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Internação compulsória e crack: um desserviço à saúde pública

Compulsory treatment and crack: a harmful service to public health

Resumos

O objetivo deste ensaio é o de discutir a interpretação inconstitucional que vem sendo conferida à Lei nº 10.216/01, que prevê a internação compulsória de doentes mentais, mas que está servindo de fundamento para a internação de dependentes químicos. Trata-se de absoluta afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde. Aborda-se usuário de drogas, maior de 18 anos que tem sua internação requerida judicialmente. Partindo-se da premissa que os dependentes químicos não são doentes mentais, a internação compulsória, além de ser agressiva e uma forma de tratamento ineficaz, constitui um modo de eliminação dos indesejados, constituindo-se em prática higienista violadora de direitos humanos.

Internação compulsória de doente mental; Cocaína crack; Executoriedade da lei; Humanização da assistência


This essay aims to discuss the unconstitutional interpretation conferred to Law nº 10.216/01, which provides for compulsory hospitalization of the mentally ill but also grounds the hospitalization of drug addicts. This is an absolute outrage to the constitutional principles of human dignity and to the right to health. The essay encompasses drug users of 18 years or above who have their hospitalization required by law. Starting from the premise that the addicts are not mentally ill, compulsory hospitalization, in addition to being aggressive and an ineffective form of treatment, shall constitute a means of eliminating the unwanteds, in a hygienist practice that violates human rights.

Commitment of mentally ill; Crack cocaine; Law enforcement; Humanization of assistance


Introdução

Este artigo objetiva chamar a atenção para a interpretação inconstitucional que vem sendo conferida à Lei Federal nº 10.216/01, que prevê a possibilidade de internação compulsória de dependentes em drogas mediante determinação judicial (BRASIL, 2001______. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial Eletrônico, Brasília, DF, 09 abr. 2001, p. 2.). Paralelamente, demonstra, por meio de análise sociopolítica, que a internação compulsória não pode ser assumida como a medida que irá sanar o grave problema de dependência química tão fortemente instalado em nossa sociedade. Deve-se esclarecer que se tem como premissa básica que o dependente químico não é doente mental.

Em que pesem as inúmeras questões processuais que a judicialização da internação compulsória provoca, a discussão da interpretação inconstitucional do diploma normativo que a permite é anterior a todas as outras que envolvem o assunto e, por isso, constituirá o foco do debate.

A internação compulsória, nos moldes que vem sendo requerida, especialmente por órgãos do Poder Executivo, e corroborada pelo Poder Judiciário, viola frontalmente os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da saúde, que também são considerados espécies de direitos humanos e fundamentais.

Ressalte-se que o objeto deste estudo é o usuário de drogas, maior de 18 anos, que tem sua internação requerida judicialmente. Contudo, todas as ponderações aqui realizadas podem ser utilizadas como um argumento contrário à internação compulsória de menores de 18 anos. O fato de a menoridade não lhes conferir capacidade civil, por si só, não é suficiente para que não tenham assegurado o seu direito à saúde.

Como se verá adiante, sob qualquer argumento que se veja a questão, a conclusão é sempre a mesma: a internação compulsória de dependentes químicos, maiores ou menores de idade, não lhes garante o direito à vida, ao contrário, constitui violação do seu direito à saúde.

A Lei 10.216/01

A possibilidade de internação de usuários de entorpecentes vem sendo fundamentada na Lei nº 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Muito embora a lei exista desde 2001, foram os recentes episódios de internação involuntária praticada pelas prefeituras dos municípios do Rio de Janeiro e São Paulo, seja a pedido das famílias de usuários de crack ou das próprias prefeituras, que a colocou em evidência.

É imperioso que se destaque que a Lei nº 10.216/01 constituiu as bases da reforma psiquiátrica no Brasil, tendo seu projeto tramitado no Congresso por onze anos, fruto do movimento dos trabalhadores em saúde mental, sob o lema 'por uma sociedade sem manicômios'.

A história da psiquiatria é marcada por um processo de asilamento e a Lei nº 10.216/01 pretendeu romper com essa ordem. O seu objetivo foi privilegiar a desospitalização dos doentes mentais, com "a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outras modalidades e práticas assistenciais" (AMARANTE, 1994, P.73AMARANTE, P. Asilos, alienados, alienistas: uma pequena história da psiquiatria no Brasil. In: AMARANTE. P. (Org.) Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994.).

Deve-se ressaltar que subsiste a internação psiquiátrica, na forma do artigo 6º da Lei nº 10.216/01, sendo três as possibilidades, a saber:

  • Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

  • Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:

  1. internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

  2. internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e

  3. internação compulsória: aquela determinada pela Justiça (BRASIL, 2001, P. 2______. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial Eletrônico, Brasília, DF, 09 abr. 2001, p. 2.).

Este estudo se interessa pela terceira modalidade, qual seja, a internação compulsória, cujo diferença para as demais é a de ser determinada pelo Poder Judiciário.

Depreende-se, pela simples leitura da Lei, que o pedido judicial apenas precisa ser instruído com um laudo médico circunstanciado atestando a necessidade de internação do paciente. No mais, caberá ao juiz competente analisar o pedido e examinar as condições de segurança do estabelecimento para o paciente, os outros internados e os funcionários. É o que estabelece o art. 9º da Lei nº 10.216/01:

  • Art. 9º A internação compulsória é determinada, 'de acordo com a legislação vigente', pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários (BRASIL, 2001, P. 2.______. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial Eletrônico, Brasília, DF, 09 abr. 2001, p. 2. GRIFOS NOSSOS).

Percebe-se que não há qualquer análise mais profunda do estado do paciente, baseando-se o juiz apenas em um laudo médico prévio, que, na maioria das vezes, foi elaborado no momento de crise do usuário e onde, certamente, não se levam em conta os demais aspectos de sua vida, especialmentesua condição social e relações familiares.

Ressalte-se, ainda, que o art. 9º trata da internação compulsória para os casos previstos na legislação vigente no Brasil. Isso, porque a ciência do direito é baseada no princípio da legalidade, especialmente no que tange à privação de liberdade. Por isso, a internação compulsória só poderá ser determinada nos casos previstos em lei.

Atualmente, há apenas as hipótese constantes dos arts. 99 a 101 da Lei de Execução Penal (LEP) (BRASIL, 1984______. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Pena. Diário Oficial, Brasília, DF, 13 jul. 1984, p. 10227.). Trata-se de internação compulsória de portadores de doença mental quando cometem algum ato definido como crime pela legislação penal. Nesses casos, serão recolhidos aos hospitais de custódia em vez de serem encaminhados para a prisão.

Todavia, muito embora seja essa a única situação prevista em lei para a internação compulsória no direito brasileiro - e atente-se: de portadores de doença mental e não de dependentes químicos -, na prática, os atores jurídicos ignoram a regra basilar do princípio da legalidade e ampliam as hipóteses para os dependentes químicos.

É fundamental, quando da análise acerca da interpretação e da aplicabilidade da Lei nº 10.216/01, que se compreenda a necessidade do enfretamento pelo Estado contra tão grave e crescente situação de pessoas com dependência química, por meio de uma política que priorize medidas permanentes e que combata, de fato, os verdadeiros fatores determinantes. Do contrário, o tratamento de pessoas com dependência química se reduzirá a simples e pura implementação de medidas absolutamente ineficazes e paliativas.

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no art. 1º, III da Constituição de 1988, sendo um princípio fundamental da República brasileira e norma constitucional que permeia todo o ordenamento jurídico (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 1988.).

Luiz Edson Fachin (2008)FACHIN, L. E. Questões do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. sintetiza bem o espírito constitucional ao elevar o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República:

  • Nesse âmbito, a Constituição Federal de 1988 erigiu como fundamento da República a dignidade da pessoa humana. Tal opção colocou a pessoa como centro das preocupações do ordenamento jurídico, de modo que todo o sistema, que tem na Constituição sua orientação e seu fundamento, se direciona para sua proteção (FACHIN, 2008, P. 6FACHIN, L. E. Questões do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.).

Maria Celina Bodin (2003)MORAES, M. C. B. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003., por sua vez, subdivide o princípio da dignidade da pessoa humana:

  • O substrato material da dignidade assim entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular, iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação, iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral - psicofísica -, da liberdade e da solidariedade (MORAES, 2003, P. 85MORAES, M. C. B. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.).

Em contraposição ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, tem-se o quadro de profunda injustiça social em que se encontra mergulhada a sociedade brasileira. Os níveis de desigualdade social, que se consolidam a partir de uma forte concentração de renda e da existência de iniquidades, desenham, de certa forma, um quadro de desesperança e o forte reconhecimento de estar submetido a uma situação de injustiça social.

Todos esses fatores podem, de certa forma, conduzir ao aumento do uso de drogas, que deve ser enfrentado com políticas públicas que busquem reconstruir os direitos sociais de grande parte da população

Não se pode conceber, em nenhuma hipótese, a violação desse princípio, especialmente quando emanada pelo Poder Público, seja ele Executivo, Legislativo ou Judiciário.

O direito constitucional à saúde

Com a promulgação da Carta de 1988, a saúde passou a ser considerada como direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas abrangentes que reduzam o risco de doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 1988.).

Adotou-se, assim, o conceito ampliado de saúde formulado pela 8ª Conferência Nacional de Saúde. Além disso, pela primeira vez na história constitucional do País, o direito à saúde foi previsto expressamente como um direito social.

Não há dúvida de que a Carta de 1988 constituiu um marco histórico na realidade da saúde no Brasil. É inconteste que o desejo do movimento sanitarista era romper com a realidade de exclusão ao direito à saúde para a maior parte da população brasileira, que não tinha, e não tem, condições financeiras de arcar com um médico particular ou um plano de saúde privado.

O importante é esclarecer que, do texto da Constituição da República de 1988, pode-se extrair que a saúde foi classificada como direito social e fundamental. Não cabe aqui digredir a respeito da teoria dos direitos sociais e dos direitos fundamentais. É suficiente a informação de que a saúde foi tratada pela Carta de 1988 como um direito fundamental e social.

Por direitos humanos, entendem-se aqueles direitos que se confundem com o respeito à dignidade da pessoa humana. Não dependem de qualquer previsão legal para existirem e são inalienáveis e irrevogáveis. Nas palavras de Vicente de Paulo Barreto (2010, P. 12), "são produto das características únicas e impostergáveis da pessoa humana e não fruto da justiça ou graça divina".

  • Dando sequência e materializando juridicamente os direitos humanos originais, tornando-os possíveis, agrega-se, nos dois últimos séculos, um conjunto de direitos, que resultam logicamente da ideia original de direitos humanos, proclamados em documentos internacionais e que receberam regulações diferenciadas nos sistemas jurídicos. Encontram-se nesse caso: o direito à saúde, ao trabalho, às férias, à habitação, a oposição à exploração pelo capital e o direito de reivindicar juridicamente o respeito aos direitos humanos em sua integridade (BARRETO, 2010, P. 12).

Por direitos fundamentais tem-se que

  • são os direitos ou as posições jurídicas ativas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição, seja na Constituição formal, seja na Constituição material (MIRANDA, 2000, P. 7).

  • Na verdade, precisamente para os direitos fundamentais poderem ser entendidos prima facie como direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como os direitos que constituem a base jurídica de cada pessoa, eles dependem das filosofias políticas, sociais e econômicas e das circunstâncias de cada época e lugar (MIRANDA, 2000, P. 10).

Dessa forma, como ainda bem ressalta Miranda (2000, P. 8), não se pode aventar a existência de direitos fundamentais em Estados totalitários, em que não há o reconhecimento dos direitos da pessoa humana.

Por sua vez, os direitos sociais são aqueles que surgem para proteger os interesses da maioria da população, que passa a poder receber prestações do Estado, a fim de proporcionar-lhe "uma igualdade material, de tornar as pessoas, concretamente, iguais em dignidade" (MASTRODI, 2008, P. 78MASTRODI, J. Direitos Sociais Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.).

  • (...) os direitos sociais devem ser entendidos como a materialização, no plano concreto, das Liberdades Públicas existentes no plano metafísico da matriz liberal. Os direitos sociais nada são senão as Liberdades Públicas em sua dimensão positiva. Não se pode imaginar direitos mais fundamentais que estes (MASTRODI, 2008, P. 82MASTRODI, J. Direitos Sociais Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.).

O crack e a internação compulsória

Os episódios ocorridos no ano de 2012 (divulgados pela mídia) da ação da prefeitura do Rio de Janeiro atuando nas 'cracolândias' provocou a discussão acerca do acerto ou não da internação forçada dos usuários de crack. As classes média e alta, acuadas, defendem a política de internação municipal, sob o argumento de que tais pessoas, reunidas para se drogarem, constituiriam um perigo em potencial para o seu livre trânsito.

A municipalidade, por seu turno, fundamenta sua conduta sob o argumento da preocupação com a saúde daquelas pessoas, que precisam de ajuda para se recuperarem. Por uma escolha pública, a ajuda eleita pelo Estado foi a internação involuntária para tratamento, ou seja, contra a vontade dos usuários. Deve ser esclarecido que, em tais episódios, não se realizou a chamada internação compulsória, mas sim a involuntária. Como visto, a compulsória é a requerida judicialmente e a involuntária é a realizada a pedido de pessoa diversa do paciente.

Assim, não houve um requerimento judicial de internação coletiva dos usuários de crack que estivessem nas ruas. Mas sim, segundo o noticiado pela imprensa, a internação dessas pessoas com base em laudo médico, que, supõe-se, existia no momento da internação. Tais argumentos, contudo, não convencem.

Inicialmente, vale esclarecer que o crack é um refinamento rústico da pasta de coca, e, por isso, o seu preço unitário é muito baixo quando comparado com a cocaína em pó, o que explica a sua maior difusão nas classes mais baixas. O seu uso contínuo, nas palavras do professor Francisco Inácio Bastos, em palestra sobre 'Drogas e saúde pública', proferida em 23.11.12 na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, provoca a destruição do campo da memória, tornando impossível a recuperação da capacidade cognitiva.

Desse modo, como bem ressaltado pelo professor, não é crível um ataque com requintes de crime organizado de usuários de crack reunidos, como temem aqueles que passam pelas 'cracolândias'. Por certo, a reação agressiva a um ataque é um instinto natural dos animais e, também, dos seres humanos. No entanto, a forma como certas imagens são editadas e transmitidas em horário nobre e cadeia nacional de televisão geram uma distorção dos acontecimentos.

Em segundo lugar, o argumento de que se está garantindo o direito à saúde dos dependentes, do mesmo modo, constitui uma falácia. No caso do discurso das classes média e alta, transparece uma ótica extremamente individualista: o foco não está na pessoa que precisa de ajuda e sim nele, cidadão que paga seus impostos e quer circular livremente sem ter que se deparar com cenas que não quer ver e, tampouco, correr risco de ser agredido por 'craqueiros' enfurecidos, tal como veiculado na televisão.

Pode-se identificar a inexistência na sociedade de uma atitude mais solidária, que vê na dependência química um problema de violência exclusiva contra eles, sem pensar na violência causada ao submeter a tratamento forçado os dependentes químicos. Do mesmo modo, sob a ótica das autoridades públicas, o argumento não convence. É cristalino que o objetivo não é dar o melhor tratamento àquelas pessoas - sim, são pessoas! -, mas 'higienizar' a cidade para os futuros eventos internacionais, tal como vem fazendo na 'revitalização', i.e., 'pintura com cores vibrantes', de áreas degradadas e abandonadas por anos pelo próprio poder público.

Afirma-se isso, pois, é de se esperar da prefeitura de uma cidade a melhor política pública de saúde para os seus cidadãos. Pressupõe-se, portanto, que os profissionais escolhidos pela autoridade máxima local para integrar sua secretaria de saúde possuam as informações da maneira mais adequada de se tratarem dependentes químicos. Assim, com base nessa premissa inegociável - já que a administração pública tem sempre que primar pela eficiência -, percebe-se que não há outra lógica na atuação estatal local que não seja a 'limpeza' da cidade.

Não precisa ser profissional graduado da área da saúde para perceber que não há como se tratar dependência, química, alimentar ou qualquer outra, com internação forçada. Basta um pouco de coerência: se a internação não for consciente e voluntária o paciente não vai interiorizar nenhuma modificação e, em consequência, no primeiro momento que sair da internação, irá repetir o ato. Isso não o torna uma pessoa ruim, com falha moral de caráter, tampouco criminosa.

Por isso, pode-se afirmar que a política de internação involuntária ou compulsória é totalmente ineficaz. Não se pode utilizar o mesmo raciocínio e tática das Unidades de Políca Pacificadoras: devolver o território à população, que antes era ocupado por milicianos, é muito diferente de assustar usuário de crack, que não faz qualquer diferença no cotidiano de vida da população local.

Ademais, a internação forçada está sendo feita da pior forma possível. Dar medicação para 'sossegar' o usuário não é efetivo, pois, no momento que acordar, até mesmo por um mecanismo de defesa, vai tentar fugir. Não há dúvida que o paciente ou usuário precisa entender que existem regras, mas, de modo algum, isso pode ocorrer de forma autoritária.

Por fim, deve-se ter em mente que ninguém pode ser coagido a ser protegido contra a sua própria vontade, pois, para além de dificultar o tratamento e propiciar recaídas, viola a um só tempo os direitos de liberdade e saúde dos indivíduos.

A inconstitucionalidade da lei 10.216/01: uma violação à dignidade da pessoa humana e ao direito à saúde

Deve-se lembrar, e repetir, que a Lei 10.216/01 visa à proteção de pessoas com transtornos mentais. O seu art. 2º elenca os direitos dos pacientes e familiares, que inclui, dentre outros, o melhor tratamento de saúde e o tratamento humano e respeitoso (BRASIL, 2001______. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial Eletrônico, Brasília, DF, 09 abr. 2001, p. 2.).

Para esses cidadãos ou pacientes com transtornos mentais tem-se, como regra, a não internação, que só pode se dar em condição excepcional. Compulsoriamente, então, apenas nos casos do art. 100 da Lei de Execução Penal (LEP).

A questão que se põe é: se a lei 10.216/01 foi elaborada para proteger os doentes mentais e teve como principal 'bandeira' a desospitalização, como se pode, racionalmente, explicar a utilização dessa mesma lei para pessoas que não são portadoras de doenças mentais e, pior, tornar a internação a regra, contrariando todos os onze anos de debates e tramitação desse diploma legal antes citado.

Neste ponto, devem-se ter claro algumas conclusões: 1) dependente químico não é doente mental; 2) a internação compulsória prevista na Lei 10.216/01 deve ser aplicada tão somente para os casos de doentes mentais que cometam alguma infração criminosa, como espécie de medida de segurança; 3) a internação compulsória de dependentes químicos é ilegal por falta de previsão legal, e inconstitucional por violar o direito à saúde e à dignidade da pessoa humana; 4) as internações que vêm ocorrendo podem ser equiparadas à tortura e, assim, violam direitos humanos; 5) O Poder Judiciário é guardião de direitos humanos, não podendo, sob argumento algum, violá-los.

Considerando-se as conclusões acima, não é difícil perceber a distorção que vem sendo feita com a Lei 10.216/01 pelos atores jurídicos. Ora, dependente químico não é doente mental. Pode até ser que um doente mental faça uso de drogas tidas como ilícitas, porém não é essa a realidade que vem sendo levada ao Poder Judiciário.

Os usuários de drogas etiquetadas como ilícitas, seja de forma recreativa ou abusiva, são pessoas capazes e não devem ser tratadas como portadores de doenças mentais. O fato de terem crises de abstinência faz parecer, aos olhos do leigo, que estão desprovidos de qualquer razão e capacidade de decidir, o que não é verdade. Desse modo, carece de amparo legal a utilização da Lei 10.216/01 para o requerimento de internação compulsória de dependente químico.

É simples: o art. 6º, III da Lei 10.216/01, que ampara todos os pedidos judiciais, não contempla o dependente químico, esteja em crise ou não, já que este não pode ser considerado doente mental. Sua única aplicação, como já ressaltado, é para os casos de portador de doença mental que cometa um crime, caso em que será recolhido a um hospital de custódia e não a um estabelecimento prisional, justamente por requerer cuidados especiais (BRASIL, 2001______. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial Eletrônico, Brasília, DF, 09 abr. 2001, p. 2.).

Não fosse esse argumento suficiente, é também inconstitucional a utilização de internação compulsória para o tratamento de dependentes químicos por violar a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde. O desrespeito ao primeiro é notório. Basta ver as imagens e notícias divulgadas amplamente pela imprensa brasileira no decorrer do ano de 2012. Os usuários são arrastados, conduzidos barbaramente à força para locais que não estão preparados para recebê-los.

São inúmeros os testemunhos de pacientes que passaram por clínicas de tratamento para dependentes químicos que relatam diversas práticas de tortura durante o 'tratamento', tais como socos e pontapés por se recusarem a aderir à religião pregada pela clínica em questão, queimaduras, recusa em fornecer alimentação, braços e pernas amarrados na cama para evitar a fuga, proibição de recebimento de visita dos familiares e, tampouco, de ligações telefônicas.

Não é preciso ser profissional da saúde para perceber que um protocolo desses não pode, de modo algum, assegurar o direito à saúde e à vida dos pacientes. Além de faltar a voluntariedade, essencial para que se evitem as recaídas, o estresse causado por uma internação forçada causa mais danos ao dependente. A internação compulsória, na prática, condena o dependente químico, que não praticou crime algum no momento da internação, a permanecer internado, por tempo indeterminado, contra a sua vontade.

Viola-se, a um só tempo, os princípios do devido processo legal, contraditório, ampla defesa e da razoabilidade. Com relação à última, como explicar o encarceramento de uma pessoa que não cometeu um crime? Apenas pelo fato de residirem em 'cracolândias' ou por indicação dos seus familiares. Foge de qualquer razoabilidade e racionalidade.

Diante dessa realidade, inimaginável em um Estado Democrático de Direito, é cabível o seguinte questionamento: ao deferir a internação compulsória não estará o juiz atendo-se a procedimentos exclusivamente técnicos de análise da perícia e, ao mesmo tempo, pressionado pela mídia, que vem explorando de forma extremamente acentuada a questão da dependência química através do crack. Estaria o Poder Judiciário ignorando um querer manifesto do cidadão? Em outras palavras, não estará o Poder Judiciário negando totalmente o sujeito, objeto da ação judicial em sua dignidade de pessoa humana com direitos a serem garantidos? O Poder Judiciário está assumindo um papel de violador de direitos humanos?

Considerações finais

Pretendeu-se alertar para o uso incorreto, ilegal e inconstitucional da Lei nº 10.216/01. Infelizmente, é corriqueiro no meio jurídico a repetição de modelos de ações judiciais de modo acrítico, sem contextualização da realidade social, tampouco sem verificação da viabilidade jurídica do argumento.

Foi o que aconteceu com a Lei nº 10.216/01. Os 'atores do direito', sem qualquer conhecimento de saúde pública e mental, encontraram nesse diploma legislativo o fundamento jurídico que precisavam para requerer judicialmente as internações compulsórias das pessoas que incomodam no espaço público, notadamente os usuários de crack.

Assim, sem qualquer embasamento teórico e dos dispositivos iniciais da referida Lei, deram início à propositura dessas demandas, que foram sendo repetidas e deferidas pelo Poder Judiciário, também de forma acrítica.

Nessa situação de internação compulsória, é cabível pensar-se que papel está desempenhando o Poder Judiciário, se não incorpora todos as implicações determinadas socialmente, que define uma situação de absoluta ausência de um querer manifesto do cidadão. É como se houvesse uma negação total do sujeito objeto da ação judicial.

A internação compulsória não pode ser uma saída individual, cruel e autoritária que o Estado brasileiro assume, violando o direito do outro de decidir. Além do que, a questão do crack não pode ser individualizada, pois é mais uma expressão de graves problemas da sociedade brasileira e que, portanto, deve ser tratada na perspectiva coletiva, tal qual afirma Boaventura de Sousa SantosSANTOS, B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2009.: "Os direitos humanos são individuais e é preciso que haja uma luta pelos direitos humanos coletivos" (2009, p.118).

O fato de o PL 7663/10 ter sido aprovado na Câmara dos Deputados sem a previsão de internação compulsória é motivo de alívio. Porém, a preocupação subsiste, tendo em vista a utilização distorcida, pelos atores jurídicos, da Lei nº 10.216/01, que continua em vigor.

Referências

  • AMARANTE, P. Asilos, alienados, alienistas: uma pequena história da psiquiatria no Brasil. In: AMARANTE. P. (Org.) Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994.
  • BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil São Paulo: Atlas, 1988.
  • ______. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Pena. Diário Oficial, Brasília, DF, 13 jul. 1984, p. 10227.
  • ______. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial Eletrônico, Brasília, DF, 09 abr. 2001, p. 2.
  • FACHIN, L. E. Questões do direito civil brasileiro contemporâneo Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
  • MASTRODI, J. Direitos Sociais Fundamentais Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
  • MORAES, M. C. B. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
  • PEREIRA, A. P. S. Alguns apontamentos sobre a obrigatoriedade do acolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua e usuário de drogas. In: LOPES, C. S.; JATAHY, C. R. C. (Coord.). Ministério Público: o pensamento institucional contemporâneo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2012.
  • SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
  • SANTOS, B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2009.
  • Suporte financeiro: não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    Abr 2013
  • Aceito
    Dez 2013
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