RESUMO
Reafirmar a Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano encontra respaldo na Constituição Federal de 1988, que constitucionalizou o termo ‘saúde do trabalhador’, valorizando o trabalho na determinação do processo saúde-doença. A posição destacada do elemento trabalho no texto constitucional não garantiu à área os instrumentos e a posição adequada dentro da hierarquia administrativa do sistema de saúde, comprometendo as interlocuções e interações necessárias com as demais instâncias de vigilância em saúde e com a atenção e a assistência, essenciais para a execução das ações de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, caracterizadas pela transversalidade. Resgatar os valores que nortearam a Reforma Sanitária Brasileira é essencial para a reaproximação da classe trabalhadora da saúde, valorizando-se não apenas as representações sindicais, mas também os movimentos sociais, por meio da Vigilância Popular em Saúde. Reforçar as estratégias de vigilância, aprimorando a captação de dados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação e promovendo o compartilhamento de dados com os campos trabalho e previdência, é estratégia que merece atenção, especialmente no contexto desafiador das novas relações de trabalho, nas quais compreender os padrões de adoecimento e sua distribuição é essencial para o enfrentamento dos impactos na saúde da população trabalhadora.
PALAVRAS-CHAVE
Saúde do trabalhador; Direitos humanos; Conferências de saúde; Saúde pública; Processo saúde-doença
ABSTRACT
Reaffirming workers’ health as a human right finds solid grounding in the 1988 Brazilian Constitution, which enshrined the term ‘workers’ health’, recognizing the centrality of labor in shaping the health-disease process. Despite the prominent position attributed to labor in the constitutional text, this recognition did not translate into the provision of adequate instruments or an appropriate standing within the administrative hierarchy of the health system. As a result, the necessary dialogue and interactions with other domains of health surveillance, as well as with healthcare and assistance services, have been compromised - an issue particularly critical given the inherently cross-cutting nature of workers’ health actions. It is therefore imperative to recover the foundational values that guided the Brazilian Sanitary Reform to reestablish the connection between the working class and the health sector. This involves valuing not only labor union representations but also broader social movements, particularly through mechanisms such as Popular Health Surveillance. Strengthening surveillance strategies by improving data collection within the Notifiable Diseases Information System and fostering data integration across the labor and social security sectors represents a crucial initiative. This is especially relevant in the face of contemporary challenges posed by new forms of labor relations, where understanding patterns of illness and their distribution is essential for addressing the health impacts on the working population.
KEYWORDS
Occupational health; Human rights; Health conferences; Public health; Health-disease process
Introdução
O período que antecede a realização das conferências de saúde, em meio à efervescência das conferências municipais, estaduais e conferências livres, traz momentos de profunda reflexão. O tema proposto para abrir as discussões da 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT) contém pensamento instigante: Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano. Ora, se a saúde é um dos pilares dos direitos humanos, assim reconhecida desde o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 19481, no seu art. 25, qual o motivo e necessidade de explicitar a Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (STT) como um direito humano?
Reafirmar a STT como direito humano é relevante, especialmente no momento histórico desafiador que ora vivenciamos. O enfrentamento dos problemas do nosso tempo é tarefa complexa em um mundo tensionado por guerras com potencial de abalar as estruturas globais e a geopolítica mundial. O ambiente global se notabiliza por contrastes e contradições, no qual a tecnologia se autoproclama como a solução para os problemas contemporâneos, escondendo, por detrás da evolução dos chips e da inteligência artificial, questões socioambientais ainda longe de serem resolvidas, como as que decorrem da extração de minérios que compõem esses minúsculos processadores2.
A nova sociedade global, ao mesmo tempo que observa o progressivo avanço da tecnologia, não consegue superar o problema da fome e da desnutrição de parte considerável da população global; assiste aos desastres climáticos decorrentes da grave crise ambiental, mas insiste na exploração de fontes de combustíveis fósseis e na extração de minerais não renováveis, reduzindo as últimas reservas verdes e mudando a vida de comunidades tradicionais; analisa a expansão da inteligência artificial, mas não consegue assegurar educação básica para as crianças que devem controlá-la no futuro.
Por sua vez, a atual complexidade dos problemas do mundo do trabalho e da saúde daqueles que trabalham envolve questões não apenas sociais, mas também ambientais, tecnológicas, políticas e econômicas. É na complexidade, e não na linearidade que as soluções devem ser buscadas.
Estabelecer a STT como um direito humano no contexto atual tem o potencial de posicioná-la dentro desse espectro complexo, de modo a garantir e perseguir a estabilidade disciplinar em torno do tema. A estabilização da área da STT é um processo ainda em evolução e não adequadamente solucionado dentro da conformação de saúde pública desenhada pela Constituição Federal de 1988 (CF/88)3,4.
Assim, o presente artigo de opinião tem a finalidade de ingressar na reflexão proposta por ocasião da 5ª CNSTT. Inicialmente, com olhar retrospectivo sobre a Reforma Sanitária Brasileira (RSB), analisa juridicamente a posição da STT na CF/88. Depois, considerando os eixos de discussão, propõe reflexões sobre os problemas atualmente vivenciados pela disciplina, para, finalmente, trazer apontamentos sobre possíveis direções na busca do constante aprimoramento das políticas de saúde dedicadas à área.
A Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano
Juridicamente, é defensável o argumento de que o Brasil já posiciona a STT dentro da perspectiva de direito humano. Isso não é invenção recente, senão fruto da luta histórica dos movimentos sociais e sindicais, que culminou na vitoriosa RSB. Como produto dessa luta, a saúde como direito de todos e dever Estado, foi assegurada no art. 196 da CF/88. Essa inserção constitucional decorre da construção social que se deu a partir das campanhas dos movimentos sociais e sindicais à época da 8ª Conferência Nacional de Saúde e da 1ª Conferência de Saúde do Trabalhador no ano de 19865.
Ressalta-se que a Constituição Cidadã de 1988 foi além da garantia da saúde, como direito de todos e dever do Estado, determinando, ainda, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja descrição do campo de atuação foi albergada no próprio texto. Desse modo, além de a saúde emergir da CF/88 como um direito subjetivo de todos os brasileiros e brasileiras em face do Estado, também foi assentada a forma como essa organização deveria ser desenhada por meio do SUS.
No entanto não foi só isso. A CF/88 trouxe nova base jurídica para a saúde, sendo relevante, nesse contexto, a compreensão da extensão conceitual do direito à saúde trazido no art. 1964, nestes termos:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
O direito à saúde, para além do status de direito subjetivo público, mudou substancialmente a própria concepção de saúde pública no País. A partir da CF/88, o conceito de saúde pública, até então com abrangência circunscrita a atividades de prevenção e controle de propagação de doenças que impusessem risco à coletividade, expandiu-se significativamente. O Estado, então, assume que a garantia do direito à saúde também passa pela formulação e execução de políticas econômicas e sociais, sem descuidar da prestação de serviços públicos voltados à promoção, prevenção e recuperação da saúde. Nesse sentido, consoante destaca Santos3, a visão epidemiológica da questão saúde-doença, que privilegia o estudo dos fatores sociais, ambientais, econômicos e educacionais que podem gerar enfermidades, passou a integrar o direito à saúde.
É possível afirmar, portanto, que a CF/88 não limitou a saúde aos aspectos biológicos da doença, senão que reconheceu que o processo saúde-doença se expressa também pelas dimensões sociais e econômicas que interagem nessa evolução. Reconheceu, assim, a determinação social no processo saúde-doença e valorizou o peso inafastável das dinâmicas sociais, políticas e econômicas nos níveis de saúde. Adicionalmente, a CF/88 elevou constitucionalmente a saúde do trabalhador, cunhando o termo na Lei Maior (art. 200, inciso II)4. Ainda, reconheceu a necessidade de a saúde colaborar para a promoção de ambientes mais equilibrados, neles compreendido o meio ambiente de trabalho (art. 200, inciso VIII)4. O campo de atuação da STT e da saúde ambiental foram, posteriormente, definidos na Lei nº 8.080/19906, a Lei Orgânica da Saúde (LOS).
Podemos afirmar, portanto, que a STT é reconhecida no nosso ordenamento jurídico como direito humano. No entanto, ainda existe uma lacuna entre o reconhecimento jurídico e o mundo real que precisa ser superada. A realidade é pródiga em nos revelar esse abismo. Basta observar os números ainda alarmantes de acidentes do trabalho e de doenças relacionadas com o trabalho. Se é verdade que nos livramos do título de país com mais acidentes de trabalho no mundo, marca nada lisonjeadora alcançada no ano de 19757, fato é que o decréscimo de casos ainda não nos coloca em situação confortável. Ainda se morre, se mutila e se adoece muito no nosso país. Apenas no ano de 2024, a Previdência Social recebeu 742.200 notificações de acidentes de trabalho enquanto foram registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)8 494.422 acidentes de trabalhos graves.
Os dados registrados não consideram os problemas relativos à subnotificação e ao fato de o Sinan ter uma cobertura mais abrangente, pois incluem todos os tipos de vínculos empregatícios e faixas etárias, são alarmantes e revelam que a cultura da prevenção ainda não atingiu um status de consciência sanitária para as empresas, a rede de atenção à saúde e a população geral, para a transformação das condições de saúde no trabalho. A evidência de que esses dados representam, em sua maioria, os acidentes de trabalho graves agrava essa situação, não sendo representativos da ocorrência da totalidade de acidentes nem das doenças relacionadas ao trabalho, revelando apenas a ponta de um iceberg de problemas. É necessário enfatizar que acidentes de trabalho são preveníveis e que muitas vidas podem ser salvas a partir de políticas mais assertivas, que reconheçam o valor do saber popular e a riqueza das relações mais democráticas no enfrentamento desse evitável problema de saúde.
Assim, segue sendo atual a pergunta: o que fazer para melhorar os níveis de saúde da população trabalhadora? A partir dos eixos de discussão sugeridos pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) para a 5ª CNSTT, pretende-se ingressar nessas reflexões e integrar o processo dialético e dialógico que permeia o ambiente democrático das conferências.
Da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
A Portaria nº 1.823/20129, que instituiu a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), constitui marco histórico relevante no posicionamento da saúde do trabalhador dentro do próprio SUS. A PNSTT dá destaque para as atividades da Vigilância em Saúde do Trabalhador (Visat), enaltecendo a estratégia de vigilância de ambientes e de processos de trabalho (art. 2º), reforçando a visão do trabalho como um dos fatores de determinação do processo saúde-doença (parágrafo único do art. 3º)9.
Antecedente histórico a ser considerado refere-se à publicação do Decreto nº 7.602/201110 no ano anterior à instituição do PNSTT. O decreto cuidou da Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PNSST) e, como deixa clara a sua própria denominação, está pautada na perspectiva da Segurança e Saúde no Trabalho (SST). Entretanto, a estratégia de pactuação interministerial no campo da saúde e segurança não se concretizou. Esse esforço não resultou na elaboração de um plano operativo com a definição de competências, a superação dos conflitos referentes à ação de vigilância e fiscalização, e as distintas concepções de participação social; não se concretizou na superação de conflitos para avanços na construção das etapas subsequentes rumo a uma ação integrada, no campo da saúde e do trabalho, entre os ministérios. A política encartada no PNSST, embora congregasse a participação dos Ministérios do Trabalho, da Saúde e da Previdência Social e buscasse superar a atuação fragmentada desses órgãos do Executivo federal, claramente não cumpriu tal desiderato, cingindo-se a especificar as atribuições de cada órgão. Não revelou, além disso, progresso no tocante a uma atuação mais sinérgica entre os órgãos.
Feita essa breve digressão e retornando à PNSTT, tem-se que a instituição dessa política de saúde no ano subsequente à edição da PNSST foi benéfica não apenas no sentido de melhor detalhar as atribuições da área da saúde quanto à STT, mas também para dar direcionamento à matéria dentro do próprio sistema de saúde. Esse senso de direcionamento é dado no art. 8º10, em que os objetivos da política foram descritos, destacando-se o fortalecimento da Visat e sua integração com os demais componentes da Vigilância em Saúde, a promoção da saúde em ambientes e processos de trabalho saudáveis, a garantia da integralidade na atenção em saúde do trabalhador, na qual se considera o caráter transversal das ações de saúde do trabalhador e, consequentemente, a necessidade de articulação com as instâncias e os pontos da Rede de Atenção à Saúde do SUS.
Além disso, ao estabelecer esses objetivos, a PNSTT reafirmou o entendimento de que a saúde do trabalhador deve ser concebida sob a perspectiva da transversalidade, reconhecendo-se a categoria trabalho como um fator de determinação do processo saúde-doença, razão pela qual deve ser considerada nas análises de situação de saúde e nas ações de promoção de saúde.
Para o cumprimento desses objetivos, foram traçadas estratégias devidamente detalhadas no art. 9º9. Entre elas, previu-se a interação entre a Visat com os demais componentes da Vigilância em Saúde (Epidemiológica, Sanitária e Ambiental), com destaque para a necessidade de interlocução e cooperação com a Atenção Primária à Saúde por meio de planejamento conjunto, produção conjunta de protocolos e normas técnicas, de qualificação de equipes, harmonização e unificação de instrumentos de registro e notificação de agravos e doenças relacionadas ao trabalho.
Também é importante destacar que o artigo 9º, inciso II, alínea ‘h’9, incluiu entre as estratégias de execução da política a garantia na identificação do trabalhador, do registro de sua ocupação, ramo de atividade econômica e tipo de vínculo em diversos sistemas de dados do SUS, bem como em sistemas sob o comando do Ministério da Previdência e do Trabalho: Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), Sistema Federal de Inspeção do Trabalho (SFIT) e Relação Anual de Informações Sociais (Rais), além de sistemas de outros órgãos, como agricultura, meio ambiente, indústria, comércio, entre outros, para fins de análise do perfil produtivo e da situação de saúde dos trabalhadores. Essa medida auxiliaria na captação de dados que trariam maior vigor à vigilância epidemiológica em saúde do trabalhador, pois essa se beneficia da coleta de dados de fontes diversas11.
Passados mais de dez anos do lançamento do PNSTT, observa-se que tais ideais ainda não foram concretizados. A maior interlocução entre entes estatais da área da saúde, do trabalho e da previdência, prevista tanto na PNSTT como na PNSST, ainda ocupa apenas o plano das ideias. Acredita-se que a maior interação entre essas áreas poderia ser fomentada a partir do incremento do compartilhamento de dados digitais. Cada um desses entes possui uma imensidão de dados da população brasileira trabalhadora, e o compartilhamento seria mutuamente benéfico. Não há, por exemplo, na construção desses bancos de dados, consenso ou iniciativa de desenhar um conjunto mínimo de dados, que poderia favorecer o compartilhamento. Dados preenchidos nas Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT), por exemplo, devem ser posteriormente repetidos na notificação ao Sinan. A iniciativa para a elaboração de uma política de compartilhamento de dados poderia partir do próprio Ministério da Saúde, que, de acordo com o PNSST, a ele foi atribuída a tarefa de ‘contribuir para a estruturação e operacionalização da rede integrada de informações em saúde do trabalhador’ (inciso VII, alínea ‘d’ do PNSST)9.
Uma rede integrada de informações seria muito útil para o levantamento da situação de saúde da população trabalhadora, contribuindo para a adoção de meios mais adequados ao enfrentamento de problemas que impactam na saúde dos que trabalham. Por outro lado, o compartilhamento de informações também contribuiria para o combate a fraudes ao sistema previdenciário, por exemplo, a partir de dados de mortalidade da Saúde. Do mesmo modo, auxiliaria o campo do trabalho na elaboração de normas regulamentadoras mais robustas e alicerçadas em dados epidemiológicos consistentes.
Voltando olhar para o campo da saúde, observa-se que, no âmbito do próprio SUS, o trabalho mais integrado da Visat com as outras áreas da Vigilância em Saúde ainda não faz parte do cotidiano das ações de saúde. Tomem-se como exemplo as iniciativas relatadas por ocasião do 10º Encontro da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador12, também denominado 10º Renastão, ocasião em que foram celebrados os 10 anos da PNSTT. Sem qualquer demérito para os trabalhos apresentados e, antes, louvando as iniciativas que compuseram os painéis do evento, nas quais se reconhece o árduo e incansável trabalho realizado por agentes da Visat em estados e municípios. Esses relatos, porém, desvelam a baixa interação entre as próprias instâncias de vigilância, o que nos leva à conclusão de que essa é ainda uma meta a ser atingida, e não uma estratégia já consolidada.
Alguns temas tratados nesse encontro, como os intitulados ‘Experiência da Vigilância em Saúde do Trabalhador do município de Brasiléia no Acre’ e ‘Vigilância em Saúde do Trabalhador nas Emergências em Saúde Pública em Santa Catarina: investigação de óbitos por hemorragia alveolar difusa em uma fazenda de maçã’, reportaram experiências exitosas na atuação mais integrada entre a Visat e as instâncias de vigilância sanitária de municípios e da vigilância epidemiológica desses estados. Em suas falas, porém, os expositores revelaram as dificuldades na atuação mais integrada com a vigilância sanitária, o que mostra que a visão transversal do trabalho nas ações de saúde ainda não foi incorporada dentro do próprio SUS.
Outra observação necessária refere-se à Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Renastt), que integra a Rede de Serviços do SUS. Não resta dúvida que a criação da Renastt muito contribuiu e segue contribuindo para o desenvolvimento do PNSTT. Nos estados, municípios e nas regiões, são os Cerest os entes irradiadores da implementação dessa política. A esses centros, são atribuídas tarefas relevantes, como a investigação de fatores e situações de risco no trabalho, investigação de doenças, agravos e óbitos relacionados ao trabalho, a identificação de medidas de promoção e proteção à saúde dos trabalhadores e trabalhadoras, além de apoio matricial e pedagógico nos territórios. Tudo isso a ser desenvolvido em interlocução com o controle social e com setores trabalho e previdência, de forma participativa e territorializada, sempre articulado com outras vigilâncias (sanitária, epidemiológica, ambiental), com os demais serviços do SUS, e com outros setores como trabalho, meio ambiente, previdência social, controle social, sindicatos e áreas afins, no sentido de garantir maior eficiência dessas ações13.
Além disso, incorporaram as demandas advindas dos outrora Programas de Saúde do Trabalhador (PST) existentes em São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, que tradicionalmente voltavam-se para as ações de atenção, assistência e reabilitação, investigação do nexo entre as moléstias e doenças com o trabalho. Historicamente, é possível creditar aos PST a maior aproximação da saúde pública com os sindicatos e grupamentos de trabalhadores5,14, o que foi transferido, em parte, aos Cerest.
Não é possível deixar de constatar, contudo que, atualmente, há certo distanciamento das representações sindicais e mesmo dos próprios trabalhadores das ações do SUS. A crise vivenciada pelo sistema sindical, que há tempos sofre severos ataques à liberdade sindical, aprofundada, ainda, pela reforma trabalhista operada no ano de 2017 (Lei nº 13.467/2017)15 contribuem para esse distanciamento. A reforma trabalhista promoveu o corte abrupto das contribuições sindicais obrigatórias, desestabilizando o sistema sindical e explicando, em parte, o afastamento dessas representações de alguns foros. Contudo, mesmo diante de índices de acidentalidade elevados, não se observam a aproximação ou a reaproximação efetiva das representações de trabalhadores e trabalhadoras do SUS.
A esse respeito, entendemos que uma reflexão profunda merece ser feita no que diz respeito à ausência de estratégias mais consistentes que integrem as instâncias de STT do SUS às políticas de Atenção Básica ou mesmo da Atenção Especializada. Essas últimas, que interagem mais diretamente com os usuários, entre eles, os usuários trabalhadores, estão longe de incorporar as estratégias outrora desenhadas pelos PST. Tais instâncias, salvo raras exceções, pouco se relacionam com a Visat, locus atual da STT, situação injustificável sob o ponto de vista constitucional já que, entre todos os fatores de determinação do processo saúde-doença, o trabalho foi textualmente inserido na CF/88. Não se pretende, com essa observação, promover a ‘ressureição’ dos PST, mas utilizar sua história para examinar se o atual formato possibilita o cumprimento do valor constitucional dado ao trabalho no sistema de saúde. O quadro atual desmerece as conquistas alcançadas pelos antigos programas, que tem entre os seus méritos a aproximação das pessoas trabalhadoras do antigo sistema público de saúde, colaborando para trazer o campo do trabalho para compor o Movimento da Reforma Sanitária, engrossando o caldo que garantiu o ingresso do tema saúde do trabalhador no SUS idealizado pela Constituinte de 198816.
É relevante, portanto, que as instâncias de implementação da PNSTT detenham os meios e os instrumentos necessários para a execução de ações de saúde tão amplas quanto a população que busca atingir, que é a totalidade da população que labora. Por isso, é importante colocar em debate a composição e/ou recomposição do quadro funcional dos Cerest, com equipes com formação e dimensionamento adequado ao trabalho a ser desenvolvido no território, na forma preconizada pelo CNS no Quadro 4 da Resolução nº 603, de 8 de novembro de 201817.
O campo da STT, além de previsão constitucional (art. 200, inciso II)4, tem atribuições não apenas na área de vigilância, mas também na promoção, na atenção e na assistência à saúde, conforme previsto na Lei nº 8.080/1990 (art. 6º, § 3º)6. Entretanto, esse patamar jurídico, assegurado em lei e na CF/88, a nosso ver, destoa do tratamento que vem sendo conferido à STT dentro do próprio SUS.
Nesse aspecto, não podemos deixar de comentar a respeito do organograma atual do Ministério da Saúde. A STT está alocada na Coordenadoria-Geral de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CGSAT), que integra o Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DVAST) que, por sua vez, está subordinada à Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA)18. Sem nenhuma crítica à secretaria em questão, mas a posição ocupada atualmente pela STT não é condizente com as atribuições conferidas à área pela LOS nem é compatível com a importância e o status que lhe foram assegurados na CF/88.
Não se trata aqui de demandar posição hierárquica superior, mas de clamar pelo adequado posicionamento da área da STT dentro do SUS, a quem foi atribuída a execução de muitas e diversificadas ações tanto pela CF/88 como pela LOS. É extremamente difícil, trabalhoso, extenuante e até mesmo não crível imaginar que, confinada em uma coordenação, subordinada a uma diretoria, que integra uma secretaria, a STT, por meio dos seus agentes, consiga dialogar, intervir e implementar políticas consistentes e integradas à Atenção Básica e à Atenção Especializada.
Finalmente, no que tange à atividade de vigilância em ambientes e processos de trabalho, chamamos a atenção para a importância de integrarem as equipes, profissionais a quem o poder público confira poder de polícia, que sejam devidamente revestidos de autoridade sanitária, de acordo com a legislação vigente. Nesse sentido, é imprescindível que os códigos sanitários municipais e estaduais dediquem espaço à STT e lhes confira esse poder. Ademais, que os gestores públicos da saúde nos territórios emitam os atos administrativos necessários para atribuir essa autoridade sanitária aos agentes da Visat.
As novas relações de trabalho e a Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
O Brasil é um país de contrastes, onde convivem modelos colonialistas e subumanos de exploração do trabalho, como o trabalho escravo e a utilização da mão de obra de populações indígenas por meio da subjugação dos seus territórios, com modelos desenhados a partir do que se denominou de indústria 4.0. Entre esses extremos, tem-se, ainda, a exploração do trabalho e do trabalhador, intermediado pelas plataformas digitais.
Independentemente do modelo ou da forma de prestação dos serviços, seja formal ou informal, braçal ou intelectual, remanesce a pergunta: como adoecem os trabalhadores?
Nesse contexto, é crucial reforçar as estratégias de vigilância em saúde para a compreensão do processo de adoecimento decorrente das novas relações de trabalho. A notificação de acidentes, doenças e agravos à saúde decorrentes dessas novas formas e modalidades de trabalho, por óbvio, não encerra o problema social e sanitário deles decorrente. Todavia, constitui expediente valioso que permite melhorar a compreensão dos padrões de adoecimento e a sua distribuição. Também possibilita aferir o quanto essas novas tecnologias, novos modelos de exploração de trabalho impactam e sobrecarregam o próprio sistema de saúde.
Em um sistema universal de saúde, pautado na gratuidade da prestação dos serviços de saúde, as notificações são ainda mais relevantes, pois permitem quantificar os custos desses atendimentos, combinando informações contidas nas notificações com as do Sistema de Informação Hospitalar (SIH). O que se tem observado é a clara transferência dos riscos e dos custos relacionados com os impactos dessas formas de trabalho, não raro estão albergadas pelo manto da informalidade, para o SUS, que acaba por assumir as despesas decorrentes de tratamentos à saúde, recuperação física e mental de trabalhadores acidentados. Esses custos acabam sendo compartilhados por toda a sociedade quando deveriam ser internalizados nesses empreendimentos.
Especificamente quanto ao trabalho desenvolvido por meio de plataformas digitais, o Executivo federal externa preocupação com a manutenção do sistema de seguridade social. Em desastrada iniciativa19, foi anunciada a apresentação do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 12/202420, o qual previa contribuição previdenciária tanto do trabalhador como da operadora de aplicativo. Ao final, houve a retirada da urgência na tramitação do referido projeto, eis que o anunciado acordo entre as partes interessadas não foi, de fato, alcançado, revelando a fragilidade do Estado diante desse novo cenário.
O que se observa do PLP é que não houve qualquer menção ou referência à transferência dos custos decorrentes dos impactos à saúde de trabalhadores e trabalhadoras que trabalham por intermediação das plataformas digitais ao SUS. Essa é uma realidade que está a olhos vistos, em que diariamente presenciamos acidentes de trânsito envolvendo entregadores contratados por meio dessas plataformas e que, invariavelmente, acabam sendo atendidos no SUS. Desse modo, quantificar essas ocorrências, registrar esses casos como acidentes de trabalho no Sinan e estimar os gastos nesses atendimentos hospitalares trona-se essencial para desvelar esses problemas e propor soluções adequadas e que envolvam a área da saúde nessa discussão.
Por compreender que a notificação de agravos e doenças relacionadas ao trabalho é essencial ao desenvolvimento das políticas de vigilância à saúde do trabalhador, o Ministério Público do Trabalho (MPT), por meio da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente de Trabalho e da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Codemat), criou o Projeto Nacional de Fortalecimento da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora no SUS. Uma das vertentes desse projeto tem como enfoque os municípios silenciosos, ou seja, aqueles que não notificam as doenças e agravos relacionados à STT no Sinan. Esse trabalho é realizado desde o ano de 2021. Em menos de três anos de desenvolvimento, com o trabalho conjunto do MPT, dos Cerest e das Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde, foi possível reduzir sensivelmente o número de municípios silenciosos, que passou de 1.100 para 238 municípios em 202421.
Nesse contexto, contudo, ainda há muito a se avançar. É necessário aprimorar os mecanismos de notificação, a fim de facilitar o trabalho nas unidades notificadoras no Sinan. Iniciativas isoladas são observadas no sentido de facilitar e simplificar o processo de notificações compulsórias de acidentes de trabalho e de agravos à STT, como ocorre no município de Porto Alegre. Nessa localidade, a instalação da plataforma digital denominada ‘Sentinela’ realiza a integração com o Sinan, inserindo dados automaticamente nesse último. Trata-se de plataforma que auxilia na captação de dados e que reduziu significativamente os campos a serem preenchidos no Sinan. A quantidade de dados a serem lançados para preenchimento das fichas do Sinan é alvo de recorrente reclamação das unidades notificadora; e, com a utilização da plataforma, foram reduzidos a singelos oito campos. A plataforma também promove a integração com sistemas hospitalares, que passam a realizar a notificação direta. Entre os resultados anunciados a partir da implantação do sistema, em julho de 2020, está o incremento dos registros no município, além do fortalecimento da Visat na região e a facilitação de criação de políticas públicas mais adequadas22.
Em suma, conhecer o perfil de adoecimento daqueles que trabalham, independentemente da forma de trabalho, passa necessariamente pelo aprimoramento da notificação de agravos e acidentes. Aprimorar o sistema de notificação, simplificando a captação de dados por meio de integração com diversas fontes, como as da Previdência Social, da Receita Federal e outros, contribuiria muito para o fortalecimento da Visat. É inexplicável, por exemplo, que o número de notificações de acidentes de trabalho para a Previdência Social23 seja superior ao número de acidentes captados pelo Sinan24, como é observado nos dias de hoje, já que o sistema previdenciário cuida apenas das notificações dos empregos formais enquanto o último, de toda a população trabalhadora, independentemente do vínculo. A inconsistência e a discrepância desses dados revelam clara necessidade de os gestores se debruçarem mais seriamente sobre esse problema.
Participação popular na saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras para o controle social
A constituição do controle social, por meio de representação dos movimentos sindicais e sociais na gestão participativa e nas instâncias representativas do SUS, é diretiva estabelecida pela PNSTT, fruto do processo constituinte, em seus pressupostos de democratização e participação social, que orientou a especificidade do campo no compartilhamento de saberes nos processos educativos, de planejamento e vigilância em saúde do trabalhador. parte integrante do SUS, instituído nos conselhos, mecanismos de participação e legitimidade social, pelo exercício de poder popular conquistado pelas lutas sociais, o controle social na saúde é fruto do processo de redemocratização que impulsionou o novo desenho de saúde pública idealizado pela CF/88. Controle social não é favor, não é concessão. Decorre de imperativo legal, consubstanciado na Lei nº 8.142/199025.
Ouvir a experiencia de luta por saúde no trabalho pela organização dos trabalhadores e das trabalhadoras é essencial para garantir legitimidade e efetividade das políticas relacionadas com a STT. Por isso, é fundamental que esse expediente, que envolve a interação com diversas representações, torne-se prática cotidiana; e não apenas no espaço institucionalizado de um encontro ocasional a cada conferência, em que o debate busca o estabelecimento de aprovação coletiva. A participação de sindicatos e dos movimentos sociais nas Comissões Intersetorial de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cistt) é essencial para trazer à mesa de debate problemas enfrentados na vida real. Também é fundamental a participação social na elaboração dos planos anuais e plurianuais de saúde, seja por meio das conferências ou de oficinas realizadas nos territórios. Nos últimos anos, tem-se difundido o termo Vigilância Popular em Saúde. Trata-se de um conceito ainda em construção, mas que tem sido impulsionado pelos movimentos populares de norte a sul do País. É fundamental facilitar e enfatizar a participação desses grupos, pois são os mais legitimados a levar dados, fatos e o saber popular dos territórios às instâncias formais de vigilância em saúde.
Em muitos territórios que foram vulnerabilizados pela exploração ambiental e pela exploração do trabalho humano, é essencial empoderar os grupos que surgem espontaneamente na defesa do direito do bem viver em sua própria comunidade para a promoção da saúde. É fundamental criar mecanismos participação desses grupos e garantir resposta às suas demandas e aos seus anseios, independentemente da devolutiva positiva ou negativa, para o fortalecimento da gestão participativa, pelo estabelecimento de relação de confiança e respeito à gestão pública.
Ressalta-se que a incorporação das demandas desses grupos e movimentos é albergada pela PNSTT, que, entre as estratégias de execução da política, estimula participação da comunidade, dos trabalhadores e do controle social (art. 9º, inciso V)9, não limitando a articulação à representação sindical apenas. Nisso, diferencia-se substancialmente do tripartismo preconizado pelos modelos trabalhistas, revelando-se contemporâneo aos problemas do nosso tempo.
É importante valorizar os movimentos sociais, em especial os que emergem de situações e condições de trabalho excepcionais e até trágicas. Por experiência, podemos citar o trabalho de longa data realizado por diversos movimentos, como o que decorreu do desastre ocorrido em Paulínia (SP), naquilo que ficou conhecido como ‘Caso Shell/Basf’26 e de onde emergiu a Associação dos Trabalhadores Expostos à Substâncias Químicas (Atesq)27. É importante ressaltar que esse mesmo grupo de trabalhadores se beneficiou de experiências pretéritas de outros trabalhadores em Cubatão (SP), de onde se originou a Associação de Combate aos Poluentes Orgânico Persistentes (ACPO)28, com vasta atuação no combate à poluição química industrial e na exposição e intoxicação humana. Outra importante associação com papel relevante na seara do trabalho é a Associação Brasileiro dos Expostos ao Amianto (Abrea)29, que congrega entidades regionais na Bahia, no Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Paraná e no Sudoeste baiano, as quais lutam juntas pelo banimento do amianto no País, além de prestar auxílio às pessoas que, anos ou décadas após a exposição ao mineral cancerígeno, são diagnosticadas com Doenças Relacionadas ao Amianto (DRA).
O trabalho desenvolvido por essas e outras associações nasce da dor e do inconformismo com situações que poderiam e deveriam ter sido evitadas. Esses movimentos são responsáveis por levar conhecimento, suporte emocional aos trabalhadores e às trabalhadoras e às famílias atingidas por esses desastres, não raro desempenhando o papel que cabe aos próprios agentes de saúde. São elas, por exemplo, que acabam por fazer a comunicação de risco a essas populações, orientando a busca por tratamento de saúde, entre outras atividades. A maior interlocução entre o SUS e essas entidades passa pela valorização da legitimidade alcançada por esses grupamentos a partir de suas vivências, medida que merece ser objeto de reflexão, para que o relacionamento respeitoso e profícuo seja construído em benefício da população trabalhadora.
Considerações finais
As reflexões trazidas neste artigo de opinião visam contribuir para o reconhecimento da saúde dos trabalhadores como um direito humano fundamental que expressam tanto as lutas históricas quanto os desafios contemporâneos. Outrossim, destaca o papel crucial da saúde dos trabalhadores e da implementação de políticas eficazes no SUS, particularmente à luz do contexto histórico e das crises sociais e ambientais em curso. Chama a atenção ainda para a necessidade de abordagens abrangentes que integrem os serviços e as políticas de saúde na efetivação do conceito ampliado de saúde, garantindo a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores e a priorização de sua saúde.
Com advento da 5ª Conferência Nacional sobre Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT), é imperativo defender a articulação entre os diversos setores, que atuam nas áreas do trabalho, ambiente e previdência, fomentando assim uma compreensão da saúde na sua integralidade, em que o ambiente de trabalho seja reconhecido como categoria central na determinação do processo saúde-doença. É o reconhecimento do trabalho na sua centralidade na política de saúde, expresso nos preceitos constitucionais, resultados das lutas dos movimentos sociais que abriram caminho para a conquista desses direitos.
Que esse momento da 5ª CNSTT, portanto, sirva como um ponto de encontro para todos os atores sociais, partes interessadas do direito à saúde - trabalhadores, profissionais de saúde e formuladores de políticas -, reafirmarem seu compromisso com a promoção da saúde dos trabalhadores por meio de engajamento proativo e desenvolvimento de políticas robustas, embasadas no direito humano, na promoção de uma cultura de prevenção, enquanto dever do estado e direito dos trabalhadores. Juntos, podemos transformar essa visão em realidade, garantindo que todos os trabalhadores tenham direito a um ambiente de trabalho saudável e seguro enquanto seu direito inegável.
As conferências são, também, momento de júbilo, de encontro e reafirmação coletiva de fortalecimento dos mecanismos estruturantes da saúde coletiva. Além disso, sua potência revela que o campo da STT está vivo e pulsante, a despeito do período turbulento que vivenciamos, marcado pela crise climática, pelas novas tecnologias que impactam diretamente as relações de trabalho - e após a pandemia, que alterou profundamente as relações e os processos de trabalho, momento particularmente desafiador para o mundo do trabalho no Brasil.
Os problemas do nosso tempo são complexos, e momentos como esse são propícios para retomar a essência do campo da STT. Foi feliz a escolha do tema selecionado como motivação das discussões que se avizinham, pois posiciona a STT como direito humano, da forma como reconhecida na CF/88 desde o seu texto originário. É fundamental marcar esse posicionamento para que sejam resgatados os valores que nortearam a RSB e a visão prevalecente no texto constitucional, a partir dos movimentos que deram sustentação a essa guinada na saúde pública brasileira, em direção ao ideal da saúde coletiva, reconhecendo o trabalho como um dos fatores de determinação do processo-saúde doença.
É fundamental, portanto, que a área da saúde resgate esses valores, compreendendo que a dimensão trabalho foi literalmente reconhecida e elevada em nível constitucional e que essa inserção não foi feita ao acaso, senão que foi fruto de luta social. Houve, assim, a opção política do Poder Constituinte originário de reconhecer a centralidade do trabalho nas ações de saúde. Essa escolha deve acompanhar a estruturação e a valorização da área da STT dentro do próprio SUS, de modo a permitir e favorecer a necessária interlocução com as outras áreas da Vigilância em Saúde, Atenção Básica e a Atenção Especializada em Saúde.
A STT precisa estar presente nas ações de promoção e atenção à saúde e interagir com elas. Só assim poderá cumprir as tarefas que lhe são atribuídas na Lei nº 8.080/1990 e na CF/88, que não estão circunscritas à vigilância, mas que também abrangem a ações de atenção, promoção e assistência à saúde. Aguardar que a transversalidade que caracteriza a área da STT se apresente espontaneamente, ignorando as hierarquias criadas a partir do estabelecimento do organograma da gestão administrativa, é fechar os olhos para o problema e dar as costas aos avanços promovidos pela própria RSB. Ademais, não tratar o trabalho como um fator de determinação do processo saúde-doença significa a negação do direito dos próprios usuários, em sua maioria trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, de terem o componente trabalho devidamente valorizado pela área da saúde, como ambicionado no texto constitucional.
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Suporte financeiro:
não houve
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Referências
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Editado por
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Editora responsável:
Maria Cristina Strausz
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
28 Abr 2025 -
Aceito
22 Jun 2025
