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A pandemia de Covid-19 narrada por mulheres: o que dizem as profissionais de saúde?

The Covid-19 pandemic told by women: what do health professionals say?

RESUMO

Este artigo objetivou investigar narrativas de mulheres brasileiras que trabalham como profissionais de saúde no contexto da pandemia de Covid-19. Parte de uma pesquisa que discute as repercussões subjetivas desse contexto, a partir da perspectiva de gênero, para a qual foi construído um questionário on-line, que convida as mulheres a narrar suas vivências. A investigação foi desenvolvida no âmbito da psicologia, articulando os métodos psicanalítico e fenomenológico, aliados às teorias feministas, em prol de uma análise crítica e situada de fenômenos contemporâneos. A análise qualitativa dos relatos de 602 mulheres levou a diferentes aspectos, dentre os quais se destaca a intensificação das exigências de cuidado, seja no âmbito familiar, seja no âmbito profissional, o que as leva a desconsiderar o autocuidado. Ao mesmo tempo, a exposição ao risco e o medo constante parecem levar à ocorrência de um contágio psíquico a partir do contato com os pacientes acometidos pela Covid-19, o que produz sofrimento intenso. Os resultados evidenciam como as questões de gênero repercutem nas mulheres que trabalham na área da saúde, reafirmando a necessidade de considerar as especificidades desse público na elaboração de políticas públicas e dispositivos de atenção em saúde mental.

PALAVRAS-CHAVE
Mulheres trabalhadoras; Gênero e saúde; Pandemias; Saúde mental; Psicologia

ABSTRACT

The article aims to investigate narratives of Brazilian women working as healthcare professionals in the context of the Covid-19 pandemic. It is part of a research that discusses the subjective repercussions of this context, from a gender perspective, for which an online questionnaire was constructed, inviting women to narrate their experiences. The research was developed within the scope of psychology, articulating psychoanalytic and phenomenological methods, allied to feminist theories, in favor of a critical and situated analysis of contemporary phenomena. The qualitative analysis of the reports of 602 women led to different aspects, among which we highlight the intensification of care demands, whether in the family or the professional sphere, which leads them to disregard self-care. At the same time, the exposure to risk and the constant fear seems to lead to the occurrence of a psychic contamination from the contact with patients affected by Covid-19, which produces intense suffering. The results show how gender issues impact women working in the health field, reaffirming the need to consider the specificities of this public in the development of public policies and mental health care devices.

KEYWORDS
Women; Working; Gender and health; Pandemics; Mental health; Psychology

Introdução

No presente artigo, apresentamos um recorte dos dados coletados pela pesquisa ‘Agora é que são elas: a pandemia de Covid-19 contada por mulheres’. Tal pesquisa surge a partir da parceria entre três laboratórios de pesquisa em psicologia: Pulsional (Universidade Federal de Pelotas - UFPel), marginália (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) e Epoché (UFPel), que constroem diálogos teórico-metodológicos voltados para a investigação acerca dos desdobramentos psíquicos das realidades vividas por mulheres brasileiras na pandemia de Covid-19.

Desde março de 2020, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou a Covid-19 uma pandemia, afirmam-se a importância da ciência e o papel crucial das universidades no enfrentamento da crise sanitária - mas também psicossocial - precipitada pela disseminação do vírus11 Sá MC, Miranda L, Canavêz de Magalhães F. Pandemia Covid-19: catástrofe sanitária e psicossocial. Cad. Adm. 2020; (28):27-36.. Desde então, surgiram iniciativas de investigação nos mais diferentes campos de conhecimento, revelando a necessidade de ações inovadoras ante a complexidade dos desafios trazidos pela realidade do novo coronavírus. Se todos somos inequivocamente vulneráveis ao vírus, não é possível desconsiderar que indicadores socioeconômicos - especialmente no contexto brasileiro - podem ser determinantes no destino que cada qual terá sob a ameaça da Covid-19, o que faz com que David Harvey22 Harvey D. Política anticapitalista em tempos de Covid-19. In: Davis M, Zizek S, Badiou A, et al. Coronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra sem Amos; 2020. p. 5-12. afirme se tratar de uma pandemia de classe, gênero e raça.

Requer especial atenção a situação das mulheres, muitas das quais arcam sozinhas com a responsabilidade do cuidado com a casa, com os filhos e com os demais membros da família, resultado inconteste da divisão sexual do trabalho33 Federici S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante; 2017.. Sendo assim, as mulheres podem ser tomadas como uma população designada pela precariedade, isto é, uma situação politicamente induzida que concorre para que “[as mulheres] sofram as consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que outras [pessoas]”44 Butler J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2019.(40), o que faz com que fiquem mais expostas aos danos, à violência e à morte.

É importante salientar que, quando nos referimos à categoria ‘mulher’, não queremos propagar a ideia de uma identidade comum, como se tratássemos de um grupo homogêneo. Pensar sobre as mulheres na nossa sociedade é uma tarefa intimamente articulada à ideia de subordinação, mas essa posição não pode ser descrita de forma única: as formas de subordinação são diversas, marcadas por questões como raça, renda, orientação sexual, localização geopolítica, cultura, religião, profissão etc. Entendemos, portanto, que a categoria ‘mulheres’ constitui uma coletividade volátil, que comporta inúmeras formas de ser e estar no mundo, é histórica e discursivamente construída, atravessada por diferentes forças, tanto de opressão quanto de resistência55 Costa CL. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. Cadernos Pagu. 2002; (19):59-90..

Na situação de pandemia, as mulheres estão mais expostas ao risco de contaminação e às vulnerabilidades sociais decorrentes desse cenário, como desemprego, violência, falta de acesso aos serviços de saúde e aumento da pobreza. A ameaça de precariedade inspira ainda mais cuidados em se tratando de países do sul global, como o Brasil, reconhecidos por acirradas desigualdades66 Organização das Nações Unidas Mulheres. Covid-19: Mulheres à frente e no centro. ONU Mulheres Brasil. 2020. [acesso em 2020 ago 20]. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/noticias/Covid-19-mulheres-a-frente-e-no-centro
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. Esse cenário atesta quão fundamental é discutir a pandemia a partir de uma perspectiva de gênero. É preciso que as medidas de enfrentamento considerem esse impacto desigual para que não se corra o risco de excluir de tais medidas quem mais tem sofrido seus efeitos: as mulheres, especialmente aquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade social. O planejamento e a construção de ações de cuidado em saúde mental para esse público específico não podem prescindir de um olhar integral em relação às realidades vividas e suas repercussões subjetivas. Para fazê-lo, é preciso, então, considerar suas narrativas e buscar contemplar suas especificidades.

No cenário de uma pandemia, em que o cuidado passa a ser solicitado de forma muito mais intensa e contínua nos diferentes âmbitos da nossa sociedade, a sobrecarga é sentida de maneira significativa pelas mulheres. Isso ocorre porque o cuidado - seja ele da natureza que for - tem sido uma função preponderantemente atribuída a elas, como algo intrínseco ao gênero. Dados da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que a taxa de realização de trabalhos domésticos, em 2018, era de 92,2% para as mulheres e de 78,2% para os homens. Em média, as mulheres dedicam 21,3 horas semanais para essas atividades, enquanto os homens dedicam 10,9 horas. Na pandemia, 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém77 Gênero e Número, Sempreviva Organização Feminista. Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. Sempreviva Organização Feminista. 2020. [acesso em 2021 maio 25]. Disponível em: http://mulheresnapandemia.sof.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio_Pesquisa_SemParar.pdf
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. Quando se considera o fator maternidade, temos um agravante na sobrecarga, principalmente no cenário pandêmico, como atesta um estudo recente sobre feminização do cuidado ligado ao mito do amor materno88 Silva JMS, Cardoso VC, Abreu KE, et al. A feminização do cuidado e a sobrecarga da mulher-mãe na pandemia. Rev. Fem. 2020; 8(3):149-161..

Se o grande grupo de profissionais de saúde já inspira especial atenção em função da pandemia99 Huremović D. Quarantine and Isolation: Effects on Healthcare Workers. In: Huremović D, editor. Psychiatry of Pandemics. A Mental Health Response to Infection Outbreak. Suíça: Springer Nature; 2019. p. 119-126., é importante considerar que as mulheres de tal grupo estão expostas a outros tipos de danos que escapam a apontamentos mais generalistas1010 Hernandes ESC, Vieira L. A guerra tem rosto de mulher: trabalhadoras da saúde no enfrentamento à Covid-19. 2020. [acesso em 2020 jun 1]. Disponível em: http://anesp.org.br/todas-as-noticias/2020/4/16/a-guerra-tem-rosto-de-mulher-trabalhadoras-da-sade-no-enfrentamento-covid-19
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não orientados pela perspectiva de gênero. Surge, assim, a questão que guiará nossa discussão no presente artigo: como narrar a pandemia de Covid-19 a partir das profissionais de saúde? Que fatores se evidenciam em suas narrativas? A partir das colocações dessas profissionais, construiremos algumas possibilidades de respostas para essa questão.

Material e métodos

Este estudo foi realizado a partir da intersecção entre os métodos psicanalítico e fenomenológico de pesquisa, em diálogo com teorias feministas oriundas de diferentes campos do saber. Tais aproximações promovem pontes entre abordagens tradicionalmente excludentes dentro da psicologia: a psicanálise e a psicologia fenomenológico-existencial. A última dialoga com o âmbito da filosofia, para desenvolver metodologias de acesso do vivido e formas de compreensão, e com a psicologia. A primeira, em uma visada contemporânea, parte das manifestações do inconsciente, colocando-as em diálogo com o contexto em que cada sujeito está inserido. Apesar de terem raízes epistemológicas distintas, ambas se distanciam das chamadas pesquisas tradicionais, positivistas, não tendo por objetivo alcançar resultados universais e verificáveis. São perspectivas que trabalham na construção de uma interpretação possível, entre tantas concebíveis, para as narrativas analisadas, considerando que a figura da pesquisadora não é aquela de distanciamento, mas de alguém que entra no corpo a corpo e se transforma ao longo do processo1111 Figueiredo LC, Minerbo M. Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo. Jornal de Psicanálise. 2006 [acesso em 2020 ago 21]; 39(70):257-278. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352006000100017&lng=pt&tlng=pt
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,1212 Moreira DA. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2002.
.

O desafio de ir a campo e fomentar a produção de relatos em uma situação de isolamento nos levou a construir um instrumento que pudesse trazer dados objetivos, mas que convidasse, também, ao compartilhamento de vivências, histórias e sentimentos. Dessa forma, a coleta de dados foi realizada por meio de um questionário on-line dirigido a mulheres brasileiras, tendo sido respondido por 5.874 participantes. A divulgação foi feita majoritariamente por intermédio de redes sociais, como o Facebook e o WhatsApp, além do envio de e-mails para a nossa rede de docentes e estudantes em nossas universidades, que ampliaram a circulação. As questões elaboradas, o layout do questionário e a imagem de capa foram escolhidos de forma cuidadosa, de modo que as respondentes se sentissem acolhidas e que fizesse sentido falar de si, mesmo por meio de um instrumento virtual, em princípio tão impessoal. Foram feitas 32 perguntas, entre objetivas e reflexivas, para conhecer marcadores sociais, além de criar um espaço para a construção de narrativas acerca das diferentes realidades vivenciadas neste momento de pandemia. O questionário foi divulgado no dia 24 de maio de 2020 e permaneceu no ar até 7 de junho do mesmo ano. Cada participante foi convidada a contar experiências vividas durante a pandemia de Covid-19. Recebemos, além de informações de cunho quantitativo, narrativas que permitem conhecer as repercussões subjetivas das vivências durante o recorte de tempo estabelecido. Cabe destacar que o instrumento de coleta de dados somente foi divulgado após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de ensino à qual a pesquisa está vinculada (CAAE: 31203220.3.0000.5317).

Neste artigo, tratamos do grupo específico das mulheres que trabalham na área da saúde, categoria que tem sido destacada no atual contexto por constituir a maioria esmagadora de profissionais que estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus1010 Hernandes ESC, Vieira L. A guerra tem rosto de mulher: trabalhadoras da saúde no enfrentamento à Covid-19. 2020. [acesso em 2020 jun 1]. Disponível em: http://anesp.org.br/todas-as-noticias/2020/4/16/a-guerra-tem-rosto-de-mulher-trabalhadoras-da-sade-no-enfrentamento-covid-19
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. No universo da nossa pesquisa, 602 brasileiras que atuam como profissionais de saúde responderam ao instrumento. Para o grande grupo dessas profissionais, optamos por não estabelecer qualquer critério de exclusão, bastando ter respondido afirmativamente à questão ‘Você trabalha em serviço de saúde?’. Em outros termos, a referida categoria foi utilizada de forma ampla, sem qualquer especificação no que diz respeito à atividade profissional ou à formação. A despeito das inquestionáveis diferenças internas a esse grande grupo - a depender da ocupação, das condições de trabalho que têm, do grau de exposição ao vírus, com destaque para a precarização vivida por enfermeiras e técnicas de enfermagem1313 Machado MH, Koster I, Filho WA, et al. Mercado de trabalho e processos regulatórios - a Enfermagem no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2020; 25(1):101-112. -, decidimos priorizar, no instrumento de pesquisa construído, a questão que destacasse as mulheres atuando na área da saúde em comparação com aquelas atuando em outras áreas. Vale lembrar que o universo ampliado da pesquisa contempla respondentes que possuem diferentes ocupações, de modo que o presente trabalho constitui um recorte das narrativas das trabalhadoras da saúde que responderam ao questionário, material a partir do qual foram construídas hipóteses em relação ao ato de cuidar, sobre as quais nos debruçaremos adiante. Antes disso, vale expor alguns dados que nos ajudam a entender quem são as profissionais de saúde que responderam às questões da pesquisa.

Em relação à raça, 79% das respondentes se autodeclararam brancas; 13%, pardas; 5%, pretas; 2%, amarelas/asiáticas; e 1% não respondeu à questão. A título de uma breve comparação, é possível citar os achados de recente pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre as condições de trabalho de profissionais de saúde na pandemia, que contou com 25 mil participantes, sem especificações quanto ao recorte de gênero. No referido estudo, 57,5% declararam-se brancos; 33,9%, pardos; e 6%, pretos1414 Leonel F. Pesquisa analisa o impacto da pandemia entre profissionais de saúde. Portal Fiocruz. 2021. [acesso em 2021 maio 18]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-entre-profissionais-de-saude
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. Isso significa que, no universo das respondentes da nossa pesquisa, houve um aumento expressivo das mulheres autodeclaradas brancas em comparação com a investigação da Fiocruz. Em relação ao vínculo empregatício, na nossa pesquisa, 85% das mulheres têm um trabalho formal, contra apenas 15% com vínculos informais. No que diz respeito à renda familiar, a maior parte das participantes declarou receber mais de 8 salários mínimos, totalizando 38%; 13% recebem de 6 a 8 salários; 17%, de 4 a 6 salários; 19%, de 2 a 4 salários; 9%, de 1 a 2 salários; e apenas 4%, de 0 a 1 salário. Esses dados mostram que as respondentes da pesquisa, de maneira majoritária, inserem-se em uma faixa privilegiada da população: mulheres brancas, com trabalhos formais e renda familiar acima de 4 salários mínimos. Suspeitamos que parte desse recorte pode ser explicada pelo modo como a pesquisa foi divulgada ou até mesmo pelo caráter do instrumento, qual seja, um questionário on-line, cuja resposta depende de acesso à internet por intermédio de computador ou celular, além de disponibilidade de tempo para responder a todas as perguntas.

Nesse sentido, é digno de nota o desafio de produzir análises em situações de emergências como a pandemia e, por isso, marcadas por constantes transformações. Na ocasião da elaboração das perguntas para o questionário em pauta, seria difícil supor que estaríamos, mais de um ano depois, ainda assoladas pelos problemas que dispararam nossa pesquisa, agora acrescidos de tantos outros que decorrem do aprofundamento da catástrofe sanitária e psicossocial suscitada pela pandemia. Sem negar a materialidade dessa constatação, convém reiterar que as respostas foram elaboradas pelas participantes no período ainda inicial da pandemia, configurando um registro daquele momento - a saber, maio e junho de 2020 -, cujas características podem evidenciar continuidades, mas também descontinuidades em relação ao momento que agora enfrentamos. A análise dessas eventuais diferenças não faz parte, neste momento, dos objetivos da nossa investigação.

Cientes das limitações desse instrumento e do recorte de nossa pesquisa, decidimos privilegiar a análise das respostas à seguinte questão, de caráter aberto: ‘Neste momento de pandemia, quais os efeitos na sua vida de ser uma trabalhadora da saúde?’. No rol das perguntas endereçadas apenas às profissionais da saúde, entendemos que essas narrativas poderiam funcionar para a construção de uma primeira cartografia das especificidades vivenciadas por essas profissionais, servindo inclusive de termômetro para análises futuras a partir do material que coletamos.

A descrição inicial dos fenômenos configura o ponto de partida na busca do rigor, o qual se ancora na experiência, sempre inserida no que Husserl1515 Husserl E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2012. denomina ‘mundo da vida’, interessando acessar o vivido e seus desdobramentos. Para tanto, o primeiro passo metodológico de uma pesquisa qualitativa consiste na explicitação do lugar epistemológico e vivencial no qual as pesquisadoras se encontram para, então, sair do que se denomina ‘atitude natural’ e adentrar uma postura investigativa. Esse movimento é fundamental também para o método psicanalítico, pois, nesse tipo de pesquisa, como sugere Herrmann1616 Herrmann F. Pesquisando com o método psicanalítico. In: Herrmann F, Lowenkron TS, organizadores. Pesquisando com o método psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2004. p. 43-83, qualquer fragmento pode ser analisado e possibilitar a descoberta de novos elementos, culminando na construção de uma interpretação. Desse modo, a pesquisa com o método psicanalítico, além de contribuir para o trabalho e a experiência individual de quem pesquisa - que se modifica após o ato de pesquisar -, também deixa aberta a possibilidade de construção de algo ainda não estudado pela psicanálise a partir do diálogo entre pesquisadoras, narrativas das participantes e aportes teóricos1111 Figueiredo LC, Minerbo M. Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo. Jornal de Psicanálise. 2006 [acesso em 2020 ago 21]; 39(70):257-278. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352006000100017&lng=pt&tlng=pt
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No percurso metodológico, evidenciamos um caminho hermenêutico comum, crítico e situado, para construir pontes e trazer à tona, a partir dos dados, novas maneiras de ver. Cientes dos vieses e do perigo de uma história única no âmbito da ciência, como nos alerta Adichie1717 Adichie CN. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras; 2019., inclinamo-nos atentamente sobre os relatos das mulheres que colaboraram com a pesquisa. Esse movimento de se inclinar carrega em si uma postura clínica, fruto de nossas trajetórias como psicólogas, ajudando-nos a imaginar seus cotidianos em sua complexidade, a partir dos termos, frases e imagens com as quais dizem sobre si mesmas no instrumento que lhes foi dirigido. Para compreender esse material interpretativamente, debruçamo-nos sobre ele e identificamos os múltiplos sentidos que atravessaram os discursos das participantes do estudo. A estratégia, nesse momento, foi a de assumirmos uma postura de desprendimento em relação às teorias preexistentes sobre o tema, atentas aos marcadores sociais que nos atravessam e influenciam nossas percepções.

Diante dos dados selecionados, procedemos à leitura cuidadosa dos relatos, analisando o material constituído pelas narrativas, deixando-nos impressionar pela intensidade de uma expressão, palavra ou ausência de expressão que nos despertava a atenção, como um tom desafinado aos nossos ouvidos, ao invés, apenas, da quantidade de vezes em que um tema qualquer foi mencionado pelas participantes1818 Ferreira MC. Encontrando a criança adotiva: um passeio pelo imaginário coletivo de professores à luz da Psicanálise. [tese]. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 2006.. Após situar nossa implicação inicial, promovemos um ‘distanciamento reflexivo’, de modo a analisar o contexto, o material disponível e organizá-lo de forma a revelar sentidos - tanto enquanto significado, quanto direção daquilo que se mostra1919 Forghieri YC. Psicologia fenomenológica: fundamentos, método e pesquisa. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2002.. O passo seguinte consistiu em encontrar/construir categorias que se mostraram a nós enquanto pesquisadoras. A partir desse processo, intencionamos descrever o vivido, trazendo-o para o campo da significação, possibilitando, então, uma interpretação, entre tantas possíveis, a partir de uma dada realidade social.

Resultados e discussão

A partir da análise do material, aspectos relacionados com a problemática do cuidado se destacaram, não apenas pela alta ocorrência de narrativas que os sustentam, mas também pelas ressonâncias que as respostas produziram em nós: mulheres e professoras de futuras profissionais de saúde. Tais aspectos nos conduziram à construção de categorias, denominadas de acordo com o sentido que portavam sobre as vivências subjetivas das participantes. No presente texto, traremos a categoria compreensiva ‘Na encruzilhada do cuidado: isoladas de nós mesmas’. Para referenciar as respostas que constam no presente artigo, foram utilizados os números dos questionários das respondentes entre parênteses logo após os trechos transcritos.

Conforme apontado anteriormente, as mulheres estão sujeitas a uma carga maior de trabalho, o que se mostra na corriqueira conjugação do trabalho remunerado com a estafante rotina das atividades domésticas, entre as quais o cuidado com a casa e com os membros da família2020 Federici S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante; 2019.. Com as medidas de isolamento, estejam as trabalhadoras em casa, em home office, ou na rua, em serviços essenciais, houve uma intensificação das suas jornadas diárias. Se estas já eram duplas, ou até mesmo triplas, tornaram-se então um trabalho ininterrupto, sem fronteiras nítidas entre casa, emprego e escola. Por esse motivo, analisando a pandemia a partir de uma perspectiva de gênero, Fonseca e Pagliarini2121 Fonseca JKMR, Pagliarini AC. A sobrecarga da jornada ininterrupta da mulher na pandemia: mais um caso de desigualdade de gênero. In: Rodrigues CE, Melo E, Polentine MJ, organizadores. Mulheres e pandemia. Salvador: Studio Sala de Aula; 2020. (Volume 1).(69) consideram o espaço privado da casa uma nova linha de combate.

Fato é que as mulheres têm assumido, por vezes sozinhas, uma linha de frente invisível: aquela demandada pelo lar, cujo fardo desproporcional e injusto reafirma uma desigualdade crônica na sociedade.

Não tem sido diferente para as profissionais da área de saúde. No âmbito privado, muitas falas trazem o desafio de conciliar o trabalho na área da saúde com as funções de esposas, mães ou filhas.

[...] Trabalho ligada à gestão da Secretaria Municipal de Saúde. Iniciamos trabalho remoto, a creche do meu filho (2 anos) fechou, meu marido está com problema de saúde e os dois com muitas demandas de trabalho. Em uma semana, o trabalho ficou mais intenso (e tenso), a rotina mudou, não temos rede de apoio. Cozinhar, lavar, cuidar, brincar, trabalhar, dormir (pouco), trabalhar, trabalhar, trabalhar, amamentar, amamentar, amamentar... Estamos sem rede de apoio. (35).

Por um lado, me sinto privilegiada por ter um serviço público ‘estável’. Por outro, me sinto mais exposta ao risco de contaminação, a responsabilidade de não carregar o vírus até minha casa, sendo mãe de duas crianças com idade inferior a 3 anos. Também percebi, quando em contato com os usuários do SUS, a não aceitação da orientação vinda de uma mulher, sendo necessário, por vezes, chamar um colega homem para explicar a nova situação com restrições de acúmulo de pessoas, uso de máscaras, atendimentos restritos. Também o papel de mãe e de esposa, tendo que equilibrar as emoções e inseguranças do lar, a alteração de humor. (8).

Dadas as características do seu trabalho, a maioria das profissionais de saúde não pode se manter restrita ao lar e, saindo de casa, mantém uma aparente fronteira entre vida pessoal e trabalho. No entanto, isso significa maior exposição a riscos - inclusive de contágio de familiares2222 The Lancet. Covid-19: protecting health-care workers. Lancet. 2020; 395(10228):922. - e estresse emocional, que se amplia com as demandas em casa. Nesses moldes, mesmo saindo para trabalhar, tais profissionais se sentem responsáveis pela casa, por idosos e crianças, relatando uma profunda sobrecarga. Muitos relatos em nossa pesquisa trazem essa realidade.

O mais difícil é ter que assumir a responsabilidade de ser profissional de saúde, correndo risco de contaminação, e conciliar com a maternidade, correndo risco de transmissão. Além disso, chegar do trabalho estressada e ter que exercer papel de educadora, realizando trabalhos e tarefas escolares, me deixou extremamente esgotada, me senti impotente como mãe, fragilizada pelo fato de ter que ser multitarefas e forte como enfermeira da linha de frente! Filha, mãe, educadora, namorada e enfermeira são tarefas bastante exigentes para serem exercidas todas juntas em pandemia mundial. (121).

Ficar longe dos meus filhos em datas importantes, ter muitos cuidados ao chegar em casa, adoecer (no início não havia máscaras e EPIs para todos), ter medo de morrer e deixar os filhos sem cuidados devidos. (128).

Como não poderia ser diferente, essa difícil rotina tem importantes desdobramentos psíquicos, constatação que aparece em muitas respostas, como exemplifica o fragmento a seguir: “Sinto como se fosse uma equilibrista de corda bamba, tentando equacionar os cuidados sanitários e a saúde mental” (65). Essa busca por ‘equacionar os cuidados’, equilibrando-se em uma ‘corda bamba’, parece-nos estar relacionada com os diversos aspectos que se cruzam nas experiências de cuidar das profissionais de saúde na pandemia, dentre os quais destacam-se: medo, solidão, cansaço intenso e impossibilidade de cuidar de si e de receber cuidado. Além disso, essas profissionais indicam a falta de saídas possíveis diante da encruzilhada que as experiências de cuidar passam a representar, como aparece nas seguintes narrativas:

Meu maior sentimento é de descrença nas pessoas que proferem tantas homenagens ao profissional de saúde, pois, ao mesmo tempo, são negligenciados, hostilizados e maltratados. Principalmente os profissionais da enfermagem, sou enfermeira. (877).

A pandemia fez com que meu trabalho quadruplicasse, pois, além do estresse de precisar circular por fazer parte de atividade essencial, precisei fazer home office e ainda conciliar o trabalho com os filhos e esposo em casa. A demanda por alimentação, limpeza, assistência em homeschooling e alguns problemas de convivência sobrecarregaram meu dia a dia. (35).

É possível perceber como as vivências profissionais e pessoais relacionadas com o cuidado estão intimamente articuladas. A pandemia parece ter contribuído para uma intensificação das responsabilidades relativas ao cuidar: desde cuidados com aspectos básicos, como higiene, limpeza e alimentação, até a necessidade de cuidado com outras pessoas, como filhos, idosos e pessoas doentes. Em função de uma lógica de sociabilidade burguesa, histórica e socialmente construída, as demandas relacionadas com o cuidar recaem majoritariamente sobre as mulheres, como relatado pelas participantes. O papel de cuidar parece estar ocupando todas as dimensões da vida, e as consequências disso são preocupantes: cansaço intenso, exaustão, medo, sentimento de não conseguir dar conta e, em especial, ansiedade. Essa percepção sobre as narrativas está de acordo com a literatura mais recente sobre o assunto, a qual indica, inclusive, maior risco de ansiedade entre mulheres em comparação com os homens na grande categoria de trabalhadores da saúde2323 Silva DFO, Cobucci RN, Soares-Rachetti VP, et al. Prevalência de ansiedade em profissionais da saúde em tempos de COVID-19: revisão sistemática com metanálise. Ciênc. Saúde Colet. 2021; 26(2):693-710..

Segundo Figueiredo2424 Figueiredo LC. A metapsicologia do cuidado. Psychê. 2007 [acesso em 2020 ago 19]; 11(21):13-30. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382007000200002
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(15)
, o cuidado pode ser pensado como uma forma de possibilitar ou facilitar a criação de um sentido humano: “[...] fazer sentido implica estabelecer ligações, dar forma, sequência e inteligibilidade aos acontecimentos”. De acordo com o autor, um dos modos principais do cuidado ser exercido é por meio da ‘presença implicada’ constituída pelas funções de sustentar, conter e reconhecer, indispensáveis para uma experiência de continuidade diante de uma situação de fragilidade e mudanças. Quando lemos as narrativas das profissionais de saúde, parece ficar evidente essa dimensão do cuidado: elas são, tanto no trabalho quando em suas casas, o alicerce que sustenta a manutenção de uma experiência de continuidade, de reorganização diante das mudanças e exigências impostas pela pandemia; são fonte de amparo, contenção e segurança para as pessoas com as quais convivem.

Figueiredo2424 Figueiredo LC. A metapsicologia do cuidado. Psychê. 2007 [acesso em 2020 ago 19]; 11(21):13-30. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382007000200002
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adverte que podem ocorrer excessos nas funções de cuidado, exageros da implicação. O autor se refere a momentos em que o cuidado adquire um caráter totalitário, no sentido de que quem cuida busca dominar o outro, em uma presença constante e excessiva. A presença reservada - a possibilidade de se ausentar, de moderar seu fazer, de compartilhar as funções - seria fundamental para o cuidador não recair em um exercício totalitário e adoecido do cuidado. Nessa perspectiva, o não cuidar converte-se em uma maneira sutil e eficaz de cuidado e uma abertura ao deixar-se cuidar. Entretanto, e quando não é possível ausentar-se, moderar o fazer, quando as funções de cuidado são impostas e não conseguem ser compartilhadas?

Parece que o autor não atenta para esse aspecto porque não discute a questão do cuidado a partir de uma perspectiva de gênero. As narrativas das profissionais de saúde apontam outra dimensão totalitária que o exercício do cuidado pode adquirir: quando quem cuida é dominada, subjugada por essa função, que se torna uma imposição social e que, para ser exercida a partir de um lugar de escolha, exige um intenso trabalho subjetivo e coletivo (seja no âmbito familiar, seja no âmbito social mais amplo). Com isso, queremos salientar que não é que não haja possibilidade de realizar escolhas, mas realizá-las é um grande desafio em uma sociedade em que o cuidado vem sendo historicamente imposto às mulheres. Cabe destacar que essa lógica impositiva que caracteriza a realização do cuidado, além de não poder ser pensada de forma desarticulada da questão de gênero, precisa levar em consideração também as questões de raça e classe. Outrossim, nesse ponto, não podemos deixar de lembrar da nossa história, marcada pela escravização, o que faz com que essa imposição recaia de forma ainda mais violenta sobre mulheres negras e pobres. Revela-se o quanto é difícil poder escolher e como essa imposição da realização do cuidado parece estar presente nas falas das profissionais de saúde, especialmente no âmbito familiar.

Estresse e acúmulo de trabalho doméstico com home office. Diminuí os plantões presenciais e preciso cumprir o restante com home office. Todos em casa, trabalho mais que dobrado, não fui bem-sucedida na educação de meus filhos criei ‘nobres’ que não ajudam. (1).

Excesso de trabalho tanto no ambiente de trabalho quanto em casa, uma vez que as crianças estão em casa e a dupla jornada de trabalho se impõe. Há um cansaço tanto físico como mental. Já que a sensação de insegurança dos outros está drenando minhas forças, pois preciso acalmar os outros. (276).

As narrativas evidenciam uma lógica totalitária histórica e socialmente construída - mas naturalizada - que aprisiona as profissionais de saúde no lugar de quem cuida, dificultando, quando não impossibilitando, que recebam cuidado. Consideramos que tal aprisionamento pode se dar em maior ou menor intensidade, tendo em vista a diversidade de formações, realidades e contextos em que as profissionais da saúde se inserem. A pesquisa doravante apresentada não conta com dados que permitam contrastar diferenças internas ao grande grupo das trabalhadoras da saúde de acordo com as ocupações profissionais, já que essa questão não integrou o questionário divulgado. Em adição, caberia aprofundar a investigação sobre o fato de termos chegado a um universo bastante específico de acordo com as mulheres participantes: majoritariamente brancas, com trabalhos formais e renda acima de 4 salários mínimos. O instrumento de pesquisa, divulgado por meio da internet, não teria chegado a mulheres em situações de mais vulnerabilidade? Se tiveram contato com o questionário, essas mulheres não se sentiram em condições de respondê-lo, tamanhos são os imperativos que sobre elas recaem? Estariam as mulheres mais privilegiadas em melhores condições para suspender o ritmo acelerado do cotidiano e se dedicar a elaborar narrativas sobre as experiências vividas na pandemia? A pesquisa leva a formular essas indagações, as quais, no momento, permanecem apenas como hipóteses sem resposta. Seja como for, mesmo no universo de respondentes da nossa pesquisa, o aprisionamento na lógica totalitária que demanda das trabalhadoras de saúde o cuidado com o outro, a expensas do cuidado consigo, mostrou-se muito presente. Apenas em uma única resposta foi possível encontrar uma profissional que se sentiu cuidada. Foi uma situação que a comoveu profundamente, o que evidencia sua natureza incomum em sua vida.

Uma colega de trabalho me chamou pra fazer mercado do mês com ela. Me deu carona pra ir e voltar de casa, me levou no açougue e no super também. Eu, como estou sozinha na cidade e sem carro, passaria muito trabalho pra fazer isso. Com a ajuda dela, foi muito mais simples, e eu senti muito carinho e afeto. Quando cheguei em casa, sentei no sofá e chorei de gratidão por essa pessoa em minha vida. (20).

Em tempos de pandemia, esse aprisionamento no lugar de quem cuida e não precisa ser cuidada torna-se ainda mais violento e fonte de intenso sofrimento. Somado a isso, as profissionais de saúde dedicam-se aos cuidados de pessoas que apresentam uma doença ainda desconhecida, em muitos aspectos - em especial, se considerarmos o momento em que as respostas foram enviadas, ainda no início da pandemia - e que é apresentada como uma grande ameaça para a humanidade. Quais serão os desdobramentos subjetivos de tal realidade?

Está muito difícil manter a calma, medo é constante, a falta de cuidado com quem cuida assombra diariamente, me sinto irritada, chorosa, por muitas vezes desmotivada. (195).

Sinto-me responsável por manter os atendimentos em prol da saúde emocional dos meus pacientes, porém estou mais vulnerável e necessitando de apoio emocional também para conseguir seguir, estou mais absorvida com as demandas de trabalho e de casa, filhos e trabalhando constantemente minha ansiedade, medo e incerteza de futuro, isso tem me absorvido emocionalmente. (1114).

Sinto que minha responsabilidade foi duplicada, pois tenho que proteger não só a mim, mas também a minha família e amigos. E sem falar que, no serviço, o trabalho duplicou, e continuamos ganhando o mínimo, sem adicional, tendo que fazer jornadas duplas, ficando longe das pessoas que amamos, isoladas até de nós mesmas. Tem noites que a tristeza bate fundo, de ver colegas se contaminando, morrendo, indo para UTIs. (57).

Percebo-me no desafio de conciliar diferentes papéis neste momento de pandemia. Também vejo como um desafio cuidar de pacientes que trazem questões emocionais relacionadas à pandemia, quando também estou vivenciando dificuldades semelhantes. O problema do outro também é o meu. (7).

Uma das participantes chegou a relatar: “tive momentos em que me expus, desnecessariamente, para tentar me contaminar e morrer” (255). A partir dessas narrativas, fica evidente o sofrimento intenso em que se encontram as profissionais de saúde. O exercício do cuidado (tanto profissional quanto pessoalmente) parece colocá-las em uma encruzilhada de sofrimento diante da qual se veem paralisadas. Isso indica que a sobrecarga sobre essas mulheres durante a pandemia coloca em risco tanto a saúde física quanto a saúde mental, demandando um intenso gerenciamento de emoções e, tantas vezes, a dissimulação de sentimentos para o exercício da função2525 Bitencourt SM, Andrade CB. Trabalhadoras da saúde face à pandemia: por uma análise sociológica do trabalho de cuidado. Ciênc. Saúde Colet. 2021; 26(3):1012-1022..

Chamam nossa atenção as expressões ‘isoladas até de nós mesmas’, ‘o problema do outro é o meu’ e ‘tentar me contaminar e morrer’. Essas afirmações parecem indicar que o sofrimento das profissionais pode ser tão intenso que sugere um movimento de identificação com seus pacientes adoecidos pela Covid-19, em função de sensações intimamente relacionadas com os desdobramentos dessa doença. Uma espécie de ‘contágio psíquico’ parece ocorrer: embora as profissionais não estejam contaminadas pela Covid-19, existe, psiquicamente, a sensação de estar passando por uma situação semelhante à dos doentes, a ponto de uma delas relatar tentativas de contaminação. Assim, deparamo-nos com relatos que indicam que o sofrimento revelado pelas profissionais de saúde pode ser pensado em analogia ao sofrimento que frequentemente atinge os pacientes com Covid-19: marcado pelo medo, desamparo, isolamento, desespero, incerteza quanto ao futuro e desejo de morrer2626 Schmidt B, Crepaldi MA, Bolze SDA, et al. Saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Estud. Psicol. 2020 [acesso em 2020 ago 27]; (37):e200063. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200063
https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e...
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Essa espécie de contágio psíquico parece ter um sentido subjacente: a busca por cuidado. Uma das poucas formas que permite sair, mesmo que temporariamente, desse aprisionamento ao lugar de ‘quem cuida e não precisa ser cuidada’ - determinado histórica e socialmente - pode ser o adoecimento. O adoecimento surge como apelo ao cuidado, tentativa de abertura de uma brecha para se cuidarem e/ou serem cuidadas, mesmo que a um custo bastante elevado. A pandemia não produziu essa dinâmica, embora a tenha intensificado exponencialmente. Isso aponta para a importância da construção de políticas públicas durante a pandemia e pós-pandemia, voltadas ao cuidado das profissionais de saúde, principalmente em termos de saúde mental.

Segundo Figueiredo2424 Figueiredo LC. A metapsicologia do cuidado. Psychê. 2007 [acesso em 2020 ago 19]; 11(21):13-30. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382007000200002
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, uma das metas do cuidado deve ser a passagem para uma responsabilidade redefinida, passando a ser exercido por quem estava sendo cuidado, levando a uma interiorização das funções cuidadoras, para que passem a fazer parte dos modos de existência. Essas colocações apontam a necessidade de debates que considerem a construção histórica do lugar do cuidado, do ponto de vista político e econômico, como nos traz Federici33 Federici S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante; 2017.. Faz-se importante, também, traçar diálogos com a filosofia, a exemplo de Lima2727 Lima PA. Gestalt-terapia e cuidado. Estud. Pesq. Psicol. 2019; 19(4):1051-1066., que empreende uma investigação filosófica do cuidado, marcando sua dupla direção: o voltar-se para si mesmo e o movimento de voltar-se para o mundo. Consideradas dimensões inseparáveis, o amadurecimento do cuidado abarcaria a alternância com o autocuidado, sendo essa alternância parte do processo de desenvolvimento pessoal. Isso somente parece possível, quando o cuidado deixar de ser uma tarefa determinada e imposta de forma totalitária em função do gênero, da raça e da classe.

Considerações finais

A universidade pública, orientada pelo compromisso com a equidade, assume uma posição estratégica na construção de práticas clínicas e saberes à altura dos desafios impostos pelas repercussões das realidades experimentadas por mulheres brasileiras a partir da pandemia de Covid-19. Como professoras de universidades públicas - e de profissionais de saúde em formação -, estamos cientes de tal responsabilidade, o que implica considerar efetivamente as especificidades das mulheres que vivenciam diferentes experiências.

É preciso atenção para não cair na armadilha da tentativa de construção de modelos homogêneos a partir da opressão, da subordinação, pois isso pode invisibilizar os modos de existência, de resistência, de enfrentamento coletivo e/ou individual do sofrimento vivido. Tem sido assim quando se parte de modelos pretensamente neutros, não situados2828 Canavêz F. Raça, gênero e classe social na clínica psicanalítica. Tempo Psic. 2020; 52(2):79-102., que desconsideram os marcadores sociais em prol da ficção universalizante, deixando a experiência das mulheres como mero apêndice de saberes e práticas construídos por homens e para homens.

Para extrapolar essa ficção e escutar as palavras que clamam para serem ouvidas, compete às propostas clínicas contemporâneas considerar a inscrição sócio-histórica do psiquismo para a construção de epistemologias situadas2929 Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu. 1995; (95):7-41., portanto, efetivamente operacionais para a discussão dos desdobramentos subjetivos das realidades vividas por mulheres neste momento de pandemia.

Mulheres, profissionais da saúde, atuando no contexto da pandemia de Covid-19 equilibram-se nas demandas da encruzilhada do cuidado, isolando-se de si mesmas para tentar cumprir a contento a imposição da realização do cuidado - seja no âmbito profissional, seja no âmbito familiar - que lhes é reservada em uma sociedade profundamente patriarcal e opressora. Narrar a pandemia sem considerar o recorte de gênero é contribuir para que nós, mulheres, continuemos precisando lançar mão de poderes extraordinários para nos assumir vulneráveis - portanto humanas - e passíveis de cuidado, na corda bamba que se desenrola desde muito antes do novo coronavírus.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2020
  • Aceito
    02 Jul 2021
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