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Linha de cuidado como dispositivo para a integralidade da atenção a usuários acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço

Line of care as a device for completeness of attention for users affected by neoplastic injuries on head and neck

Resumos

Este artigo é resultante de pesquisa qualitativa, tendo como sujeitos de investigação usuários acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço. Objetivou-se, por meio de entrevista semiestruturada, investigar e caracterizar o fluxo de cuidado a esses sujeitos na perspectiva da linha de cuidado, nos diferentes níveis de gestão e atenção. Os resultados revelaram fragmentação do cuidado, apontando a necessidade de reestruturação dos modelos assistenciais vigentes, por meio da garantia de um fluxo de cuidado que opere de modo interligado. Concluiu-se que a atenção integral é essencial para que possam ser construídos sistemas de saúde com a perspectiva de linha de cuidado.

Sistemas de Saúde; Assistência integral à saúde; Neoplasias


This paper results from a qualitative study having as research subjects the users affected by head and neck neoplastic injuries. Through a semi-structured interview, the purpose was to investigate and characterize the flow of care to these subjects from a perspective of health care procedures at different levels of attention and management. Results show a fragmented care, pointing to the need of restructuring the existing care models by ensuring a flow of care that operates in an interconnected way. It was concluded that integrated care is essential to build health systems networks under the perspective of health care procedures.

Health systems; Comprehensive health care; Neoplasms


Introdução

Os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) de universalidade do acesso, integralidade da assistência, descentralização político-administrativa e capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência constituem as bases para o funcionamento e organização do sistema público de saúde em nosso País (BRASIL, 1990).

Entretanto, apesar de inúmeros avanços estruturais, ainda se percebe um predomínio de modelos pautados na desarticulação das ações e serviços. A ausência de mecanismos eficazes de regulação e ordenamento do fluxo de usuários colabora para problemas relacionados à baixa eficácia da atenção à saúde.

Esse cenário se torna extremamente complexo nos agravos neoplásicos de cabeça e pescoço devido à sua expressiva incidência e mortalidade no Brasil. A fragmentação do cuidado em relação aos sujeitos acometidos por tais agravos foi percebida por residentes multiprofissionais de um hospital universitário localizado na região centro-oeste do estado do Rio Grande do Sul durante o decorrer de suas atividades práticas. Alguns questionamentos surgiram, dentre os quais se destaca: como se configura o fluxo de sujeitos acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço no sistema de saúde numa perspectiva de linha de cuidado? A necessidade em buscar subsídios para melhor compreensão de tal questão motivou a realização desta pesquisa.

Partindo da premissa de linha do cuidado como produção da saúde de forma sistêmica, a partir de redes macro e microinstitucionais, em processos dinâmicos, centrada nas necessidades do usuário desde sua entrada na rede (CECÍLIO; MERHY, 2003), esta pesquisa teve como objetivo investigar e caracterizar o fluxo de cuidado a usuários acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço no sistema de saúde numa perspectiva de linha de cuidado, a partir da identificação de suas trajetórias nos diferentes níveis de gestão e atenção do sistema.

É preciso compreender que o sujeito acometido por um agravo neoplásico de cabeça e pescoço necessita de cuidado amplo - interdisciplinar, intersetorial e interinstitucional - com qualificação na atenção durante todo seu percurso no sistema de saúde. Conhecer e compreender os distintos caminhos e fluxos percorridos no sistema de saúde, sob a perspectiva dos próprios usuários com agravos neoplásicos de cabeça e pescoço, é fundamental para a melhoria da qualidade da atenção prestada, na perspectiva da integralidade do cuidado. Possibilita, ainda, reflexão e reavaliação dos atuais modelos de organização do sistema, sinalizando para questões estratégicas e operacionais que venham a influenciar o nível de qualidade dos serviços prestados a esses sujeitos.

Materiais e método

Trata-se de uma pesquisa descritiva com abordagem qualitativa, por meio da qual são consideradas para análise as atitudes, crenças, comportamentos e ações do indivíduo com o intuito de compreendê-lo em suas relações com o mundo (MINAYO ET AL., 2005). O estudo foi realizado no ambulatório de especialidade de cabeça e pescoço de um hospital universitário, referência em alta complexidade para a região centro-oeste do Rio Grande do Sul. Participaram da pesquisa dezessete sujeitos acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço em acompanhamento no referido ambulatório durante o período da pesquisa.

Como instrumento para a coleta de dados, utilizou-se entrevista semiestruturada, norteada por um roteiro com questões relativas aos objetivos da pesquisa, combinando perguntas abertas e permitindo ao entrevistado falar sobre o tema em questão sem se restringir ao questionamento (MINAYO ET AL., 2005). As questões versaram sobre a trajetória percorrida pelo usuário no sistema de saúde, bem como suas percepções e possíveis dificuldades encontradas durante esse percurso. O roteiro para a entrevista foi o seguinte:

  • Dados de identificação: gênero, idade, profissão, escolaridade, renda familiar, município de domicílio, unidade de saúde de referência;

  • Diagnóstico de neoplasia de cabeça e pescoço: data aproximada do diagnóstico médico, estabelecimento em que recebeu a confirmação do diagnóstico, serviços de saúde procurados e período transcorrido até a confirmação do diagnóstico;

  • Acesso e caminho percorrido no sistema de saúde: qual o primeiro local que procurou atendimento, quais outros serviços utilizou para continuidade do tratamento, facilidades e dificuldades vivenciadas desde o primeiro contato com os serviços de saúde até o momento.

O tempo médio de cada entrevista foi de quarenta minutos, sendo realizada em local apropriado, sem manifestação da opinião ou idéias do entrevistador durante a entrevista. Com isso, preservou-se o princípio de uma investigação qualitativa em que o fenômeno investigado é analisado sob a visão do entrevistado, isto é, segundo seus valores, compreensão e vivência (MINAYO, 2004). As entrevistas foram gravadas em gravador digital com o consentimento prévio dos entrevistados. Foram transcritas e identificadas através da letra 'E' seguida pelo número, a fim de garantir o anonimato do participante, e após o que foram submetidas à análise de seus conteúdos.

A análise dos dados deu-se por meio da técnica de análise de conteúdo de cunho temático, cumprindo as seguintes etapas: (a) pré-análise com leitura compreensiva dos textos transcritos, identificando especificidades e visão global dos depoimentos e retomando as hipóteses e objetivos iniciais da pesquisa; (b) exploração do material visando a alcançar o núcleo de compreensão do texto por meio da elaboração de categorias de análise e agrupando trechos de depoimentos significativos; (c) tratamento dos resultados obtidos e interpretação dos dados (MINAYO, 2004), o que culminou com a definição de unidades de significado, orientadoras da discussão dos dados.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição de ensino superior a qual o referido hospital universitário está vinculado e segue os princípios preconizados pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que normatiza a ética nas pesquisas com seres humanos. Todos os indivíduos participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) após serem informados sobre seus objetivos e procedimentos.

Resultados e discussões

A análise dos dados evidenciou aspectos relevantes para a compreensão da problemática que envolve o fluxo de usuários acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço no contexto estudado, expressando aspectos significativos do modo de orientação do acesso e fluxo desses indivíduos no sistema de saúde, o que permite perceber a fragilidade da integralização do cuidado. Esta constatação assume grande significado frente ao perfil dos usuários entrevistados, em sua maioria, homens idosos, com pouca escolaridade e renda familiar baixa.

Constatou-se que os indivíduos deste estudo desenharam as mais variadas trajetórias terapêuticas na rede de saúde, em uma busca constante por serviços de qualidade e resolutivos para seus problemas. As trajetórias de acesso e os percursos no sistema de saúde dos sujeitos entrevistados estão apresentados na figura 1.

Figura 1.
Representação da trajetória/fluxo realizados pelos diferentes entrevistados

A presença de diversas portas de entrada para acesso ao sistema de saúde, bem como de distintos fluxos percorridos pelos usuários, observados por meio deste fluxograma, é corroborada pelos depoimentos:

Fala com um, fala com outro (...) fui consultar com o doutor pelo SUS, que disse que eu deveria ir pro especialista. Então o especialista disse que era um carocinho que eu tinha do lado direito da garganta e me encaminhou aqui pro hospital universitário pra fazer a cirurgia. (E15).

Consultei três vezes no postinho com o médico de lá (...) mas como estava muito demorado, consultei particular com o médico. Aí ele me baixou no hospital da minha cidade e depois me encaminhou pra cá, no hospital universitário.(E03).

A maioria dos entrevistados obteve a confirmação do diagnóstico de neoplasia de cabeça e pescoço no hospital de alta complexidade, sendo que o período entre a realização da primeira consulta e a confirmação do diagnóstico variou de menos de um mês até aproximadamente um ano:

Em agosto de 2010, percebi a voz rouca, dificuldade para engolir e um pouco de dor. Procurei o médico do posto de saúde, que não achou nada. Dois meses depois voltei lá e o médico pediu uma biópsia. Então ele me encaminhou aqui pro hospital universitário e, em fevereiro de 2011, foi a primeira consulta, quando a doutora disse que eu tinha câncer (E05).

Outro aspecto que despertou a atenção em grande parte das entrevistas foi o atravessamento do setor privado em algum momento do tratamento:

Pelo SUS demorava demais, então fomos logo marcar particular(E02).

De vez em quando, a gente paga particular para não esperar pelo SUS, eu não tenho convênio (E11).

O doutor lá deu uma agilizada, foi tudo pelo SUS, só aquela consulta que ninguém acertava, aí a gente fez no consultório particular (E14).

Constatou-se também que todos os usuários entrevistados que afirmaram ter feito uso de serviços particulares de saúde em algum momento do tratamento retornaram ao sistema público de saúde para a realização de procedimentos de alta complexidade, que apresentam elevado custo financeiro:

Meu filho perguntou pro médico quanto que sairia para fazer particular, porque pelo SUS é muito demorado. Aí o médico falou e nem falamos mais nisso, porque ia custar muito caro (E07).

Em relação às facilidades e dificuldades vivenciadas desde o primeiro contato com os serviços de saúde para investigação da neoplasia até o momento da entrevista, a questão mais presente foi o tempo de espera para a realização do tratamento após a confirmação do diagnóstico:

Demorou uns quantos meses pra fazer a cirurgia. A papelada (exames) já tinha sido encaminhada, mas nunca chamavam, nunca dava, nunca dava (E13).

A gente já veio pra cá não sei quantas vezes, uma pra fazer exames, a outra pra fazer biópsia, nunca as coisas são no mesmo dia. Aí o tempo vai passando e eu estou ainda escarrando sangue (E12).

Esperar a gente tem que esperar. Eu sei que tudo tem que ter calma(E01).

Também, através dos depoimentos, foi possível perceber que o fluxo de atenção a esses usuários foi interrompido no momento do acesso ao hospital de alta complexidade, inexistindo o retorno às Unidades Básicas de Saúde (UBS) e/ou Estratégias de Saúde da Família (ESF) de origem para continuidade do tratamento, estabelecendo vínculo com a instituição hospitalar e revelando um serviço ineficaz de referência e contrarreferência:

Não voltei mais pra unidade básica, só para o transporte. Porque agora é só com os médicos daqui, daí lá é só o transporte (E08).

Acho que eles (unidade básica) não precisam saber que me trato aqui no hospital universitário (E17).

As neoplasias de cabeça e pescoço, assim como as demais condições crônicas, demandam a ação integrada de diferentes profissionais e serviços em todos os níveis de complexidade do sistema de saúde, numa rede efetiva de serviços, com garantia de continuidade dos cuidados (SERRA; RODRIGUES, 2010).

O perfil dos sujeitos da pesquisa corresponde aos dados disponíveis na literatura (DOBROSSY, 2005; FAVERO ET AL., 2007), que indicam que a incidência do câncer de cabeça e pescoço aumenta com a idade, principalmente a partir da sexta década de vida. A maioria das pesquisas reporta associação entre piores condições socioeconômicas e neoplasia de cabeça e pescoço (BOING; ANTUNES, 2011). As diversas situações elucidadas pelos entrevistados permitiram perceber que o fluxo desestruturado no sistema de saúde torna-se extremamente problemático a esses usuários, o que exige melhor compreensão de suas trajetórias na rede de saúde e reconhecimento de possíveis empecilhos e dificuldades.

Apesar de as constantes descobertas científicas possibilitarem melhores perspectivas no curso terapêutico dos agravos neoplásicos de cabeça e pescoço, ainda é complexo o modo de acesso a esses benefícios. A população, muitas vezes, não consegue ter acesso à rede de saúde e, quando o tem, com certa freqüência, apresenta serviços com pouca resolutividade (FIREMAN, 2007). Essas dificuldades foram refletidas neste estudo, ao constatar que os indivíduos realizaram uma verdadeira 'peregrinação' pela rede de saúde, construindo as mais variadas trajetórias terapêuticas na busca de serviços de qualidade e resolutivos para seu problema.

A análise do fluxograma apresentado permite inferir que não houve fluxo ordenado para acesso ao sistema de saúde, no contexto analisado, destacando-se a multiplicidade de portas de entradas. A Atenção Básica, aqui representada pelas Unidades Básicas de Saúde e/ou Estratégias de Saúde da Família, não efetivou plenamente o seu papel como principal porta de entrada do sistema, uma vez que muitos usuários o acessaram por meio de serviços particulares ou, até mesmo, de instituições hospitalares.

Assim, percebe-se que para garantir acesso aos serviços de saúde, de forma equânime e de acordo com a necessidade do usuário, não são suficientes apenas os aspectos técnicos dos protocolos assistenciais. Embora sejam necessários, é preciso também reorientar as relações entre os envolvidos no trabalho em saúde nos diversos pontos da rede de atenção (BADUY, 2011). Para que isso ocorra, torna-se necessário pensar novos fluxos e circuitos na rede de saúde, desenhados a partir dos movimentos reais dos usuários, dos seus desejos e necessidades e da incorporação de novas tecnologias de trabalho e gestão que consigam viabilizar a construção de um sistema de saúde mais humanizado e comprometido com a vida das pessoas (CECÍLIO, 1997).

Foi possível perceber, através das entrevistas, que não se exploraram todas as possibilidades diagnósticas e terapêuticas na porta de entrada do sistema de saúde, bem como dos demais níveis de atenção, já que grande parte dos diagnósticos foi confirmada após o acesso ao hospital de alta complexidade. Muitos encaminhamentos feitos por médicos da rede básica a especialistas talvez fossem desnecessários se os recursos assistenciais disponíveis na unidade básica houvessem sido esgotados (FRANCO; MAGALHÃES JÚNIOR, 2004). Contudo, as entrevistas revelaram o fluxo desordenado de encaminhamentos entre profissionais, percebendo-se, em diversas circunstâncias, o usuário perdido no sistema, sem um acompanhamento da sua condição de saúde de maneira integral.

A principal dificuldade relatada pelos entrevistados - o grande período de espera entre o momento do diagnóstico e o início do tratamento - reflete um modelo de estruturação piramidal organizado por níveis hierárquicos de serviços, pautado na concepção restrita de saúde predominantemente hospitalocêntrica, setorializada e fragmentada, na qual os distintos locais de atenção trabalham isoladamente e não oferecem atenção contínua à população (MENDES, 2002).

Somado a isso, um aspecto denunciado pela maioria dos depoimentos diz respeito ao atravessamento do setor privado, não como complemento ao SUS, mas contrariando os princípios da Política Nacional de Regulação do SUS, consolidada por meio da Portaria 1.559/GM/2008 (BRASIL, 2008a), que visa, dentre outros: garantir o acesso aos serviços de saúde de forma adequada; garantir os princípios da equidade e da integralidade; elaborar, disseminar e implantar protocolos de regulação; diagnosticar, adequar e orientar os fluxos da assistência; construir e viabilizar as grades de referência e contrarreferência.

As falas denotam que os modelos vigentes de estruturação do sistema de saúde analisado são, em verdade, um campo atravessado por várias lógicas de funcionamento, por diversos circuitos de interesses, destacando-se os dos serviços privados, impactando em uma naturalização de fluxos de atenção e gestão que ferem os princípios do SUS. São modelos de fluxos construídos a partir de múltiplos protagonismos, interesses e sentidos que refletem o modelo de sistema desarticulado que induz à ausência de responsabilização diante de casos concretos, acarretando custos crescentes e atraso no acesso a tratamentos essenciais para um melhor prognóstico da doença (CAMPOS; AMARAL, 2007; CECÍLIO; MERHY, 2003).

Essa constatação leva a alguns questionamentos: será que os usuários que não tiveram possibilidade de contato com serviços particulares conseguiram acessar o Sistema Único de Saúde? Afinal, quem realmente tem acesso aos serviços públicos de saúde em nosso país? O texto da Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) afirma ser dever do Estado garantir o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde. Porém, a política de saúde, concretizada por meio do SUS como política pública de caráter universal, é frequentemente questionada no sentido de sua real capacidade de atingir a parcela da população mais necessitada (RIBEIRO ET AL., 2006).

A reprodução desse modelo excludente e fragmentado é corroborada pelo fato de os usuários não retornarem às suas UBS e/ou ESF de referência para dar continuidade ao tratamento, estabelecendo vínculo exclusivamente com a instituição hospitalar de alta complexidade, percebendo-se a fragilidade do sistema de saúde de trabalhar em rede articulada e integrada. Os sujeitos desta pesquisa apontaram um sistema desarticulado e fragmentado, insuficiente para suprir suas necessidades de saúde, voltado predominantemente aos aspectos curativos e individuais, sendo incapaz de operar a complexidade do cuidado.

Conforme Cecílio (2001), é essencial o cuidado integral a todos os usuários, em que cada profissional e cada serviço de saúde execute suas ações, considerando a totalidade do sujeito numa perspectiva de ações integradas. O conceito de integralidade, segundo Hartz e Contandriopoulos (2004), pressupõe estreita relação com a integração de serviços por meio de redes assistenciais e de interdependência dos atores e organizações, destacando-se que nenhum deles dispõe de todos os recursos e competências necessários para a solução dos problemas de saúde da população. Não basta formular sistemas de informação, fluxogramas, protocolos e normas. É necessário efetuá-los cotidianamente, na interação entre os diversos serviços, com aqueles que ali estão presentes, sejam eles gestores, trabalhadores ou usuários (BADUY ET AL., 2011).

O cuidado em saúde, segundo Cecílio e Merhy (2003), deve ser entendido como somatório de um grande número de pequenos cuidados parciais, que vão se complementando, de maneira mais ou menos consciente e negociada entre os vários atores envolvidos, incluindo o usuário. Dessa maneira, configura-se uma complexa trama de atos, procedimentos, fluxos, rotinas, saberes, num processo dialético de complementação, sendo a integralidade da atenção resultante da forma como se articulam as práticas dos trabalhadores e serviços.

Para Feuerwerker e Cecílio (2007), a integralidade só pode ser obtida em rede, atravessando os diversos serviços e tecnologias de saúde, por meio da linha de cuidado, implicando conexões e comunicações fundamentais para o bom desempenho do SUS (CECÍLIO; MERHY, 2003). Linhas de cuidado são estratégias que podem ser definidas como políticas de saúde matriciais que integram ações de proteção, promoção, vigilância, prevenção e assistência, voltadas para as especificidades de grupos ou às necessidades individuais (BRASIL, 2008b).

Cecílio e Merhy (2003) defendem que a linha de cuidado deve atravessar inúmeros serviços de saúde, via um grande pacto realizado entre todos os atores envolvidos, sendo o usuário o elemento estruturante de todo processo de produção da saúde. A adoção dessa estratégia objetiva evitar a fragmentação dos serviços de saúde no acompanhamento de usuários, por meio de fluxos organizados, garantindo à população integralidade, acesso ao sistema e às ações de saúde segundo suas necessidades, de modo que o usuário seja realmente o ponto central do SUS, em lugar dos serviços e procedimentos.

Entretanto, as declarações dos usuários entrevistados denotam fragilidades quando o sistema de saúde não funciona em rede integrada, percebendo-se muitos entraves e interrupções em suas trajetórias no sistema. A situação encontrada, em síntese, contribui para uma menor resolutividade das ações em saúde, com possível agravamento das condições de saúde desses indivíduos, piorando sua qualidade de vida, além de sobrecarregar os serviços de maior complexidade do SUS. Mais do que um sistema, diversos autores (CECÍLIO; MERHY, 2003; CECÍLIO, 2001, CAMPOS; DOMITTI, 2007) defendem que se deve pensar em uma rede móvel, assimétrica e incompleta de serviços que operem distintas tecnologias de saúde e que sejam acessados de forma desigual pelas diferentes pessoas ou agrupamentos que deles necessitam.

Frente ao exposto, a organização de linhas de cuidado deve se pautar na produção de um pacto na rede assistencial, integrando todos os recursos disponíveis por meio de fluxos capazes de garantir o acesso seguro às tecnologias necessárias à assistência. A linha de cuidado é fruto desse pacto realizado entre todos os atores que controlam os serviços e recursos assistenciais (FRANCO; MAGALHÃES JÚNIOR, 2004).

A integralidade da atenção por meio da linha de cuidado é essencial para gerar resolutividade do cuidado em saúde aos usuários acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço. Esses sujeitos necessitam de cuidado amplo, cujas as práticas não se limitem apenas a diagnóstico e tratamento, sendo necessária a abrangência das suas diversas necessidades, em sua singularidade como sujeito e cidadão de direitos.

São imprescindíveis à construção de caminhos para a integralidade do cuidado a articulação de ações, serviços e políticas públicas de saúde e a criação de estratégicas inovadoras nos campos da gestão e atenção em saúde, repercutindo positivamente na saúde e qualidade de vida dos indivíduos. É tarefa e desafio de todos os envolvidos no campo da produção em saúde refletir e enfrentar essa temática de modo crítico, na busca de um agir comprometido com a mudança dos modelos de gestão e atenção em saúde que (re) conduza os processos de produção de práticas ao eixo orientador, que são os princípios e diretrizes do SUS (MANFROI, 2007).

Considerações finais

Por meio dos resultados apresentados, foi possível obter um panorama sobre o fluxo de usuários acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço nos diversos níveis de atenção e gestão do sistema de saúde analisado, e a maneira como este responde às demandas. A pesquisa revelou a existência de deficiências no que diz respeito às condições operacionais necessárias à integração dos diversos níveis de complexidade do sistema, com consequente desarticulação e fragmentação no cuidado a esses indivíduos.

Também foi possível evidenciar a influência que os modos de acesso e modelos de estruturação dos serviços têm sobre o processo de cuidado, evidenciando a necessidade de reorientação por meio da inserção de novas práticas de gestão e atenção em saúde direcionadas à integralidade da atenção nos vários níveis do sistema. Torna-se necessária a criação e implantação de fluxo ordenado, por meio da linha de cuidado, de acesso e atendimento aos sujeitos acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço nos serviços do sistema local de saúde, a fim de tornar a atenção mais resolutiva.

Ressalta-se que este estudo foi realizado apenas em um serviço de saúde, apresentando população referenciada de uma determinada região. Destaca-se, também, como fator limitante, o baixo número de entrevistas realizadas frente ao grande número de usuários acometidos por agravos neoplásicos de cabeça e pescoço. Também deve ser considerado o viés subjetivo das entrevistas, uma vez que a fragilidade provocada pela doença resulta em lembranças de sentimentos evocados com maior ou menor facilidade por diferentes indivíduos, através da memória das experiências vivenciadas.

Assim, este estudo mostrou ser um instrumento capaz de contribuir para a discussão sobre o reordenamento do sistema de saúde local, que abrange usuários acometidos pelos referidos agravos, na tentativa de reconhecê-los em suas especificidades e como cidadãos portadores de direito à atenção qualificada e integral, por meio de processos contínuos de construção, desconstrução e reconstrução dos modos de fazer e pensar a saúde.

Referências

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  • Suporte financeiro: não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    Ago 2012
  • Aceito
    Dez 2013
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