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Da ruptura à reconstrução democrática no Brasil

RESUMO

O artigo defende que o impeachment ocorrido no País em 2016 não representa uma crise institucional, mas uma crise política. Foi a ação coordenada de atores, e não nosso modelo institucional, que levou à ruptura democrática. Dentre outros fatores, o texto destaca a politização do Judiciário e a aliança entre partidos e movimentos sociais conservadores. Ao fim, mirando numa agenda de reconstrução, afirma-se a urgência de uma ampla coalizão de corte progressista para conter o avanço dos retrocessos hoje em curso no Brasil. Em tal coalizão, é central a capacidade de abertura e articulação com e entre clivagens sociais diversas, vozes democráticas e múltiplas frações de classe.

PALAVRAS-CHAVE:
Política; Democracia; Política social

ABSTRACT

The article argues that the impeachment occurred in Brazil in 2016 configures a political crisis. Among other factors, the text highlights the politicization of the Judiciary and the conservative alliance between parties and right-wing social movements. Offering a kind of democratic reconstruction agenda, we affirm the urgency of a broad-based progressive coalition to contain the advance of setbacks in Brazil today. In such a coalition, it is fudamental the hability for the inclusion of diverse social cleavages, democratic voices and multiple social classes.

KEYWORDS:
Politics; Democracy; Public policy

Os ingredientes que compõem o quadro sociopolítico brasileiro atual são vários: polarização social e ideológica, mobilização popular e estudantil, crise política, crise fiscal, quadro econômico de recessão aguda e desemprego massivo, disputa e reconfiguração eleitoral, uma mídia oligopolizada cada vez mais partidarizada e alinhada a setores específicos da estrutura de poder, crescente fascismo nos elementos de nossa cultura política, já historicamente iliberal, anomia institucional judiciária e estratagemas partidários se articulam formando cenário inimaginável até alguns anos atrás.

Para fins desta análise de conjuntura, vamos nos deter em alguns desses pontos, destacando se e como, a nosso ver, se reforçam mutuamente. Longe de pretender esgotar cada um daqueles ingredientes, fica sugerida a outras análises a questão de como tais e diversas outras variáveis interagem no sentido de produzir essa espécie de cenário semicaótico. Por exemplo: em que medida tanto a crise econômica mundial como nossa crise fiscal pesaram sobre a polarização recente no Brasil? Como medir a influência, para o sucesso do golpe parlamentar, da contínua alimentação da crise por uma mídia visivelmente partidarizada? E retornando um pouco mais: qual a relação, se alguma, entre o ciclo de protestos de 2013 e o golpe parlamentar?

Nos limites de nossa interpretação, vamos comentar o golpe parlamentar levado a cabo pela frente unificada no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), à luz das tensões entre atores (políticos ou sociais) e os arranjos institucionais nos quais operam. A análise privilegia três arenas: o Congresso Nacional, o Judiciário e, por fim, a sociedade civil. Antes de passar a tais arenas, é central estabelecer a premissa da qual partimos, já exposta nas questões iniciais do artigo: o que vem ocorrendo na política brasileira atual é a continuidade de um golpe parlamentar. Ou seja, trata-se de uma lógica de ruptura do contrato político instituído e com cujas regras parte majoritária da direita partidária vinha consentindo, ao menos publicamente, desde os anos 1990 e, por consequência, disputando o poder político de forma legítima. A quebra instaurada por meio de um impeachment no mínimo artificioso, quebra instaurada por meio do uso insidioso de nossas instituições, coloca, mais uma vez na penosa história política brasileira, a tarefa coletiva de reconstrução de democrática.

Golpe parlamentar, sem dúvida, mas o que nos importa no momento é pensar em como chegamos até aqui. Seguiremos por partes.

Tratemos, primeiramente, da arena congressual e da suposta crise de representatividade. De imediato, faz-se relevante afirmar que o evento de agosto de 2016 é resultado da ação deliberada de lideranças políticas, não sendo, definitivamente, efeito do funcionamento das instituições. É obviamente tentador identificar nas instituições políticas, em particular nas regras mais centrais que definem nosso modelo político, as causas da instabilidade e crise de governabilidade que desembocaram no golpe parlamentar. O conceito e prática do presidencialismo de coalizão, em uma definição mais ampla e pouco rigorosa, retornam então com toda força à cena, comum, como se tornou, imputar a este modelo institucional extraordinário conjunto de mazelas do qual a política brasileira padeceria. Falamos de definição mais ampla porque, em verdade, o termo presidencialismo de coalizão, em uma visão mais restrita e, a nosso ver, mais precisa, tal como utilizado na literatura institucionalista stricto sensu, denota tão somente a conjugação da separação de poderes, característica do sistema presidencial, com o multipartidarismo, comumente derivado da adoção do sistema proporcional para o preenchimento das cadeiras no Legislativo.

Aqueles que criticam nosso modelo institucional, chamado de presidencialismo de coalizão, estabelecem uma espécie indevida de relação de causalidade entre a dinâmica de tal modelo e uma prática política que não só corrói os princípios digamos programáticos dos partidos que lideram a coalizão governamental, como no limite compromete a legitimidade do sistema institucional em seu conjunto. Ora, segundo nosso ponto de vista, e nisso seguindo análises mais recentes sobre o presidencialismo de coalizão (FREITAS, 2016FREITAS, A. O Presidencialismo da Coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016.), nada autorizaria, de uma perspectiva conceitual ou empírica, colocar na conta do modelo fenômenos políticos complexos e reconhecidamente ruins, tais como corrupção, descrença popular e profusão de escândalos midiaticamente aproveitados e não raro produzidos.

Aqui é fundamental discernir dois elementos que são frequentemente sobrepostos na análise política: atores e instituições. Embora empiricamente e em todos os casos seja difícil identificar onde um ou outro esteja preponderando no desdobramento da conjuntura política, não se pode inferir a legitimidade ou eficiência das instituições a partir do uso que delas fazem os principais atores em cena. Em nossa avaliação, o exemplo brasileiro recente mostra exatamente isto: desde fins de 2014, a cada passo da conjuntura, e à medida que as crises econômica e social se aprofundavam, as cúpulas do PMDB e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) se articulavam e se utilizavam das regras do jogo tendo em vista construir as condições ótimas para a consecução do golpe parlamentar que redundou no impeachment. Nada inerente ao desenho institucional brasileiro permitiria prever um comportamento desestabilizador assim assumido, desde o resultado das eleições daquele ano, por uma oposição até aquele momento leal à democracia e por lideranças de um partido até aquele momento parceiro na coalizão.

Especificamente a respeito do PMDB, principal parceiro de coalizão do Partido dos Trabalhadores (PT) desde pelo menos uma década, vale ressaltar que, no contexto da disputada eleição de 2014, o partido já vinha dividido antes mesmo do resultado positivo para Rousseff após o segundo turno das eleições presidenciais. Quer dizer, a facção vitoriosa, notadamente no Legislativo, situava-se abertamente no campo, não apenas oposicionista em relação ao PT no governo, mas também autodenominado 'conservador', fosse em relação a políticas sociais ou a temas culturalmente delicados da agenda pública. Facção, notem, liderada por políticos dispostos a tudo tendo em vista reverter os resultados eleitorais para o Executivo nacional daquele mesmo ano.

Questão relevante e para a qual não avançamos resposta mais definitiva consiste em saber: quais motivos afinal levaram partidos como PMDB, PSDB e Democratas (DEM), cofundadores e protagonistas da Assembleia Constituinte de 1987, de nossa redemocratização portanto, a adotarem postura claramente contrária aos ditames e regras do jogo democrático? Um complexo conjunto de fatores compôs verdadeira janela de oportunidades para a aventura de candidatos a golpistas. Entre tais diversos fatores, destacaríamos: a) um cenário de aguda crise econômica, reforçado pela explícita oposição dos circuitos financeiros internacionais vis-à-vis à reeleição de Dilma Rousseff; b) a herança de pesada, competitiva e radicalizada campanha eleitoral de 2014; c) a memória recente do ciclo de protestos de 2013 - e, a partir do ciclo, a radicalização do comportamento das direitas em 2015; d) a falta de uma visão clara e estratégica do governo seja para combater as causas mais urgentes da crise econômica, seja para organizar suas bases de sustentação legislativa e societal. Todos esses fatores não são uma 'herança institucional'; foram, antes, aproveitados e, em alguma medida, produzidos por atores até pouco tempo comprometidos com um credo democrático. Nada disso, portanto, autoriza e sequer justifica tomar tais fatores como expressão de uma necessidade ou fatalidade histórica, dado que foi a ação concertada e articulada, aquilo que os sociólogos chamam de 'agência', entre partidos, movimentos sociais de corte elitista e apoiadores midiáticos e judiciários, que culminou no impeachment. Bem visto, então, esse processo não tem raiz estrutural-institucional.

Se esse processo foi alavancado por atores, onde estavam, ou deveriam estar, os dispositivos institucionais responsáveis por seu bloqueio tendo em vista resguardar o espírito do presidencialismo? A nosso ver, o desenho constitucional de 1988 é claro de indicar o Supremo Tribunal Federal (STF) como o guardião dos preceitos mínimos e fundamentais daquilo que é permitido à ação política. Quer dizer, se havia alguma chance de refrear a gana da oposição em sua aventura golpista e em uma correlação de forças claramente desfavorável à presidenta eleita, tal chance estaria no Poder Judiciário. Contudo este último, de fato, em uma crise institucional devido à alta politização e partidarização que lhe tem caracterizado, não se comportou à altura da Carta Constitucional. Mais um caso de mau uso? Certamente. Agora não pela ação, mas sim pela omissão.

Rótulo alternativo para o que vem ocorrendo na política brasileira é amalgamado na ideia de uma suposta crise de representação. É inegável a existência de insatisfação de parte significativa das elites judiciárias, midiáticas, empresarias e de setores importantes das classes médias quanto aos marcos centrais da democracia tal como consagrados na Constituição de 1988. Todavia, concomitantemente à expressão de tais sentimentos, a ampliação e pluralização da capacidade de representação externa ao Congresso, mas que se internaliza no seio do Estado brasileiro, vêm sendo ressaltadas em diversos trabalhos atinentes às interações Estado/sociedade (inter alia) (POGREBINSCHI; SANTOS, 2012POGREBINSCHI, T.; SANTOS, F. Participação como representação: o impacto das Conferências Nacionais de Políticas Públicas no Congresso Nacional. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 3, p. 259-305, set. 2011.; AVRITZER; SOUZA, 2013AVRITZER, L.; SOUZA, C. (Org.). Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília, DF: Ipea, 2013.; GURZA LAVALLE; SZWAKO, 2015______. Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate. Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, p. 157-187, abr. 2015.).

Note-se, aliás, que a inclusão de temas e atores da sociedade civil nos processos decisórios acabou sendo importante alvo de crítica e resistência de segmentos conservadores no País, tal como foi o caso do chamado 'Sistema Nacional de Participação Social' (GURZA LAVALLE; SZWAKO, 2014GURZA LAVALLE, A.; SZWAKO, J. Origens da Política Nacional de Participação Social: Entrevista com Pedro Pontual. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 99, p. 91-104, jul., 2014.). Os limites impostos aos impactos dos encontros socioestatais sobre as políticas públicas, contudo, não rebaixam o diagnóstico de que elas têm sido, desde a redemocratização, cada vez mais interpeladas e modificadas por organizações e movimentos da sociedade civil. Mesmo do ponto de vista da cidadania em geral (ou seja, não necessariamente organizada em redes e movimentos), a porosidade estatal com relação às chances de acesso do cidadão aos bens comuns tem se mostrado, não só mediada por mecanismos participativos, como é também consistentemente maior que em países como Venezuela e México (ZAREMBERG, 2012ZAREMBERG, G. Fuerza, proyecto, palabra y pueblo: circuitos de representación en consejos de desarrollo municipal en América Latina (Nicaragua, Venezuela, Brasil y México). In: ZAREMBERG, G. (Org.). Redes y jerarquías: participación, representación y gobernanza local en América Latina. Ciudad de Mexico: Flacso México, 2012, p. 22-63.). Em suma, consoante com a pluralização da representação, a agenda de pesquisa mais atual sobre os efeitos da institucionalização da participação denota, não a limitação, mas antes a indagação sobre a efetividade das instituições participativas no Brasil (PIRES, 2011PIRES, R. (Org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília, DF: Ipea, 2011.).

Entendemos que é espúria a ilação construída entre modelo institucional e resultado político, entre o presidencialismo de coalizão e o golpe parlamentar de 2016. A nosso ver, não há nada de conclusivo seja em torno do diagnóstico da corrosão institucional inerente ao presidencialismo de coalizão e por ele supostamente produzida, diagnóstico de resto conveniente a versões legitimadoras do golpe parlamentar, seja ainda no que tange a existência de uma crise de representação afetando o quadro político institucional brasileiro. Parece-nos fundamental, então, diferenciar lógicas de operação: a lógica interna ao impeachment de Dilma Rousseff não é caudatária de dinâmicas institucionais, mas sim da atuação concatenada e deliberada de atores político-partidários e judiciários (mais abaixo) - atuação, sem dúvida, articulada por intermédio de instituições e a despeito delas, daí o caráter inovador desse tipo de golpe. Essa diferenciação é fundamental em nosso diagnóstico, pois os cenários de médio e longo prazo de reconstrução democrática demandarão remédios antigolpistas, e não podemos correr o risco de testar um remédio amargo, ou mesmo fatal.

Exemplo do perigo embutido em soluções institucionais mal concebidas ou fundamentadas em pré-noções que não encontram respaldo acadêmico está nas propostas aventadas em tempos de crise. Veja-se, por exemplo, a desastrosa minirreforma eleitoral levada a cabo por Cunha, Maia e asseclas e os efeitos dela advindos sobre a disputa eleitoral de 2016, notadamente, sobre o tempo de exposição dos partidos menores e o espaço destinado ao debate para partidos e candidatos. Efeitos deletérios podem também recair sobre o sistema político, caso sejam vitoriosas propostas hoje em circulação no Congresso e na mídia, defendendo, por exemplo, a adoção do voto facultativo. Longe de curar supostos males institucionais, falsos remédios como esses tendem a prejudicar nossa governabilidade e representatividade.

Como dissemos, a crise política que desemboca no golpe e agora assume novos contornos é resultado não do funcionamento das instituições, mas sim de sua usurpação e de seu mau uso por parte de segmentos fundamentais das elites e dirigentes estatais.

Entre as elites estatais protagonistas nesse processo, sobressaem-se, sem nenhuma sombra de dúvida, as elites do Judiciário e do Ministério Público Federal (MPF), cujo comportamento durante todo o processo ocorreu, como se sabe, encoberto pelo manto do combate à corrupção política. Em análise arguta, Leonardo Avritzer já chamava nossa atenção para os perigos da atuação descontrolada do MPF e suas implicações em termos de 'usurpação' e 'monopolização' da defesa do interesse público advindas de tal comportamento por instituições desprovidas do endosso no voto. Nas palavras do autor:

[...] a forma como no primeiro semestre de 2015 o Poder Judiciário colocou o Executivo na defensiva com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da Operação Lava-Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações que têm como objetivo desestabilizar o campo político, mostra o perigo de uma solução para os impasses que não transite pelos poderes constituídos pelo voto popular. (AVRITZER, 2016AVRITZER, L. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., P. 116).

Tal intervenção, politizada e espúria, de agentes e instituições de controle, sejam ou não do Judiciário, ante órgãos do Executivo e do Legislativo nos remete diretamente ao alerta imprescindível dado por Max Weber (1993)WEBER, M. Parlamento e Governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1993. a seus contemporâneos da República de Weimar: ao funcionário público não cabe a disputa política, nem a respectiva convicção. As alçadas do funcionário e do político profissional são distintas, assim como são distintas as responsabilidades estatuídas a cada posto. Que a política de seu país se tornasse refém da burocracia era um dos maiores temores de Weber - essa lição não pode ser hoje olvidada por aqueles que, como nós, entendem o potencial nefasto contido em uma instância de poder que, em nome do combate à corrupção, atua de modo ilegal.

Ironicamente, se podemos falar de crise institucional de nosso modelo político, esta não emerge do presidencialismo de coalizão. De fato, graves distorções atingem o desenho mesmo de nossas instituições de controle, tal como inscrito na Constituição de 1988. Nesse particular, as recentes intervenções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por exemplo, nas regras eleitorais e partidárias, bem como os ataques seletiva e partidariamente orientados do MPF contra lideranças políticas, ressoam uma das mais famosas preocupações madisonianas: quem controla os controladores? A ingerência administrativa sobre a disputa política exige não só sua crítica teórica. Exige, antes, a ação política daquele que é, ao fim e a cabo, o principal afetado pela instabilidade do jogo democrático, instabilidade diga-se judicialmente instilada, e também o único soberano desse mesmo jogo: a vontade popular. Nesse sentido, dois caminhos necessários e convergentes para a pacificação do Judiciário e das instâncias de controle no Executivo nos parecem ser o aprofundamento de mecanismos de controle tanto institucionalizados como externos a essas instituições.

A tarefa não será fácil, como não foi fácil a redemocratização consagrada na Carta de 1988. O primeiro desafio, certamente, passa pela responsabilização dos atores que desestabilizaram e usurparam a dinâmica democrática até aqui conquistada. No plano da disputa político-institucional, máscaras de atores que defendem um liberalismo douto requentado, quando não somente neoliberal, deverão ser reconhecidas enquanto tais. Já no plano da cultura política, o fenômeno é ainda mais complexo: o crescente fascismo das classes médias, alimentado não somente pela crise econômica, mas também pelo Judiciário e por mídias hegemônicas, é realidade que julgamos imprescindível conhecer e combater. É do fascismo crescente entre nós e das mobilizações civis tanto à direita como à esquerda que trata nosso último ponto.

Na seara da sociedade civil, o contexto é tão ou ainda mais complexo e cheio de desafios.

A mobilização verde e amarelo que ganhou as ruas nos meses de março, abril e agosto de 2015 soube se apropriar de um dos principais legados de 2013: a rua como palco legítimo dos protestos (DOWBOR e SZWAKO, 2013DOWBOR, M.; SZWAKO, J. Respeitável público... : performance e organização dos movimentos antes dos protestos de 2013. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 97, p. 43-55, nov. 2013.). Aos gritos de 'Fora Dilma' e 'Fora PT', uma massa de verve fascista foi alimentada por movimentos de direita que, como se sabe hoje, foram e são ligados a partidos golpistas e a grupos ultraconservadores estadunidenses. Uma pergunta aqui se impõe: por que denominar de fascista uma multidão tão vasta e heterogênea? Designamos-lhe como tal devido à sua incapacidade de reconhecer como legítima uma pluralidade de interesses e visões de mundo que é constitutiva e, sobretudo, distintiva da democracia em sociedades complexas. Negar tal pluralidade corresponde, nos discursos e protestos conservadores de 2015 analisados alhures (SZWAKO, 2015SZWAKO, J. O fascismo contemporâneo brasileiro ou o mundo segundo o conservadorismo. Revista Escuta, [s. l. ], 18 maio 2016. Disponível em: <https://revistaescuta.wordpress.com/2016/05/18/escuta-especial-conjuntura-o-fascismo-contemporaneo-brasileiro-ou-o-mundo-segundo-o-conservadorismo/>. Acesso em: 7 nov. 2016.
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), a negar a legitimidade do conflito e da necessária institucionalização dos conflitos - sem a qual não há convivência democrática e civilizada entre diversos e divergentes interesses e visões de mundo.

É exatamente nesse ponto que se articulam polarização ideológica e estratégias partidárias. De um lado, uma nova direita, autoritária, fornece roupagem original ao ranço hierárquico desde sempre predominante, não na política, não só nela, mas na sociedade brasileira, repaginado agora com rótulo de 'liberal' - contendo, na verdade, pouca coisa do liberalismo e alguma leitura distorcida do chamado neoliberalismo. De outro, políticos e legendas que se assumem enquanto direita, mas que acabam por retirar legitimidade daquela massa por eles mesmos estimulada. Ora, não foi outra a chamada 'voz das ruas' que se fez escutar e foi ouvida nas declarações que sepultaram o governo Dilma em agosto de 2016. Lembremos que 'Pela família', 'Deus' e mesmo 'contra o comunismo' (sic) foram alegorias que circularam entre as ruas e o Congresso, estruturando boa parte dos discursos pró-impeachment. A afinidade entre representados 'de' direita e representantes 'da' direita é, porém, contingente e estratégica; enquanto respondem a seus interesses, partidos e políticos vão continuar se valendo dessa massa, sempre de maneira oportunista. Aqui o desafio da reconstrução democrática é duplo: construir uma alternativa civilizada ao projeto conservador reinante no País e disputar suas bases sociais e eleitorais mais amplas, sendo a um só tempo alternativa a ele e para elas.

Hoje, ao mesmo tempo que as ruas voltam a se posicionar contra o governo ilegítimo que aí está, o palco das reivindicações é tomado pelos estudantes secundaristas e pelas ocupações nas escolas por todo o Brasil. Mesmo com variações estaduais, o movimento de ocupação das escolas encontra-se do começo ao fim atravessado pelo golpe parlamentar e por seus efeitos, nomeadamente, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 - atualmente PEC 55/16. As dinâmicas pós-golpe de tensão e de conflito travado entre cidadania mobilizada e autoridades, sejam elas forças executivas ou repressivas, é bem verdade, conferem à conjuntura uma triste sensação de déjà vu autoritário. Isso pode ser visto no caso de estudantes sendo assediados pela ação de policiais, não raro ilegal, assim como pela atuação de cidadãos autointitulados 'de bem', em conflitos de punho em ambientes escolares. Todavia o ranço autoritário não se limita ao exemplo dos estudantes e das reformas e cortes impostos sem consulta qualquer aos interessados. Outro caso dramático da truculência e da ilegalidade com que vêm atuando as forças repressivas, no contexto pós-golpe, está na violência sofrida pela Escola Florestan Fernandes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), há poucos dias invadida por policiais civis do estado de São Paulo.

Esse déjà vu é, porém, ambivalente. Ao mesmo tempo que autoriza um olhar desolador sobre nosso cenário, essas cenas evocam também traços de esperança política projetada seja na mobilização estudantil ou dos trabalhadores sem-terra.

Os desafios de reconstrução de nossa democracia não são poucos. Moderar o Judiciário, democratizar a mídia, responsabilizar aqueles que violaram o pacto democrático e conter os avanços de uma agenda regressiva ilegítima são alguns desses desafios. Caminho possível para aglutinar personagens, discursos e bandeiras localiza-se na superação daquilo que J. Feres Júnior chamou de 'complexo de umbigo'. As forças democráticas à esquerda, tanto no âmbito civil como na luta partidária, precisam ultrapassar purismos ideológicos estanques que se tornam obstáculos para a construção e ampliação de novos consensos abrangentes. Esses consensos implicam necessariamente diálogos e pontes que não estão dados, precisam antes ser forjados com o devido senso de timing e abertura, no sentido de espírito de inclusão e acordo. Tal unificação, por sua vez, não pode prescindir de mecanismos institucionais no seio dos quais se conjuguem e equilibrem participação e representação - com todos os conflitos partidários daí advindos. Nesse esforço, é fundamental somar todos os matizes de vozes democráticas comprometidas com valores minimamente civilizados e igualitários: de um 'centrão' ampliado, esteio da redemocratização brasileira, até vozes radicais, passando necessariamente por liberais, comunistas e socialdemocratas. Um arco de alianças policlassista de corte também democrático, alinhavando periferias, classes médias e empresariado liberal não conservador, é fundamental nesse projeto. Contra esse conjunto necessariamente heterogêneo de vozes, a emergência de uma onda conservadora autoritária ou de uma nova direita cripto-militarista manterá sua empreitada de vencer a luta política pela truculência e intimidação - é preciso enfrentar o medo. Uma das boas estratégias para enfrentar o medo é a de se buscar elementos e pistas de convivência democrática mesmo no seio do reacionarismo.

A reconstrução é difícil, porém incontornável.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • AVRITZER, L. Impasses da democracia no Brasil Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    Nov 2016
  • Aceito
    Dez 2016
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