Open-access “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo

“Gender ideology”: notes for a genealogy of a contemporary moral panic

Resumo

Nos últimos anos, em diversos contextos nacionais, emergiram debates sobre o que grupos - religiosos e laicos - denominam de “ideologia de gênero”. Este artigo busca retraçar a genealogia desse termo para compreender a gramática política em que se insere. Com este objetivo, retoma textos que o definem já há 20 anos, mapeia onde ele emerge na América Latina e quando passa a ser acionado contra avanços nos direitos sexuais e reprodutivos. Demandas de direitos humanos têm sido interpretadas por empreendedores morais como ameaças à sociedade, engendrando, ao mesmo tempo, um pânico moral e um campo discursivo de ação.

Palavras-chave: ideologia de gênero; direitos sexuais e reprodutivos; política latino-americana; religião; empreendedores morais

Abstract

During the last years, in different national contexts, emerged debates about what religious and non-religious groups call “gender ideology”. This paper tries to retrace this term’s genealogy to comprehend the political grammar in which it works. With this objective, the paper investigates texts that defined “gender ideology” around twenty years ago, maps where it emerges in Latin America and when it starts to be used against sexual and reproductive rights. Human rights’ demands have been understood by moral enterpreneurs as threats to status quo creating, at the same time, a moral panic and a discoursive field of action.

Keywords:  gender ideology; sexual and reproductive rights; Latin American politics; religion; moral enterpreneurs

A mal chamada […] “perspectiva” […] de gênero, é, na verdade, uma ideologia. Provavelmente a ideologia mais radical da história, posto que - ao impor-se -, destruiria o ser humano em seu núcleo mais íntimo e, simultaneamente, acabaria com a sociedade (Scala, 2010: 7)1.

Com esse parágrafo, Jorge Scala começa seu livro La ideología del género. O el género como herramienta de poder. Segundo o autor, a “ideologia de gênero” é um instrumento político-discursivo de alienação com dimensões globais que busca estabelecer um modelo totalitário com a finalidade de “impor uma nova antropologia” a provocar a alteração das pautas morais e desembocar na destruição da sociedade. O livro, que tem por finalidade “despertar consciências adormecidas, e ajudá-las a trabalhar por um mundo melhor” (Scala, 2010: 8), provocou grande impacto, não apenas na Argentina, onde foi publicado pela primeira vez, mas também em outros países (tendo sido também traduzido para o português).

O combate à chamada “ideologia de gênero” cada vez mais ganha terreno em escala global, particularmente na Europa (Kóvatz & Poim, 2015) e na América Latina, associando-se a diversas discussões que giram em torno da saúde reprodutiva das mulheres, da educação sexual ou do reconhecimento de identidades não heterossexuais, entre outras questões. Se, historicamente, os setores religiosos se opuseram ao avanço dos direitos sexuais e reprodutivos, o combate à “ideologia de gênero” é mais recente e, em diversos países europeus, se começa a alardear seus supostos perigos depois de 2008 (Kóvatz & Poim, 2015).

Na América Latina, o livro de Scala teve influência importante, sendo o combate contra o que denomina como “ideologia” o que justificou manifestações que vão desde movimentos a favor da família tradicional até manifestações contra políticas de governos de esquerda. Iniciada na Argentina e no Brasil, a disseminação da gramática político-moral da noção de ideologia de gênero já alcançou, em 2016, países como o México e a Colômbia, contribuindo, no caso do primeiro para a luta contra a aprovação do “matrimonio sin discriminación” e, no último, para a vitória do não à paz no plebiscito que visava referendar o acordo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc)2.

As origens das ideias que sustentam a existência de uma “ideologia de gênero” podem encontrar-se no seio da Igreja Católica, mais especificamente nos textos do então cardeal Joseph Aloisius Ratzinger, que, em 1997, escrevia:

Atualmente se considera a mulher como um ser oprimido; assim que a liberação da mulher serve de centro nuclear para qualquer atividade de liberação tanto política como antropológica com o objetivo de liberar o ser humano de sua biologia. Se distingue então o fenômeno biológico da sexualidade de suas formas históricas, às quais se denomina “gender”, mas a pretendida revolução contra as formas históricas da sexualidade culmina em uma revolução contra os pressupostos biológicos. Já não se admite que a “natureza” tenha algo a dizer, é melhor que o homem possa moldar-se ao seu gosto, tem que se libertar de qualquer pressuposto de seu ser: o ser humano tem que fazer a si mesmo segundo o que queira, apenas desse modo será “livre” e liberado. Tudo isso, no fundo, dissimula uma insurreição do homem contra os limites que leva consigo como ser biológico. Se opõe, em seu extremo último, a ser criatura. O ser humano tem que ser seu próprio criador, versão moderna de aquele “serei como deuses”: tem que ser como Deus (Ratzinger, 1997: 142).

Este parágrafo do atual papa emérito Bento XVI se constituiria uma peça-chave para começar a desenhar uma contraofensiva político-discursiva poderosa contra o feminismo e sua proposta de reconhecimento e avanço em matéria de direitos sexuais e reprodutivos.

O texto de Ratzinger é um ataque às ideias feministas que se gestavam há décadas, mas poderia se dizer que é uma reação mais direta à Conferência Mundial de Beijing sobre a Mulher, organizada pelas Nações Unidas, em 1995. Esta quarta conferência caracterizou-se por substituir o termo “mulher” (que havia sido o principal sujeito nas primeiras três conferências)3 pelo conceito de gênero, estabelecendo que

[...] todas as políticas e instituições econômicas [dos governos e da comunidade internacional], assim como aqueles encarregados de conceder recursos devem adotar uma perspectiva de gênero (Declaração e Plataforma de Ação de Beijing, 1995: 265).

Dessa forma, nessa conferência se reconheceu que a desigualdade da mulher é um problema estrutural e só pode ser abordada de uma perspectiva integral de gênero.

Essas declarações, que tinham um alcance global, colocaram a categoria “gênero”4 no centro dos debates que giravam em torno do papel da mulher, provocando uma importante reação por parte de diversos setores religiosos conservadores e, em especial, da própria Igreja Católica. Assim, por causa dessa conferência, o papa João Paulo II, em sua “Carta às mulheres”, se referiu à necessidade de defender a identidade feminina desde uma perspectiva essencialista e, alguns anos depois, na “Carta aos bispos”, de 31 de maio de 2004, manifestou-se contra o discurso feminista, reiterando que a maternidade era um elemento-chave da identidade feminina (ponto 13).

A partir de então, a contraofensiva católica (e posteriormente de todo o conservadorismo religioso) seria o combate a essa “perspectiva de gênero”. Para isso, começou a atacar, afirmando que na verdade não era mais do que uma ferramenta ideológica de dominação e, assim, a desarticular, desconfigurar e reprovar as ideias e mensagens feministas. Esses setores começaram a definir a “ideologia de gênero” como “um sistema de pensamento fechado” a defender que as diferenças entre o homem e a mulher não correspondem a uma natureza fixa, senão que são construções culturais e convencionais, feitas segundo os papéis e estereótipos que cada sociedade designa aos sexos (Scala, 2010). E como ideologia, as equipara aos diversos totalitarismos, incluindo o nazismo e o comunismo.

A noção de “ideologia de gênero” aparece mesmo nas discussões da Igreja Católica latino-americana e na V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (Celam) de 2007, conhecido como “Documento de Aparecida”. Na seção vinculada à realidade que atravessa a região, é clara a preocupação em relação às demandas de cidadania por homossexuais quando afirma:

40. Entre os pressupostos que enfraquecem e menosprezam a vida familiar, encontramos a ideologia de gênero, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza humana. Isso tem provocado modificações legais que ferem gravemente a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família (Celam, 2007: 30).

Nesse documento, a Igreja Católica latino-americana afirma que a defesa do conceito tradicional de família deve ser um eixo prioritário de luta, já que se encontra ameaçada pelo

secularismo e pelo relativismo ético, pelos diversos fluxos migratórios internos e externos, pela pobreza, pela instabilidade social e por legislações civis contrárias ao matrimônio que, ao favorecer os anticoncepcionais e o aborto, ameaçam o futuro dos povos (Celam, 2007: 279).

O documento de Aparecida estabelece uma agenda comum contra o que denomina “ideologia de gênero”, algo que foi exposto primeiramente pelo cardeal Ratzinger e logo retomado em outros documentos oficiais da Igreja, como foi o Conselho Pontifício para a Família (“Família, matrimônio e uniões de fato”, 21 de novembro de 2000) e, posteriormente, na Congregação para a Doutrina da Fé, “Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo” (maio de 2004). Em suma, com o documento de Aparecida, a batalha contra a “ideologia de gênero” era declarada em toda a América Latina.

A luta contra a “ideologia de gênero” é uma forma de resistência contra os recentes avanços que vêm se dando na América Latina em matéria de direitos sexuais e reprodutivos. Jorge Scala (2010: 30) considera que tais direitos não são mais do que o resultado da manipulação da linguagem, em que os “ideólogos de gênero” convencem a seus interlocutores afirmando tratar-se de direitos humanos e assim os “submetem” sem resistência já que “tudo aquilo que se apresenta ao povo como fruto de um consenso democrático imediatamente é considerado como algo bom mesmo quando é um ato criminoso”, posto que ninguém poderia opor-se à defesa dos direitos humanos.

Em uma região como a América Latina, essa batalha tem relevância especial já que nos últimos anos se deram avanços, em alguns países, em matérias de direitos sexuais e reprodutivos (como a descriminalização do aborto, o reconhecimento de casais do mesmo sexo ou a inclusão da educação sexual nas escolas) ao mesmo tempo que diversas pesquisas mostram um paulatino distanciamento de católicos e católicas em relação às normas de moral sexual impostas pelo Vaticano5. É também por isso que para autores como Vaggione (2013) a eleição de Bergoglio como papa pode ser lida como um gesto em direção à América Latina, pois:

Se João Paulo II teve como fantasma o comunismo, Bento XVI a laicidade, Francisco deverá enfrentar esse “rebanho indisciplinado” que não é apenas amplo e diverso sobre o sexual, mas que inclusive politiza sua identificação religiosa em favor dos direitos sexuais e reprodutivos. O relativismo moral vem sendo uma obsessão para o Vaticano faz anos e o tema é que esse relativismo já não é apenas fruto de ideologias diversas (como o liberalismo, o comunismo ou a laicidade), senão que surge da mesma fonte da tradição católica como religião de libertação (Vaggione, 2013).

Se, como menciona Vaggione, o relativismo moral tem sido uma obsessão da Igreja Católica, não é de se estranhar que a luta contra a “ideologia de gênero” se torne um eixo prioritário de ação política. Ação que não se limita a documentos ou declarações da Igreja, mas também de diversas organizações não governamentais denominadas de “pró-vida” e que se caracterizam por terem um acentuado perfil religioso conservador. A partir de diversas ações políticas (como lobby legislativo ou denúncias a funcionários públicos), jurídicas (como a apresentação de ações judiciais em que usam argumentos legais e “científicos” sobre os perigos da “ideologia de gênero” para a sociedade) e midiáticas (através de manifestações públicas, programas de rádio e televisão ou congressos “acadêmicos”) instalam nas discussões públicas os “perigos sociais” que representariam essa “ideologia”. Essas organizações se apresentam como seculares e democráticas, genuínas representantes da sociedade civil, e, portanto, interlocutoras legítimas na hora de estabelecer negociações com os poderes do Estado. No entanto, segundo Morán Faúndes:

Cabe preguntar-se até onde resulta válido assumir efetivamente o caráter secular dessas agrupações civis, em circunstâncias em que suas demandas e estratégias compartilham pontos centrais com o pensamento e a posição das hierarquias religiosas. Para responder a isso pode resultar útil a noção de secularismo estratégico, vale dizer a ideia de que a adoção de uma posição secular responde a uma estratégia dos grupos religiosos para obter uma maior incidência no debate político vinculado com o rechaço à agenda dos direitos sexuais e reprodutivos (Morán Faúndes, 2011: 105).

De qualquer forma, não é apenas a Igreja Católica e as organizações pró-vida que se reúnem em torno de seus preceitos religiosos as únicas instituições que lideram essa cruzada. Organizações evangélicas se uniram à “causa” e em vários países da região tiveram um enorme impacto para impedir o avanço dos direitos sexuais e reprodutivos. Somam-se a esses grupos, outros, os quais apoiam a batalha por razões não apenas religiosas, caso do Programa Escola sem Partido, no Brasil, criado em 2004 como reação às práticas educacionais que seus defensores definem como “doutrinação política e ideológica na sala de aula” e “usurpação do direito dos pais sobre a educação moral e religiosa de seus filhos”6.

No âmbito dos embates em torno da “ideologia de gênero”, mais do que identificar atores e os distinguir, propomos analisar como se associam e se articulam partindo do delineamento do que Sonia E. Alvarez (2014) denomina de campos discursivos de ação, nos quais preocupações político-culturais são compartilhadas mesmo que os atores nesses campos tenham diagnósticos divergentes. Assim, ao invés de caracterizar esses grupos como uma espécie de movimento social e, por conseguinte, supostamente alocados na sociedade civil, compreendemos aqueles que combatem o que denominam de “ideologia de gênero” (e termos aparentados como a noção de uma escola supostamente partidarizada) como empreendedores morais que agem dentro de um campo discursivo de ação7.

Tais empreendedores morais são religiosos, dentro da Igreja Católica, de vertentes religiosas neopentecostais, seguidores laicos dessas religiões, pessoas que se engajam na luta por razões simplesmente éticas, morais e/ou políticas as mais diversas e não são necessariamente da sociedade civil, mas podem atuar dentro de instituições e até mesmo do governo. Identificá-los exige reconstituir em termos sociológicos a gramática política que vincula atores tão diversos em uma cruzada contra o que passaram a chamar de “ideologia de gênero”. Argumentaremos que tal gramática se insere na ambivalência histórica do catolicismo entre uma afinidade com a esquerda em matérias econômicas e maior proximidade com a direita no que se refere à moral.

Iniciaremos com um mapeamento preliminar das tensões entre alguns governos latino-americanos de esquerda e religiosos no que concerne a iniciativas envolvendo reformas legais e/ou educacionais que podem ser interpretadas como objetivando avanços nos direitos sexuais e reprodutivos. Em seguida, averiguaremos se o combate de empreendedores morais à igualdade de gênero e aos direitos LGBT pode ser associado à chegada de mulheres de esquerda à Presidência da República no Chile, na Argentina, na Costa Rica e no Brasil. Por fim, concluiremos fazendo um balanço parcial da gramática política moldada pela criação e disseminação da noção de “ideologia de gênero”, conformando um campo discursivo de ação conservador transnacional que objetiva barrar avanços dos direitos humanos concernentes a demandas envolvendo direitos sexuais e reprodutivos.

Mapeando tensões e conflitos entre a Igreja Católica e os governos de esquerda na América Latina

Na seção anterior, fizemos uma genealogia da noção de “ideologia de gênero” a partir de sua emergência em textos e documentos da Igreja Católica após a Conferência da ONU de Beijing (1995). Agora buscaremos apresentar um mapeamento parcial das tensões e dos conflitos que levariam, na década de 2010, essa noção a ser acionada em diversos países latino-americanos. Não temos a pretensão de abarcar todos os casos nacionais, tampouco de propor um apanhado exaustivo, apenas pretendemos contribuir para a construção de uma perspectiva internacionalmente alargada sobre um embate que tem surgido em diversos contextos e frequentemente abordado de forma isolada.

Antes de iniciar o mapeamento, cabe sublinhar que o recente debate sobre gênero e sexualidade na América Latina se dá em uma região em que a chamada Revolução Sexual teve características próprias. Enquanto em países como os Estados Unidos, o Reino Unido e a França, desde o final da década de 1960 houve uma profunda transformação cultural, política e até legal envolvendo o papel das mulheres na sociedade, nos países latino-americanos o impacto inicial dessa revolução foi arrefecido por ditaduras militares marcadas por uma moral nacionalista familiar. A Revolução Sexual latino-americana moldou mais a experiência das classes médias e altas e não logrou alcançar os mesmo direitos sexuais e reprodutivos dos citados países centrais.

Os primeiros movimentos feministas e homossexuais latino-americanos se organizam a partir da década de 1970 associados à luta contra a ditadura e a uma perspectiva política predominantemente de esquerda. No entanto, pesquisadoras mostram que a relação desses movimentos com a esquerda nunca foi sem tensões e constrangimentos. Em sua história do movimento feminista brasileiro, Céli Pinto (2003: 45) afirma que o feminismo era visto por muitos participantes da luta contra a ditadura militar (1964-1985) como um “desvio pequeno-burguês”. Sonia E. Alvarez (2014: 22), por sua vez, mostra que a esquerda revolucionária latino-americana “relegava a ‘questão da mulher’ ao status de uma ‘contradição secundária’”.

Tensão similar - e até mais contundente - se dava em relação aos nascentes movimentos homossexuais cuja causa era não apenas secundarizada, mas, muitas vezes, ridicularizada e rechaçada pela esquerda hegemônica8. Portanto, a pauta desses movimentos não foi reconhecida ou incorporada na aliança então esboçada em alguns contextos nacionais entre a Igreja Católica, os movimentos pró-democracia e as vertentes à esquerda preocupadas com temáticas como justiça social e maior igualdade econômica.

Desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), há um aumento das preocupações políticas e de justiça social no catolicismo na América Latina. Emergem intelectuais cristãos como Paulo Freire, autor de Pedagogia do oprimido, o teólogo da libertação Leonardo Boff e a teóloga feminista Ivone Gerbara. Em outros termos, cria-se uma aliança entre setores do catolicismo e a oposição a algumas das ditaduras militares e seu perfil pró-capitalista. Nesse sentido, cabe sublinhar o papel da Igreja aos que lutavam pela democracia assim como no apoio às iniciativas de economia solidária. Sublinhe-se que a aproximação entre a Igreja Católica e os grupos políticos pró-democracia circunscrevia-se aos de uma esquerda cristã crítica de políticas econômicas com consequências negativas para os mais pobres.

Em muitos países latino-americanos, a Igreja Católica apoiou ditaduras ou não se envolveu na luta pela democracia assim como manteve relações políticas sempre mais próximas das vertentes de direita devido às suas afinidades na defesa de uma moral conservadora9. Naqueles, como o Brasil, em que a Igreja apoiou a luta pela democracia, com o fim das ditaduras militares diminui a aliança do catolicismo com a esquerda devido a uma política da Santa Sé que, a partir de João Paulo II, passou a consagrar só bispos com formação e visão mais conservadora sobre a atuação da instituição na sociedade contemporânea (ver Prandi & Souza, 1996). Ou seja, configurando um processo transnacional que se aprofundaria com Bento XVI (ver Teixeira & Menezes, 2009).

Nesse contexto, a partir da década de 1990, perde força a Teologia da Libertação10, fato analisado pelos sociólogos Reginaldo Prandi e André Ricardo de Souza por meio da decadência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a popularidade crescente da Renovação Carismática Católica (RCC). Segundo eles:

Voltada para a intimidade e subjetividade da vida, os carismáticos, como os pentecostais, têm especial predileção pelo campo da orientação moral da conduta, refazendo um estilo do catolicismo que parecia definitivamente enterrado (Prandi & Souza, 1996: 89-90).

Assim, perde força a aliança do catolicismo com a esquerda e ganha relevo o que podemos compreender como uma agenda moral que aproxima católicos de neopentecostais11.

Historicamente, portanto, ainda que o catolicismo possa ter demonstrado - em alguns contextos nacionais como o brasileiro - afinidades com uma agenda econômica mais à esquerda e tenha sido um dos protagonistas no desenvolvimento de uma cultura dos direitos humanos no Brasil (Montero, 2012), o que o aproximou também de movimentos pró-democracia, a mesma afinidade não pode ser encontrada com os emergentes movimentos sociais feministas e LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). As demandas desses movimentos sociais, que ganham mais visibilidade social nos países latino-americanos a partir da virada do milênio, entram em contradição com as visões tradicionais do catolicismo no que se refere ao comportamento sexual e ao papel das mulheres na sociedade12.

Na recente consolidação de democracias pelo continente latino-americano, Frances Hagopian reconhece que

Alianças forjadas na encruzilhada da ditadura com movimentos de mulheres, direitos humanos e políticos democráticos se romperam. Movimentos indígenas da Guatemala ao Chile que a Igreja protegeu dos projetos militares nacionalistas agora ocorrem fora do alcance dela, tanto em termos organizacionais como teologicamente (Hagopian, 2006: 4).

Em outras palavras, os movimentos sociais ganharam relativa independência na democracia e se aproximaram mais dos governos, especialmente os que chegaram ao poder na virada do milênio, encabeçados por partidos de esquerda, a qual - historicamente - lhes foi mais favorável em termos de interlocução política e interesses comuns.

Ao relacionar a formação de uma política sexual religiosa ao movimento histórico acima descrito é possível reconhecer:

A postura atual da Igreja Católica sobre a sexualidade é o resultado de dinâmicas complexas. Ainda que por um lado reflitam uma tradição milenar de interpretações de textos sagrados, nem sempre coerentes entre si, também é moldada por conjunturas específicas. Um exemplo dessas circunstâncias é a crescente legitimidade dos movimentos feministas e pela diversidade sexual que levou a Igreja Católica a adaptar e reforçar, muitas vezes de maneira reativa, a defesa de uma ordem patriarcal e heteronormativa (Morán Faúndes & Vaggione 2012: 162).

As posições feministas e de movimentos LGBT podem ser compreendidas por grupos religiosos como incentivo a um individualismo que se chocaria com a concepção comunitária de sexualidade religiosa pautada em uma hierarquia entre homens e mulheres, assim como na centralidade da reprodução. Nesse sentido, sempre segundo Morán Faúndes e Vaggione:

O objetivo da Igreja Católica não é apenas defender uma moralidade sexual senão também evitar a sanção de direitos que outorguem certa legitimidade às condutas não heterossexuais. Para isso, articula uma política sexual que envolve tanto a hierarquia como os fiéis, particularmente nos documentos oficiais. Os mesmos têm como propósito defender uma ordem legal e ética heteronormativa por meio do chamado à ação da comunidade católica e do posicionamento público da instituição religiosa (Morán Faúndes & Vaggione 2012: 164-165).

Propósito que vai ao encontro também dos interesses políticos neopentecostais, já que sua missão religiosa envolve ocupar postos de poder preparando o mundo para deus. Segundo David Smilde:

Os neopentecostais são guiados pela chamada “teologia do domínio”, a ideia de que Deus retornará para restabelecer seu reino aqui na Terra, sendo a tarefa dos cristãos preparar o caminho se afirmando em posições de poder (Smilde, 2012: 20).

Por isso, neopentecostais não se referem a pastor e sim a bispo/apóstolo porque pensam em sua “nação” partilhando do objetivo de moralização da vida política. Assim, a política sexual religiosa, nos países latino-americanos com maior presença dessa vertente protestante, tende a aproximar católicos e neopentecostais em uma espécie de aliança circunstancial pela moral e os bons costumes.

A partir do exposto, temos elementos para começar nosso mapeamento parcial dos debates envolvendo questões de gênero e sexualidade na América Latina. Encontramos três elementos comuns às diferentes realidades nacionais em que tais debates ganharam relevância:

  1. todas ocorreram a partir da virada do milênio;

  2. emergiram em países que passaram a ter governos de esquerda; e

  3. deflagraram-se em torno de reformas educacionais e legais.

Desde 1999, políticos de esquerda chegam à Presidência da República em países como Venezuela (1999-presente), Brasil (2003-2016), Argentina (2003-2015), Bolívia (2006-presente), Chile (2006-2010 e 2014-presente) e Equador (2007-presente). Historicamente, como já comentado, partidos de esquerda tiveram maior proximidade dos movimentos sociais com uma agenda de justiça social em termos econômicos do que com movimentos vinculados a direitos humanos como os feministas e LGBT. De qualquer forma, provavelmente devido a demandas internacionais que levam a sociedade civil organizada a participar da discussão de políticas públicas, em alguns contextos nacionais sul-americanos a relação entre os movimentos sociais e os governos de esquerda passou a movimentar propostas de iniciativas educacionais e legais visando ao reconhecimento da igualdade de gênero, ao enfrentamento da homofobia, assim como à aprovação do casamento igualitário.

O primeiro registro de tensão entre a Igreja Católica e um governo de esquerda sul-americano se deu na Venezuela sob o governo Chávez. Segundo David Smilde (2012), o governo Chávez (1999-2013) incluiu liberdade de culto na constituição e expandiu a participação de grupos não católicos nas escolas, permitindo que evangélicos também pudessem ensinar na disciplina optativa de religião. Além disso, criou o Parlamento Inter-religioso Bolivariano (PIB) entre 2000-2001, o que foi interpretado pelo catolicismo como perda de apoio financeiro às suas práticas educacionais. Houve também conflito com os evangélicos porque não aceitaram lidar com vertentes religiosas populares, mórmons ou testemunhas de Jeová, os quais consideram hereges. No que concerne aos católicos, compreender seu conflito com Chávez envolve reconhecer sua histórica vinculação às elites, influência no ensino e o fato de que os bispos venezuelanos tendem a ser mais tradicionais e conservadores do que seus congêneres latino-americanos.

Na Argentina, entre 2004 e 2005, o ministro da saúde peronista avançou com um projeto de implementação de educação sexual nas escolas privadas e públicas, assim como a distribuição de contraceptivos para menores, causando o primeiro conflito entre um governo argentino e a Igreja Católica em décadas (Hagopian, 2006: 5). O bispo Antonio Baseotto sugeriu que o ministro devia ser jogado ao oceano com uma pedra amarrada ao pescoço: uma referência bíblica que evocava para muitos argentinos memórias nefastas da violência de Estado durante a última ditadura militar. Em retaliação, o presidente Kirchner cortou o salário do capelão do exército e não participou da tradicional missa da Revolução na catedral da Plaza de Mayo. Por sua vez, a Conferência dos Bispos condenou duramente o papel do governo no aumento da desigualdade.

Um segundo enfrentamento se deu em 2010, durante a discussão para a aprovação de uma lei que permitiria a casais do mesmo sexo se casarem. Naquele momento, Cristina Fernández de Kirchner era a presidente do país, e o cardeal Jorge Bergoglio (atual papa Francisco, então arcebispo de Buenos Aires) escreveu uma carta em que se referia a esse projeto de lei como “um gesto do pai da mentira que pretende confundir e enganar aos filhos de Deus”, acrescentando que “esta guerra não é sua, mas de Deus” e pedindo que “acompanhem essa guerra”. O ex-presidente, e então senador Néstor Kirchner

acusou Bergoglio de estar pressionando o Senado e disse que sua posição era obscurantista. A pressão aumentou de ambos os lados. Vários senadores oficialistas que estavam em dúvida se alinharam […], se votassem contra a lei seriam traidores. O debate já era outro (Bimbi, 2010: 496).

Junto com o debate legislativo, houve uma importante mobilização por parte de setores que se opunham à modificação legal do matrimônio civil. Essas manifestações começaram na cidade de Córdoba e se multiplicaram por diversas partes do país. A mais importante se deu em Buenos Aires, um dia antes da votação definitiva do projeto, quando diferentes organizações pró-vida e setores sociais convocaram uma marcha nacional na Praça do Congresso da Nação para exigir aos senadores seus votos “em defesa do matrimônio e da família”. Os que convocaram a passeata foram o Departamento de Laicos da Conferência Episcopal Argentina (Deplai), Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas da Argentina (Aciera) e Federação Confraternidade Evangélica Pentecostal (Fecep). A convocação foi levada adiante pela associação de uma diversidade de atores pertencentes tanto a organizações civis como a hierarquias religiosas. A esses setores religiosos se somaram organizações civis nucleadas sob a denominação “Famílias Argentinas Autoconvocadas”. Com um ideário muito semelhante, cabe mencionar a comissão criada sob o nome de “Argentinos pelas crianças” (AxC) (Souza, Sgró Ruata & Campana, 2013). Ainda que a lei tenha sido finalmente aprovada, e a aprovação foi considerada politicamente como uma derrota da Igreja Católica na Argentina, para autores como Jones e Carbonelli (2015), durante essas mobilizações setores evangélicos obtiveram importante atenção midiática legitimando-se como atores políticos na Argentina.

Dois anos mais tarde, depois da aprovação das leis nacionais de identidade de gênero e de direitos do paciente, a Igreja enfrentou novamente o governo por meio da Conferência Episcopal Argentina, denunciando que essas leis promoveriam a eutanásia e a manipulação da identidade sexual de crianças contra a vontade de seus pais. A eleição de Jorge Bergoglio como papa Francisco e Mauricio Macri como presidente argentino diminuiriam as tensões entre a Igreja e o governo, mas setores conservadores, liderados pelo já citado Jorge Scala, veem o novo presidente como um “ideólogo de gênero”, por ter apoiado normativas referidas a abortos não puníveis e casamentos de cônjuges do mesmo sexo quando era chefe de governo da cidade de Buenos Aires (ver Boast, 2011).

Na Bolívia também houve enfrentamentos entre a Igreja e o governo de Evo Morales, o qual chegou a afirmar, em 2010, que “a Igreja Católica é um símbolo do colonialismo europeu e deve desaparecer da Bolívia” (ver Risatti & Gualdoni, 2012). Uma das maneiras para combater esse colonialismo devia dar-se por meio do plano de educação, acabando com o ensino de religião (católica) nas escolas públicas e privadas bolivianas. Em dezembro de 2010, a Assembleia Legislativa aprovou uma nova lei de educação, acabando com o monopólio católico em matéria de religião e introduzindo aulas sobre um amplo inventário de religiões e espiritualidades, entre elas, a cosmovisão andina. Essa mudança viria à tona com a nova constituição boliviana, que tira o caráter oficial da religião católica declarando a Bolívia um Estado laico. Essa lei produziu uma reação da Igreja, de instituições educativas religiosas e da oposição ao considerar que a normativa “busca o doutrinamento ideológico dos estudantes e porque, segundo eles, apenas reflete a realidade dos indígenas” (Vaca, 2010).

Segundo Hagopian (2006), no Chile, em que a Igreja Católica opôs-se bravamente contra atos da ditadura de Pinochet, desde a redemocratização seus líderes se distanciaram da política, desencorajaram os chilenos de processarem os responsáveis por violações dos direitos humanos e apoiaram a “reconciliação nacional”. Também se voltaram contra a aprovação do divórcio, em 2000, a regulação das escolas religiosas, a introdução da educação sexual, a distribuição de camisinhas para prevenir a contaminação pelo HIV assim como qualquer ampliação das leis em relação ao aborto.

No Equador, inicialmente, quando Rafael Correa impulsionou uma reforma constitucional, a Igreja Católica entrou em conflito, mas logo colocaram-se em acordo. Correa chegou a se posicionar publicamente a favor da abstinência para controlar a gravidez adolescente e contra o aborto afirmando que, caso aprovado, ele renunciaria à Presidência. Atualmente, a política de direitos sexuais e reprodutivos se baseia na luta contra a “ideologia de gênero” por meio do plano “Familia Ecuador”.

No Brasil, iniciativas educacionais envolvendo problemáticas das diferenças avançaram durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), sendo a mais bem-sucedida a das relações étnico-raciais. O ensino da história da África e das relações étnico-raciais tornou-se lei e tem sido progressivamente adotado no ensino básico e fundamental assim como, mais recentemente, no ensino superior13. No que concerne a questões de gênero e sexualidade, Keila Deslandes (2016) afirma que a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), em 2004, pelo então ministro da educação Tarso Genro, lançou as bases para a implementação de políticas educacionais visando promover a igualdade de gênero e o combate à homofobia.

O conflito entre iniciativas legislativas contra a homofobia e a posição religiosa se deflagra principalmente a partir da proposta da deputada Iara Bernardi (PT) do Projeto de Lei 122/2006 (Campos et alii, 2015: 168). Programas governamentais como o “Brasil sem homofobia”, assim como os voltados para a discussão de temáticas de direitos humanos, gênero e sexualidade na escola trazem o debate para as políticas educacionais. Segundo Maria das Dores Campos Machado é o lançamento do III Plano Nacional dos Direitos Humanos, no final de 2009, ainda no governo Lula, que “funcionou como uma fagulha no campo já minado das comunidades morais conflitantes” (Machado, 2017: 374), contribuindo para a moralização do debate sobre cidadania no Congresso Nacional já que

no caso dos pentecostais, o Legislativo é um espaço a um só tempo de resistência aos movimentos das minorias sexuais e de ampliação dos espaços políticos do grupo, que se percebe como minoria ou como cidadãos de “segunda classe” frente aos católicos (Machado, 2017: 357).

A hegemonia da noção de “ideologia de gênero” se estabelece no Brasil a partir de 2011, ano em que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que a união entre pessoas do mesmo sexo tinha o mesmo status do casamento heterossexual. No mesmo mês da decisão do Supremo, ganhou notoriedade nacional a polêmica sobre o material didático do programa “Escola sem homofobia”, apelidado pelos conservadores de “kit gay”, que seria distribuído em seis mil escolas públicas, mas que, depois de forte oposição, foi vetado pela presidente Dilma Rousseff. Christina Vital e Paulo Victor Leite Lopes (2013) analisaram em detalhe a atuação de parlamentares evangélicos neste caso, desde fins de 2010, mostrando como a Frente Parlamentar Evangélica volta-se fortemente contra o material seis dias após a aprovação pelo STF da união entre pessoas do mesmo sexo (Vital & Lopes, 2013: 123).

É nesse contexto de crescente contestação religiosa conservadora com relação ao Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT que, em 2013, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara passou a ser controlada por um político neopentecostal. A noção ganhou popularidade na luta pela aprovação do Plano Nacional de Educação (2014), ano de eleições legislativas em que a bancada evangélica não foi ampliada significativamente, mas encontraria uma correlação de forças favorável ao ponto de conquistar a Presidência da Câmara, em 2015 (ver Machado, 2017: 355), e ganhar impulso sua participação na verdadeira batalha nas câmaras estaduais e municipais para definir seus respectivos planos (cf. Deslandes, 2016; Rosado-Nunes, 2015).

Historicamente, em diferentes graus em cada país, católicos estiveram na área educacional e buscam manter seu espaço reagindo a iniciativas que busquem quer ampliar a pluralidade religiosa no espaço escolar (caso da Venezuela) ou ameaçar suas concepções de hierarquia e moralidade (casos da Argentina e do Brasil). Os empreendedores morais contra o que chamam de “ideologia de gênero” parecem partilhar com seus inimigos defensores dos direitos humanos a crença na educação como meio de formação política.

Buscamos identificar a emergência de um campo discursivo de ação em torno da noção “ideologia de gênero”, primeiramente historicizando a noção e, depois, mapeando seu papel nos conflitos ou nas tensões recentes na América do Sul, envolvendo propostas de mudanças legais e iniciativas educacionais que teriam por objetivo avanços em relação aos direitos sexuais e reprodutivos, ou seja, promovendo a igualdade de gênero, o combate à homofobia e o reconhecimento da diversidade. Identificamos a emergência da noção “ideologia de gênero” como contraofensiva católica à Conferência da ONU em Beijing, mas que passa a ser disseminada no clero após o Documento de Aparecida (2007) até se tornar noção articuladora de empreendedores morais diversos contra reformas legais e políticas governamentais na década de 2010.

Depois desse mapeamento preliminar de alguns casos sul-americanos de tensão ou conflito entre religiosos e governos de esquerda em discussões de reformas educacionais ou legais envolvendo direitos humanos, sexuais e reprodutivos, temos condições de discutir se é possível associar o atual embate dos empreendedores morais contra o que denominam de “ideologia de gênero” não apenas a divergências morais entre religiosos e governos de esquerda, mas sobretudo a governos de esquerda chefiados por mulheres. Afinal, na América do Sul e Central não apenas a esquerda chegou ao poder nas últimas duas décadas, mas o fez também alçando a Presidência as primeiras políticas mulheres: Michele Bachelet no Chile, depois Cristina Fernández de Kirchner na Argentina, Laura Chinchilla na Costa Rica e Dilma Rousseff no Brasil.

Mulheres de esquerda na Presidência e a emergência de debates sobre “ideologia de gênero”

A hegemonia de uma gramática política envolvendo a noção de “ideologia de gênero” coincidiria ou seria causada pela chegada à Presidência da República de políticas mulheres? Angela M. Carneiro e Jussara Prá alertam que “a presença de mulheres na chefia de uma nação nem sempre significa que suas demandas são levadas em conta” (Carneiro & Prá, 2014: 9), mas consideramos que no campo discursivo de ação em foco a efetividade conta menos do que o temor de certos empreendedores morais em relação a possíveis mudanças nas relações de poder envolvendo, entre outros/as, homens e mulheres ou heterossexuais e homossexuais. Em outras palavras, consideramos que a gramática política que envolve a noção “ideologia de gênero” opera na lógica dos fenômenos que a sociologia denomina de pânicos morais, reconhecíveis quando emerge a retórica da sociedade sob ameaça (ver Miskolci, 2007). Segundo Stanley Cohen:

[algo] passa a ser definido como um perigo para valores e interesses societários; sua natureza é apresentada de uma forma estilizada e estereotipada pela mídia de massa: as barricadas morais são preenchidas por editores, bispos, políticos e outras pessoas de direita; especialistas socialmente aceitos pronunciam seus diagnósticos e soluções; recorrem-se a formas de enfrentamento ou procura-se desenvolvê-las (Cohen, 1972: 9).

A quase ausência de fontes sobre a reação religiosa e/ou moral à chegada de Michele Bachelet como primeira mulher presidente do Chile parece indicar que, ao menos naquele contexto nacional e em meados da primeira década do século XXI, não emergiu o temor de que uma governante de esquerda apoiaria reformas legais ou implantaria políticas que ameaçariam concepções hegemônicas envolvendo direitos sexuais e reprodutivos. O único incidente foi o anúncio da distribuição gratuita da pílula do dia seguinte na rede pública de saúde para qualquer mulher com mais de 14 anos de idade, o que foi violentamente rechaçado tanto pela oposição como pela Igreja Católica, que a considerou um ataque ao casamento e à família.

Por sua vez, a chegada de Cristina Fernández de Kirchner à Presidência argentina se deu em um momento de evidente tensão entre a Igreja Católica e o presidente anterior (marido de Cristina), Néstor Kirchner. Ela havia declarado não ser feminista ( ver Página 12, 2007) e ser contra a descriminalização do aborto (cf. Wornat, 2007), fatos que contribuíram para que não surgissem resistências de setores conservadores religiosos à sua candidatura. Assim mesmo, uma vez eleita, durante seu mandato tentou recompor a relação com a Igreja, o que não se passou sem conflitos. No início de 2008, o Vaticano recusou a designação do embaixador para a Santa Fé de Alberto Iribarne por seu status de divorciado, desafiando as decisões políticas da nova presidente e, em 2009, diante das declarações de Jorge Bergoglio que manifestavam que os direitos humanos também se violam pela “extrema pobreza”, a presidente reagiu manifestando que “há duas classes de pessoas, as que fazem declarações sobre a pobreza e as que se dedicam a executar ações todos os dias para combatê-la” (ver La Nación, 2009). Talvez o momento mais delicado tenha ocorrido durante o já mencionado apoio do kirchnerismo para o projeto de legalizar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo.

Na Costa Rica, Laura Chinchilla, quando ainda era vice-presidente no governo de Oscar Arias, participou da “Marcha pela Vida e Família”, em novembro de 2009, evento contra a legalização do aborto e o reconhecimento de uniões civis de casais do mesmo sexo. Posicionou-se contra a separação Igreja/Estado, assim como tomou partido contra a pílula do dia seguinte. Sua chegada à Presidência, em maio de 2010, deu-se sem conflitos com setores religiosos.

De forma distinta dos casos nacionais brevemente analisados acima, no Brasil, na campanha eleitoral de 2010, em que pela primeira vez uma mulher concorreu à Presidência da República com reais chances de vitória, ganharam centralidade os debates envolvendo direitos sexuais e reprodutivos. A estratégia do candidato de oposição, José Serra (PSDB), foi a de questionar o posicionamento da candidata com relação ao aborto. Assim, a campanha foi a um segundo turno eleitoral, no qual Dilma Rousseff, a candidata do Partido dos Trabalhadores, se aproximou das forças religiosas católicas e neopentecostais comprometendo-se a não tomar iniciativas de mudança na legislação sobre o aborto ou concernente ao matrimônio homossexual, ao combate à homofobia14.

As eleições de 2010 ampliaram a bancada neopentecostal no Congresso Nacional brasileiro e, não por acaso, alguns de seus representantes tomaram o controle de comissões como a de Direitos Humanos, evitando avanços em projetos de interesses de mulheres, indígenas, negros, homossexuais, entre outros. Iniciativas de combate à homofobia nas escolas foram desmontadas e houve uma sensível redução de espaço para o diálogo entre o governo federal e representantes dos movimentos LGBT, o qual foi relegado basicamente ao Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, sediado na Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

Segundo Leandro Colling:

O Conselho Nacional LGBT foi criado apenas para dar um suposto verniz democrático a medidas e políticas criadas, na verdade, de cima para baixo. Além disso, o governo não implementou o que o conselho discutiu e, em algumas ocasiões, usou o conselho para fazer frente às demandas internacionais que solicitam que as políticas de direitos humanos sejam criadas em diálogo com a sociedade civil (Colling, 2013: 425).

Nesse contexto, não havia uma aliança entre o governo de esquerda e as demandas dos movimentos feministas e LGBT. Ao contrário, durante o governo Dilma, houve um distanciamento do governo federal em relação aos movimentos sociais em geral e, em especial, aqueles relacionados a direitos sexuais. Assim, as fontes consultadas convergem na percepção de que o governo Dilma não representou ameaça efetiva à agenda moral dos conservadores.

Como bem observam Carneiro e Prá (2014: 191), a chegada à Presidência de mulheres não expressou igualdade em outras instâncias do poder15. Os casos latino-americanos explorados nessa seção também não comprovam nenhuma relação direta ou necessária entre governos de mulheres de esquerda e reação conservadora. A gramática política que marcou a eleição de Bachelet não tem paralelo nas demais assim como o alinhamento de Chinchilla com o conservadorismo moral na Costa Rica comprova que políticas mulheres - mesmo afiliadas a partidos de esquerda -podem não ter compromisso prioritário com causas envolvendo direitos sexuais ou reprodutivos e até mesmo combatê-los.

O caso argentino, e especialmente o brasileiro, tendem a corroborar a hipótese de que a cristalização da noção de ideologia de gênero como articuladora do que denominamos de campo discursivo de ação se dá a partir de 2010 e pode ter envolvido, tanto quanto mudanças efetivas na legislação ou nas políticas públicas, as expectativas sobre a possível efetivação dessas mudanças. Em outros termos, pânicos morais alimentados por atores políticos - religiosos ou não - podem ter sido ampliados pela presença de mulheres na Presidência, o que apenas uma pesquisa mais aprofundada poderia comprovar e analisar.

Algumas conclusões

Há características comuns nesses conflitos latino-americanos em torno de direitos sexuais e reprodutivos compreendidos atualmente, pelo campo discursivo de ação aqui identificado e analisado, como “ideologia de gênero”. Ao menos durante o período que vai da virada do milênio até a redação deste artigo, em 2016, tal campo emerge e vai sendo criado a partir de um exterior constitutivo: as ideias e os ideais em que se baseiam os defensores dos direitos humanos, em especial os sexuais e reprodutivos.

Os empreendedores morais não formam um grupo coeso e sua aliança é circunstancial. É em relação (dependente) com o que denominam de “ideologia de gênero” que constroem um espaço político-moral mais ou menos compartilhado por católicos, neopentecostais ou outros grupos e indivíduos que se identificam com ele. O campo discursivo de ação contra a temida “ideologia de gênero” tende a ser reconhecido como politicamente de direita, mas também atrai e agrega um público que - em meio à crise econômica recente e às denúncias de corrupção em diversos países latino-americanos - passa a se afirmar apartidário e/ou insatisfeito com a política institucional.

Neste artigo analisamos evidências históricas de que a luta contra o que denominam de “ideologia de gênero” emerge como reação católica à disseminação da agenda feminista por igualdade a partir da Conferência de Beijing (1995), mas ganha força no contexto latino-americano, em especial sul-americano, no início desse milênio, quando chegam à Presidência partidos de esquerda e, a partir de 2006, algumas mulheres tornam-se presidentes.

Se Ratzinger começa a mencionar os perigos da “perspectiva de gênero” em 1997, é possível reconhecer no Documento de Aparecida (2007) a disseminação da noção entre os bispos católicos latino-americanos até tornar-se tema de textos leigos como o citado livro do ativista católico argentino Jorge Scala (2010). Segundo as fontes consultadas, tudo indica que as aprovações do casamento entre pessoas do mesmo sexo em países como Argentina (2010) e Brasil (2011) foram o ponto de inflexão para que a noção de “ideologia de gênero” passasse progressivamente a delimitar uma gramática política na batalha de empreendedores morais contra o avanço dos direitos sexuais e reprodutivos.

O antigo combate ao comunismo parece ter se convertido, na última década, em luta contra a esquerda latino-americana, algumas vezes identificada como chavezcastrismo em uma referência que une Cuba e Venezuela como contraexemplos a serem evitados. Se João Paulo II chegou ao papado no contexto de luta contra o comunismo na Europa, a renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco sugerem que a Igreja Católica considera que o eixo de enfrentamento mudou para a América Latina. Seu inimigo atual seria a “ideologia de gênero” e, ainda que a grande maioria dos governos de esquerda latino-americanos, mesmo aqueles chefiados por mulheres, não tenham aprovado o aborto ou logrado eliminar a desigualdade entre homens e mulheres, foi durante seu exercício - mesmo se não em decorrência deles - que o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado.

Afinal, o que jaz por trás dessa batalha, já que pânicos morais costumam chamar a atenção para uma suposta ameaça apenas como meio de se obter algo bem palpável. Em outros termos, cui bono? Quem se beneficia com a disseminação desse fantasma sobre supostas consequências negativas que adviriam da igualdade de gênero e da plena cidadania de homossexuais?

A partir das reflexões aqui desenvolvidas, tudo indica que os empreendedores morais contra a “ideologia de gênero” são grupos de interesse conservadores que buscam distanciar os movimentos feminista e LGBT, e mesmo seus simpatizantes, das definições de políticas públicas e tomar o controle sobre elas. Sobretudo, dentro do recente campo discursivo de ação reconstituído neste artigo, buscam delimitar o Estado como espaço masculino e heterossexual, portanto refratário às demandas de emancipação feminina e de expansão de direitos e cidadania àqueles e àquelas que consideram ameaçar sua concepção de mundo tradicional.

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  • 1
    . Todas as traduções para o português neste artigo são nossas.
  • 2
    . No México, conservadores organizaram uma marcha pela família contra a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo enquanto na Colômbia setores conservadores religiosos distribuíram panfletos alertando que votar afirmativamente no plebiscito que restabeleceria a paz colocaria o país sob o risco de “caer bajo una dictadura comunista y la inminente aprobación de la ideología de género”.
  • 3
    . A Primeira Conferência da Mulher ocorreu na Cidade do México, em 1975, reivindicando a necessidade de elaborar um guia de ação para acabar com a discriminação da mulher e favorecer seu avanço social. A segunda foi em Copenhague (1980) e a terceira em Nairóbi (1985).
  • 4
    . Gênero é um conceito científico - originalmente desenvolvido para diferenciar sexo biológico e identificação - e incorporado às ciências sociais e humanas a partir da década de 1970, em especial por pesquisadoras/e feministas e/ou queer. Há uma vasta literatura disponível sobre o conceito de gênero, dentro da qual recomendamos Scott (1989) e Butler (2003). Sobre a influência do feminismo na teoria social, consulte Adelman (2009).
  • 5
    . Baseado em um survey internacional de 2000, Frances Hagopian afirma: “A opinião de católicos leigos predominantemente rejeita a noção de que um aborto pode ser justificado, mas uma minoria significante acredita que transgredir as prescrições da Igreja sobre homossexualidade e eutanásia algumas vezes pode ser justificada e apenas um terço dos latino-americanos se opõem ao divórcio em todas as circunstâncias” (2006: 3).
  • 6
    . Ver site oficial do Escola sem Partido: <www.escolasempartido.org>.
  • 7
    . A análise sociológica clássica sobre os empreendedores morais foi desenvolvida por Howard Becker (2008) em seu já clássico Outsiders, assim como pela vertente da teoria dos pânicos morais, ambas surgidas na década de 1960.
  • 8
    . Na Argentina, durante os primeiros anos da década de 1970, a Juventude Peronista, movimento hegemônico de esquerda naquele momento, afastou a Frente de Liberación Homosexual que queria militar entre os peronistas sem deixar de assumir uma identidade homossexual (Bazán, 2010: 355).
  • 9
    . Esse foi o caso argentino. Ver Verbitsky (2007).
  • 10
    . Boff e Gerbara foram punidos por Ratzinger, prova da consolidação de uma perspectiva política mais conservadora no papado de João Paulo II.
  • 11
    . Prandi e Souza (1996) apontam algumas datas que permitem reconhecer a consolidação dessa “despolitização” carismática da Igreja Católica no Brasil, em especial, a saída do clero de Leonardo Boff em 1992 e a eleição do conservador Dom Lucas Moreira Neves para a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1994.
  • 12
    . Alvarez (2014: 17) caracteriza o que se passa com os movimentos feministas desde então como sua expansão para além da sociedade civil “para abarcar diversas instâncias organizativas da mesa, eles muitas vezes se estendem ‘verticalmente’, por assim dizer, em direção à sociedade política, ao Estado, e a outros públicos dominantes nacionais e transnacionais”.
  • 13
    . É incerta a continuidade dessa política no governo Temer, haja vista a recente reforma imposta no ensino médio, assim como a possível revisão das Diretrizes Básicas da Educação.
  • 14
    . Sobre as representações de gênero no horário gratuito de propaganda eleitoral e nas entrevistas ao telejornal mais assistido no Brasil à época, consulte Mota e Biroli (2014). A respeito da temática do aborto e o ativismo religioso durante a mesma eleição, consulte Machado (2014). Os dois artigos corroboram o fato de que as duas temáticas que dominaram o segundo turno foram o aborto e a religiosidade.
  • 15
    . Ainda segundo Prá (2014), o caso chileno e brasileiro provam isso devido à baixa representação parlamentar feminina, enquanto na Argentina e na Costa Rica encontram-se altos índices de presença feminina nos parlamentos e outras instâncias de poder representativo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2016
  • Aceito
    12 Jun 2017
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