RESUMO
A obra ‘História da fadiga: da Idade Média aos nossos dias’, de Georges Vigarello, apresenta um panorama histórico da construção social da fadiga, evidenciando como o entendimento desse fenômeno acompanha as transformações nas formas de trabalho e nas exigências sociais. A partir de uma perspectiva cronológica, o autor analisa desde a valorização do cansaço físico na Idade Média até a medicalização e a invisibilização da fadiga psíquica na contemporaneidade. A obra demonstra como o cansaço deixou de ser visto como um sinal de virtude e passou a representar um obstáculo à produtividade no modelo capitalista. Nesse processo, a fadiga foi naturalizada, sobretudo entre trabalhadores em contextos precarizados, sem a devida atenção aos seus efeitos sobre a saúde física e mental. Embora a análise seja majoritariamente descritiva, a abordagem histórica de Vigarello permite compreender a fadiga como fenômeno político e estrutural, vinculado à lógica da exploração laboral. A obra contribui para reflexões atuais sobre o direito à saúde no trabalho, destacando a urgência de políticas públicas que considerem não apenas as demandas físicas, mas também os impactos emocionais e subjetivos do trabalho nas sociedades modernas.
PALAVRAS-CHAVE
Fadiga; Trabalho; Resenha; Saúde ocupacional; Saúde mental.
ABSTRACT
The book ‘The history of fatigue: From the Middle Ages to the present day’, by Georges Vigarello, presents a historical overview of the social construction of fatigue, highlighting how the understanding of this phenomenon has evolved alongside changes in labor practices and social demands. From a chronological perspective, the author examines the valorization of physical exhaustion in the Middle Ages through to the medicalization and invisibilization of psychological fatigue in contemporary times. The book shows how tiredness, once seen as a sign of virtue, has come to represent an obstacle to productivity within the capitalist model. In this process, fatigue has been naturalized-especially among workers in precarious conditions-without proper attention to its effects on physical and mental health. Although largely descriptive, Vigarello’s historical approach enables a deeper understanding of fatigue as a political and structural phenomenon, intrinsically linked to the logic of labor exploitation. The work contributes to current reflections on the right to health in the workplace, emphasizing the urgency of public policies that address not only physical demands but also the emotional and subjective impacts of labor in modern societies.
KEYWORDS
Fatigue; Labor; Review; Occupational health; Mental health.
EM ‘HISTóRIA DA FADIGA: DA IDADE MéDIA aos nossos dias’, Georges Vigarello oferece uma análise detalhada das mudanças na compreensão da fadiga, conceito apresentado pelo autor que compreende fenômeno complexo, vinculando-a a mudanças sociais, culturais e históricas. Além disso, explora como a fadiga evoluiu ao longo dos séculos, de uma condição natural e aceitável na Idade Média para uma problemática a ser controlada e superada na modernidade1.
Assim, a fadiga é reinterpretada tanto como uma limitação quanto como um reflexo das exigências da sociedade contemporânea. Relata como o fenômeno evoluiu de uma manifestação predominantemente física para uma experiência que também abrange aspectos psicológicos e emocionais. Essas transições refletem diretamente as transformações nas relações de trabalho ao longo do tempo, particularmente em relação ao impacto dessas relações na saúde do trabalhador.
Entre os principais efeitos dessa nova configuração no mundo do trabalho, estão o excesso de jornada, a falta de recursos humanos, a sobrecarga de tarefas e a baixa remuneração. Tais fatores, interligados, por vezes exacerbados pelas condições precárias de trabalho e exigências do capital, criam uma ambiência propícia para o desencadeamento de diversos problemas de saúde tanto físicos quanto psicológicos2. Essa demanda leva à condição chamada burnout, um esgotamento emocional que afeta não só a produtividade, mas também a qualidade de vida dos trabalhadores3.
No entanto, ao longo dessa evolução, a questão central do livro permanece a mesma: a fadiga como um reflexo das exigências do trabalho, seja no campo físico, seja no intelectual ou emocional, e as consequências desse desgaste para o trabalhador, que muitas vezes é negligenciado em termos de cuidado e reconhecimento.
Assim, em uma perspectiva da longa duração, o autor inicia sua análise na Idade Média, em que o conceito de fadiga estava intimamente ligado à exaustão física, relacionada principalmente com o trabalho manual e com os esforços exigidos pelas condições de vida e pelas guerras. Nesse período, o cansaço físico era frequentemente visto como um sinal de virtude, um meio de purificação ou de obtenção de dignidade, especialmente no contexto religioso, no qual o esforço físico também era associado à redenção espiritual.
A fadiga, portanto, pode ser entendida não apenas como um sintoma de desgaste, mas também como uma forma de alcançar um objetivo mais elevado. Nesse contexto, a exaustão do corpo era exaltada e, de certa forma, valorizada. Contudo, essa visão estava distante da realidade de muitos trabalhadores, cujas vidas eram marcadas por condições de trabalho duras e sem o devido reconhecimento da importância do seu trabalho, posto que as atividades agrícolas e manuais por exemplo, eram totalmente desqualificadas4.
Com a chegada da modernidade, as relações de trabalho começaram a mudar substancialmente, com o advento da Revolução Industrial e a crescente ênfase na produtividade, tão essencial para o capitalismo. Nesse novo cenário, a fadiga é apontada pelo autor também no plano psicológico e emocional.
A obra de Vigarello reflete uma crítica importante acerca dos modos como a fadiga foi tratada de maneira desigual ao longo dos processos históricos. Na sociedade medieval, a fadiga do trabalhador era, em grande parte, invisível ou desconsiderada, uma vez que as classes sociais mais baixas eram frequentemente vistas como destinadas a trabalhar arduamente, sem que houvesse qualquer preocupação com sua recuperação ou bem-estar. Ao mesmo tempo, o sofrimento físico e mental das classes altas, muitas vezes exaltado por sua relação com o trabalho intelectual ou administrativo, passava despercebido ou era, em certo sentido, considerado até um mérito.
A evolução das relações de trabalho na modernidade, caracterizada pela crescente intelectualização e mecanização das funções, não melhorou substancialmente as condições dos trabalhadores mais humildes. Pelo contrário, os trabalhadores começaram a sofrer com a exaustão física e com o desgaste mental, este gerado pela pressão incessante por produtividade, sem uma devida valorização dos desdobramentos dessas condições sobre sua saúde. Tal fato evidencia a desconexão entre os direitos trabalhistas e as condições de vida dos trabalhadores, especialmente no que se refere à saúde, que não era tratada como um direito humano essencial, mas sim como um privilégio de poucos5,6.
No contexto contemporâneo, a obra de Vigarello nos leva a concluir que a saúde do trabalhador ainda é frequentemente tratada como um bem secundário, subordinado à necessidade de gerar lucro e produtividade. A sobrecarga mental e emocional dos trabalhadores, exacerbada pela crescente demanda de trabalho cognitivo e pela pressão para ser constantemente produtivo, origina um novo tipo de fadiga - uma fadiga invisível, mas igualmente debilitante. Nesse cenário, a saúde do trabalhador, especialmente no que diz respeito ao bem-estar psicológico, torna-se uma questão de direitos humanos que ainda não é devidamente reconhecida e respeitada.
Assim, o autor enfatiza que a fadiga, em suas diversas formas, precisa ser compreendida como um fenômeno que atinge todos os trabalhadores. Seu reconhecimento enquanto condição que põe em risco a saúde da pessoa que trabalha é uma questão de justiça social e de respeito aos direitos humanos.
Ela não deve ser encarada como algo normal ou aceitável dentro das condições de trabalho, mas sim como um sintoma das desigualdades estruturais que existem dentro da sociedade e do mundo do trabalho7. A saúde do trabalhador precisa ser encarada como um direito fundamental, que deve ser garantido por políticas públicas eficazes, que levem em consideração não apenas as condições físicas do labor diário, mas também o impacto emocional e psicológico que as exigências por produtividade, exerce sobre os indivíduos8.
A obra de Vigarello oferece contribuição ao apresentar, por meio de uma perspectiva histórica, como a fadiga foi sendo ressignificada conforme as transformações sociais e produtivas. Essa abordagem permite compreender a fadiga como fenômeno político, estruturado por relações de poder e desigualdade. Portanto, a obra propõe uma reflexão histórica profunda acerca de antigas e novas formas de trabalho com suas exigências e seus impactos diretos na saúde dos trabalhadores, além de oferecer subsídios relevantes para pensar, na atualidade, em políticas públicas e práticas de cuidado que reconheçam a saúde do trabalhador como um direito fundamental.
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Suporte financeiro:
não houve
Disponibilidade de dados:
os dados de pesquisa estão contidos no próprio manuscrito
Referências
- 1 Vigarello G. História da fadiga: da Idade Média aos nossos dias. Petrópolis: Editora Vozes; 2022. 560 p.
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2 Gomez CM, Thedim-Costa SMF. Precarização do trabalho e desproteção social: desafios para a saúde coletiva. Ciênc saúde coletiva. 1999;4(2):411-421. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81231999000200015
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3 Lima LAO, Junior-Domingues PL, Gomes OVO. Saúde mental e esgotamento profissional: um estudo qualitativo sobre os fatores associados à síndrome de burnout entre profissionais da saúde. Boca. 2023;16(47):1-15. DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.10198981
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4 Esteves GGL, Leão AAM, Alves EO. Fadiga e Estresse como preditores do Burnout em Profissionais da Saúde. Rev Psicol Organ Trab. 2019;19(3):1-15. DOI: https://doi.org/10.17652/rpot/2019.3.16943
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6 Franco T, Druck G, Seligmann-Silva E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Rev Bras Saúde Ocup. 2010;35(122):229-248. DOI: https://doi.org/10.1590/S0303-76572010000200006
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7 Pochmann M. Desestabilização do trabalho. Saúde debate. 2018;42(Esp 3):67-77. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042018S306
» https://doi.org/10.1590/0103-11042018S306 - 8 Silva JA, Fazan LC, Brito DCD. A eficácia das políticas públicas de saúde brasileira para a efetivação do direito fundamental à saúde. Início: Arquivos. 2018;9(2):15-35.
Editado por
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Editora responsável:
Maria Cristina Strausz
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
27 Mar 2025 -
Aceito
30 Jun 2025
