Open-access Doenças crônicas na população indígena não aldeada: dados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2019

RESUMO

Objetivou-se caracterizar o perfil sociodemográfico da população indígena adulta e idosa não aldeada do Brasil, bem como estimar a prevalência de multimorbidade e doenças/condições crônicas específicas, e para as mais frequentes, de acordo com o sexo e as faixas etárias. Estudo transversal com dados de indígenas (idade ≥ 20 anos) que participaram da Pesquisa Nacional de Saúde em 2019. A média de idade foi de 45,2 anos (IC 95%: 43,1-47,3), 23,2% eram idosos (idade ≥ 60 anos), e 87,5% residiam em área urbana. Cerca de 60% apresentavam ao menos uma doença/condição crônica, e as mais prevalentes foram: hipertensão arterial (29,3%; IC 95%: 23,7-35,5), doenças/problemas crônicos da coluna vertebral (20,6%; IC 95%: 17,3-24,5), hipercolesterolemia (14,3%; IC 95%: 11,7-17,4), depressão (10%; IC 95%: 7,4-13,5) e artrite/reumatismo (10%; IC 95%: 6,6-14,9). Nos idosos, a prevalência de hipertensão arterial foi cerca de 3,6 vezes maior do que nos adultos (65% versus 18,1%; p < 0,001), e 28,6% referiram doenças/ problemas crônicos da coluna vertebral em relação a 18,2% dos adultos (p = 0,019). O estudo apresenta dados inéditos sobre a prevalência de doenças/condições crônicas na população indígena não aldeada no Brasil, indicando elevadas prevalências de hipertensão arterial, doenças/problemas da coluna, hipercolesterolemia, depressão e artrite/reumatismo.

PALAVRAS-CHAVE Povos indígenas; Saúde de populações indígenas; Doença crônica; Inquérito de saúde.

ABSTRACT

The aim of this study was to characterise the sociodemographic profile of the adult and elderly non-indigenous population of Brazil, as well as to estimate the prevalence of multimorbidity and specific chronic diseases/conditions, and for the most frequent ones, according to gender and age groups. Cross-sectional study with data from indigenous people (aged ≥ 20 years) who took part in the National Health Survey in 2019. The average age was 45.2 years (95% CI: 43.1-47.3), 23.2% were elderly (age ≥ 60 years), and 87.5% lived in urban areas. Around 60% had at least one chronic disease/condition, and the most prevalent were: hypertension (29.3%; 95% CI: 23.7-35.5), chronic spinal diseases/problems (20.6%; 95% CI: 17.3-24.5), hypercholesterolaemia (14.3%; 95% CI: 11.7-17.4), depression (10%; 95% CI: 7.4-13.5) and arthritis/rheumatism (10%; 95% CI: 6.6-14.9). In the elderly, the prevalence of hypertension was around 3.6 times higher than in adults (65% versus 18.1%; p < 0.001), and 28.6% reported chronic spinal diseases/ problems compared to 18.2% of adults (p = 0.019). The study presents unpublished data on the prevalence of chronic diseases/conditions in the non-indigenous population in Brazil, indicating a high prevalence of hypertension, spinal diseases/problems, hypercholesterolaemia, depression and arthritis/rheumatism.

KEYWORDS Indigenous peoples; Health of indigenous peoples; Chronic disease; Health surveys.

Introdução

Os censos demográficos realizados no Brasil indicam o crescimento populacional dos indígenas maior do que o observado para o conjunto da população brasileira1-4. O número de pessoas que se declararam indígenas por meio do quesito cor ou raça passou de 294.131 em 1991 para 734.127 em 2000, e para 817.963 em 20104. O pertencimento indígena (povo ou etnia e línguas faladas) foi investigado pela primeira vez no Censo 2010, que identificou mais de três centenas de povos indígenas vivendo principalmente nas regiões Norte e Nordeste, e observou um acréscimo de 78.954 pessoas que se consideravam indígenas1,3. O número de pessoas que se autodeclararam indígenas no Brasil, em 2022, foi de 1.693.535, o que representava 0,83% da população total do País, quase o dobro em relação ao censo anterior5.

Desde a Constituição Federal de 1988, foram criadas e implementadas diversas políticas públicas direcionadas aos povos indígenas, como o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SasiSUS), cujo modelo assistencial é organizado por meio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), os quais devem ofertar serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) aos indígenas aldeados, nas terras e nos territórios onde vivem6,7. A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), criada em 2002, foi um marco importante, tendo como principal objetivo garantir o acesso à atenção integral à saúde, fundamentado nos princípios e diretrizes do SUS e contemplando questões relacionadas com a diversidade étnica, cultural, geográfica, epidemiológica, histórica e política6-8.

Apesar de a implantação da PNASPI ter alcançado avanços em relação à saúde indígena no Brasil, com vistas a garantir a integralidade e a equidade na atenção, os desafios enfrentados para o acesso e a atenção integral à saúde ainda são muitos2,9,10. A urbanização da população, pode ampliar - em alguma medida - o acesso aos serviços de saúde (como consultas, realização de exames, hospitalizações etc.) com reflexos no aumento do diagnóstico de doenças (casos novos e antigos) e no tratamento. Contudo, as dificuldades no acesso aos serviços de saúde de qualidade e o acompanhamento após o diagnóstico ainda constituem desafios para a atenção à saúde indígena7,8,11.

Cabe ressaltar que, antes da criação do SasiSUS, em 1999, informações sobre a saúde indígena não eram coletadas sistematicamente, inviabilizando traçar um panorama nacional sobre as condições de saúde dessa população8. Com base nas informações do SasiSUS de casos notificados, a ocorrência de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) aumentou de 138,5 para 203,4 por 10 mil habitantes entre os anos de 2015 e 2017; as doenças mais frequentes entre os indígenas foram as cardiovasculares, as respiratórias crônicas, diabetes mellitus e neoplasias, que acometem principalmente as mulheres7. Quanto às causas de morte na população indígena do Brasil, estudo que analisou a mortalidade utilizando dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) de 2000, 2010 e 2018 verificou a ocorrência de uma tripla carga de doença, com predomínio das DCNT, especialmente do aparelho circulatório, respiratório, diabetes e neoplasias12, permanência das doenças infecciosas e parasitárias, e aumento das causas externas, mudanças que caracterizam os fenômenos de transição demográfica, epidemiológica e nutricional7,9,12.

Na literatura nacional, não há estimativas sobre a prevalência de DCNT específicas na população indígena não aldeada. Deve-se considerar que boa parte dessa população no Brasil vive em áreas urbanas e nas periferias, locais desprovidos de infraestrutura e equipamentos públicos13. Também, que o contato com outras culturas (decorrentes dessa urbanização) aumenta o risco do surgimento de novos problemas de saúde, relacionados com as mudanças no modo de vida, nos hábitos alimentares e em outros comportamentos relativos à saúde, que podem potencializar a ocorrência de DCNT2,7,13-15. Nesse sentido, o objetivo desta comunicação foi caracterizar o perfil sociodemográfico da população indígena adulta e idosa não aldeada do Brasil, bem como estimar a prevalência de multimorbidade e doenças/condições crônicas específicas, e para as mais frequentes, de acordo com o sexo e as faixas etárias.

Material e métodos

Estudo realizado com dados de domínio público de adultos e idosos indígenas (idade ≥ 20 anos) que participaram da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), inquérito nacional de base domiciliar realizado no Brasil em 2019 (PNS 2019). O banco de dados da PNS 2019 encontra-se disponível para acesso e uso público no site da PNS por meio do caminho: ‘Sobre a pesquisa’; ‘Bases de dados (PNS 2019, Microdados IBGE)’; ‘Arquivos de Microdados da PNS 2019’16.

A população pesquisada na PNS 2019 correspondeu aos moradores de domicílios particulares permanentes do Brasil, excluindo-se os setores censitários localizados em áreas com características especiais e com pouca população, como: quartéis, bases militares, alojamentos, acampamentos, embarcações, aldeias indígenas, penitenciárias, colônias penais, presídios, cadeias, asilos, orfanatos, conventos e hospitais. A descrição detalhada sobre os aspectos conceituais e metodológicos da pesquisa encontra-se publicada17,18.

Este estudo utilizou dados de indivíduos que se autodeclararam indígenas (informação baseada na pergunta sobre cor ou raça) que responderam ao questionário da PNS 2019, referente ao morador selecionado (n = 651). Foram consideradas informações sobre as seguintes doenças/condições crônicas: hipertensão arterial; diabetes; colesterol alto (hipercolesterolemia); doença do coração, tal como infarto, angina, insuficiência cardíaca ou outra; Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou derrame; asma ou bronquite asmática; artrite/reumatismo; doença/problema crônico de coluna vertebral como dor crônica nas costas ou no pescoço, lombalgia, dor ciática, problemas nas vértebras ou disco; Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho (Dort); depressão; outra doença mental, como transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, esquizofrenia, transtorno bipolar, psicose ou Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC); doença crônica no pulmão, tais como enfisema pulmonar, bronquite crônica ou Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC); câncer; insuficiência renal crônica; e outra doença crônica. Todas as perguntas se referiam ao diagnóstico médico prévio, exceto para doenças/problemas crônicos da coluna vertebral. Na investigação sobre depressão, o diagnóstico poderia ter sido dado pelo médico ou outro profissional de saúde mental (psicólogo/psiquiatra).

Para compor a variável número de doenças crônicas e estimar sua prevalência, foram consideradas todas as doenças/condições crônicas supracitadas. Na análise das doenças específicas, AVC, asma, Dort, doença pulmonar, câncer e insuficiência renal não apresentaram um número de casos suficiente para se proceder ao cálculo de estimativas específicas com precisão aceitável.

Foram estimadas as prevalências pontuais e por intervalo para o número de doenças crônicas (nenhuma, uma, duas, três ou mais) e das doenças específicas considerando-se nível de confiança de 95% (IC 95%). Também foram estimadas as prevalências e as Razões de Prevalência (RP) e os respectivos IC 95% das doenças/condições mais frequentes segundo sexo e faixa etária. As diferenças foram verificadas pelo teste qui-quadrado (Rao-Scott) adotando-se nível de significância de 5%. As RP foram obtidas por meio de regressão de Poisson. As análises foram realizadas no software estatístico Stata 15.1, no módulo survey, que considera o delineamento amostral complexo da pesquisa.

A PNS 2019 foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE nº 11713319.7.0000.0008 e parecer no 3.529.376, de 23 de agosto de 2019). Todos os entrevistados foram previamente consultados, esclarecidos e aquiesceram em participar da pesquisa17,18. Os dados foram coletados e analisados de acordo com as diretrizes e normas das Resoluções nº 466/201219 e nº 510/201620 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamentam os aspectos éticos e legais das pesquisas científicas no Brasil.

Resultados

A média de idade da população indígena não aldeada foi de 45,2 anos (IC 95%: 43,1-47,3), e a distribuição por sexo foi semelhante (p > 0,05); 23,2% tinham idade maior ou igual a 60 anos, 87,5% residiam em área urbana, 64,2% viviam com o(a) companheiro(a), 37,3% não tinham instrução/fundamental incompleto, 30,5% e 35,2% apresentavam baixa renda (menor ou igual a 0,5 salário mínimo e de meio até 1 salário mínimo respectivamente) e 86,4% não possuíam plano de saúde privado (figura 1).

Figura 1
Caracterização sociodemográfica da população indígena (idade ≥ 20 anos). Pesquisa Nacional de Saúde, 2019

Na população adulta, cerca de 60% apresentaram ao menos uma doença crônica, e 35,3% tinham multimorbidade. Hipertensão arterial (29,3%; IC 95%: 23,7-35,5), doenças/problemas crônicos da coluna vertebral (20,6%; IC 95%: 17,3-24,5), hipercolesterolemia (14,3%; IC 95%: 11,7-17,4), depressão (10%; IC 95%: 7,4-13,5) e artrite/reumatismo (10%; IC 95%: 6,6-14,9) foram as doenças/condições que apresentaram as maiores prevalências, em ordem de importância, entre as investigadas (tabela 1).

Tabela 1
Prevalência de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) na população indígena (idade ≥ 20 anos). Pesquisa Nacional de Saúde, 2019

Para as doenças/condições crônicas mais frequentes, verificou-se ainda que a prevalência de hipertensão foi maior nas mulheres (37,5% versus 21,2%; p = 0,001) e que não houve diferenças significativas para doenças/problemas crônicos da coluna vertebral (p = 0,809). Quanto à faixa etária, nos idosos (idade ≥ 60 anos), a prevalência de hipertensão foi cerca de 3,6 vezes maior em relação à população adulta (65% versus 18,1%; p < 0,001), e 28,6% dos idosos referiram doenças/problemas da coluna em relação a 18,2% dos adultos (p = 0,019) (tabela 2).

Tabela 2
Prevalência e razão de prevalência bruta de hipertensão arterial, problema na coluna e colesterol alto na população indígena (idade ≥ 20 anos) segundo sexo e faixas etárias. Pesquisa Nacional de Saúde, 2019

Discussão

Os resultados mostraram que, no Brasil, cerca de 60% dos indígenas com 20 anos ou mais de idade apresentavam ao menos uma enfermidade crônica e que aproximadamente 35% tinham duas ou mais doenças (multimorbidade). As doenças mais prevalentes foram a hipertensão arterial, as doenças/problemas crônicos da coluna vertebral e a hipercolesterolemia. A hipertensão foi mais frequente entre mulheres. Nos idosos, a prevalência da hipertensão foi cerca de 3,6 vezes maior do que nos adultos; a hipercolesterolemia, 2,5 vezes, e as doenças/problemas da coluna também foram mais frequentes naqueles com 60 anos ou mais.

Neste estudo, verificou-se que 67,2% da população indígena possuía pelo menos o ensino fundamental completo, percentual bem mais alto do que o observado nos censos demográficos anteriores1. Estudo que abordou as características sociodemográficas de indígenas nos censos de 2000 e 2010 observou que a proporção de pessoas com ensino fundamental completo ou mais aumentou expressivamente em todo o país (16,4% para 21,2%) e nas áreas urbanas (28,2% para 37,9%) e rurais (3,5% para 10,5%)14. Ressalta-se que, nos últimos anos, houve uma ampliação de políticas públicas direcionadas à educação para os indígenas21, o que pode ter contribuído para esse aumento, porém ainda possuem nível educacional mais baixo do que o observado para a população geral no Brasil1.

Em relação à renda domiciliar per capita, a maioria da população indígena (65,7%) referiu possuir rendimento de até 1 salário mínimo. No último censo demográfico (2010), foi identificado que a maior parte das pessoas indígenas (idade ≥ 10 anos) não tinha rendimentos ou recebia até 1 salário mínimo1. Bastos et al.14 identificaram acréscimo de 8,4% na frequência de indígenas com rendimento menor do que 1 salário mínimo (de 48,3% para 56,7%) e diminuição de 9,6% na frequência de indivíduos com mais de 2 salários mínimos entre 2000 e 2010.

Também se observou que 86,4% (IC 95%: 82,1-89,8) da população indígena não aldeada adulta e idosa dependia exclusivamente do sistema público, o SUS, percentual maior do que o encontrado para a população adulta não indígena (72,8%; IC 95%: 71,7-73,3) (dados não apresentados). Isso denota que, para aqueles que tiveram acesso, quase a totalidade dos diagnósticos das doenças investigadas foi realizada nos serviços públicos de saúde. Deve-se considerar que, nos territórios indígenas, as estruturas de saúde são precárias; e a alta rotatividade de profissionais, bem como a complexidade logística encontrada em algumas regiões do país, afeta negativamente a qualidade dos serviços de saúde prestados2,10,11, o que permite supor que entre os indígenas aldeados, haja um importante subdiagnóstico de doenças/condições crônicas.

Estudo realizado por Araujo Junior8 revelou a precariedade da estrutura física das Casas de Saúde Indígena, responsáveis pelo alojamento e pela alimentação dos pacientes e acompanhantes, a necessidade de acolhimento em saúde e de garantir melhor articulação com os hospitais de referência e com a atenção de média e alta complexidade para reduzir o longo período de espera do tratamento. Observam-se, ao longo dos anos, a priorização de cuidados emergenciais e paliativos a essa população e o enfraquecimento da APS: a elevada rotatividade dos profissionais de saúde e a falta de vínculo dificultam a compreensão das especificidades culturais que permeiam o processo cuidado à saúde dos indígenas2,22, assim como a falta de formação profissional para abordagem, atendimento e tratamento - respeitando a cultura e a diversidade de saberes desta população2,8.

Ao avaliar criticamente a implementação da PNASPI, Mendes et al.2 destacam, dentre os desafios, as desigualdades nos indicadores de saúde que persistem após quase 20 anos da criação do SasiSUS, o aumento na prevalência das DCNT, a baixa resolutividade das ações na APS, o acesso restrito aos dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi) e problemas relacionados com a confiabilidade das informações coletadas, bem como a capacidade de articulação entre a medicina tradicional indígena e o SUS6,8,11.

Além das violências estruturais, como a inadequação nos atendimentos à saúde e as doenças endêmicas e carenciais a que os povos indígenas estão expostos, as doenças crônicas nessa população podem ser reflexo dos impactos das estratégias de subsistência e de mudanças ambientais e territoriais que vêm ocorrendo nessa população ao longo dos anos7,9,15,22. Na cidade de Manaus, estudo que buscou comparar fatores de risco para doenças cardiovasculares entre indígenas e não indígenas (vizinhos que compartilhavam as mesmas condições socioambientais que os indígenas) observou que os indivíduos do alto do Rio Negro apresentaram perfil antropométrico, metabólico e de pressão arterial mais semelhante ao dos grupos não indígenas23. Ressalta-se que não foram encontrados estudos epidemiológicos prévios que analisaram as prevalências de DCNT na população indígena não aldeada no Brasil, o que dificultou a comparação com os achados deste estudo.

Ao considerar a população indígena de todo o Brasil, dados do Siasi mostraram que, entre 2015 e 2017, foram registrados 42.583 casos notificados de DCNT, com maior frequência no sexo feminino (assim como na população geral, as mulheres tendem a acessar mais os serviços de saúde), sendo as doenças cardiovasculares e o diabetes mais prevalente na população com idade ≥ 40 anos, e as doenças respiratórias, na população idosa7. Deve-se considerar que alguns fatores de risco para as DCNT, como o consumo abusivo de bebidas alcoólicas destiladas, são mais prevalentes na população indígena não aldeada, fator agravado pela aproximação com a população não indígena24,25.

No Brasil, são escassos estudos com informações sobre outros fatores de risco, como tabagismo, inatividade física e hábitos alimentares na população indígena não aldeada26. Estudos realizados com indígenas aldeados indicam hábitos alimentares nocivos à saúde, elevado percentual de excesso de peso, sedentarismo e hipertensão arterial nesse subgrupo27-29. Na população Krenak, em terra indígena localizada no município de Resplendor, Minas Gerais, a prevalência de hipertensão arterial foi de 31,2% (34,4% para os homens e 27,6% para as mulheres), cerca de 75% dos indivíduos apresentavam excesso de peso; 57%, obesidade abdominal, e 17,5%, hiperglicemia27. Dados do Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena (2008-2009) identificou que 46% das mulheres de aldeias indígenas no Brasil tinham sobrepeso ou obesidade30.

Entre as limitações da pesquisa, deve-se considerar que amostra da PNS excluiu os domicílios localizados em setores censitários especiais, como os agrupamentos indígenas (população aldeada), o que não permite extrapolar os resultados para o conjunto dos indígenas brasileiros. Além disso, a PNS não foi desenhada para representar populações específicas, o tamanho amostral foi pequeno para população indígena. Assim, para doenças/condições de saúde menos frequentes, as estimativas não foram apresentadas porque o número de observações em algumas categorias não permitiu o cálculo com precisão aceitável. Da mesma forma, a avaliação das diferenças entre as prevalências por sexo e faixas etárias restringiu-se às condições que tiveram maior ocorrência.

Destaca-se que as estimativas das prevalências das DCNT são inéditas e dimensionam a magnitude dessas condições para a população indígena adulta e idosa não aldeada do Brasil, contribuindo para a adoção de ações que possam atender a demandas de cuidado e tratamento específicas - que considerem a cultura, os saberes e as demais singularidades desses brasileiros. A equidade é um dos princípios fundamentais norteadores do SUS31, o qual busca reconhecer as diferenças nos determinantes sociais - condições de vida e de saúde - e nas necessidades específicas de grupos populacionais distintos, como a população indígena6.

Os resultados deste estudo revelam que quase 60% da população indígena adulta e idosa brasileira não aldeada apresentava pelo menos uma doença crônica, principalmente hipertensão arterial, doenças/problemas crônicos da coluna vertebral, hipercolesterolemia, artrite/reumatismo e depressão. O desafio que se coloca para a APS é o modus operandi para implementar práticas relacionadas com a promoção de saúde e a prevenção de agravos, considerando que o direito à saúde passa pelas diferenciações sociais e deve atender à diversidade.

  • Suporte financeiro: não houve

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Editado por

  • Editora responsável: Jamilli Silva Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2023
  • Aceito
    10 Jun 2024
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