Open-access Um corpo governável, um corpo cidadão: os sujeitos do discurso oficial brasileiro sobre saúde LGBT

A governable body, a citizen body: the subjects of Brazilian official discourse on LGBT health

RESUMO

Este artigo, orientado pelo referencial teórico foucaultiano, tem por objetivo analisar quais sujeitos emergem nos enunciados que compõem o texto oficial da Política Nacional de Saúde LGBT brasileira. Enxerga tal política pública de saúde como um artefato pedagógico incrementado pelo dispositivo da sexualidade, objetivando formas de vida e orientando o sujeito a dinamizar uma pedagogia de constituição de si com a finalidade de se fazer visível - tornar-se sujeito de direitos - frente às normas pautadas pelo Estado para controle de corpos-sexualidades. Reafirmamos que essa política de saúde é uma conquista oriunda de lutas pró-democráticas travadas pela comunidade LGBT ao longo de 40 anos, dentre outros movimentos. Todavia, podemos observar uma matriz biopolítica que a perpassa, elencando quais corpos devem ser assistidos pelo Estado; muitos deles indecifráveis e que escapam, pois suas performances na sociedade e as denominações às quais adotam para si não correspondem às regras de captura identitária nela postuladas.

PALAVRAS-CHAVE Sexualidade; Políticas de saúde; Minorias sexuais e de gênero.

ABSTRACT

This article, guided by the Foucauldian theoretical framework, aims to analyze which subjects emerge in the statements that make up the official text of the Brazilian National LGBT Health Policy, seeing such public health policy as a pedagogical artifact enhanced by the device of sexuality: aiming at forms of life , guiding the subject to stimulate a pedagogy of self-constitution with the purpose of making themselves visible - becoming a subject of rights - in the face of the norms set by the State for controlling bodies-sexualities. Finally, we reaffirm that this health policy is an achievement arising from pro-democratic struggles waged by the LGBT community over 40 years, among other movements. However, we can observe a biopolitical matrix that permeates it, listing which bodies should be assisted by the State; many of these are indecipherable and escape, because their performances in society and the names they adopt for themselves do not correspond to the rules of identity capture postulated in it.

KEYWORDS Sexuality; Health policy; Sexual and gender minorities.

Proposições iniciais

Convencionalmente, compreendemos políticas públicas como ações implementadas pelo Estado visando a demandas específicas apresentadas por determinado conjunto de pessoas, parte de uma população governada. Somada a essa compreensão, as políticas públicas podem ser encaradas como um planejamento de ações exequíveis que objetivam a produção de resultados, implicando em ganhos socioeconômicos para a sociedade ao corresponder aos anseios de determinada coletividade1.

Racionalizá-las como resposta aos anseios concebidos no interior dos movimentos sociais encaminha-nos a compreendê-las como produto de um Estado democrático que, conforme Feres Júnior et al.2, objetiva por meio de ações afirmativas garantir direitos a grupos que historicamente são realocados à margem da sociedade, viabilizando a eles o acesso equitativo à educação, à saúde e ao reconhecimento do seu aparato histórico-cultural.

Conceitos teóricos de biopoder, governamentalidade e dispositivo, discutidos mais adiante neste artigo - observados pela perspectiva filosófica de Michel Foucault -, ajudam-nos a entender como as políticas públicas podem ser pensadas como formas de gerir a população, conduzindo suas condutas, operacionalizando uma complexa produção de sujeitos ao inscrever em seus corpos normas que os fazem reconhecíveis pelo e para o Estado.

Este artigo tem como objetivo analisar quais sujeitos emergem dos conjuntos de enunciados que compõem o texto da Política Nacional de Saúde LGBT brasileira3, compreendendo as formas de existência pautadas como vivíveis por essa política pública por meio das características identitárias por ela apresentadas. Com uma análise de discurso orientada pelo referencial teórico foucaultiano, enxergamos tal política pública de saúde como um artefato pedagógico no desdobramento do dispositivo da sexualidade: objetivando formas de vida, orientando o sujeito a dinamizar uma pedagogia de constituição de si com a finalidade de fazer-se visível - sujeito de direitos - frente às normas pautadas pelo Estado para controle dos corpos por meio de suas sexualidades.

Na política em questão, a ação pedagógica surge materializada como documento oficial do Estado brasileiro, reafirmando o compromisso com o Sistema Único de Saúde (SUS) no que tange aos seus princípios doutrinários e constitucionais: universalidade, integralidade e equidade. A Política Nacional de Saúde Integral para Lésbicas, Gays, Bissesuxais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT) apresenta-se, assim, como importante ferramenta para redução das vulnerabilidades sociais que atravessam historicamente essas identidades.

Iniciamos discorrendo brevemente sobre a história do Movimento LGBT brasileiro que, há mais de quatro décadas, põe-se constantemente em luta, buscando ações democráticas por parte do Estado consubstanciadas em políticas públicas. Em seguida, apresentamos o percurso teórico-metodológico e, por fim, a análise de discurso supracitada.

Alguns apontamentos sobre a história do Movimento LGBT brasileiro e a construção de políticas públicas identitárias: corpos governáveis?

Quando se visa discorrer sobre uma perspectiva histórica do Movimento LGBT brasileiro, recorre-se à Stonewall Inn: memorável bar norte-americano localizado em New York City, que, em 1969, foi cenário do primeiro movimento contra a forma austera e violenta com que a polícia e as autoridades locais tratavam a comunidade LGBT da época, percebida como desviante das normas sociais e nociva à sociedade. Para Trindade4 e Peplo5, esse movimento repercutiu mundialmente e influenciou diversos ativistas brasileiros que, na década de 1970, em contato com o gay power durante suas viagens aos E.U.A., trouxeram questões incorporadas por militantes brasileiros que aqui vivenciavam um contexto político ditatorial civil-militar financiado pelo governo norte-americano em conluio com elites locais. Era uma realidade comum em diversos países da América Latina, entre 1960 e meados 1980, e que na época reforçava um pensamento do Brasil como terreno improlífero para formação de um movimento político LGBT.

Para Trindade4, o ativismo LGBT latino-americano desponta em novembro de 1969, com a primeira tentativa de organização homossexual na Argentina, denominada de ‘Nuestro Mundo’: grupo cuja “[...] atividade consistia em bombardear a impressa com boletins mimeografados promovendo a liberação gay6(25). Segundo Green6, os membros fundadores do Grupo ‘Nuestro Mundo’ não tiveram informações mais exatas a respeito do movimento de ‘Stonewall Inn’ em New York City, recebendo, assim, pouca influência do Movimento em sua conformação inicial. O autor ressalta que o Movimento LGBT argentino (FLHA) serviu como principal modelo de lutas em direitos sexuais, e que se dilatou por diversos países da América Latina, dentre eles o Brasil, por meio da criação do grupo ‘Somos’ em 1978.

Conforme Green7 e Macrae8, o grupo ‘Somos’ nasce em São Paulo em 1978. O pioneirismo do grupo ‘Somos’ na luta por direitos sexuais impeliu a criação de diversos outros coletivos no Brasil, agregando também lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, principalmente no período pós-ditatorial democrático que se inicia em 1985, robustecendo o Movimento. A epidemia HIV/aids nessa mesma década, dizimando incontáveis homossexuais, levou à uma aproximação do governo federal a grupos identitários sexuais existentes, redirecionando, assim, a luta do Movimento, principalmente para a sobrevivência da comunidade frente ao HIV.

Criado em 1988, o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids se mostrava um produto positivo da aproximação entre o Estado e o Movimento LGBT, embora, como afirmam Monteiro e Vilela9, a relação entre esse programa e os coletivos identitários sexuais fosse tensa devido ao seu caráter centralizador. Assiste-se, a partir disso, ao nascer de uma ‘parceria’ - para Sierra10(52), o termo “parceria” melhor define o tipo de relação que se dá entre o Estado e o Movimento na conjuntura brasileira.

O autor esclarece que tal termo significa uma união, nesse caso, que visa principalmente ao gerenciamento de riscos e não somente a ações para garantir um determinado objetivo - onde os dois lados iniciariam, no Brasil, um longo processo de fomento de políticas públicas para a diversidade sexual, percorrendo distintos momentos históricos e políticos que influenciariam as ações de controle das condutas dos corpos LGBT e balizariam seus direitos. Tal aspecto foi bastante observado no início dos anos 2000 em diversas Conferências Nacionais de Direitos Humanos, com importante participação de representantes, principalmente, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT - sigla que retoma seu nome de fundação em 1995: Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis).

Em 2002, foi criado o Programa Nacional de Diretos Humanos II, que, distintamente do primeiro programa, versava explicitamente sobre a garantia à igualdade de direitos para a comunidade LGBT3. Todavia, a consolidação da parceria entre Movimento LGBT e Estado, como explicita Sierra10, ocorre com a criação, em 2004, do Programa Brasil Sem Homofobia (BSH), que serviu como importante estopim para reflexões e fomento de políticas LGBT, principalmente nas áreas de educação, segurança pública e saúde.

A incorporação do processo transgenitalizador às mulheres transexuais ao SUS (Portaria nº 1707), ainda no ano de 2008, e sua ampliação a travestis e homens transexuais (Portaria nº 2803) em 2013, foi outra grande conquista importante frente ao Estado oriunda das reinvindicações orquestradas coletivamente por esses sujeitos que historicamente sempre se mostraram ativos dentro do Movimento LGBT. Em 2004, cria-se o Comitê Técnico de Saúde da População LGBT por meio da Portaria nº 2.227 do Ministério da Saúde, que elaborou o texto base da PNSILGBT aprovado no ano de 20093.

Percebe-se que a saúde, como bem explicita Aguião11, foi o eixo interlocutor entre o Movimento LGBT e o Estado, sedimentando a parceria dessas duas entidades. Todavia, essa parceria exigiu do Movimento LGBT, desde a década de 1990, um desprendimento do seu caráter revolucionário e transformador, cedendo lugar à preocupação de afirmar uma imagem pública de legitimidade da homossexualidade a fim de desassociar o caráter negativo da epidemia às condutas homoeróticas.

Em 1992, o governo brasileiro firmou acordo com o Banco Mundial (BM) para o desenvolvimento do AIDS I - Projeto de Controle da AIDS -, momento onde se contemplou a multiplicação de investimentos em ações por parte do BM para prevenção do HIV/aids e de assistência a seus portadores, em sua grande maioria, homens homossexuais. Entretanto, demandava-se por parte do Movimento LGBT um enquadramento em identidades, uma vez que os financiamentos exigiam a definição de um público-alvo bem delimitado, corroborando a definição de ‘homossexuais’ como uma ‘população’ específica para a incidência de políticas.

Para Foucault12, tornar-se população significa fazer-se apto a ser governado pelo Estado, que, por sua vez, busca a gerência da vida em todos seus aspectos, cerceando biopoliticamente todos os territórios onde seu desdobramento é possível. Nesse sentindo, percebe-se que a parceria entre o Movimento LGBT e o Estado, ao passo que tornava viável o fomento de políticas públicas que correspondessem às demandas sociais dessas identidades, delineou, por meio disso, uma constante produção de corpos e de vidas ajustados a processos estatais de normalização que impõe ao sujeito, parte da ‘população LGBT’, modelos de vida que asseguram sua permanência na esfera da seguridade social.

Baseando-se em Foucault12, o ‘biopoder’, por meio de um agregado de biopolíticas, almeja a governança das populações, instituindo rituais de verdades que se inscrevem discursivamente em corpos e em modos de existência coletivos. Como poder que atravessa a vida, o biopoder visa à apropriação por parte do Estado de processos biológicos que vão além da simples quantificação do nascer e do morrer populacional; melhor descrevendo, “[...] pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político”12(134).

Foucault13 também nos aponta que o nascimento da biopolítica dá-se com o advento da medicina social durante a ascensão do capitalismo que clamava por um aparato tecnológico do corpo social. Para o autor, no final do século XVI e início do século XVII, é possível contemplar uma preocupação com a saúde da população: o poder disciplinar, voltado antes para o corpo individual, maximiza seu espectro transformando-se em uma biopolítica da população, tendo a sexualidade como elo entre esses dois regimes do sujeito e coletividade. Como afirma Gadelha14(80), ao refletir sobre essa transformação na forma de gestão da vida apresentada por Foucault:

[...] a sexualidade serve a outro propósito, não menos importante, que é o de funcionar como dobradiça (charneira, ponto de ligação) entre o controle exercido sobre os corpos-subjetividades dos indivíduos e o controle exercido sobre o corpo-espécie da população [...].

No que tange ao estudo da ‘governamentalidade’, segundo Gallo15, Foucault estabelece uma conexão entre a anterior noção de ‘biopolítica’ e o conceito de ‘cuidado de si’ - presente em suas obras datadas da década de 1980 até sua morte. Dessa forma, o filósofo põe em discussão não somente o sujeito governado por outrem, mas também as formas que esse sujeito, ao ser objetivado, pode tomar para si a tarefa de conduzir a si próprio, autogovernando-se.

Para Gallo16, as duas décadas de ditadura militar pelas quais o Brasil atravessou fazem-nos pensar na operacionalização de uma ‘governamentalidade democrática’, que ascende quando ares democráticos se fazem presentes no Estado após tal regime de exceção. Para o autor, articular democracia à governamentalidade poderia tornar-se redundante, embora faça todo sentido no contexto brasileiro. Em 2013, Gallo17 reforça o conceito de ‘governamentalidade democrática’ como ações que pressupõem, face ao Estado, uma sociedade civil organizada e que toma a materialidade da liberdade como uma peça fundamental para o funcionamento da maquinaria social.

Assim, o conceito de ‘governamentalidade democrática’ nos auxilia a pensar sobre quais sexualidades são visíveis ao Estado, quais sujeitos podem ser contemplados dentro da ordem da produção de cidadãos e, principalmente, quais formas de produção de si - pedagogia de si - são conduzidas pelos biopoderes que delineiam o Estado contemporâneo. O conceito nos ajuda a indagar sobre ‘corpos-outros’, ou ‘existências-outras’, possíveis de resistir e existir fora da roteirização identitária advinda do Estado.

Percurso teórico-metodológico e análise discursiva em Michel Foucault

Em face disso, empreendemos uma análise dos enunciados apresentados no documento oficial da PNSILGBT brasileira, a fim de corresponder ao objetivo proposto neste trabalho.

Considerando que discurso é, para Foucault18(90) “[...] um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência”, que, ao se inscrever em corpos, em um potente processo de produção de sujeitos, ordena pedagogicamente modos de vida, compreendemos que a análise da política de saúde que apresentamos é pertinente, pois o discurso por ela e nela apresentado tem em si um profundo valor pedagógico, visto que se coloca como necessário de ser apreendido pelo sujeito para condução de práticas de elaboração de si ao ser por ele objetivado.

Por meio da Portaria nº 2.227 do Ministério da Saúde3, materializa-se o texto base da PNSILGBT aprovado no ano de 2009 para balizar as ações e práticas nas esferas da Saúde e Educação em Saúde, visando ao atendimento e acolhimento dos sujeitos visibilizados por ela, como discutimos no item anterior. A política surge como um artefato pedagógico - a etimologia da palavra é latina: arte factus (feito com arte) e designa um objeto ou um artigo confeccionado para uma finalidade específica -, uma peça que tem em si uma dada finalidade. Recorremos ao sentido etimológico da palavra para contextualizá-la no pensamento de Michel Foucault19(244) sobre “dispositivo” como operador material do poder:

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo.

Assim, uma política pública - como peça que compõe um dispositivo - comunica valores e discursos de verdade. No contexto desta pesquisa, esse artefato anuncia quais corpos são visíveis e, principalmente, quais atributos devem aprender e empreender em si próprios com vistas a serem contemplados pelo Estado como sujeitos de direitos. O ‘dispositivo da sexualidade’, como denomina Foucault12, é um importante articulador, pois, muito mais que um conceito operatório, a noção de dispositivo permite a articulação entre campos como saúde e educação, dimensões em que a discussão sobre a sexualidade pode surgir.

Ou seja, ao ‘dispositivo’ está interligada à demanda de vários setores, e, ao analisá-lo com César20(25), devemos pensar que:

[...] sempre que discursos e práticas são analisados é importante ressaltar que aquilo que está em jogo é a produção de uma subjetividade pré-determinada pelas redes de poder.

Tomando essa perspectiva, observamos os enunciados a seguir, na possibilidade de oferecer com eles um feixe significativo de discursos que se encontram imbricados com o ‘dispositivo da sexualidade’.

Biopolítica e biopoder no discurso oficial brasileiro sobre saúde LGBT: ‘cárceres identitários’ e ‘corpos objetivados’

Compreende-se que as políticas públicas capilarizam biopoderes de controle contínuo e permanente da população por meio de tecnologias de poder que objetivam o sujeito e fomentam subjetivações. Entendemos os ‘cárceres identitários’ com base nas proposições de Michel Foucault21 sobre identidade, designando a forma unívoca com que as subjetividades sexuais são apresentadas pela política pública de saúde LGBT brasileira. Assim, a cristalização desses sujeitos em identidades reconhecíveis pelo Estado é uma forma de encarceramento da vida que busca sua normalização, sua objetivação e seu assujeitamento. Assim como em Jardim Motta22(60), evidencia:

[...] os múltiplos corpos diferentes que rompem a estabilidade binária identidade/ diferença acabam por construir o que vou denominar visibilidades invisíveis, ou seja, na medida que corpos avançam no limite histórico que delimita a fronteira da transgressão, tornam outros corpos transgressores menos visíveis

No que tange à criação de Políticas Públicas de saúde, ressalta-se que SUS é o seu principal veículo democrático de estruturação e implementação. A criação do SUS na década de 1990, obedecendo à Constituição Federal de 198823 e regulamentada por meio das Leis Orgânicas nº 8.080/90 e nº 8.142/90, assegurou a possibilidade de criação de outras políticas públicas em saúde fundamentadas em seus princípios doutrinários: universalidade, integralidade e equidade.

Com texto aprovado em 2009 e publicada por meio da Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, nasce a PNSILGBT, que tem como objetivo principal:

Promover a saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, eliminando a discriminação e preconceito institucional, bem como contribuindo para a redução das desigualdades e a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo3(18).

Tal política incorpora em seu texto as principais necessidades em saúde desses sujeitos, outrora transformados em população LGBT. Impregnada pela linguagem técnico-biomédica, ela busca orientar instituições e profissionais a reconhecerem o sujeito alvo das ações assistenciais. O documento é composto por seções de apresentação e introdução que descrevem sua importância e seu delineamento conforme a Constituição Federal, seguidas de outras seções que, resumidamente, versam sobre o histórico de lutas do Movimento LGBT no Brasil. A fundamentação legal, os objetivos gerais e específicos, as diretrizes e responsabilidades também compõem o documento oficial dessa política, respaldando-o como marco legal para viabilização de ações em saúde para a comunidade LGBT3.

Todavia, lançando um olhar analítico sobre como os sujeitos LGBT são apresentados nesse documento, identificamos na PNSILGBT mecanismos de ‘objetivação’ imbuídos por uma biopolítica por parte do Estado, que, como já afirmamos neste trabalho, prescreve formas de vida e tipos de corpos que induzem, e legitimam, um exercício pedagógico de produção de si.

Entende-se por ‘objetivação’ um processo de normalização dos corpos que especifica características consideradas inerentes ao sujeito, classificando-o, nomeando-o, rotulando-o e visibilizando-o socialmente conforme os poderes hegemônicos vigentes e que não levam em consideração sua construção histórica ou tempo presente e sua relação com o passado, induzindo processos de subjetivação - de produção de si21.

Na seção intitulada “Orientação sexual e identidade de gênero na determinação social de saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT)”3(13), onde estão explicitados dados que justificam os objetivos da PNSILGBT, observam-se enunciados que prescrevem quais identidades a política contempla e também as formas de identificação dessas subjetividades numa configuração médico-patológica

Casos de lesbofobia, gayfobia, bifobia e transfobia, devem ser considerados na determinação social de sofrimento e de doença3(13).

Com relação ao exame preventivo de câncer cérvico uterino [...] entre lésbicas e mulheres bissexuais a cobertura cai3(14).

A prostituição para a travesti significa não apenas sua sobrevivência financeira [...] é na rua que as travestis exercitam o feminino [...] mas é também o espaço de consumo em geral, inclusive drogas, silicone industrial, hormônios e outros medicamentos. A rua e a prostituição acarretam também maiores riscos de contrair Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids3(14).

Outro grave problema para a saúde de transexuais e travestis é o uso indiscriminado e sem orientação de hormônios femininos [...] ocorrência de acidente vascular cerebral, flebites, infarto do miocárdio3(15).

[...] transexuais masculinos demandam acesso aos procedimentos de mastectomia e de histerectomia3(15).

[...] maior vulnerabilidade ao vírus HIV para gays e bissexuais masculinos3(16).

Contemplam-se nos enunciados destacados, identidades que se conformam, apenas, à sigla LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Isso indica a necessidade de reflexões sobre a existência de subjetividades não visibilizadas nesse conjunto de letras e que extrapolam o escrito - o dito - no documento oficial. Além disso, a maior parte das demandas em saúde demarcadas no texto acima limitam-se apenas a atributos delineados pelo discurso biomédico, cujo limite é o corpo, e suas previsíveis modificações fisiológicas frente a um estado de doença - principalmente de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Por mais que, anterior à promulgação da PNSILGBT, o processo transgenitalizador já fosse uma conquista frente ao Estado de travestis, de mulheres e de homens transexuais que não orbitava discursivamente ao redor da noção de doença, mas em torno, principalmente do acesso e do acolhimento desses sujeitos ao serviço de saúde, como definem as Portarias nº 1707/2008 e nº 2803/2013 descritas também na PNSILGBT3.

Embasados em Foucault21(144), ao afirmar que “[...] o corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica”, compreendemos que o Estado garante, ao fixar prescritivamente tais identidades nessa política, bem como suas possíveis necessidades em saúde, que esses corpos se subjetivem como corpo social para que se tornem governáveis: ser lésbica, gay, bissexual, travesti ou transexual com tais comorbidades é garantia de acesso à saúde.

Se, nesse contexto, ser ‘corpo governável’ é ser ‘corpo cidadão’, pensando juntamente com Gallo15, considera-se que todo aquele não cooptado pela ‘governamentalidade democrática’ é irreconhecível ao Estado por não possuir em si os atributos identitários necessários para tornar-se cidadão, seja por pela falta de habilidade em tê-los ou pela recusa em possuí-los.

Por meio dos enunciados citados, percebem-se ‘cárceres identitários’ que cristalizam papéis de sujeitos, como atores sociais, marcados principalmente por um discurso biomédico que dita quem são, como estão e como devem ser, baseado em padrões previamente estabelecidos que não consideram os matizes próprios da vida e da existência humana.

No que tange, por exemplo, à visibilidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, a PNSILGBT recomenda a promoção de iniciativas voltadas à redução de riscos em saúde, que são3(20-21):

VII - [...]problemas decorrentes do uso prolongado de hormônios femininos e masculinos para travestis e transexuais;

VIII- [...] ao uso excessivo de medicamentos, drogas e fármacos, especialmente para travestis e transexuais;

[...]

XII -[...] casos de cânceres ginecológicos (cérvico uterino e de mamas) entre lésbicas e mulheres bissexuais;

Compreendemos que toda política pública é tecida de acordo com as demandas contingenciais de coletividades. Por assim ser, a PNSILGBT foi criada para corresponder aos anseios de múltiplos movimentos que compunham o Movimento LGBT presente na abertura dos anos 2010. Todavia, por meio de uma leitura mais contemporânea dessa política pública, após uma década de sua criação, percebemos que nos enunciados supracitados há limitações descritivas não somente no que concerne às identidades contempladas pela política, mas também na descrição dos riscos em saúde: mulheres lésbicas e bissexuais são alocadas no grupo de riscos em saúde sexual e reprodutiva; homens gays ou bissexuais, travestis e transexuais com demandas em saúde restritas a problemas com uso de hormônios, de drogas e ao processo transexualizador.

Existem, em diversas partes do documento, alguns imperativos que reforçam a promoção de uma assistência em saúde livre de preconceitos e discriminação. Essas descrições anátomo-fisiológicas limitantes, mesmo que parciais, encarceram diversas subjetividades cujas sexualidades são dissidentes e pouco conduzem à reflexão sobre ações que correspondam às iniquidades sociais enfrentadas por esses sujeitos.

O contexto histórico e político de criação da PNSILGBT eclode na urgência de uma política de saúde sexual e identitária: as oportunidades oferecidas pelo Estado, por meio do governo da época, de participação do Movimento LGBT no planejamento e na implementação de ações estatais não tiveram precedentes na história da democracia brasileira. Exigia-se, assim, agilidade no trabalho de construção de ações políticas, oficializando pragmaticamente em documentos a maior parte das demandas em saúde apresentadas pelas coletividades identitárias sexuais existentes.

Todavia, as múltiplas violências simbólicas sofridas por esses sujeitos na sociedade, que empurram muitos corpos, principalmente travestis e transexuais, para a prostituição, que retiram da mulher o direito ao aborto, conduzindo-a à produção de uma existência pautada pela maternidade compulsória, são exemplos de alguns problemas parcialmente contemplados pela PNSILGBT e que há anos fazem parte da agenda de debates realizados em inúmeros coletivos identitários sexuais quando o assunto é saúde.

Além disso, podemos observar uma matriz biopolítica que perpassa a política em questão e que elenca quais corpos devem ou não ser assistidos pelo Estado; muitos desses ora estranhos ora indecifráveis ora impossíveis de ser classificados no que postula a política de saúde LGBT brasileira. São corpos que escapam, pois suas performances na sociedade e as denominações às quais adotam para si e para seus pares não correspondem às regras de captura e encarceramento identitário postulados pela PNSILGBT.

Para a conquista de uma vida considerada vivível pelo Estado, ‘pansexuais’, ‘intersexuais’, ‘queers’, ‘sapatões’, ‘pocs’, ‘viades’, ‘barbies’, ‘atives’, ‘passives’, ‘monas’, ‘cafuçus’, pessoas não-binárias e tantas outras pluralidades de sujeitos encarceram-se na visualidade minimizadora da sigla LGBT. Tais expressões são de uso rotineiro da comunidade LGBT brasileira para reconhecimento de si e de seus pares. Cada um desses termos carrega conjuntos de significados imbricados a performances corporais e sexuais ou ligados a formas diversas de prazeres e desejos. A maior parte foi cunhada pejorativamente como forma de agressão verbal homofóbica, mas ressignificadas pelos sujeitos, sendo atualmente utilizadas por diversos coletivos identitários sexuais.

Ressaltamos nossa compreensão de que as subjetividades sexuais vivenciam deslocamentos contínuos e impossíveis de serem encapsulados em condições de saúde previamente estabelecidos ou em quaisquer outros documentos prescritivos. Além disso, como nos diz Aguião11 ao postular que um alfabeto inteiro não conseguiria abarcar a fluidez sexual e de gênero de sujeito algum, o documento oficial dessa política de saúde não discute a existência de vidas que não estão visíveis na sigla LGBT. Tais fatos levam-nos a refletir que tais identidades prescritas na PNSILGBT precisam ser repensadas segundo as possíveis posições de sujeitos nas quais a vida possui potência de desdobramento.

Outra pergunta que podemos levantar é: após uma década da existência dessa política em saúde, tais demandas em saúde são válidas em sua totalidade ainda hoje? Acreditamos que é de direito do sujeito LGBT ser contemplado por ações que, por intermédio do SUS, correspondam satisfatoriamente a essas necessidades. Porém, quando analisadas por uma perspectiva foucaultiana, essas demandas em saúde roteirizadas na PNSILGBT podem ser compreendidas como enunciados que apresentam condições de existência unívocas, marcadas por um recorte temporal que objetivam o sujeito roteirizando identidades.

Outras características observáveis nos enunciados dessa política são (1) a forte presença do binarismo, que considera apenas a fronteira ‘homem-mulher’, ‘masculino-feminino’ como território de produção de corpos. É sabido que os binarismos ainda são fronteiras que limitam muitas práticas discursivas sobre sexualidade e gênero, que designam, assim, performances sociais sobre o que é ‘ser mulher’, sobre o que é ‘ser homem’, sobre o que é masculino e sobre o que é feminino; tudo que escapa a essas fronteiras - que tem por finalidade maior a normalização de corpos - é considerado abjeto e vida descartável não passível de luto, como afirmam Duque24 e Butler25. (2) Talvez, demais subjetividades relatadas anteriormente no presente trabalho sejam invisibilizadas pela ausência de uma racionalidade que interseccione raça ou cor, classe social e etnia na PNSILGBT, pensamento muito em voga na década atual.

Corpos cujas essas normas não estão totalmente ou estão apenas parcialmente inscritas são tidos como não reconhecíveis; no processo de pensamento binário que produz a linearidade ‘corpo-desejo-sexualidade-gênero’ e que corresponde a uma heterossexualidade compulsória dos sujeitos, o irreconhecível é abominável, pois desvia-se das verdades já instauradas como não passíveis de crítica e de questionamentos. Falamos, aqui, principalmente, dos corpos ‘trans’ - travesti e transexual, que transitam -, que, pela impossibilidade ou desejo de não quererem passar por mulher ou homem, são posicionados no território da anormalidade e, consequentemente, do rejeitável e passível de intervenção médica. Desse modo, essa política pode ser analisada, também, como uma válvula do que chamamos ‘encarcerização identitária’, onde o sujeito é objetivado em um discurso cujos enunciados não abrem margem para refletir sobre outras vivências sexuais e outros corpos menos passíveis de governança.

Contudo, é necessário remeter à memória que a PNSILGBT, ao apresentar seus objetivos específicos, suas diretrizes, suas responsabilidades e suas atribuições em várias esferas da saúde, é endereçada a gestores e profissionais de diversos campos do conhecimento para o cumprimento de seu ‘Plano Operativo’ composto por estratégias que visam “[...] o enfrentamento das iniquidades e desigualdades em saúde3(27)”, que vulnerabilizam a população LGBT com base nas características identitárias postuladas pela PNSILGBT. Isso reforça sua concepção enquanto artefato pedagógico que pode ser utilizado para formação profissional em territórios onde as ações em saúde são implementadas; de forma clara, o documento oficial da PNSILGBT explicita em sua lista de responsabilidades e atribuições:

XII - incluir conteúdos relacionados à saúde da população LGBT, com recortes étnico-racial e territorial, no material didático usado nos processos de educação permanente para trabalhadores de saúde;

XIII - promover ações e práticas educativas em saúde nos serviços do SUS, com ênfase na promoção da saúde mental, orientação sexual e identidade de gênero, recortes étnico-racial e territorial;

XIV - fomentar a realização de estudos e pesquisas voltados para a população LGBT, incluindo recortes étnico-racial e territorial;

[...]3(21-22).

Tal endereçamento nos ajuda a entender sua textualidade densamente marcada por um vocabulário próprio da área da saúde que cumpre o rigor técnico-científico das ciências biomédicas. É comum nesse documento o entrelaçamento de características identitárias a protocolos clínicos com o objetivo de compor enunciados. Mesmo não sendo o objetivo deste artigo, não se pôde deixar de observar ser esse outro atributo que reforça o teor pedagógico da PNSILGBT: a condução de profissionais - principalmente da saúde, da educação e da gestão pública - a reconhecerem quais sujeitos são alvos dessa política pública, predeterminando suas necessidades em saúde por meio da apreensão identitária.

Para Sierra e César26, o grande produto não-material oriundo da parceria entre movimento LGBT e Estado é o constante desejo de viabilidade moral-econômica que essa causa em diversas subjetividades, conduzindo-as ao enquadramento identitário estatal. Para os autores, a noção contemporânea de diversidade sexual, fomentada acentuadamente pelo e para o Estado, “[...] congela o sujeito numa identidade reconhecível, num corpo traduzível, selando outras potencialidades de vida que o próprio movimento LGBT poderia experimentar”26(39).

Diante disso, coadunamos com Jorge Larossa27 quando afirma que as relações que o indivíduo pode elaborar consigo mesmo são tão pedagógicas quanto aquelas vivenciadas em uma sala de aula, haja vista que ambas são produtoras de sujeitos e perpassadas por múltiplos saberes. A política em saúde aqui analisada torna-se, assim - e como já afirmado anteriormente -, um artefato pedagógico de produção de corpos que subjetivam suas normas identitárias com a finalidade de alcançar os direitos estatais nela estabelecidos.

Considerações finais

Mesmo considerando que a PNSILGBT não seja capaz de abarcar, por meio de seus enunciados, a fluidez advinda das múltiplas subjetividades sexuais na contemporaneidade, isso não a invalida como política pública. Assim, reafirmamos que sua implementação em 2013 pelo governo federal por meio do Ministério da Saúde é um marco para valoração da equidade no SUS, visando à redução das iniquidades sociais, à garantia da cidadania e dos direitos humanos básicos.

Discorrer sobre a existência de subjetividades não anunciadas nessa política de saúde nos permite refletir sobre quais práticas pedagógicas de elaboração de si são operacionalizadas pelos corpos que não se permitem normalizar ou se objetivar. Contemplamos, assim, a existência de uma pedagogia da resistência que é exercida no interior de diversos coletivos identitários sexuais brasileiros, produzindo, assim, corpos cada vez mais dissidentes à governamentalidade democrática aqui explicitada e que ressignificam no seu cotidiano o conceito de saúde e bem-estar social. Todavia, fora desse lócus de ebulição de subjetividades, percebe-se que esse corpo que escapa, forjado em meio à resistência, necessita encapsular-se na noção identitária e reducionista do Estado para por ele ser contemplado como sujeito de direitos.

Tais fenômenos de tessitura de si são uma ação política, haja vista a multiplicidade de discursos conservadores e neofascistas no Brasil e no mundo que desenham um cenário no qual diferentes identidades e subjetividades, entre elas as LGBTs, são mais densamente vulnerabilizadas, oprimidas e marginalizadas.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Editado por

  • Editora responsável: Raquel Abrantes Pêgo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2023
  • Aceito
    10 Jun 2024
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