolve a dessubjugação desses saberes.
A Saúde Única em Periferias, na perspectiva multiespécie e inspirada pelos diálogos antes trazidos, também considera a agência como um processo que se constrói coletivamente, a partir da vulnerabilidade e da potência implicadas nas relações multiespécies. Decorrente disso, consideramos a saúde nas periferias como uma articulação assente nas alianças entre diferentes formas de vida. A Saúde Única em Periferias implica um gesto atento ao modo como múltiplas espécies caminham juntas, às infraestruturas que tornam possível a vida em relações de confluência, considerando os diversos suportes que são criados diante das políticas estatais de precarização dessas vidas. Há, nesta compreensão da saúde, importantes inspirações feministas advindas do trabalho de Judith Butler (2006) e de alguns dos seus interlocutores, como Espinosa, cuja Ética, segundo a autora, defende o entendimento anti-individualista da vida, até porque “de acordo com Espinosa, o conatus (o esforço que cada coisa faz para perseverar no seu ser) é aumentado ou diminuído em função dos encontros com outros” (Oliveira, 2017, p. 124). Cabe a nós o compromisso ético de continuar observando o modo como os regimes coloniais obstruem esses encontros.
Políticas de purificação e precarização: os outros da favela São Remo
O desconhecimento dos territórios e a desconsideração do que significam para seus habitantes comprometem a viabilidade das políticas de saúde e reforçam a marginalização. No projeto AM-SUP, os adolescentes contribuem para o entendimento dos territórios a partir de suas vivências. Em grupos de trabalho via WhatsApp e reuniões semanais, os Agentes Mirins refletiram sobre essas vivências em meio a diálogos com diversos atores que contrastam, afirmam e ampliam os significados das favelas São Remo e Serra Pelada.
Nesta seção, trazemos como recorte a categoria de fronteira presente nas descrições da favela São Remo dadas por seus Agentes Mirins. Nos inspiramos no trabalho da feminista Gloria Anzaldúa (2005) acerca das fronteiras, entendendo-as como ficções políticas que não apenas demarcam os limites geográficos de um território, mas envolvem marcos de reconhecimento socialmente estabelecidos. Em decorrência disso, definem-se possibilidades de existir e circular em determinados espaços, processos de policiamento desses espaços e exílios simbólicos e políticos. Ainda quando as fronteiras não são diretamente instituídas para separar humanos de outros animais, a marginalização de determinados grupos humanos repercute nos coletivos multiespécies em que participam, pois os modos de vida impostos aos humanos determinam as relações de seus coletivos (Baquero, 2021a).
O procedimento que usamos para produzir essa reflexão crítica é a problematização recursiva (Fernández, 2007), consistente em um trabalho elucidativo de narrativas. Ana María Fernández (2007, p. 105) afirma que se trata de “tornar visíveis e enunciados as cristalizações de sentido que um coletivo constrói”. Para isso, realiza-se um conjunto de operações com o material textual, como desnaturalização, desconstrução e rastreamento genealógico, amplamente descritos em sua obra (Fernández, 2007).
Uma das atividades iniciais realizada pelas Agentes Mirins foi a descrição da São Remo. A totalidade de agentes remeteram à localização e às fronteiras geográficas, indicando avenidas e o 16º Batalhão da Polícia Militar, mas omitindo a USP. A identificação de uma instituição militar e a ausência da universidade nas suas narrativas abre caminhos para problematizar tanto o modo como determinadas figuras de alteridade - que aqui localizamos como os corpos da periferia - encontram possibilidades de habitar espaços públicos, como a dupla condição de proximidade/distância da USP.
A ausência da USP nas narrativas de adolescentes que moram numa favela separada dela por um muro, faz-nos pensar em tal condição como um efeito da biopolítica da ordem pública, nos termos que essa noção tem sido debatida por Pérez Navarro (2021). O autor tem mobilizado esse dispositivo teórico no quadro das políticas de gênero e sexualidade e aqui o consideramos útil para problematizar este jogo de presença/ausência, que faz com que corpos da periferia não se autopercebam sendo parte de um espaço público como a cidade universitária. O que isso poderia estar nos apontando?
Sendo a USP uma instituição pública, não está isenta de processos de regulação de fronteiras com base no policiamento de marcadores sociais como “raça” e classe, que condicionam uma distribuição desigual do acesso ao espaço público. Esse processo de regulação é mobilizado por meio de uma construção ideológica de ordem pública, na qual a vigilância das fronteiras culturais implica a exclusão de determinados corpos e práticas do espaço público como forma de produzir uma ilusão de homogeneidade interna (Pérez Navarro, 2021).
Segundo depoimentos coletados na pesquisa de Albejante (2015), até meados da década dos 1990, a USP era ocupada regularmente por pessoas de São Remo, especialmente crianças e adolescentes que encontravam, nas praças e outros espaços da cidade universitária, opções de lazer. No entanto, segundo constata a pesquisadora:
Começou a haver alguns problemas com relação à infraestrutura da universidade. Além disso, se acontecesse um acidente com qualquer pessoa que estivesse no campus, a responsabilidade legal seria da universidade. Por isso, a USP resolveu restringir o acesso de toda a população paulistana ao campus, construindo um muro de concreto. (Albejante, 2015, p. 43)
Em entrevista realizada na pesquisa referida, um morador relata suas impressões sobre o muro, associando-o ao falecimento de um adolescente da São Remo na Raia (corpo de água para esportes aquáticos) da USP. Os depoimentos recolhidos na pesquisa mencionada, evidenciam o impacto negativo do muro, símbolo da exclusão dos espaços públicos sofrida pelos moradores das periferias (Albejante, 2015).
Na nossa perspectiva, essa “ausência” da USP nas narrativas dos Agentes Mirins sinaliza um processo de expulsão sob o manto da política de segurança institucional, que perpassa a relação da USP com as pessoas que moram na favela São Remo. Achille Mbembe (2018) reflete amplamente sobre as formas como é gerida a relação com esse Outro, cuja presença é percebida como atentado, perigo ou ameaça à própria existência, à segurança de um território. Por esse argumento, cabe pensar aqui que a construção desse muro, como uma política que visava “proteger juridicamente a USP de possíveis implicações legais e danos às infraestruturas”, opera como biopolítica da ordem pública, na qual “a produção do que chamamos espaço público depende da definição prévia do que conta, e do que não conta, como um corpo apto para a coabitação” (Pérez Navarro, 2021, p. 332).
Quem é esse Outro, afinal? De que modo esses corpos periféricos - lidos assim com base numa matriz de inteligibilidade racial e de classe - perturbam essa ordem pública? Corpos que, como afirma Grada Kilomba (2019), são sempre lidos como “estando fora de lugar”, em nome de uma ordem pública que precisa ser resguardada. É importante entender o fenômeno analisado, localizando os processos históricos de produção de marginalização via racismo e classismo que caracterizam o Estado brasileiro, especificamente no que tange às favelas.
Como mostrou o trabalho da Marielle Franco (2018) - com foco nas favelas de Rio de Janeiro, mas que podemos tomar como insumo para a análise que propomos - a adoção de estratégias de segurança representam uma marca do Estado brasileiro na promoção de políticas de punição de pessoas pobres e racializadas que habitam os territórios das favelas. A retórica de “insegurança social” que define as favelas como “perigosas” e/ou territórios onde “moram criminosos” opera como instrumento ideológico para instaurar políticas voltadas à repressão e ao controle das suas populações. Estas questões revelam um projeto de cidade em disputa (Franco, 2018).
O favelado e a favela, enquanto estereótipos do criminoso e da toca de bandidos, são alvos nessa disputa. Os coletivos de mães, avós, crianças, trabalhadores, animais companheiros, fauna urbana, hortas e praças e outros atores são marginalizados pela figura homogenizante de inimigo público e do espaço lúgubre onde ele se esconde. Havendo apenas inimigos, o muro não faz mais que proteger o patrimônio público. Entretanto, ao cruzar fronteiras e entrar nas favelas, a multiplicidade coletiva e de efeitos do muro se revelam. Nas primeiras reuniões com Agentes Mirins, ao colocar as visitas à USP como parte das atividades previstas, uma das adolescentes reagiu com apreensão por sentir que não tinha roupas do nível requerido para ingressar numa instituição desse porte. Sem serem criminosos, esses Agentes Mirins, junto a milhares de moradores da São Remo, percebem o muro como um obstáculo para sua pertença à comunidade universitária. A USP está presente como lugar inacessível, ausente como referência do lugar onde vivem.
A relação entre a Cidade Universitária e a São Remo não se dá somente mediante o muro. Existem esforços para tornar a USP mais inclusiva e integrada com sua vizinhança. Contudo, o muro e as fronteiras continuam presentes e a atuação de Agentes Mirins ajuda a problematizá-los. Embora o propósito deste artigo não seja revelar as fronteiras presentes em todos as pautas trabalhadas com os Agentes Mirins, cabe ressaltar que suas falas as transparecem ao se referirem a outras relações com o Estado e, inclusive, a situações que identificam desde o surgimento da comunidade em que vivem atualmente: “naquela época se travaram muitas batalhas contra o governo para conseguir os direitos deles [de moradores da época]. Água, energia, esse negócio é tipo hoje, ainda essa batalha não foi concluída porque a gente, tipo sete, oito horas da noite a gente tá… não tendo água nas torneiras […] às vezes os vizinhos enchem garrafas” (Agente Mirim da São Remo).
As periferias urbanas são territórios historicamente negligenciados pelo Estado e os agenciamentos que nelas acontecem são estratégicos na identificação, denúncia e desconstrução de dispositivos de marginalização. As políticas de saúde não podem pressupor que algo tão elemental como o acesso à água é uma necessidade garantida e exclusivamente humana. Nas periferias vivem coletivos multiespécies e essa vida coletiva adoece ao ser precarizada.
Um dos retratos mais marcantes foi a frase de uma das Agentes Mirins, uma menina negra que disse “não ter nem roupa para ir à USP”. Se uma menina negra, moradora de uma periferia, acredita não ter roupa para ir à USP, como ela poderia sequer sonhar e se imaginar estudando e sendo parte dessa instituição? Cabe lembrar que a USP foi a última das universidades a aderir à implementação de Políticas de Ações Afirmativas através das cotas para o acesso de cursos de graduação nas universidades públicas, processo que começou em 2002 (Louis, 2021). Como afirma Jota Mombaça (2021), é por meio do controle do trânsito de pessoas afrodescendentes que a versão moderna do projeto colonial brasileiro se materializa, garantindo a segurança das elites brancas em contraste com a política de demonização das comunidades negras e empobrecidas.
Considerações finais
A reflexão deste trabalho envolve questões como alteridades, fronteiras e agenciamentos de coletivos multiespécies marginalizados pelos regimes coloniais ainda imperantes no Brasil, cujos efeitos se tornam nítidos em territórios como a favela São Remo, território da nossa análise. No processo de escuta de narrativas de adolescentes que ali moram, nos deparamos com alguns retratos que vão além da própria São Remo, mostrando as gramáticas da dominação colonial à brasileira.
Os tentáculos desse projeto colonial atingem não só a populações racializadas e das favelas, mas outras alteridades que convivem nelas, como animais de companhia que, mesmo ocupando o estatuto de parentes nas configurações familiares da São Remo, são avaliadas pela bússola do humano como autorreferência nos discursos hegemônicos. A imposição de matrizes culturais elitistas e humanizantes à realidade de favelas como a São Remo opera como forma de genocídio cultural e nega a agência de outros viventes na co-constituição de relações multiespécies. Se as pessoas da São Remo praticam formas contra-hegemônicas de se relacionar com animais, por que isso teria que ser submetido a uma higienização humanizante? Como assegurou uma das Agentes Mirins em uma das atividades realizadas, “não escolhi ter um cachorro, escolhi ser bem acompanhada”. Os contributos decoloniais e feministas, bem como os dos Agentes Mirins, permitiram-nos trabalhar duas das sete ações de promoção da SUP (Baquero; Fernández; Aguilar, 2021) - a desconstrução de dispositivos de marginalização e o enriquecimento da ecologia de saberes -, para acolher de forma crítica as relações de confluência entre espécies.
Precisamente, uma das apostas de Haraway (2021) no Manifesto das espécies companheiras é pensar: como uma ética e uma política comprometida com o florescimento da alteridade significativa poderia ser aprendida se levássemos a sério os relacionamentos entre cachorros e humanos? Partilhamos desta mesma inquietação - não só em relação aos cachorros - toda vez que entendemos a Saúde Única em Periferias como um processo que envolve vivências, entendimentos e práxis articulados por coletivos multiespécies, que tensionam as lógicas coloniais e visam construir formas de organização baseadas na confluência, no reflorestamento. Estas relações despontam como caminhos possíveis para construir territórios de saúde e de resistência.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
24 Jun 2022 -
Revisado
24 Jun 2022 -
Aceito
22 Ago 2022