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Projeto Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde: linha de fuga na formação em saúde para uma atuação na saúde coletiva

RESUMO

Em um cenário no qual se tem discutido de forma intensa a formação em saúde, devido a uma fragmentação entre a teoria e a prática, entre outras deficiências que podem comprometer uma articulação direcionada à saúde coletiva, construiu-se o presente ensaio teórico, com o objetivo de refletir sobre o Projeto Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde como uma linha de fuga para uma formação interprofissional para a gestão e organização do Sistema Único de Saúde. Nesse âmbito, tornou-se essencial sistematizar a discussão em dois momentos, sendo eles: Da formação fragmentada à problematizadora da realidade social; e Cenas possíveis a partir da compreensão do Sistema Único de Saúde por meio do estágio de vivência. Fundamentou-se o presente ensaio a partir da perspectiva de linha de fuga apontada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, bem como da perspectiva de sujeitos, de Foucault. Por meio das reflexões realizadas, pôde-se perceber que o Projeto surgiu como uma linha de fuga que oportunizava uma formação diferenciada dos sujeitos que viriam a ser protagonistas no processo de ensino-aprendizagem, com vistas a uma atuação direcionada à organização e gestão do sistema de acordo com a realidade na qual estariam inseridos, além de possibilitar a (des)transformação de uma formação cristalizada e deficiente.

PALAVRAS-CHAVE
Educação; Sistema Único de Saúde; Saúde pública

ABSTRACT

In a scenario in which health education has been intensively discussed, due to fragmentation between theory and practice, among other deficiencies that may compromise an articulation towards collective health, this theoretical essay was written to reflect on the Experiences and internships in the Reality of the Unified Health System Project as a line of flight for an interprofessional training for the management and organization of the Unified Health System (SUS). In this context, it became essential to systematize the discussion in two moments, namely: From fragmented training to problematizing social reality; and Possible scenes based on the understanding of the Unified Health System through the experiences and internships. This essay was based on the line of flight perspective pointed out by Gilles Deleuze and Félix Guattari, as well as on Foucault’s perspective of the subjects. Through the reflections prompted, it was possible to realize that the Project emerged as a line of flight that allows a distinct training of subjects who would have leading roles in the teaching-learning process, in order to organize and manage the system according to their reality, besides allowing for a (de)transformation of a crystallized and deficient education.

KEYWORDS
Education; Unified Health System; Public health

Introdução

No Brasil, a formação de profissionais de saúde se tornou objeto de análise e reflexões com maior ênfase nas últimas décadas, considerando o processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e sua necessidade de responder às demandas sociais de saúde da população de modo coerente com seus princípios e diretrizes voltadas à reorientação do modelo de atenção à saúde.

Neste contexto, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos da área de saúde são responsáveis por orientar o planejamento curricular e apontam para uma formação diferenciada, na qual deve haver a integração entre a teoria e a prática, o trabalho em equipe e interprofissional, a integralidade da atenção à saúde com corresponsabilização, estabelecimento de vínculo e a parceria indissociável entre os mundos do trabalho e da formação profissional11 Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Brasília, DF: Conasems; 2008 [acesso em 2017 nov 28]. Disponível em: http://www.cosemsms.org.br/files/publicacoes/formacao_profissionais_2008.pdf.
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Deflagra-se, portanto, a necessidade de materializar a reorientação da formação em saúde, que deve ser fundamentada nas recomendações estabelecidas pelas DCN, por se considerar que sua implementação tem o potencial de contribuir com a reorganização tanto do modelo de cuidado como de formação, objetivando o enfrentamento das necessidades de saúde, para as quais o modelo biomédico mostra-se insuficiente.

No entanto, podem ser apontadas dificuldades de implementação das diretrizes curriculares nos cursos da área da saúde, a partir das quais podem ser trazidas pistas acerca da mudança curricular, na qual a formação dos profissionais deve ser pautada mediante a inserção de novos conteúdos e a incorporação de práticas pedagógicas inovadoras, como uso das metodologias ativas de ensino22 Cruz AR, Reis KMN, Segheto W, et al. Formação e percepção do profissional médico sobre saúde pública. Revista Científica FAGOC-Saúde. 2018; 2(2)80-89. que sejam capazes de fazê-los refletir a partir da realidade na qual estarão inseridos, permitindo que eles sejam sujeitos críticos e transformadores da realidade, capazes de não dissociar a teoria da prática.

Em paralelo a essa discussão, torna-se necessário citar que diversas ações foram propostas e são passíveis de implantação com o intuito de avançar e fortalecer a formação em saúde no Brasil, como, por exemplo, o Programa de Educação Tutorial (PET) e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde). Para tanto, contou-se com o apoio de organizações ou com incentivos e/ou diretrizes governamentais voltadas ao estímulo, à colaboração e à articulação entre as instituições de ensino, os serviços de saúde e/ou à comunidade, com a intenção de atender as necessidades de saúde da sociedade, com foco nas atividades de ensino, pesquisa e extensão11 Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Brasília, DF: Conasems; 2008 [acesso em 2017 nov 28]. Disponível em: http://www.cosemsms.org.br/files/publicacoes/formacao_profissionais_2008.pdf.
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Os problemas na implementação de novas diretrizes curriculares perpassam a realidade no distanciamento da formação com o mundo do trabalho, e na deficiência de estratégias que reorientem esta formação. Tal reorganização no modelo de formação visa o enfrentar das necessidades de saúde, para as quais o modelo biomédico mostra-se insuficiente, como foi citado anteriormente. Parcerias entre instituições formadoras e serviços de saúde vêm por articular essa fuga da ‘prisão’ da academia, para que se possa vivenciar os serviços de saúde, aproximando-se da comunidade a fim de enfrentar as necessidades de saúde da sociedade, a partir do tripé universitário11 Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Brasília, DF: Conasems; 2008 [acesso em 2017 nov 28]. Disponível em: http://www.cosemsms.org.br/files/publicacoes/formacao_profissionais_2008.pdf.
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Entre essas ações, pode ser citado o Projeto Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS), que busca estimular a formação de trabalhadores para o SUS, comprometidos eticamente com seus princípios e diretrizes, e que se entendem como atores/atrizes sociais e agentes políticos capazes de promover transformação na sociedade33 Rede Unida. Guia do Facilitador. Porto Alegre: Rede Unida; 2013..

O Projeto VER-SUS possibilita uma intensa imersão teórica, prática e vivencial no sistema de saúde, com duração de vários dias, na perspectiva transdisciplinar, na qual o participante fica disponível para suas atividades durante todo o período44 Observatório de Tecnologias em Informação e Comunicação em Sistemas e Serviços de Saúde [internet]. Projeto VER-SUS: Apresentação. [acesso em 2019 jul 31]. Disponível em: http://www.otics.org.br/estacoes-de-observacao/versus/versus/apresentacao.
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. O VER-SUS visa, então, a uma aprendizagem significativa da realidade dos sistemas de saúde, com o intuito de fazer com que os participantes percebam o papel de social de cada um no sistema - estudantes, profissionais, gestores, movimentos sociais e usuários, no processo de fortalecimento do SUS55 Souza EC. Projeto Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde - Piauí: Estudo de Avaliabilidade. [dissertação]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2016..

O Projeto foi inspirado em outras iniciativas, que buscavam proporcionar a estudantes universitários aprendizagem e vivências por meio de sua inserção nos territórios/comunidades, muitas vezes não oportunizadas no ambiente acadêmico66 Ferla AA, Ramos AS, Leal MB. A história do VER-SUS: um pouco sobre o conjunto das iniciativas que inspiraram o projeto VER-SUS/Brasil. In: Ferla AA, Ramos AS, Leal MB, organizadores. Porto Alegre: Rede Unida; 2013. p. 1-5.. Os estudantes são divididos por grupos de trabalho, com um facilitador em cada grupo, geralmente algum estudante que já havia participado da vivência em edição anterior77 Ribeiro MA, Cavalcante ASP, Albuquerque IMN, et al. Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS) como agente promotor de mudanças na formação de graduação e nas práticas profissionais. Sau. & Transf. Soc. 2016; 7(1):109-119..

Com a intenção de valorizar e potencializar o compromisso ético-político dos participantes no processo de implantação do SUS, além de provocar reflexões acerca do papel do estudante como agente transformador da realidade social, o Projeto pretende sensibilizar gestores, trabalhadores e educadores da área da saúde, incentivar discussões e práticas relativas à Educação Permanente em Saúde (EPS) e às interações entre educação, trabalho e práticas sociais. É importante destacar a contribuição do amadurecimento da prática interprofissional e interdisciplinar para a articulação interinstitucional e intersetorial88 Maranhão T, Matos IB, Morrudo CA. Educação superior e práticas inovadoras: por que não podemos prescindir do VER-SUS na formação de Coletivos Organizados Produtores de Saúde? In: Anais do Colóquio Internacional de Educação & Justiça Social. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná; 2014..

Nessa conjuntura, questiona-se: o Projeto VER-SUS caracteriza uma linha de fuga na formação em saúde e uma ferramenta que visa à (trans)formação de sujeitos para uma atuação diferenciada na saúde coletiva?

O presente ensaio teórico tem como objetivo promover uma reflexão sobre o Projeto VER-SUS, partindo do pressuposto de que ele seja uma linha de fuga para a formação em saúde, além de ferramenta para a (trans)formação de sujeitos que se impliquem com o SUS.

Da formação fragmentada à problematizadora da realidade social

O Projeto VER-SUS apresenta uma estrutura organizacional diferenciada para uma formação que seja capaz de desenvolver e/ou aprimorar potências em seus participantes, a partir de movimentos de desterritorialização e reterritorialização com o vivido no contexto de uma aprendizagem significativa acerca da gestão e organização do SUS.

A desterritorialização pressupõe a ruptura com o velho, que se caracteriza como processo de mudança, muitas vezes conflituoso, no qual o sujeito é, todo o tempo, colocado diante de si mesmo e do novo território que se anuncia. Já a reterritorialização parte do vivenciar o novo, buscando identidades construídas a partir do compartilhar de novas referências e produções de saber99 Rolnik S. Cartografia sentimental. Porto Alegre: UFRGS; 2011..

Os desassossegos produzidos pelo Projeto VER-SUS possuem potências que envolvem o incentivo ao protagonismo estudantil no que tange ao processo formativo, não só individual, como também coletivo. Estes incômodos têm a potência de colaborar com as análises dos processos de trabalho e de formação, unindo o tecnicismo ao humanismo³.

Porém, antes de expandir a discussão sobre o Projeto como uma linha de fuga na formação em saúde e como uma ferramenta que possibilita a (trans)formação de sujeitos para uma atuação diferenciada na saúde coletiva, é importante desvelar o que é uma linha de fuga na perspectiva de Deleuze e Guattari, a partir da obra ‘Mil Platôs capitalismo e esquizofrenia’, e sujeito, na perspectiva de Foucault1010 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2. ed. São Paulo: Editora 34; 2011..

Iniciando com o conceito de rizoma, eis que este tem seu princípio na biologia e representa aqueles tipos de extensões subterrâneas do caule, para armazenamento de nutrientes, que se alongam horizontalmente, mas que não são raízes nem tubérculos. Tais extensões do caule em um platô formam a imagem de um emaranhado de linhas conectadas, onde não se distingue início, fim e núcleo fundante ou central. A imagem é de linhas que se propagam, cada uma comportando o seu próprio devir1010 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2. ed. São Paulo: Editora 34; 2011..

Para cada componente do rizoma, existe um conceito ou outra imagem complementar e explicativa. Parte destes conceitos-imagens que explicam o rizoma são as linhas, elementos que, dentro de um rizoma, comportam, em seu devir, o rompimento da dicotomia uno/múltiplo. As linhas de um rizoma são uma multiplicidade, pois cada individualidade carrega em si a heterogeneidade.

Cada indivíduo e cada objeto estão repletos de potencialidades, que só se realizarão de acordo com os encontros com outros objetos exteriores, promovendo saltos, rupturas e conexões com outros devires, com outras linhas, produzindo os agenciamentos. Os agenciamentos, por sua vez, são as conexões entre os diferentes estratos da ‘realidade’, impulsionados pelo desejo.

O VER-SUS provoca agenciamentos nos estudantes, uma vez que seus participantes, após saírem desta experiência, são mobilizados à defesa de um SUS de qualidade para toda a população1111 Fettermann FA, Nietsche EA, Terra MG, et al. Projeto VER-SUS: influência na formação e atuação do enfermeiro. Rev. Bras. Enferm. [internet]. 2018 [acesso em 2019 ago 2]; 71(6):2922-2929.. O Projeto, aqui, será considerado como uma linha de fuga na formação em saúde com o intuito de potencializar o conhecimento acerca do SUS. A linha de fuga não está vinculada ao sentido de fugir de uma formação acadêmica, mas ao sentido de criar possibilidades para uma aprendizagem significativa e de criar alternativas que façam sentido para os participantes, de forma a modificar suas práticas, a partir de uma experiência interprofissional, na qual eles são os protagonistas de todo o processo.

Como foi problematizado no início do presente ensaio, ainda existem muitos desafios a serem superados na formação em saúde, entre eles, uma melhor integração entre a teoria e a prática, necessidade de uma articulação mais estratégica para a saúde coletiva, além de outros avanços que permitam materializar o que está posto nas DCN e venham permitir uma formação de sujeitos implicados com o SUS, e que tenham um olhar interprofissional para as necessidades de saúde da população, que muitas vezes não é oportunizado no mundo acadêmico.

A partir desse ponto, defende-se que o Projeto VER-SUS surge como uma linha de fuga que permite aos envolvidos vivenciarem de forma dinâmica e interativa a saúde coletiva em contato direto com a realidade, passando interprofissionalmente por todo o quadrilátero da formação em saúde: ensino, gestão, serviço e controle social1212 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O Quadrilátero da Formação para a Área da Saúde: Ensino, Gestão, Atenção e Controle Social. Physis. 2004; 14(1):41-65..

Nesse sentido, as linhas de fuga são linhas de ruptura; verdadeiros rompimentos que promovem mudanças bruscas, muitas vezes imperceptíveis, não sendo sobrecodificadas nem pelas linhas duras, nem pelas maleáveis. São rupturas que desfazem o eu, com suas relações estabelecidas, entregando-o à pura experimentação do devir, ao menos, momentaneamente1010 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2. ed. São Paulo: Editora 34; 2011..

Avançando na discussão, para abordar a (trans)formação de sujeitos a partir do Projeto VER-SUS, podem ser utilizados os pensamentos de Foucault acerca do sujeito. O referido autor postula que o sujeito é histórico, mas produzido na sua própria história e pela história que o permeia, por meio do que denominou uma ‘história da verdade’1313 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995.. Assim, insere-se o VER-SUS como parte da história dos sujeitos que o vivenciam, protagonizando-o.

Com isso, o objetivo de Foucault foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais os seres humanos tornaram-se sujeitos. Estes modos de subjetivação são as práticas de constituição do sujeito. Tais práticas referem-se às formas de atividade sobre si mesmo. O autor se utiliza dos conceitos de ‘práticas de si’, ‘técnicas de si’ e ‘cuidado de si’, extraídos da Antiguidade grega, para analisar a forma pela qual o sujeito se constitui1313 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995..

Foucault não define o sujeito, mas sim, realiza uma ‘história da verdade’, através da qual busca saber quais ‘jogos de verdade’ estavam presentes nos indivíduos, na sua relação consigo mesmos e em relação à cultura, e que os tornaram sujeitos1313 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995..

Por meio das ‘práticas de si’ e do ‘cuidado de si’, os homens tornam-se sujeitos de uma maneira ativa. Estas práticas estão relacionadas aos ‘jogos de verdade’, isto é, a como o indivíduo se posiciona em um exercício de si sobre si mesmo, se transformando, elaborando um modo de ser diante de valores instituídos, como a loucura, a doença, o trabalho, o crime e a sexualidade1313 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995..

O VER-SUS, no âmbito da formação em saúde, se trata de uma iniciativa inovadora, que proporciona uma aprendizagem significativa por meio da vivência, da imersão na comunidade (territórios), e dos serviços de saúde e aparelhos sociais, sendo atravessado por muitas discussões sobre o SUS, abordando seu processo histórico, suas diretrizes, seus princípios e sua operacionalização. Os sujeitos que participam são (trans)formados na medida em que entram em contato com essa realidade e que compartilham essa experiência com diversos atores, permitindo que o sujeito reflita sobre os problemas e também pense soluções coletivas e viáveis.

Os estudantes problematizam a realidade junto com diversas categorias profissionais da área da saúde e áreas afins, e têm contato com os usuários, profissionais e gestores dos serviços de saúde que os afetam em seus modos de vida e existência.

O Projeto tem como essência o desenvolvimento da transformação social, assim como seu impacto no raciocínio sobre a mudança do currículo mínimo e das estratégias de ensino-aprendizagem. Verifica-se, também, que a proposta de estágios e vivências está relacionada como alternativa para avaliar e intervir na formação acadêmica1414 Mendes FMS, Fonseca KA, Brasil JA, et al. VER-SUS: Relato de Vivências na Formação de Psicologia. Psicologia: ciência e profissão. 2012; 32(1):174-187.. Esta iniciativa pode nortear novas práticas pedagógicas, por meio da articulação do tripé universitário e de novas práticas de saúde, contribuindo para a inserção de políticas públicas em diferentes regiões, com abertura para ações intersetoriais66 Ferla AA, Ramos AS, Leal MB. A história do VER-SUS: um pouco sobre o conjunto das iniciativas que inspiraram o projeto VER-SUS/Brasil. In: Ferla AA, Ramos AS, Leal MB, organizadores. Porto Alegre: Rede Unida; 2013. p. 1-5..

Isso se confirma pelas próprias metodologias utilizadas durante as vivências, que são dialógicas e participativas, sendo a aprendizagem centrada no estudante. As atividades são fundamentadas, teoricamente, no conceito de educação popular e de aprendizagem significativa, o que pode colaborar com a realidade social na qual os estudantes estarão inseridos enquanto futuros profissionais.

A aprendizagem vivencial é uma das abordagens da aprendizagem facilitada, que representa um maior envolvimento do aprendiz com seu aprendizado em aspectos globais, ou seja, um processamento mais denso de conhecimento e habilidades por meio da experiência, reflexão, experimentação e aplicação1515 Deaquino CTE. Como aprender. Andragogia e as habilidades de aprendizagem. Pearson: Fortaleza; 2007..

A partir desses aspectos do Projeto, é possível visualizar um rompimento com o uno; constitui-se uma linha de fuga, promovendo rupturas e conexões com outros devires, o que corrobora para produzir agenciamentos. O processo de (trans)formação de sujeitos está diretamente relacionado à oportunidade de aprender com os dispositivos supracitados, para que, futuramente, eles venham a potencializar o SUS, a partir de ações e intervenções estimuladas por meio da vivência e realizada com a participação de todos os atores sociais que o constituem. Enfatiza-se que o Projeto visa também formar agentes políticos que contribuam significativamente para o fortalecimento do SUS, ou seja, contribui para a formação de atores políticos.

O Projeto VER-SUS se mostra como uma ferramenta capaz de sensibilizar os futuros profissionais do País para o reconhecimento das potencialidades e limitações do SUS, trazendo os estudantes para o enfrentamento dos desafios que permeiam a saúde coletiva e a consolidação do sistema. Assim, reafirmar a saúde como direito social universal, gratuito e de qualidade, estimulando o envolvimento dos diversos atores sociais e políticos na luta em defesa do SUS e da democracia, além de promover a formação de profissionais comprometidos ético-politicamente com as necessidades de saúde da população1616 Santos MA, Reis GA, Barros FS, et al. Projeto VER-SUS/Brasil no estado do Tocantins: protagonismo estudantil em defesa do sus, da democracia e dos direitos sociais. Expressa Extensão. 2017; 22(1):22-33..

Apesar do reconhecimento de todas as potencialidades do Projeto, é preciso considerar suas fragilidades, que são pautadas, sobretudo, na questão da falta de financiamento, que pode inviabilizar sua execução1717 Paim MB. Avaliação participativa: Projeto de vivências e estágios na realidade do sistema único de saúde (VER-SUS). [dissertação] Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências da Saúde. Departamento de Saúde Pública. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Florianópolis: Santa Catarina; 2016. p. 248..

Cenas possíveis a partir da compreensão do SUS por meio do estágio de vivência

Nesta parte do estudo, pretende-se, por meio do Projeto VER-SUS como uma linha de fuga e de (trans)formação de sujeitos, construir um pensamento, a partir das evidências postas na literatura acerca das (des)transformações possíveis vividas pelos participantes da iniciativa. Aqui se fala em cenas devido às possibilidades de compreensão que surgem a partir das subjetividades dos diversos atores do Projeto.

O Projeto VER-SUS pode ser fundamental para qualificar a formação. Os princípios que alicerçam o SUS, como integralidade, universalidade e equidade, também são substanciais ao profissional que deseja possuir um olhar humanizado, compreender o desempenho do sistema e encarar os desafios do cotidiano de forma distinta, levando em conta as limitações e as potencialidades do serviço, oferecendo à população uma assistência satisfatória1818 Silva-Filho GS, Morais AM, Gomes DF, et al. Vivência do Projeto VER-SUS no município de Sobral-CE: Relato de Experiência. In: Anais do 4º Congresso Piauiense de Saúde Pública e 4º Seminário de Ensino na Saúde. Parnaíba; 2015..

A participação no Projeto VER-SUS pode proporcionar a ruptura de paradigmas, promovendo um olhar ampliado, instigando o questionamento às interações sociais e a forma como se faz saúde pautada no SUS. Ele forma militantes e sujeitos críticos sobre as práticas de saúde exercidas atualmente1919 Weber A, Tombini LHT, Colliselli L, et al. Vivências e estágios na realidade do SUS (VER-SUS) e a formação profissional em saúde: relato de experiência. Revista Eletrônica de Extensão, Florianópolis-SC. 2016; 13(23):112-122.. Os estudantes, ao experienciarem as atividades proporcionadas pelo Projeto, são convidados a problematizar a realidade.

Depois de vivenciar, na prática, e poder conhecer os dispositivos de saúde, os conceitos são reformulados, ou seja, o VER-SUS pode proporcionar a experiência de desconstruir e reconstruir paradigmas por meio dessa integração ao cotidiano do trabalho nos serviços, gerando profissionais protagonistas na luta pelo direito à saúde, que, em um exercício de cidadania, podem aprender muito mais do que o conteúdo oferecido na matriz curricular, alcançando o propósito do Projeto, que é o de “transformar mentes e corações para um sistema de saúde de qualidade”1919 Weber A, Tombini LHT, Colliselli L, et al. Vivências e estágios na realidade do SUS (VER-SUS) e a formação profissional em saúde: relato de experiência. Revista Eletrônica de Extensão, Florianópolis-SC. 2016; 13(23):112-122.(22).

Os desassossegos produzidos pelo VER-SUS possuem inúmeras potências, que incluem o incentivo ao protagonismo estudantil em seu processo formativo, não só individual, mas, sobretudo, coletivo. São os incômodos que têm a potência de operar nas análises dos processos de trabalho e de formação, aliando o tecnicismo ao humanismo2323 Maranhão T, Matos IB. Vivências no Sistema Único de Saúde (SUS) como marcadoras de acontecimento no campo da Saúde Coletiva. Interface. 2018; 22(64):55-66..

Apontam, ainda, que as ‘vivências no SUS’ podem proporcionar ‘coletivos’ - junção de grupo de pessoas que são interligadas por uma atividade com finalidade produtiva. Neste caso, vivenciar, experienciar e debater sobre o SUS, em um coletivo ‘organizado’, isto é, grupo articulado para uma finalidade. Em relação aos coletivos organizados, estes se agrupam a partir de um objetivo de produção, e não por identidade, a priori (ser estudante, ser professor).

Nesse sentido, o VER-SUS tem a potência de aglutinar não apenas estudantes, mas, também, docentes, usuários, gestores que possuem afinidade, em uma produção de saúde com vistas ao fortalecimento do SUS. É perceptível, neste processo, o protagonismo de estudantes e trabalhadores na saúde e nas práticas cuidadoras que estabelecem relações de alteridade com os usuários2323 Maranhão T, Matos IB. Vivências no Sistema Único de Saúde (SUS) como marcadoras de acontecimento no campo da Saúde Coletiva. Interface. 2018; 22(64):55-66..

O VER-SUS representa uma experiência necessária para a formação do profissional que atuará no SUS, pois contribui para enriquecer o conhecimento, além de proporcionar um amadurecimento das decisões a serem tomadas em prol das necessidades da comunidade. Além disto, promove uma conexão entre as instituições de ensino superior e o sistema público de saúde, contribuindo, desta forma, para a formação profissional na qualidade de atenção à saúde individual e coletiva2222 Schmidt L, Soder RF, Benetti F. Relato de uma Vivência no Programa Vivência e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde. Revista de Enfermagem. 2017; 13(13):106-113..

O incentivo ao ‘olhar crítico’ é algo que também pode ser notado, ligado a diversos assuntos, como: as dificuldades do SUS, a atuação profissional, a formação acadêmica, as representações políticas em saúde etc. E quando tal incentivo vem interligado a sugestões de melhorias, de modo que os profissionais e usuários identifiquem os problemas e, ao mesmo tempo, proponham soluções de maneira construtiva, isto caracteriza um sinal de que a proposta do VER-SUS é algo que está mostrando resultados, ao menos, inicialmente satisfatórios, pois senso crítico apurado é uma das características que demonstram o êxito do processo de graduação dos profissionais em questão2424 Carvalho LSL. VER-SUS Brasil e a Formação profissional em saúde: um estudo de caso no distrito federal no ano de 2016. [internet] [monografia]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2016 [acesso em 2018 nov 28]. Disponível em: http://bdm.unb.br/bitstream/10483/16255/1/2016_LeonardodeSouzaLourencoCarvalho_tcc.pdf..

Por fim, seria interessante se todos os estudantes tivessem a oportunidade de passar pela experiência do VER-SUS, o que revelaria futuros profissionais como atores sociais nas mudanças que o SUS e a sociedade almejam1919 Weber A, Tombini LHT, Colliselli L, et al. Vivências e estágios na realidade do SUS (VER-SUS) e a formação profissional em saúde: relato de experiência. Revista Eletrônica de Extensão, Florianópolis-SC. 2016; 13(23):112-122.. Reflete-se, ainda, a importância dos estudantes que vivenciarem o Projeto se tornarem multiplicadores e mobilizadores de mais estudantes em defesa do SUS, em seus locais de atuação.

Considerações finais

Por meio das reflexões realizadas, foi perceptível o fato de que o Projeto VER-SUS pode tornar-se uma linha de fuga, por contribuir com uma formação diferenciada de sujeitos que venham a ser protagonistas no processo de ensino-aprendizagem, com vistas a uma atuação direcionada no quesito organização e gestão do sistema, além de possibilitar uma (des)transformação de borramentos ocasionados por uma formação cristalizada e deficiente. Neste sentido, o VER-SUS pode ser uma das potências para a efetivação do SUS.

De uma forma geral, é importante ressaltar que as experiências proporcionadas pelo Projeto têm-se apresentado como iniciativas que não objetivam constituir-se como modelo de formação para a área da saúde. O VER-SUS visa provocar desassossegos, incômodos e curiosidades entre os envolvidos, no que se refere à formação do trabalho em saúde.

Dessa forma, acredita-se que o Projeto colabora com a formação de sujeitos que podem ser estratégicos para potencializar a organização e gestão do SUS, além de aliados na militância pela sua defesa.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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    Cruz AR, Reis KMN, Segheto W, et al. Formação e percepção do profissional médico sobre saúde pública. Revista Científica FAGOC-Saúde. 2018; 2(2)80-89.
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    Rede Unida. Guia do Facilitador. Porto Alegre: Rede Unida; 2013.
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    Observatório de Tecnologias em Informação e Comunicação em Sistemas e Serviços de Saúde [internet]. Projeto VER-SUS: Apresentação. [acesso em 2019 jul 31]. Disponível em: http://www.otics.org.br/estacoes-de-observacao/versus/versus/apresentacao
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2018
  • Aceito
    15 Maio 2019
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