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Contribuições feministas e questões de gênero nas práticas de saúde da atenção básica do SUS

Feminist contributions and gender issues in healthcare practices of the Brazilian Unified Health System’s primary care

RESUMO

Pretendeu-se refletir sobre a relevância de contribuições feministas como referenciais contrahegemônicos para uma análise crítica de práticas de saúde desenvolvidas em um serviço da atenção básica do Sistema Único de Saúde. Observaram-se ações de profissionais em uma Unidade Básica de Saúde com o objetivo de analisar como se manifestam questões de gênero na atenção básica a partir de perspectiva da psicologia social postulada por Pichon-Rivière em diálogo com produções feministas. A partir de discussão crítica perante visões dicotômicas, como público e privado, e discursos naturalistas, foram identificados três aspectos relevantes: divisão sexual do trabalho, maternidade e ausência paterna; centralidade das práticas de saúde da mulher na reprodução; e binarismo das políticas públicas de saúde. Isso permitiu identificar aspectos importantes acerca das práticas de saúde na atenção básica. Espera-se que este estudo, ao examinar a naturalização e a reprodução de sexismo, racismo e classismo em meio às práticas consideradas, fomente discussões futuras no campo da saúde que caminhem no sentido de uma produção de saberes e práticas comprometidos com a contestação de tais desigualdades.

PALAVRAS-CHAVE
Psicologia social; Estudos de gênero; Políticas públicas em saúde; Sistema Único de Saúde; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

It was intended to reflect on the relevance of feminist contributions as counter-hegemonic references for a critical analysis of health practices developed in a primary care service of the Unified Health System. The actions of professionals in a Basic Health Unit were observed with the aim of analyzing how gender issues are manifested in primary care from the perspective of social psychology postulated by Pichon-Rivière in dialogue with feminist productions. From a critical discussion on dichotomous views, such as public and private, and naturalistic discourses, three relevant aspects were identified: sexual division of work, maternity and paternal absence; centrality of women’s health practices in reproduction; and binarism of public health policies. This allowed us to identify important aspects about health practices in primary care. It is hoped that this study, by examining the naturalization and reproduction of sexism, racism, and classism among the practices considered, will encourage future discussions in the field of health that move towards a production of knowledge and practices committed to contesting such inequalities.

KEYWORDS
Psychology; social; Gender studies; Health policy; Unified Health System; Primary Health Care

Introdução

O presente artigo pretende mostrar a relevância de contribuições feministas como referenciais contra-hegemônicos para uma análise crítica de práticas de saúde desenvolvidas em um serviço da atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS). Tal análise foi realizada em pesquisa de mestrado, desenvolvida a partir de visitas a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no município de São Paulo, em que foram observadas ações de profissionais de saúde no contexto da atenção básica do SUS11 Rivera MFA. Gênero na Atenção Básica do SUS: reflexões a partir das práticas de saúde. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2020. 107 p. [acesso em 2020 jul 26]. Disponível em: https://doi.org/10.11606/D.47.2020.tde-28052020-180835
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. Esse âmbito de ações refere-se à ‘porta de entrada’ do sistema, acolhendo demandas de saúde mais frequentes da população e organizando fluxos de atendimento entre os demais níveis.

Objetivou-se, no trabalho, verificar como se manifestavam questões de gênero nesse nível de atenção, bem como suas implicações nas práticas de saúde, tanto do ponto de vista do cuidado quanto das relações, concepções e políticas públicas, a partir da perspectiva da psicologia social postulada por Enrique Pichon-Rivière22 Pichon-Rivière E. O Processo Grupal. São Paulo: Martins Fontes; 2005. em diálogo com a produção de autoras feministas.

Buscou-se identificar questões de gênero que perpassassem as relações interpessoais naquele contexto, considerando uma crítica à classificação de pessoas e ao “equívoco lógico de igualar mulher e gênero”33 Haraway D. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu. 2004; (22):201-246.(235). Assim, foi adotada a compreensão de que gênero:

[...] é um conceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual em múltiplas arenas de luta. A teoria e a prática feminista em torno de gênero buscam explicar e transformar sistemas históricos de diferença sexual nos quais ‘homens’ e ‘mulheres’ são socialmente constituídos e posicionados em relações de hierarquia e antagonismo33 Haraway D. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu. 2004; (22):201-246.(211).

Consideraram-se questões de raça e classe, concordando com Sueli Carneiro, quando afirma que a “raça social e culturalmente construída é determinante na configuração da estrutura de classes no Brasil”44 Carneiro S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro; 2011.(18), e com Luiza Bairros55 Bairros L. Nossos feminismos revisitados. Est. Feministas. 1995 [acesso em 2020 jul 26]; 3(2):458-63. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16462/15034
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, ao entender que, do ponto de vista da reflexão e da ação políticas, uma dimensão não existe sem a outra. Sendo assim, a perspectiva da interseccionalidade66 Collins PH. Black feminist thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment. London: Routledge; 2000. orientou as reflexões apresentadas.

Questionar a naturalização das diferenças sexuais e desigualdades de gênero, raça e classe justifica-se em estudo de psicologia social que compreende o sujeito imerso em suas relações sociais e reconhece a mútua determinação entre sujeito e estrutura social22 Pichon-Rivière E. O Processo Grupal. São Paulo: Martins Fontes; 2005.. O entendimento de que existe imbricação entre diferentes dimensões sociais e práticas desenvolvidas no cotidiano do SUS permite analisá-las a partir da contestação da ideia de que essas desigualdades são naturais. Ao contrário, são sustentadas por meio de concepções que ocultam o que há de social, histórico e político dessas construções. Nessa perspectiva, refletiu-se sobre a cotidianidade dos serviços de saúde, políticas públicas e implementação de práticas.

Nas últimas décadas, foram observados avanços no setor saúde, ampliando-se acesso e diversificando-se ações ofertadas. O SUS, fruto de mobilização social, trouxe o desafio da saúde para todas as pessoas, constituindo princípios como da universalidade e igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie77 Paim JS. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. Além disso, as próprias concepções de saúde, promoção, prevenção e reabilitação foram amplamente refletidas no campo da saúde coletiva. Saúde não é mais entendida nem como ausência de doença77 Paim JS. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009., nem apenas como um estado de normalidade relacionado com bem-estar biopsicossocial. É, também, uma sucessão de compromissos com as realidades do ambiente material, afetiva, relacional, familiar e social88 Dejours C. Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional. 1986; 54(14):7-11..

No entanto, vícios ideológicos podem fazer das propostas de ações somente um rearranjo político-institucional de um mesmo sistema de saúde ainda extremamente excludente do ponto de vista social99 Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2001; 6(1):63-72.. Ou seja, é necessário que projetos e proposições políticas sejam contextualizados, e não tomados como verdades inquestionáveis que representariam modelos a serem apenas aperfeiçoados1010 Scarcelli IR, Junqueira V. O Sus como desafio para a formação em Psicologia. Psicol. Ciênc. Profis. 2011 [acesso em 2020 jul 26]; 31(2):340-357. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932011000200011
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Isso importa ao se considerar a dimensão institucional na análise de uma realidade complexa e mutante, conforme proposto por Pichon-Rivière22 Pichon-Rivière E. O Processo Grupal. São Paulo: Martins Fontes; 2005., o que mobiliza indagações sobre as instituições e sobre as práticas e diretrizes políticas1111 Scarcelli IR. Psicologia Social e Políticas Públicas: Pontes e Interfaces no Campo da Saúde. São Paulo: Zagodoni; 2017.. Pichon, ao formular sua proposta de psicologia social, elaborou uma teoria de grupo operativo compreendida como instrumento de intervenção e técnica de investigação1111 Scarcelli IR. Psicologia Social e Políticas Públicas: Pontes e Interfaces no Campo da Saúde. São Paulo: Zagodoni; 2017., que analisa três dimensões: psicossocial (o estudo do sujeito por meio de seus vínculos e relações interpessoais); sociodinâmica (o estudo centrado no grupo); e institucional (o estudo da relação dos grupos entre si e as instituições que os regem, assim como a investigação dos grandes grupos, sua estrutura, origem, composição, história, economia, política, ideologia etc.). As três dimensões não são excludentes nem separáveis; todo estudo deve abarcá-las em sua unidade e interjogo1212 Bleger J. Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas; 1984.. Entretanto, é frequente que profissionais e pesquisadores psi concentrem-se na direção do sujeito, tendo dificuldade de transitar entre as três, principalmente pela institucional1111 Scarcelli IR. Psicologia Social e Políticas Públicas: Pontes e Interfaces no Campo da Saúde. São Paulo: Zagodoni; 2017..

A psicologia social postulada por Pichon-Rivière centra-se em uma abordagem interdisciplinar de uma situação social, de modo que propõe o estudo de todas as partes de um problema, em que se dá a síntese dialética entre texto e contexto. Além disso, tal perspectiva está baseada em uma crítica da vida cotidiana, que compreende a pessoa imersa em suas relações sociais, entendendo que:

[...] o modo de viver se transforma em um mecanismo irreflexivo, não consciente e de ação. Os fatos são aceitos de forma naturalizada, como partes de um todo conhecido e autoevidente, como algo que não cabe ser questionado e nem requer verificação já que constituiriam o real por excelência1111 Scarcelli IR. Psicologia Social e Políticas Públicas: Pontes e Interfaces no Campo da Saúde. São Paulo: Zagodoni; 2017.(88).

Entende-se ainda que esse encobrimento ocorre a partir dos interesses hegemônicos da sociedade. Ao partir dessa crítica, as formulações de Pichon-Rivière possibilitam discutir questões ligadas a gênero e raça, ainda que ele próprio não tenha ido além da explicitação de aspectos relacionados com as questões de classe. Críticas amparadas na desnaturalização e questionamento da realidade também são preconizadas pelas autoras feministas consideradas. Esse diálogo que foi proposto se fez possível por terem sido retomadas concepções pichonianas que pressupõem a possibilidade de uma interdisciplinaridade e articulação de contribuições de diferentes disciplinas (o que pode ser pensado como uma epistemologia convergente).

Se forem consideradas as atuais discussões das questões de gênero, vê-se que a efetivação de princípios do SUS é um desafio de grande magnitude. Por conta disso e da consideração de uma análise que vá em três direções (psicossocial, sociodinâmica e institucional), tomou-se como relevantes as contribuições feministas.

Perspectivas feministas e o caminho adotado para pensar ‘gênero’

Os feminismos tornaram-se relevantes na pesquisa por trazerem importantes críticas ao campo da produção de saberes, tecendo críticas à ciência tradicional e buscando a construção de uma ciência não sexista, não positivista e que integrasse o caráter político na construção do conhecimento. Ainda que se considere a pluralidade de perspectivas feministas, pode-se entender que:

Feminismo é o instrumento teórico que permite dar conta da construção de gênero como fonte de poder e hierarquia que impacta mais negativamente sobre a mulher. É a lente através da qual as diferentes experiências das mulheres podem ser analisadas criticamente com vistas à reinvenção de mulheres e de homens fora dos padrões que estabelecem a inferioridade de um em relação ao outro55 Bairros L. Nossos feminismos revisitados. Est. Feministas. 1995 [acesso em 2020 jul 26]; 3(2):458-63. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16462/15034
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Entendendo que há diferentes caminhos para pensar ‘gênero’, adotou-se apenas uma das possibilidades: um diálogo com autoras que pudesse apoiar a não utilização de ‘gênero’ como diferenciações binárias de pessoas. Isso foi fundamental diante de um serviço de saúde pautado em políticas públicas que partem de determinadas suposições do que vem a ser ‘mulher’ e ‘homem’1313 Rivera MFA, Heinzelmann FL, Scarcelli IR. Políticas Públicas de Saúde e questões de Gênero possíveis: uma leitura a partir da Psicologia Social. In: Cordeiro MP, Lara MFA, Aragusuku HA, et al., organizadores. Pesquisas em psicologia e políticas públicas II: Diálogos na pós-graduação. São Paulo: IPUSP; (No prelo) 2020. v.2.. Portanto, como já afirmado, foi tomada a posição que entende gênero como um conceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual33 Haraway D. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu. 2004; (22):201-246..

Essa contestação pode ser feita em relação a concepções que tendem a assumir que as categorias e sentidos de gênero são artifícios culturais destinados a compreender o fato óbvio das diferenças sexuais binárias, suposição implícita de que essas são subjacentes às categorias e relações de gênero, mesmo que não as determinem. Argumentos desse tipo ainda postulam uma distinção radical entre sexo (biológico) e gênero (culturalmente construído)1414 Moore H. Compreendendo sexo e gênero. In: Ingold T. Companion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge; 1997. p. 813-830.. No entanto, ao conceber a ‘biologia’ como o corpo em si mesmo, não se percebe que ela própria é um discurso social aberto à intervenção33 Haraway D. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu. 2004; (22):201-246..

Para Henrietta Moore1414 Moore H. Compreendendo sexo e gênero. In: Ingold T. Companion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge; 1997. p. 813-830., essa categorização sexual binária é justamente efeito do discurso cultural ocidental, que tem uma relação mutuamente constitutiva com o discurso biomédico. A autora defende que tanto o sexo quanto o gênero são socialmente construídos, um em relação ao outro. Corpos, processos psicológicos, partes do corpo, relações sexuais e reprodução humana são atividades sociais, e não apenas processos fisiológicos, tampouco têm sentido fora das suas compreensões socialmente construídas1414 Moore H. Compreendendo sexo e gênero. In: Ingold T. Companion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge; 1997. p. 813-830..

Judith Butler1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018., nesse sentido, postula que o gênero tem de designar o aparato de produção pelo qual os próprios sexos são estabelecidos, e não deve ser concebido como a inscrição cultural de significado em um sexo previamente dado. As mesmas leis que buscam estabelecer linhas causais de ligação entre o sexo biológico, o gênero e a expressão de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual produzem, também, normas de continuidade e coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, de modo que a descontinuidade e a incoerência são constantemente proibidas1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018.. Leva-se ainda em conta que há a instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada, que regula o gênero como uma relação binária em que o masculino se diferencia do feminino, e isso realiza-se por meio das práticas do desejo heterossexual1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018..

Entendendo que gênero é sempre relacional e político, Joan Scott1616 Scott JW. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Edu. Realid. 1995; 20(2):71-99. afirma que é comum conceber homem e mulher como polos opostos que se relacionam dentro de uma lógica invariável de dominação/submissão, que parece apontar para um lugar natural e fixo para cada gênero. Essa oposição binária faz equiparação entre outros pares de conceitos, como produção/reprodução, público/privado, razão/sentimento.

No entanto, essa concepção natural de gênero pressupõe especificidades de ‘mulheres’ e de ‘homens’ que são descontextualizadas política, social e culturalmente. A perspectiva da interseccionalidade, que se refere às formas particulares de intersecção de opressões66 Collins PH. Black feminist thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment. London: Routledge; 2000., mostra que gênero tem imbricações com raça e classe, por exemplo, de modo que não é possível falar dessas especificidades nem conceber que exista uma opressão comum a todas as mulheres. Angela Davis1717 Davis A. As mulheres negras na construção de uma nova utopia. Portal Geledés. 2011 jul 12. [acesso em 2020 jul 26]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis
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afirma que:

É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.

No contexto racista brasileiro, essas ideias são fundamentais. Lélia Gonzalez1818 Gonzalez L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Rev Ciênc. Soc. Hoje. 1984; 223-244.(224) aponta que:

O ‘lugar’ em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o ‘racismo’ se constitui como a ‘sintomática’ que caracteriza a ‘neurose cultural brasileira’. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular.

Já Luiza Bairros55 Bairros L. Nossos feminismos revisitados. Est. Feministas. 1995 [acesso em 2020 jul 26]; 3(2):458-63. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16462/15034
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destaca que as imagens costumeiramente associadas ao masculino - principal provedor da família, ocupante das posições mais valorizadas do mercado de trabalho, atleta sexual, iniciador das relações amorosas, agressivo - cruzadas com o racismo no Brasil reconfiguram a forma como homens negros vivenciam gênero.

Assim o negro desempregado ou ganhando um salário minguado é visto como o preguiçoso, o fracassado, o incapaz. O atleta sexual é percebido como um estuprador em potencial, o agressivo torna-se o alvo preferido da brutalidade policial. Só que estes aspectos raramente são associados aos efeitos combinados de sexismo e racismo sobre os homens, que reforçam o primeiro na ilusão de poder compensar os efeitos devastadores do segundo55 Bairros L. Nossos feminismos revisitados. Est. Feministas. 1995 [acesso em 2020 jul 26]; 3(2):458-63. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16462/15034
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A perspectiva interseccional foi necessária para a aproximação de uma realidade em uma sociedade marcada pelo sexismo, pelo classismo e pelo racismo. Claro que esses não são os únicos eixos de opressão aos quais a população brasileira está submetida, mas a pesquisa se centrou neles porque essas foram as principais questões observadas na unidade de saúde visitada e pelo que foi apontado pelas autoras consideradas.

Os caminhos da pesquisa

Considerando o referencial da psicologia social formulada por Enrique Pichon-Rivière22 Pichon-Rivière E. O Processo Grupal. São Paulo: Martins Fontes; 2005., identificaram-se situações e temas relacionados com questões de gênero a partir de visitas realizadas em uma UBS11 Rivera MFA. Gênero na Atenção Básica do SUS: reflexões a partir das práticas de saúde. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2020. 107 p. [acesso em 2020 jul 26]. Disponível em: https://doi.org/10.11606/D.47.2020.tde-28052020-180835
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. Tais visitas, totalizando cerca de 30, ocorreram entre fevereiro e junho de 2019, e se deram inicialmente ligadas a um estágio de estudantes de graduação em psicologia, a partir do qual foi possível participar de atendimentos em grupo e individuais, visitas domiciliares e reuniões de equipe. Tudo isso foi registrado em diário de campo, que também foi analisado fundamentando-se no aporte teórico pichoniano.

A UBS visitada compõe a rede de atenção básica à saúde e é responsável por uma área de 25 mil pessoas. Conta com um grupo de profissionais de medicina, enfermagem, psicologia e administrativos, entre outros, além de receber regularmente estudantes para estágios. As ações de saúde realizadas são, principalmente, consultas individuais, grupos e visitas domiciliares, integrando o atendimento a atividades de promoção e cuidado da saúde.

As observações e situações ocorridas na UBS serviram para o questionamento acerca daquilo que se processa no sujeito e nos arranjos e rearranjos grupais. Nesse ensejo, os conceitos pichonianos de emergente e porta-voz foram importantes, pois trazem a possibilidade de articulação entre os âmbitos da intra e intersubjetividades. Pela análise e consideração das formas de interação e os mecanismos de atribuição e assunção de papéis que se estabelecem em grupo, podem-se estabelecer hipóteses sobre os próprios processos que as determinam, de acordo com a perspectiva pichoniana. Esta considera ainda, como já mencionado, a possibilidade de uma análise em três direções: psicossocial, sociodinâmica e institucional.

Práticas de saúde na atenção básica, gênero e estudos feministas: algumas articulações

As observações realizadas na UBS e as reflexões registradas em diário de campo levaram ao contato com uma realidade que é complexa, sempre mutante e com todos os seus aspectos se inter-relacionando. Isso se deu a partir de uma perspectiva que considera que tudo tem a ver com tudo1111 Scarcelli IR. Psicologia Social e Políticas Públicas: Pontes e Interfaces no Campo da Saúde. São Paulo: Zagodoni; 2017., tendo como eixo as questões de gênero. Assim, a seleção do que seria discutido se baseou nos estudos de gênero. Os pontos escolhidos não esgotaram o que poderia ser levado em conta e que foi percebido na UBS, mas essa seleção permitiu olhar para alguns problemas fundamentais, que se relacionam tanto com demandas feitas por movimentos feministas - pertinentes a trabalho doméstico, solidão, maternidade - e que, pelo que se pôde perceber, ainda persistem tanto como questões a serem pensadas quanto com questões próprias da contemporaneidade, advindas das demandas trans - uma crítica ao tradicional binarismo. Assim, foram enunciados três pontos: divisão sexual do trabalho, maternidade e ausência paterna; centralidade das práticas de saúde da mulher na reprodução; e binarismo das políticas públicas de saúde.

Como pano de fundo dessa discussão, estão as questões acerca da tradicional dicotomia público/privado, homem/mulher. Essa dualidade é reflexo da tradição aristotélica que relaciona ao público o que é da ordem da liberdade e da política, enquanto ao privado associa aquilo que é da ordem da necessidade e do natural. Considerando ainda as teorias modernas e as transformações sociais, compreende-se a esfera pública centrada no indivíduo independente, responsável e racional, ao passo que a esfera privada se reduz à intimidade e à família1919 Lamoureux D. Público/privado. In: Hirata H, Laborie F, Le Doaré H, et al., organizadores. Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP; 2009. p. 208-212..

Tal divisão está relacionada com as construções que se tornaram hegemônicas acerca do que vem a ser homem e mulher, de modo a alimentar um discurso da diferença ‘natural’ entre os sexos, distribuindo os papéis sociais de forma sexuada1919 Lamoureux D. Público/privado. In: Hirata H, Laborie F, Le Doaré H, et al., organizadores. Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP; 2009. p. 208-212.. No domínio do privado, estão em evidência as mulheres, desenvolvendo funções ‘naturais’, como o sexo e a procriação; enquanto no domínio do público, estão os homens, produzindo ‘cultura’, trabalhando e ganhando dinheiro por esse trabalho2020 Martin E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond; 2006.. No domínio que remete à natureza e à biologia, está também a maternidade como destino natural das mulheres. A ginecologia, inclusive, legitima essa visão dualista2121 Rohden F. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001..

Não é nenhum acidente que fatos ‘naturais’ sobre as mulheres, na forma de alegações sobre a biologia, sejam usados com frequência para justificar uma estratificação social baseada no gênero2020 Martin E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond; 2006.(55).

À ideia de ‘natureza feminina’, estão associadas noções de maternidade, instinto maternal e divisão sexual do trabalho como atributos ‘naturais’ e ‘essenciais’2222 Vieira EM. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002..

Essa dualidade, no entanto, vem sendo contestada de modo contundente por feministas desde o século XX, ao se afirmar que a esfera privada é amplamente marcada pelo político, colocando em questão os limites público/privado, cultural/natural, produção/reprodução. As transformações sociais que se deram a partir do século XIX, como industrialização, urbanização crescente, desenvolvimento científico, assim como a propagação dos ideários feministas, geraram condições favoráveis para a implosão da divisão entre lar e mundo do trabalho2121 Rohden F. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001.. No entanto, essa divisão, que alimenta um discurso ‘natural’ da diferença entre as pessoas, persiste e se relaciona a uma série de questões que surgiram durante o desenvolvimento desta pesquisa.

As diferenças entre mulheres e homens são entendidas a partir de uma noção de ‘natural’, como se fossem originárias da biologia. Concepções naturalistas desse tipo levam a considerações de que determinadas vivências humanas são o resultado de relações de causa e efeito entre biologia e comportamento social. Para Moore1414 Moore H. Compreendendo sexo e gênero. In: Ingold T. Companion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge; 1997. p. 813-830., esses argumentos são profundamente enganadores. A autora entende que a divisão entre natureza e cultura oculta a noção de que propriedades biológicas, processos biológicos são, na verdade, produtos do próprio discurso biomédico da cultura ocidental.

Também relacionadas com os discursos naturalistas, estão as bases das teorias racistas modernas que continuam a gerar frutos discriminatórios. Naturalistas dos séculos XVIII-XIX hierarquizaram uma escala de valores entre as chamadas raças, utilizadas para classificação de grupos humanos, construindo uma relação intrínseca entre o biológico (cor da pele, traços morfológicos) e as qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais. Dessa forma, o racismo é uma tendência que considera que as características intelectuais e morais de um grupo são consequências diretas de suas características físicas ou biológicas2323 Munanga K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Cadernos PENESB. 2004; 5(1);15-23..

Esses referenciais permitiram a identificação dos três pontos considerados na pesquisa. A separação deles tem, simplesmente, um papel metodológico, pois, no fundo, são indissociáveis e precisam ser compreendidos nas articulações que se produzem entre eles.

Divisão sexual do trabalho, maternidade e ausência paterna

Ao refletir acerca das visitas à UBS, percebeu-se que uma naturalização da mulher cisgênero como cuidadora primordial dos filhos parece circular em meio às práticas de saúde. Foram observadas dificuldades na promoção de vias de acesso aos homens que são pais e uma consideração de determinados ideais de maternidade. Certas vezes, pareciam ser tomados como naturais os lugares de exaustão a que mulheres cisgênero estavam submetidas (pela responsabilização pelo trabalho doméstico e de cuidado com filhos), e a ausência dos homens cisgênero que são pais (tanto nas tarefas domésticas quanto no acompanhamento da saúde das crianças). É possível refletir como isso pode acabar pautando determinadas expressões como ideais e negligenciando outras.

A maternidade tem sido historicamente definida pela divisão sexual do trabalho justamente porque o que se desenvolve ocorre de tal modo que as mulheres se sobrecarregam e têm sua participação em outras esferas da vida restringidas, ao passo que os homens se veem liberados das responsabilidades e do trabalho envolvidos no cuidado das crianças. Ademais, sendo entendida a procriação como algo da ordem do natural e próprio às mulheres cisgênero, imagina-se que, ao fenômeno biológico e fisiológico da gravidez, deve corresponder determinada atitude maternal2424 Badinter E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1985..

Partindo da perspectiva interseccional, entende-se que, nas relações constituídas a partir da divisão sexual do trabalho, também estão imbricadas classe e raça. Mulheres brancas e negras, pobres e ricas vivenciam diferentemente essa exploração. Do mesmo modo, os homens não se beneficiam igualmente desse sistema de divisão sexual do trabalho. Davis2525 Davis A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo; 2016. mostra que a própria noção de ‘dona de casa’ é um aspecto da feminilidade branca de classes mais abastadas, uma vez que mulheres negras e mulheres da classe trabalhadora sempre estiveram trabalhando dentro e fora de casa.

Dedicando-se desigualmente em termos de tempo e energia para tais tarefas, as mulheres - sobretudo negras e trabalhadoras - têm maiores dificuldades no exercício do trabalho remunerado, assim como vivenciam uma importante redução de sua autonomia2626 Biroli F. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo; 2018., engendrando-se também aí uma fusão entre mulher cisgênero e mãe. Por outro lado, essas tensões entre maternidade e trabalho remunerado não são vivenciadas igualmente pelos homens que são pais porque se espera deles menos no cotidiano da criação dos filhos, ainda que a divisão convencional implique a atribuição do papel de provedor a eles2626 Biroli F. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo; 2018..

A vivência da maternidade, enquanto fenômeno social, tem marcas de desigualdades sociais, raciais e de gênero. O exercício da reprodução é mediado por relações de poder. Em razão disso, não é qualquer maternidade que é aceitável, havendo um modelo ideal de seu exercício e de cuidado com os filhos2727 Mattar LD, Diniz CSG. Hierarquias reprodutivas: maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interf. Comum. Saúde, Educ. 2012 [acesso em 2020 jul 26]; 16(40):107-19. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v16n40/aop0212
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Centralidade das práticas de saúde da mulher na reprodução

De modo geral, as observações realizadas na UBS fizeram emergir a percepção de uma maior atenção às mulheres na atenção básica, enquanto os homens são menos visibilizados, sobretudo adolescentes e jovens trabalhadores. O acompanhamento de saúde dessas mulheres era centrado em questões como menstruação e menopausa, exames de Papanicolau e mamografia. Além disso, a atenção à contracepção estava também sempre em evidência. Assim, quando se afirma que as ações na UBS privilegiam mulheres, estas são pessoas cisgênero e heterossexuais. Isso se aproxima de uma perspectiva que condiz com a matriz heterossexual pensada por Butler1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018.. Questões nesse sentido podem estar relacionadas com o investimento das práticas de saúde na dimensão biológica, sobretudo na reprodução.

Com base na ideia de ‘natureza feminina’, produz-se um discurso médico que tenta simultaneamente entender a fisiologia do corpo feminino e realizar intervenções que ampliam seu processo de medicalização2222 Vieira EM. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002.. Nesse sentido, gravidez, tensão pré-menstrual, menopausa acabam tanto entendidas como tratadas enquanto doenças.

Em relação à centralidade da chamada ‘saúde da mulher’ a aspectos ligados à reprodução, Emily Martin2020 Martin E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond; 2006. aponta para um engendramento de uma concepção de natureza teleológica do sistema dos órgãos femininos, de modo que este tenha o objetivo pressuposto de implantar um óvulo fertilizado. De acordo a autora, um dos efeitos desse modelo teleológico é que ele permite que todo um conjunto de órgãos internos tenha apenas um objetivo. Todavia, como Martin2020 Martin E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond; 2006. aponta, mulheres que desejam ter filhos, mulheres lésbicas e mulheres que não desejam ter filhos relacionam-se de maneiras completamente diferentes com as funções potenciais desses órgãos.

Binarismo das políticas públicas de saúde

A maioria das pessoas que frequentavam a UBS visitada era composta por mulheres cisgênero adultas. Os homens cis, por sua vez, compareciam esporadicamente e eram mais assíduos quando idosos - e suas consultas eram muito mais rápidas e objetivas que as das mulheres cis. Além disso, a presença de pessoas trans no serviço era baixa, ainda mais se comparada à das mulheres cis.

Refletiu-se, assim, sobre a atenção básica se mostrar como um espaço que prioriza a chamada ‘saúde da mulher’. As mulheres, por sua vez, respondiam a isso comparecendo com frequência ao serviço de saúde e acabavam se tornando alvo de mais ações que as faziam visitar mais o serviço, em uma constante equação que se retroalimenta.

Aqui podem ser feitas relações com alguns pontos, como: a perspectiva heterocisnormativa; a dificuldade de olhar para a mulher enquanto sujeito, deixando de considerar apenas a ‘mãe’; a naturalização da divisão sexual do trabalho e da sobrecarga em relação ao trabalho doméstico, assim como a dificuldade de encontrar lugar para demandas de outras pessoas, como adolescentes e homens jovens trabalhadores.

Entretanto, quando se afirma que a atenção básica parece priorizar a ‘saúde da mulher’, de que ‘mulher’ se fala? Mulheres negras e brancas têm vivências diferentes. Além disso, como o foco está na dimensão biológica e nas questões reprodutivas, a priorização recai sobre as mulheres cisgênero.

Esses pontos levaram à reflexão sobre o tradicional binarismo homem/mulher que, como já dito, é um sistema de oposição tomado como fixo e permanente, e utilizado para explicar desigualdades em termos naturais e imutáveis1616 Scott JW. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Edu. Realid. 1995; 20(2):71-99.. Esse sistema cria hierarquias entre grupos de pessoas que provocam, entre outras coisas, desigualdades de acesso a direitos.

Levantaram-se, então, a partir de considerações do trabalho de Butler1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018., algumas questões: como as políticas públicas de saúde poderiam dar conta de dizimar a dualidade homem/mulher, esse binarismo e, ao mesmo tempo, considerar as especificidades de demandas por ações no âmbito da atenção básica? Pois é importante questionar esse binarismo no campo da saúde, que invisibiliza determinadas pessoas e promove desigualdade de acesso, mas as pessoas, a depender do gênero, não demandam atendimentos diferentes? Para Butler1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018., no entanto, essa especificidade só é pensada justamente no interior desse binarismo masculino/feminino, e esse feminino, em específico, fica descontextualizado, separado da constituição de classe, raça, sexualidade, origem, geração.

Nesse sentido, um questionamento trazido por Nancy Fraser pode colaborar: “como as feministas podem lutar ao mesmo tempo para abolir a diferenciação de gênero e para valorizar a especificidade de gênero?”2828 Fraser N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de campo. 2006 [acesso em 2020 jul 26]; 14(15):1-382. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p231-239
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. Levando essa questão às políticas públicas e à atenção básica em saúde, indaga-se: como dar conta, ao mesmo tempo, de valorizar a especificidade de gênero e de abolir a diferenciação de gênero no âmbito das práticas de saúde? Como caminhar pela abolição da diferenciação de gênero, que leva prejuízos àquelas pessoas que se encontram no polo feminino dessa hierarquia construída, ao mesmo tempo que se almeja que as especificidades de gênero sejam valorizadas a ponto de serem consideradas, acolhidas e cuidadas no serviço de saúde? Quais seriam, então, as políticas necessárias para enfrentar as injustiças de gênero no âmbito da atenção básica? Se há aqui uma compreensão de que gênero não é sinônimo de ‘mulher’1616 Scott JW. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Edu. Realid. 1995; 20(2):71-99. e que não é a inscrição cultural sobre um corpo sexuado1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018., como as práticas da atenção básica podem dar conta das especificidades que os gêneros das pessoas as impõem, sem, no entanto, promover ações biologizantes que intensificam as diferenciações entre grupos de pessoas? Como considerar a dimensão social e política das questões de gênero, a partir do que chega à UBS enquanto demanda e do que o serviço oferece enquanto intervenção? Como promover ações que pensem não só gênero, mas raça e classe? Como considerar as diferenças sem, no entanto, essencializá-las?

O trabalho de Avtar Brah2929 Brah A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. 2006 [acesso em 2020 jul 26]; (26):329-376. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf
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auxiliou nesse ponto, pois considera que, a depender de como é postulada, a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Assim, para ela,

[...] é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política2929 Brah A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. 2006 [acesso em 2020 jul 26]; (26):329-376. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf
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Como é possível, então, pensar as políticas públicas da atenção básica de modo que estas não caiam nas problemáticas apresentadas? Quais transformações seriam necessárias? Brah2929 Brah A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. 2006 [acesso em 2020 jul 26]; (26):329-376. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf
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defende que não se compartimentalizem opressões, mas que se saiba formular estratégias para enfrentar todas elas na base de um entendimento de como se interconectam e articulam. Para tanto, deve-se interrogar o essencialismo em todas as suas variedades continuamente.

Considerações finais

As articulações entre visitas à UBS, diário de campo e discussões da pesquisa com produções feministas permitiram uma ampliação daquilo que foi experienciado no âmbito da prática. Por conta disso, foi possível debater a relação entre o que tem sido experienciado no campo da saúde e concepções que retomam construções dicotômicas em termos de público/privado, cultural/natural, assim como concepções naturalistas que apresentam explicações de causalidade biológica no que tange a gênero e raça.

Movimentos feministas buscaram questionar essa polarização que, como afirma Butler1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018., produz uma relação hierárquica, em que a cultura impõe significado à natureza e, nesse ensejo, esta última é concebida como ‘feminina’, necessitando se subordinar à cultura, concebida como ‘masculina’. Além disso, ao afirmar que ‘o pessoal é político’, feministas questionaram os limites entre público e privado, desconstruindo ideias a respeito dessa dicotomia. A perspectiva interseccional mostra ainda como gênero se interconecta com raça e classe.

Foram refletidas questões ligadas à divisão sexual do trabalho e à naturalização da mulher como responsável pelos cuidados domésticos e com os filhos, e discutidas concepções naturalistas reproduzidas em termos de discursos biomédicos. Aspectos referentes ao modo de cuidar das crianças, questões ligadas à gestação, ao parto, à amamentação, enfim, à maternidade de modo geral, encontram relação com tais discursos. A ausência paterna, desse modo, acaba sendo naturalizada e reforçada por tais concepções. Além disso, o discurso biomédico, ao se apoderar de determinados temas, os reduz à sua condição biológica, e isso acontece de tal modo que práticas de cuidado em saúde para as mulheres acabam se centrando na reprodução, em que estão também aspectos ligados às concepções dicotômicas e hierárquicas de natureza/cultura, uma vez que as mulheres se tornam mais medicalizadas do que as outras pessoas2222 Vieira EM. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002..

Em relação à circulação mais frequente de mulheres cisgênero na unidade de saúde e às questões relacionadas com o acesso de homens cis (sobretudo jovens e trabalhadores) e pessoas trans, levantou-se uma discussão a respeito do binarismo das políticas de saúde. A hipótese de um sistema binário dos gêneros se refere a uma “crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito”1515 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018.(26).

É possível, então, refletir sobre como as unidades de saúde da atenção básica poderiam se configurar em espaços de contestação da idealização da maternidade e da naturalização da divisão sexual do trabalho, que passa por discriminações baseadas em explicações essencialistas de raça e gênero, além de promoverem a participação dos pais na criação dos filhos.

Ademais, pode-se pensar sobre a pressuposição de sujeitos universais nas práticas e políticas públicas de saúde no âmbito do SUS. Se a especificidade faz diferença no contexto dessas práticas - considerando demandas que chegam ao setor da saúde -, talvez esta não possa ser generalizante a ponto de desconsiderar contextos sociais, econômicos, políticos nos quais as pessoas estão alocadas. As dimensões de gênero, raça e classe, estando interconectadas, se forem contempladas nas práticas da atenção básica - e não compartimentalizadas -, podem contribuir para que não se reproduza sexismo, racismo e classismo nos serviços de saúde.

O reconhecimento das questões apresentadas leva a uma discussão sobre a intersetorialidade, uma estratégia que busca superar a fragmentação das políticas, articulando vários setores da sociedade, inclusive movimentos sociais, no sentido da garantia do direito à saúde77 Paim JS. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. Isso é importante de ser lembrado já que muitas das questões que emergiram durante o desenvolvimento da pesquisa foram demandadas justamente pela militância política.

Considerando uma análise que vai em três direções (psicossocial, sociodinâmica e institucional), conforme a psicologia social postulada por Pichon-Rivière22 Pichon-Rivière E. O Processo Grupal. São Paulo: Martins Fontes; 2005., a produção das autoras feministas traz contribuições importantes à dimensão institucional, sobretudo aquelas que questionam concepções naturalistas, biologizantes. Tais aportes teóricos são relevantes uma vez que os feminismos permitem uma análise crítica com o objetivo de desconstruir sistemas de oposição em que homens e mulheres estão em posições hierárquicas distintas, com as mulheres sendo inferiorizadas a partir de explicações essencialistas.

Os feminismos, assim, promovem a possibilidade de questionar aquilo que já há muito vem se naturalizando, inclusive no campo da saúde. A perspectiva interseccional traz ainda um olhar de aprofundamento dessas questões, de modo a não se priorizar nenhuma opressão, entendendo que gênero, raça e classe têm imbricações e que, por isso, a estratégia de luta não deve desprivilegiar nenhuma dessas dimensões.

Isso permite uma análise crítica das práticas de saúde na atenção básica do SUS, examinando a naturalização e reprodução de sexismo, racismo e classismo em meio a elas. Acredita-se que tal estudo possa fomentar discussões futuras no campo da saúde que caminhem no sentido de uma produção de saberes e práticas comprometidos com a contestação de tais desigualdades.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2020
  • Aceito
    28 Maio 2021
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