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A prática da educação em saúde na percepção dos usuários hipertensos e diabéticos

The practice of the health education in the perception of the diabetic and hypertensive users

Resumos

Este estudo qualitativo objetivou analisar, a partir da percepção do usuário, a prática de educação em saúde no contexto da Estratégia Saúde da Família. Realizaram-se entrevistas não estruturadas e análise do discurso. As ações educativas baseiam-se em ideias contraditórias - a integralidade e a atenção à doença -, demonstrando os conflitos da realidade. O grupo educativo representa um mecanismo de apoio a quem enfrenta a doença crônica. Há coexistência de pedagogias divergentes, como as dialógicas e tradicionalistas. Nota-se um cenário plural, em processo de transformação.

Educação em saúde; Saúde da família; Hipertensão; Diabetes mellitus


This qualitative study aimed to analyze, from the user's perception, the practice of the health education in the Family Health Strategy context. Some non structured interviews and discourse analysis were done. Educational activities are based on conflicting ideas: the integrality and the attention to the disease, demonstrating the conflicting reality. The educational group represents a support mechanism to those facing the chronic illness. There is a coexistence of divergent pedagogies, as the traditionalists and dialogical ones. We can observe the existence of a plural scenario under a process of transformation.

Health education; Family health; Hypertension; Diabetes mellitus


Introdução

A educação entendida como prática social acontece em meio a expectativas, desejos, frustrações e implica a utilização de processos e técnicas voltados para a aprendizagem, que é sempre diretiva, pois possui uma ideologia política, mesmo que velada (FREIRE, 2007FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.). No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), a educação é indispensável, seja na formação dos trabalhadores ou no cuidado aos usuários. Pode-se denominar esse processo de educação em saúde (VASCONCELOS; GRILO; SOARES, 2009VASCONCELOS, M.; GRILO, M.J.C.; SOARES, S.M. Práticas pedagógicas em atenção primária à saúde: tecnologias para abordagem ao indivíduo, família e comunidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.).

Conceitua-se a educação em saúde como o diálogo entre profissionais e usuários que permite construir saberes e aumentar a autonomia das pessoas no seu cuidado. Possibilita, ainda, o debate entre população, gestores e trabalhadores a fim de potencializar o controle popular, tornando-se mecanismo de incentivo à gestão social da saúde (BRASIL, 2009______. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Glossário temático: gestão do trabalho e da educação na saúde. Brasília-DF: Ministério da Saúde, 2009.).

Contexto privilegiado para a prática educativa é a Estratégia Saúde da Família (ESF), que se pauta na adscrição da população e primeiro contato para os usuários através de uma abordagem longitudinal e integral. É o ponto de atenção de maior complexidade no SUS por se basear em tecnologias cognitivas voltadas para a promoção da saúde e prevenção de doenças (MENDES, 2012MENDES, E.V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília/DF: Organização Pan-Americana da Saúde, 2012.; VASCONCELOS; GRILO; SOARES, 2009VASCONCELOS, M.; GRILO, M.J.C.; SOARES, S.M. Práticas pedagógicas em atenção primária à saúde: tecnologias para abordagem ao indivíduo, família e comunidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.).

Um desafio da ESF é controlar as doenças crônicas, causadoras de enormes custos econômicos e sociais. Dentre esses agravos, destacam-se a Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e o Diabetes Mellitus (DM) tanto por sua prevalência como pelo potencial de desenvolvimento de complicações agudas e crônicas. Um dos papeis da ESF no controle desses problemas é o apoio aos usuários no gerenciamento do adoecimento crônico, por meio da educação em saúde (MENDES, 2012MENDES, E.V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília/DF: Organização Pan-Americana da Saúde, 2012.).

Assim, atualmente, as equipes de saúde da família necessitam incorporar habilidades educativas, imprescindíveis ao desenvolvimento de um processo de trabalho condizente com o modelo de atenção às doenças crônicas, a fim de estabelecer a troca de conhecimentos e a transformação da realidade (FERNANDES; BACKES, 2010FERNANDES, M.C.P.; BACKES, V.M.S. Educação em saúde: perspectivas de uma equipe da estratégia saúde da família sob a óptica de Paulo Freire. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 63, n. 4, p. 567-573, jul./ago. 2010.; MENDES, 2012MENDES, E.V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília/DF: Organização Pan-Americana da Saúde, 2012.). Portanto, seja em seus espaços formais, como os diversos grupos educativos, ou na relação diária entre profissional de saúde e usuário, toda ação educativa expressa uma oportunidade de desenvolver cuidado integral à saúde das pessoas (ALVES, 2005ALVES, V.S. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface - Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 39-52, jul./set. 2005.).

O desenvolvimento da educação em saúde permite gerar transformações, entretanto essa possibilidade relaciona-se ao modo como tal ação está sendo desenvolvida pelos profissionais com a população (SILVA; DIAS; RODRIGUES, 2009SILVA, C.P.; DIAS, M.S.A.; RODRIGUES, A.B. Práxis educativa em saúde dos enfermeiros da Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. supl. 1, p. 1453-1462, set./out. 2009.). Portanto, torna-se interessante e necessário conhecer a realidade educativa a partir da visão dos usuários foco da atenção do sistema de saúde e contrapor a lógica da maioria dos estudos encontrados na literatura que trabalham a temática a partir da ótica dos profissionais.

O objetivo geral deste estudo é analisar, a partir da percepção do usuário, a prática de educação em saúde no contexto da ESF.

Metodologia

Adotou-se o caminho metodológico qualitativo e descritivo, já que é o mais apropriado para apreender aspectos relacionados aos significados, atitudes e ideologias. Fundamenta-se em uma visão dialética da realidade ao levar em consideração as relações estreitas entre o mundo social e natural, entre a consciência e o suporte material e ao entender o homem em seu percurso histórico (MINAYO, 2010MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.).

O local da pesquisa foi a ESF de Montes Claros-MG, que possui 67 equipes em atuação. O município se destaca por ser sede de região ampliada de saúde do Plano Diretor de Regionalização em Minas Gerais, além de polo regional de formação técnica e superior em saúde.

Participaram do estudo onze usuários vinculados a seis equipes da ESF. Essas equipes foram selecionadas por desenvolverem ações educativas regularmente. Observaram-se, ainda, os seguintes critérios de inclusão: estar cadastrado como hipertenso ou diabético em uma equipe da ESF; ter participado de cinco ou mais grupos educativos no período de um ano; ser maior de 18 anos e aceitar participar voluntariamente da pesquisa.

Definiu-se, como instrumento de coleta de dados, a entrevista não estruturada envolvendo a descrição abrangente do objeto de estudo. As entrevistas foram registradas por meio da gravação de áudio, conforme consentimento prévio dos participantes. Para o tratamento dos dados, optou-se pela técnica da análise do discurso, que permite revelar o posicionamento ideológico dos sujeitos dentro da dinâmica processual de construção social e histórica (MINAYO, 2010MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.).

A análise dos dados aconteceu em três etapas: na primeira, transcreveram-se as entrevistas, sendo os sujeitos denominados de U1a U11. Na segunda, realizou-se a leitura profunda e exaustiva das entrevistas a fim de desfazer a ilusão da transparência e buscar a discursividade do texto. Gradativamente, as formações discursivas emergiram, dando forma às categorias empíricas. Na terceira etapa, construiu-se um mapeamento para facilitação da análise, permitindo a definição final das categorias a partir das formações discursivas identificadas nos discursos dos sujeitos-falantes (MINAYO, 2010MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.).

Realizou-se o estudo conforme as determinações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) pelo parecer consubstanciado nº 1557/09.

Resultados e discussão

A análise do discurso resultou em três categorias empíricas, classificadas a partir da identificação das formações discursivas, discutidas a seguir.

O aprendizado e a troca de experiências do usuário nas atividades educativas

A educação em saúde é um instrumento que contribui para as escolhas conscientes dos usuários,considerando-se os saberes populares, a fim de refletir autonomia e favorecer um cuidado direcionado para suas reais necessidades (FERNANDES; BACKES, 2010FERNANDES, M.C.P.; BACKES, V.M.S. Educação em saúde: perspectivas de uma equipe da estratégia saúde da família sob a óptica de Paulo Freire. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 63, n. 4, p. 567-573, jul./ago. 2010.). De acordo com Alves (2005)ALVES, V.S. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface - Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 39-52, jul./set. 2005., a abordagem educativa deve fundamentar-se em uma visão totalizante do indivíduo, compreendendo-o como ser biopsicossocial para que se possa ir além da patologia e de seus sofrimentos, procurando trabalhar suas necessidades mais abrangentes: "Não fala só sobre hipertensão, fala de muita coisa, de convivência da gente, poder andar nos lugares, numa festinha, esforçar-se, NE" (U10).

Evidencia-se uma educação em saúde voltada para o cotidiano, que não se centrou nos conceitos relacionados ao adoecimento, mas procurou discutir sobre a qualidade de vida, na perspectiva da saúde integral (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007.).

Também, há relatos de intervenções voltadas para a promoção de hábitos saudáveis, como alimentação adequada e atividade física: "Eles falam do cuidado que a gente tem que ter, dos exercícios que a gente tem que fazer [...]"(U11).

Observa-se que a noção de cuidado é central na fala do usuário. Pinafo et al. (2011)PINAFO, E. et al. Relações entre concepções e práticas de educação em saúde na visão de uma equipe de saúde da família. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p 201-221, jul./out. 2011., ao realizarem um estudo qualitativo com profissionais de equipes de saúde da família do Município de Santa Marina-PR, com o objetivo de analisar suas concepções sobre educação em saúde relatam que tais profissionais enxergam as atividades educativas como um fazer inerente ao cuidado. Desse modo, como citam Cervera, Parreira e Goulart (2011)CERVERA, D.P.P.; PARREIRA, B.D.M.; GOULART, B.F. Educação em saúde: percepção dos enfermeiros da atenção básica em Uberaba (MG). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. supl. 1, p. 1547-1554, 2011., a educação em saúde torna-se uma estratégia essencial para o aprendizado do usuário acerca do autocuidado. Nessa mesma lógica, outros cuidados específicos para a HAS e DM também são explorados: "Falam sobre os hipertensos, os cuidados que têm que tomar com sal, gordura, fritura, cuidados com alimentação. Procurar controlar o peso; quem é gordinho controlar o peso." (U9)

  • [...] fala muito de como fazer a unha do pé, não cortar pra não arruinar e fazer a unha quadrada, não deixar ponta pra não cortar alguma coisa, muita coisa boa a gente aprende lá [...]. (U10)

A educação pode desenvolver no indivíduo a consciência acerca de seus problemas de saúde e da responsabilidade, pela parte que lhe cabe, de seu cuidado (CISNEROS; GONÇALVES, 2011CISNEROS, L.L.; GONÇALVES, L.A. O. Educação terapêutica para diabéticos: os cuidados com os pés na realidade de pacientes e familiares. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.16, n. supl. 1, p. 1505-1514, 2011.).

Para Alves e Aerts (2011)ALVES, G.G.; AERTS, D. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 319-325, jan. 2011., os conhecimentos sobre saúde devem ser debatidos com os usuários para que, após essa discussão, eles possam optar por uma vida saudável. Essa abordagem focaliza a mudança de estilo de vida, como citado no relato a seguir:

  • Eles orientam como regular o alimento, como se devem alimentar os hipertensos e os diabéticos. Orienta como evitar os alimentos proibidos, aí esclarece, fica bem claro. Sobre o sal, que principalmente se deve evitar (U8).

Nesse aspecto, a maioria dos profissionais de saúde desenvolve atividades educativas com foco na prevenção. Isso implica, de um lado, o estímulo a comportamentos considerados corretos e saudáveis e, de outro, uma total responsabilização dos indivíduos pelos seus problemas de saúde (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007.). Em estudo realizado por Cervera, Parreira e Goulart (2011)CERVERA, D.P.P.; PARREIRA, B.D.M.; GOULART, B.F. Educação em saúde: percepção dos enfermeiros da atenção básica em Uberaba (MG). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. supl. 1, p. 1547-1554, 2011. com o objetivo de conhecer a percepção de enfermeiros da ESF de Uberaba-MG, sobre as práticas educativas em saúde revelaram-se condutas educativas destes profissionais, fundamentadas na responsabilização dos indivíduos, voltadas para o combate ao sal, açúcar e sedentarismo, objetivando a mudança individual de comportamento.

Segundo Brasil (2007)BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007., nessas abordagens, demonstram-se comportamentos adequados à luz da ciência para que o usuário os pratique. No entanto, as razões que levam a população a escolher suas condutas ficam à margem da educação, como se estivessem fora da discussão sobre a saúde. Nesse sentido, a solução ideologicamente apresentada é seguir uma norma, do tipo 'você tem que fazer isso' ou 'você tem que praticar aquilo':

  • É sobre alimentação, sobre a diabetes, como devo fazer, como não devo, o que devo comer o que eu não devo. E as coisas que posso usar, as que eu não posso e da hipertensão a mesma coisa. A comida com a qual eu posso me alimentar, coisas assim (U5).

Revelam-se conhecimentos construídos por abordagens, na maioria das vezes, estruturadas no repasse de informações e inspiradas no higienismo que é pautado na mudança da vida das pessoas, ensinando-as a realizar cuidados para ter saúde (ACIOLI, 2008ACIOLI, S. A prática educativa como expressão do cuidado de saúde pública. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília , v. 61, n. 1, p. 117-121, jan./fev. 2008.). Entretanto, nos fazeres educativos, é preciso ir além e tentar compreender as peculiaridades dos sujeitos, seus valores, culturas, costumes, trocando saberes populares e científicos, propiciando o desenvolvimento e enriquecimento recíproco (FREIRE, 2011FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.; PINAFO ET AL., 2011PINAFO, E. et al. Relações entre concepções e práticas de educação em saúde na visão de uma equipe de saúde da família. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p 201-221, jul./out. 2011.).

Para Vasconcelos, Grilo e Soares (2009)VASCONCELOS, M.; GRILO, M.J.C.; SOARES, S.M. Práticas pedagógicas em atenção primária à saúde: tecnologias para abordagem ao indivíduo, família e comunidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009., além da permuta de saberes entre profissional e usuário, é necessário favorecer a troca de experiências entre pessoas com um problema em comum. Para tanto, na prática educativa da ESF, os grupos são organizados segundo algum critério clínico, permitindo vivenciar e aprender coletivamente: "Eu gosto muito, e ali a gente passa a conhecer outras pessoas do grupo de diabetes e troca ideias uns com outros [...]"(U1). "[...] desperta a gente. A gente encontra com pessoas diferentes que têm o mesmo problema; cada um fala o que sente [...]" (U4).

Segundo Freire (2011FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.), o ser humano aprende com o mundo e também com seus semelhantes a partir do diálogo. De acordo com Vasconcelos, Grilo e Soares (2009)VASCONCELOS, M.; GRILO, M.J.C.; SOARES, S.M. Práticas pedagógicas em atenção primária à saúde: tecnologias para abordagem ao indivíduo, família e comunidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009., um grupo educativo traz a percepção de que as pessoas não estão sozinhas ao enfrentar certos problemas, pois ganham apoio na experiência dos outros componentes do grupo: "Você vai lá e fica sabendo os sintomas da doença, o que causa e você vai conversando com outras pessoas que já têm. É bom que você vai prevenindo pra você não ficar doente" (U6).

Observa-se a incorporação dos conhecimentos produzidos pelo grupo, não somente pelos educadores e a troca de experiências sendo valorizada como motor de reflexão e mudança (ACIOLI, 2008ACIOLI, S. A prática educativa como expressão do cuidado de saúde pública. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília , v. 61, n. 1, p. 117-121, jan./fev. 2008.). Desse modo, produzir relações interativas, pautadas na solidariedade entre os membros de um grupo, pode ser positivo para o cuidado em saúde (VASCONCELOS; GRILO; SOARES, 2009VASCONCELOS, M.; GRILO, M.J.C.; SOARES, S.M. Práticas pedagógicas em atenção primária à saúde: tecnologias para abordagem ao indivíduo, família e comunidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.). A interação permite socializar as representações que uma doença possui no ideário das pessoas, forma de simbolização que, de acordo com Gazzinelli et al. (2005)GAZZINELLI, M.F. et al. Educação em saúde: conceitos, representações sociais e experiências de doença. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 200-206, jan./fev. 2005., também influencia as condutas e práticas do usuário:

  • Eu acho bom, porque, às vezes você,você acha que tem uma doença e você vê lá gente que está pior. Tem gente lá que tem diabetes, que toma insulina. Às vezes, você acha que sua pressão é grave, mas tem gente que é pior. Igual ao diabetes: é horrível (U6).

Ainda de acordo com Gazzinelli et al. (2005)GAZZINELLI, M.F. et al. Educação em saúde: conceitos, representações sociais e experiências de doença. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 200-206, jan./fev. 2005., o grupo educativo promove uma permuta de experiências criadoras de significados para o adoecimento e suas representações sociais, que, de certo modo, geram juízo de valor quanto à sua gravidade e complexidade:

  • Conheci muito. Por exemplo, eu achava que o meu problema, que a diabetes não era tão séria. Quando a gente encontra aquelas pessoas que já amputaram a perna ou estão passando por problemas difíceis, de hemodiálise, de tudo, então a gente já fica mais apavorada (U6).

Estudo qualitativo e exploratório de Cisneiros e Gonçalves (2011)CISNEROS, L.L.; GONÇALVES, L.A. O. Educação terapêutica para diabéticos: os cuidados com os pés na realidade de pacientes e familiares. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.16, n. supl. 1, p. 1505-1514, 2011., realizado com diabéticos neuropatas e seus familiares participantes do programa de prevenção de uma unidade de saúde pública de Porto Alegre, RS, com o objetivo de conhecer e apresentar os significados dos sujeitos sobre os cuidados primários que visam prevenir complicações nos pés demonstrou que o conhecimento de histórias alheias de complicações relacionadas ao diabetes pode estimular a adesão de cuidados preventivos. Como citam Gazzinelli et al. (2005)GAZZINELLI, M.F. et al. Educação em saúde: conceitos, representações sociais e experiências de doença. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 200-206, jan./fev. 2005., é preciso que as atividades educativas considerem as noções dos sujeitos sobre o adoecimento, mesmo que não se saiba ao certo como utilizá-las de forma educativa.

O impacto da educação em saúde na vida dos usuários

De acordo com Brasil (2007)BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007., o processo educativo deve ser conduzido por ações promotoras do bem viver segundo o modo de ser de cada cidadão, pelo encontro de novos saberes e práticas de saúde do cotidiano do usuário:

  • Mudou muito,porque eu aprendi muita coisa [...] E até mesmo essa parte de exercício, caminhar, fazer exercício, essas coisas. Eu até fazia aqui, mas, sem compromisso. Achava que não tinha tanta importância. Aí, depois que foi mostrado que vale mesmo, que tem que ser feito. E eu fiquei mais ativa, nisso aí (U1).

Nota-se que a mudança se inicia pelo ato de conhecer, mas que, para se efetivar, passa pela reflexão crítica do sujeito, conduzindo-o à ressignificação de suas práticas e à redescoberta de um modo de manter a saúde e melhorar a vida (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007.). Segundo Freire (2011)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011., a mudança não acontece apenas pela apreensão de um novo saber, mas no agir e refletir, que podem levar a uma nova forma de viver:

  • Mudou, porque, graças a Deus, eu era uma pessoa que só vivia em hospital. Quando não era em hospital, era só me consultando direto, e era aquele problema todo e, graças a Deus, hoje eu sou uma pessoa tranquila (U5).

Em estudo realizado por Santos et al. (2009)SANTOS, M A. et al. Programa de educação em saúde: expectativas e benefícios percebidos por pacientes diabéticos. Revista de Enfermagem da UERJ, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 57-63, jan./mar. 2009. com o objetivo de descrever as expectativas de diabéticos antes de sua inserção em um programa multiprofissional de educação em diabetes e identificar os ganhos ou benefícios percebidos após sua implementação, observam-se relatos de melhoras clínicas na saúde dos participantes, com destaque para o alcance de melhor qualidade de vida. Outro estudo descritivo, exploratório e qualitativo realizado por Torres et al. (2011)TORRES, H.C. et al. Intervenção educativa para o autocuidado de indivíduos com diabetes mellitus. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 24, n. 4, p. 514-519, 2011. com usuários participantes de um programa educativo em diabetes, cuja finalidade foi a de analisar conhecimentos, atitudes e práticas do autocuidado nesses indivíduos, demonstrou melhora clínica após a participação em grupos educacionais.

Faz-se necessário que os profissionais de saúde reconheçam os usuários como sujeitos atuantes na sua própria saúde e capazes de mudar sua história, pois, quando o indivíduo compreende sua realidade, pode levantar soluções para transformá-la (FREIRE, 2007FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.). Para Torres et al. (2011)TORRES, H.C. et al. Intervenção educativa para o autocuidado de indivíduos com diabetes mellitus. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 24, n. 4, p. 514-519, 2011., as intervenções educativas estimulam o indivíduo a refletir sobre o adoecimento e optar por um caminho terapêutico adaptado ao seu cotidiano, considerando riscos e benefícios: "Agora eu faço caminhada, tirei um pouco das coisas que eu comia e que me faziam mal" (U6).

Optar por um caminho mais saudável implica adotar hábitos relacionados à atividade física e à alimentação; assim, enfrentam-se situações adversas até estabelecer-se uma melhor qualidade de vida. O objetivo da educação é incitar os usuários a optar por posturas mais benéficas, favorecendo a capacidade de cuidar de si (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007.): "[...] cada um tem que cuidar de si. Eu não posso julgar no outro o que é bom e o que é ruim. Então, dou um jeito de me cuidar" (U11). "A gente sabe que tem a obrigação de se cuidar [...]" (U1).

Uma investigação qualitativa realizada por Ribeiro et al. (2011)RIBEIRO, A.G. et al. Representações sociais de mulheres portadoras de hipertensão arterial sobre sua enfermidade: desatando os nós da lacuna da adesão ao tratamento na agenda da saúde da família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n. 1, p. 87-112, 2011. com mulheres portadoras de HAS cadastradas em uma unidade de Saúde da Família de Porto Firme-MG, com o objetivo de conhecer e analisar suas representações sociais sobre a doença demonstrou que as experiências com grupos educativos estimularam a adoção de mudanças alimentares, além de promover a autoestima e autocuidado das usuárias. No entendimento de Mendes (2012)MENDES, E.V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília/DF: Organização Pan-Americana da Saúde, 2012., uma das tarefas de alta densidade cognitiva de competência das equipes da ESF é enfatizar o papel central dos usuários portadores de problemas crônicos no gerenciamento de sua própria saúde, com um enfoque na cooperação entre profissionais e usuários:

  • Muda, porque mostra o cuidado que a gente tem de não se descuidar da saúde. Não se esquecer de tomar os medicamentos, isso muda. Quando eu passei a ir a esse grupo, uma vez, por conta própria, eu parei de tomar os remédios: achava que a minha pressão estava boa. Fui orientado para não fazer isso, minha pressão subiu muito. Por isso que muda; não pode descuidar, estar sempre alerta (U8).

Evidencia-se que, para os usuários optarem por escolhas terapêuticas, às vezes, é necessário um processo interativo entre teoria e experiências de vida, além da confiança e da vinculação do usuário ao serviço de saúde (ALVES; AERTS, 2011ALVES, G.G.; AERTS, D. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 319-325, jan. 2011.). Essa parceria é necessária ao enfrentamento das condições crônicas, pois, muitas vezes, o adoecimento modifica a rotina das pessoas, seja pelos sentimentos negativos a ele relacionados ou pelas modificações de hábitos e atividades de cuidado com a saúde que ganham grau de necessidade após o diagnóstico (MENDES, 2012MENDES, E.V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília/DF: Organização Pan-Americana da Saúde, 2012.). Dessa forma, um aspecto vivenciado pelos portadores de doenças crônicas, que impacta na vida e no autocuidado, é o medo, devido ao reconhecimento das complicações advindas das patologias: "Eu tenho muito medo dessas complicações; eu cuido porque eu tenho medo da doença, porque é a doença que leva a gente à morte. Então, eu cuido muito de mim" (U4).

Na narrativa, observam-se experiências do convívio com a patologia, como os sentimentos de medo e preocupação. Segundo Gazzinelli et al. (2005)GAZZINELLI, M.F. et al. Educação em saúde: conceitos, representações sociais e experiências de doença. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 200-206, jan./fev. 2005., a doença é vivenciada cognitiva e afetivamente. Nesse sentido, a educação em saúde deve explorar a forma como ela é vista culturalmente, levando os usuários a se libertarem da condição de vítimas do adoecimento. Nos estudos de Torres et al. (2011)TORRES, H.C. et al. Intervenção educativa para o autocuidado de indivíduos com diabetes mellitus. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 24, n. 4, p. 514-519, 2011. e Ribeiro et al. (2011)RIBEIRO, A.G. et al. Representações sociais de mulheres portadoras de hipertensão arterial sobre sua enfermidade: desatando os nós da lacuna da adesão ao tratamento na agenda da saúde da família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n. 1, p. 87-112, 2011. também são relatados sentimentos relacionados ao adoecimento que interferem positivamente ou negativamente no autocuidado.

As abordagens pedagógicas vivenciadas na educação em saúde

Para construir uma comunicação significativa com os educandos, utilizam-se técnicas integrantes da proposta pedagógica e vinculadas a um objetivo educativo (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007.; FREIRE, 2007FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.). Estas são percebidas pelos educandos: "[...] faz aquelas dinâmicas, é muito interessante, divertido até. Eu gosto muito das reuniões (U1). Faz uma brincadeira, mostra como é que lava os pés. Tem muita coisa boa e brincadeiras, né?" (U10).

Conforme Brasil (2007)BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007., as dinâmicas e brincadeiras representam técnicas afetivo-participativas na educação em saúde. Trata-se de ferramentas que compõem o método educativo e devem ser condizentes com a proposta pedagógica,não devendo ser utilizadas somente para divertir e alegrar, pois têm por objetivo reproduzir reflexões acerca do cotidiano, bem como a construção de novas práticas e conhecimentos:

  • Tem vezes que eles colocam uma lojinha, sabe? E colocam as coisas que pode e não pode, e colocam o povo pra comprar, e a gente vai pegando as coisas. Tem gente, nossa, que pega tanta coisa que não pode, que eles gostam. Então, é interessante e a gente brinca muito lá dentro. É muito bom. (U1)

O estudo de Ribeiro et al.(2011)RIBEIRO, A.G. et al. Representações sociais de mulheres portadoras de hipertensão arterial sobre sua enfermidade: desatando os nós da lacuna da adesão ao tratamento na agenda da saúde da família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n. 1, p. 87-112, 2011. apresentou relatos de adesão a mudanças alimentares de mulheres hipertensas após vivenciarem grupos de orientação nutricional pautados em metodologias dinâmicas e interativas. Segundo Brasil (2007)BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007., essas abordagens educativas permitem que o conhecimento seja coletivizado, possibilitando aos membros expor suas experiências pessoais, que se cruzam e permitem uma reflexão comum. Junto à utilização de técnicas afetivo-participativas, nota-se o emprego dos recursos audiovisuais na educação: "Teve uma vez que eles passaram uns vídeos, explicando tudo pra gente [...]" (U1).

Silva, Dias e Rodrigues (2009)SILVA, C.P.; DIAS, M.S.A.; RODRIGUES, A.B. Práxis educativa em saúde dos enfermeiros da Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. supl. 1, p. 1453-1462, set./out. 2009., em estudo realizado na ESF de Sobral-CE, com o objetivo de analisar a práxis educativa de enfermeiros, identificaram o uso habitual de recursos audiovisuais nas atividades educativas. Essa estratégia é importante, desde que seja acessória, para estimular os vários sentidos dos educandos e promover o diálogo necessário para o aprendizado significativo. Outros discursos retratam a educação dialógica: "Eu gosto muito desse grupo, porque ele é muito educativo e eu aprendi muita coisa. Inclusive, tinha muita dúvida, eu tinha vontade de ser esclarecida e não tinha oportunidade" (U1). "[...] há oportunidade pra gente falar nos grupos" (U8).

Pelos discursos, os saberes apreendidos provêm do modelo dialógico, possibilidade metodológica que vem sendo integrada no campo da saúde comunitária para propiciar o envolvimento reflexivo e autônomo dos indivíduos (FERNANDES; BACKES, 2010FERNANDES, M.C.P.; BACKES, V.M.S. Educação em saúde: perspectivas de uma equipe da estratégia saúde da família sob a óptica de Paulo Freire. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 63, n. 4, p. 567-573, jul./ago. 2010.). Segundo Freire (2011)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011., o diálogo é existencial, uma necessidade que gera oportunidade para o refletir e o agir dos sujeitos, que são transformados e humanizados. Essa busca pelo diálogo é evidente: "Pergunto muito, sou muito perguntadora, gosto de perguntar, participar muito. Tiro as dúvidas, são todas tiradas lá" (U1). "Eu gosto de ouvir, mas quando tem algo pra falar, a gente fala" (U8).

Percebe-se que ocorre escuta e fala dos atores no desenrolar da educação, estabelecendo-se relações importantes para que as concepções e os saberes diferentes possam se encontrar (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em saúde. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2007.). Por outro lado, observa-se que parte dos usuários ainda não se habituou ao diálogo mais profundo e à possibilidade de ensinar durante as atividades educativas:

  • Que tem uma mulher que ela gosta de fazer perguntas. Enquanto os outros estão conversando ela entra na frente e ali é uma graça pra nós, de ver ela entrar na frente dos acadêmicos pra falar as coisas. Ela conversa com coisa que é ela que está ensinando, aí a gente[...] ri, e abaixa a cabeça. Para nós é uma graça quando ela vai (U5).

Para Freire (2011FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.; 2007FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.), um fazer educativo dialógico requer que o educador reconheça que não detém todo o saber e, ao mesmo tempo, o educando perceba que também pode contribuir para a construção do conhecimento. É preciso vencer as posições fixas e invariáveis, pois essa rigidez, também sob a visão do educando, nega o processo educativo como uma busca. Entretanto, ainda de acordo com Freire (2007)FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007., ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer o papel do educando no processo de aprendizagem é necessário respeitar seu posicionamento, mesmo quando não quer participar, dialogar e se expor:

  1. [...] e eles perguntam o que passa na vida sentimental da gente [...]. Nessas reuniões, eu não gosto de falar, sempre fico caladinha no meu cantinho. [...] eu não gosto de participar, participo, mas não gosto de falar assim dos meus problemas não (U8).

No outro extremo, está a postura antidialógica, excessivamente prescritiva do profissional, especialmente nas atividades clínicas em consultório, como demonstrou o estudo de Ribeiro et al.(2011)RIBEIRO, A.G. et al. Representações sociais de mulheres portadoras de hipertensão arterial sobre sua enfermidade: desatando os nós da lacuna da adesão ao tratamento na agenda da saúde da família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.21, n. 1, p. 87-112, 2011.. Nesse sentido, de acordo com Vasconcelos, Grilo e Soares (2009)VASCONCELOS, M.; GRILO, M.J.C.; SOARES, S.M. Práticas pedagógicas em atenção primária à saúde: tecnologias para abordagem ao indivíduo, família e comunidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009., a educação em saúde ajuda a superar essa dificuldade, pois, muitas vezes, complementa os fazeres da abordagem clínica e propicia uma programação, de modo a formar um conjunto de cuidados oferecido ao usuário:

  1. Aí, ela explicou coisas que o meu médico endocrinologista nunca tinha me falado [...] acontece que nas consultas o tempo é corrido e eles não têm tempo de explicar tudinho assim o que é e tal, eles falam muito, mas não é assim a fundo. E, nas reuniões, é uma hora de reunião [...], as pessoas perguntam muito, tem muita pergunta, então, eles explicam muito.(U1)

No entanto, observa-se, convivendo com o fazer dialógico pautado na participação das pessoas, também, uma prática pedagógica transmissiva: "Toda vez que a gente vai lá, eles explicam, explicam e no outro mês tornam a ir e explicam a mesma coisa; aí, a gente vai só assistindo" (U7).

A concepção pedagógica transmissiva pressupõe que o educador, detentor do conhecimento, ensina a alguém que nada sabe. Trata-se de uma prática com funções de aconselhar e corrigir, por meio da qual o educador enfatiza a aprendizagem pela repetição e, normalmente, não se preocupa com a realidade social nem com valores e culturas do educando. Segundo essa pedagogia, espera-se que o usuário mude seu comportamento em função daquilo que lhe foi ensinado (VASCONCELOS; GRILO; SOARES, 2009VASCONCELOS, M.; GRILO, M.J.C.; SOARES, S.M. Práticas pedagógicas em atenção primária à saúde: tecnologias para abordagem ao indivíduo, família e comunidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.).

Conforme explica Freire (2011)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011., essa abordagem pedagógica se torna um ato de depositar e transmitir ideias, reconhecendo os educandos como seres vazios que devem ser preenchidos com os conhecimentos advindos dos educadores, o que caracteriza a chamada concepção bancária da educação.Além da prática transmissiva, em alguns discursos, os usuários demonstram estímulos para o comparecimento nos grupos educativos: "[...] olha a pressão, a receita, pra depois a gente consultar. E a gente marca a consulta, mede a glicose, mede a pressão, tudo isso acontece" (U1). "Depois elas medem a pressão, fazem exame bucal, muito bom, né!?" (U4).

Conforme Bordenave e Pereira (2010)BORDENAVE, J.D.E.; PEREIRA, A.M. Estratégias de ensino-aprendizagem. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2010., a abordagem apresentada refere-se à pedagogia do condicionamento, baseada em modelos de conduta que se valem da utilização eficiente de estímulos e recompensas, o que traz como consequência uma participação descaracterizada de seu objetivo principal, que é aprender. Segundo Vasconcelos, Grilo e Soares (2009)VASCONCELOS, M.; GRILO, M.J.C.; SOARES, S.M. Práticas pedagógicas em atenção primária à saúde: tecnologias para abordagem ao indivíduo, família e comunidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009., é muito comum os serviços de saúde condicionarem a troca de uma receita de medicamentos pela presença do usuário hipertenso nas reuniões educativas. Em estudo qualitativo realizado por Oliveira et al. (2011)OLIVEIRA, E.A.F. et al. Significado dos grupos educativos de hipertensão arterial na perspectiva do usuário de uma unidade de Atenção Primária à Saúde. Revista APS, Juiz de Fora, v. 14, n. 3, p.319-326, jul./set. 2011. com o objetivo de avaliar o significado de grupos educativos sobre hipertensão para seus participantes em uma unidade de Saúde da Família de Juiz de Fora-MG, boa parte dos sujeitos informou ter participado dos grupos com a finalidade de receber medicamentos e agendar consultas médicas.

Considerações finais

Evidenciou-se que a educação em saúde, segundo os usuários, é voltada para aspectos de qualidade de vida, promoção de hábitos saudáveis e, ao mesmo tempo, exposições de cuidados específicos e normatizados para determinadas patologias. Constatou-se a troca de experiências entre os usuários, demonstrando que eles não estão sozinhos no enfrentamento do adoecimento crônico.Também, é perceptível que a educação promove mudanças de estilo de vida, possível pela reflexão acerca da doença e busca de um caminho terapêutico adequado ao cotidiano do usuário, o que pode favorecer sua autonomia e a capacidade de cuidar de si.

Na analise crítica dos discursos, observam-se técnicas pedagógicas nos grupos de educação em saúde, a exemplo das afetivo-participativas, recursos audiovisuais e diálogo como formas de estimular a participação do usuário. Apesar de a literatura defender a importância de um modelo horizontal e crítico, nota-se o desenvolvimento de abordagens tradicionalistas na educação, como a transmissão e o condicionamento. Portanto, revelou-se um cenário plural condizente com resultados de estudos realizados em outras realidades e com outros atores. Este trabalho permitiu conhecer melhor a realidade local da educação em saúde sob a ótica dos usuários e pôde apresentar um panorama sobre o tema, cumprindo os objetivos propostos. Sugere-se o desenvolvimento de novos estudos sobre o tema que tenham o usuário como sujeito.

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  • Suporte financeiro: não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    Jun 2013
  • Aceito
    Maio 2014
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