Resumo
Este artigo apresenta uma análise do escândalo em torno do fechamento da exposição Queermuseu, ocorrida no Espaço Santander Cultural, em Porto Alegre, no segundo semestre de 2017. O texto busca desvelar o processo no qual, a partir de mobilização nas plataformas digitais, uma mostra artística voltada ao tema da diversidade sexual passou a ser compreendida em certos segmentos como promotora de “pedofilia”, “zoofilia” e “blasfêmia”, teve seu encerramento antecipado, resultando em perseguições a artistas e ao seu curador, bem como na difusão de uma interpretação que associa a esquerda a uma agenda de “perversão moral” às crianças. A análise empírica teve como fonte reportagens digitais e impressas do jornal Zero Hora de Porto Alegre, além de textos, imagens e vídeos que circularam em plataformas digitais, abordando em específico o enquadramento do evento pelo Movimento Brasil Livre (MBL), grupo que liderou a campanha pelo fechamento da exposição. Ao analisar o alcance do enquadramento do MBL, permite-se reconhecer como as plataformas digitais ampliaram o espaço para grupos políticos agendarem questões públicas e imporem seu enquadramento para suas audiências. O artigo elucida, a partir do caso empírico analisado, aspectos da pervasividade das mídias no debate público no contexto de uma esfera pública tecnomidiatizada e busca evidenciar aspectos da acentuada midiatização da política na era digital.
Palavras-chave:
Queermuseu; Enquadramento midiático; Movimento Brasil Livre; Esfera pública tecnomidiatizada; Midiatização
Abstract
This paper analyzes the scandal surrounding the closing of the Queermuseu exhibition, which took place at the Santander Cultural space in Porto Alegre in the second half of 2017. The text seeks to reveal the process in which, from the mobilization on digital platforms, an art exhibition focused on sexual diversity came to be understood in certain segments as a promoter of “pedophilia”, “zoophilia” and “blasphemy”, and was early closed, which resulted in the persecution of artists and its curator, and the dissemination of an interpretation that associates the left with an agenda of “moral perversion” towards children. The empirical analysis was based on digital and printed reports from the newspaper Zero Hora, from Porto Alegre, in addition to texts, images, and videos that circulated on digital platforms, specifically addressing the framing of the event by the Movimento Brasil Livre (MBL), a group that led the campaign to close the exhibition. Analyzing the scope of the MBL framework, it is possible to recognize how digital platforms have expanded the space for political groups to schedule public issues and impose their framework on their audiences. From the empirical case analyzed, the paper elucidates aspects of the pervasiveness of the media in the public debate in the context of a technical-mediatized public sphere and seeks to highlight aspects of the accentuated mediatization of politics in the digital age.
Keywords:
Queermuseu; Media framing; Movimento Brasil Livre; Technical-mediatized public sphere; Mediatization
A exposição Queermuseu (Cartografias da Diferença na Arte Brasileira) reuniu cerca de 270 obras de 85 artistas. Dentre a destacada diversidade regional e geracional entre os e as artistas, citam-se os consagrados Candido Portinari, Alfredo Volpi e Lygia Clark, o trabalho de vanguarda de Flávio de Carvalho e a reconhecida artista contemporânea Adriana Varejão. A exposição estava prevista para ocorrer entre os dias 15 de agosto e 8 de outubro no Santander Cultural, localizado na Praça da Alfândega, no centro histórico de Porto Alegre. A mostra trouxe uma proposta de curadoria não heteronormativa, assinada por Gaudêncio Fidélis, a qual se define como a primeira exposição queer de vulto na América Latina1 1 Queer, vocábulo de origem inglesa que designa dissidência sexual, remete tanto ao questionamento das normas sexuais quanto à indeterminação sexual, em oposição ao essencialismo identitário. A proposta curatorial recusa sua tradução como termo guarda-chuva das questões LGBTI+, com a pretensão de incorporar a questão das diferenças, de forma a desestabilizar o cânone artístico que, historicamente as invisibilizou. Sobre a utilização conceitual do queer na exposição, consultar Fidélis, 2017. .
Promovida, por meio de política de renúncia fiscal2 2 A exposição foi contemplada com 800 mil reais, via renúncia fiscal, pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, quantia que seria devolvida aos cofres públicos, segundo declaração oficial do Santander. , dentro de um espaço cultural de um banco, surgiu afinada com uma política empresarial voltada à diversidade3 3 Ainda que não seja essa a denominação escolhida pelo curador, diversidade foi o termo que sintetizou a abordagem oficial da exposição pelo espaço cultural promotor. Sérgio Rial, presidente do Santander Cultural, em texto de abertura do catálogo da mostra deixa claro como a política da diversidade está ancorada em uma estratégia empresarial: “O que é diverso e tem multiplicidade, seja na área cultural ou étnica, na crença ou na linguística, ganha cada vez mais atenção por parte da nossa organização. Diferentes ângulos de visão e abordagens são fundamentais e extrapolam questões institucionais ou relacionadas ao politicamente correto. Trata-se de um valor para nossa empresa, pois acreditamos que a diversidade é a impulsora da criatividade e da eficiência” (Fidélis, 2017: 1). Na sequência, manifesta a pretensão de pioneirismo do banco em adotar a abordagem: “Esta é a primeira exposição já realizada no Brasil com a referida abordagem, além de ser a primeira com tal envergadura na América Latina, o que insere plenamente o Santander em um contexto global. Queremos cultivar a diversidade em uma organização contemporânea, plural, criativa e madura (Fidélis, 2017: 1). . A exposição foi alvo de intensa mobilização de detratores que se organizaram por meio das plataformas digitais em uma campanha contra o próprio banco, acusado de promover a “pedofilia”, “zoofilia” e ofender a religiosidade cristã. A polêmica se voltou a poucas obras: “Travesti da lambada e deusa das águas” e “Adriano bafônica e Luiz França She-há” da jovem artista Bia Leite; “Cena de interior II (1994)”, de Adriana Varejão; “Et verbum” (2011), de Antonio Obá; e “Cruzando Jesus Cristo com deusa Schiva” (1996), de Fernando Baril. A Queermuseu acabou precocemente fechada em 10 de setembro, com a publicação de uma Carta, divulgada no Facebook da instituição4 4 “[...] ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”. Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/santanderbrasil/ posts/1015472037 3470588/>. Acesso em: 02 Mar. 2022. .
Este artigo busca elucidar a disputa de enquadramento midiático5 5 Refere-se à dimensão interpretativa realizada pelas mídias que, ao se voltarem para determinados eventos, não apenas os reproduzem, mas são partes constitutivas de sua construção social. O conceito de enquadramento midiático ou media framing têm como influência indireta a obra madura de Erving Goffman (2012), que compreende enquadramento como a forma em que um indivíduo enxerga a realidade sempre a partir de matrizes interpretativas anteriormente formadas. A abordagem do autor foi apropriada a partir dos anos 1980 pelas áreas da comunicação e da sociologia das mídias, especificamente no estudo do jornalismo. que permitiu que uma exposição voltada para a diversidade sexual passasse a ser compreendida, por certos segmentos, nos termos de seus detratores. Para tanto, aborda a produção, circulação e reelaboração incessante de imagens e vídeos sobre a exposição, ou seja, seu enquadramento protagonizado por atores políticos que atuam de forma destacada nas plataformas digitais. A análise exigiu atenção às dinâmicas complexas de uma nova ecologia midiática consolidada nas últimas décadas em uma abordagem que contemplasse o contexto e as inter-relações entre as mídias.
A pesquisa empírica se desenvolveu por meio do acompanhamento do jornal Zero Hora durante toda a polêmica, comparando-o com a abordagem do Movimento Brasil Livre (MBL). A escolha do jornal porto-alegrense, do conglomerado RBS, se deu pela proximidade, contato direto com as fontes primárias e presença in loco na exposição e em momentos de conflito. A análise do enquadramento pelo MBL se realizou por meio do acompanhamento de sua página no Facebook e dos canais do grupo e de seus membros no YouTube. O artigo se divide em três partes: contextualização sócio-histórica; discussão sobre a nova ecologia midiática sobre a qual se desdobraram as disputas em torno da exposição; e a análise voltada ao enquadramento midiático, comparando o enquadramento jornalístico àquele criado pelo grupo político.
A construção do escândalo Queermuseu
Em 6 de setembro, foram publicadas as primeiras acusações contra a mostra em uma matéria do sítio de jornalismo digital de direita, chamado Lócus, que atua na cidade gaúcha de Passo Fundo6 6 Disponível em: <https://www.locusonline.com.br/2017/09/06/santander-cultural-promove-pedofilia-pornografia-e-arte-profana-em-porto-alegre>. Acesso em 13 Mar. 2022. . Outros dois vídeos circularam pelas plataformas digitais: o de Felipe Diehl, autoproclamado dirigente do grupo “Direita Gaúcha”, e o vídeo de Rafinha BK, YouTuber, ambos filmando in loco a exposição e projetando-a nas plataformas digitais.
As páginas do jornal local e dos comunicadores digitais citados tinham alcance restrito, mas foram difundidas nas redes de direita e - destaco - tiveram grande visibilidade com sua reprodução das páginas do MBL que liderou uma campanha pelo fechamento da mostra por meio da organização de um boicote à instituição bancária que a patrocinou e sediou. Na sequência, a circulação de imagens de obras da mostra e das acusações atribuídas a elas, independentemente da posição editorial, alcançou as páginas de jornais e a cobertura televisiva. Tratou-se de um momento oportuno de projeção de lideranças locais e nacionais do MBL, os quais tiveram espaço para reproduzir sua interpretação sobre a exposição e a defesa do que se considerou um direito legítimo, dos consumidores, de boicotarem o banco.
Marcio Tavares (2022TAVARES, Márcio. Arte sob ataque: os usos e abusos da arte pelas redes reacionárias durante a censura da exposição Queermuseu. Modos: Revista de História da Arte, v. 6, n. 1, p. 18-49, Jan. 2022. Disponível em: <10.20396/modos.v6i1.8667547. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8667547>.
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) analisou as obras alvo de polêmica no Queermuseu, questionando a interpretação dos detratores da mostra ao revelar que estes não levaram em conta a intencionalidade artística tanto dos autores das obras como do curador, dada a polarização política que contaminou a apreensão estética das obras. Uma análise sociológica pode compreender o escândalo em torno da Mostra Queermuseu como algo mais do que incompreensão estética, a partir de três aspectos caracterizadores: o alcance nacional e a extensão temporal da polêmica, a inteligibilidade da interpretação derivada das redes de direita forjadas nas mídias digitais e, por fim, de uma construção ativa, certamente produto de um contexto político, mas que dependeu da atuação midiática concertada de atores políticos interessados.
É possível demonstrar que, a despeito das acusações de fundamentalistas religiosos por seus críticos7 7 Parte da bibliografia a respeito do evento classificou os detratores da mostra como “fundamentalistas religiosos”, categoria acusatória que menos explica do que confunde, ao deixar de fora da análise o fato de que o principal grupo vinculado à campanha contra a exposição não era religioso, mas laico e autocompreendido como liberal. Tal visão se espraiou nas próprias falas do curador do evento, Gaudêncio Fidélis, e em textos que circularam na imprensa, como o de Ivana Bentes (2017). A interpretação reduz a polêmica à oposição entre os defensores da exposição e “religiosos”, considerados ameaça à laicidade do Estado. , os objetivos envolvidos no fechamento da mostra eram muito “terrenos”, próprios ao contexto pré-eleitoral, no qual novos candidatos surgiam vinculados a um amplo espectro da direita política que, no período, se caracterizava pela ênfase em uma proeminente pauta moral8 8 Como exemplo, a polêmica circulou em grupos de extrema-direita voltadas à pré-candidatura de Bolsonaro no Facebook, associando arte e uma suposta agenda da esquerda com a “pedofilia”. Publicações retomavam a atuação do então deputado federal contra o kit anti-homofobia, em 2011, e se compartilhou um programa televisivo no qual Bolsonaro afirmava a necessidade de se “fuzilar” os envolvidos na mostra, salientando que se tratava de uma expressão em sentido figurado (Dalmonte & Souza, 2019). . O episódio caracterizou-se pela intensa midiatização, transformando a mostra em escândalo nacional, o que é atestado não apenas pela projeção nas mídias de um grupo político que protagonizou a campanha contra a exposição, mas pelo alcance do debate a seu respeito em casas legislativas e no pronunciamento público de diversos representantes políticos.
A mera alegação de uma predisposição conservadora em grupos que se engajaram ou manipularam o fechamento da mostra não explica a magnitude da mobilização em torno do evento. Por que essa mostra especificamente, e não outros eventos de teor artístico e de diversidade sexual com maior público e mais expressivos no mercado, se tornou alvo de um escândalo? De que forma o escândalo que se difundiu nas mídias digitais, impressas e televisivas, tornou-se objeto de discurso parlamentar em diversas regiões do país e chegou a instituições judiciais e policiais?
Escândalos são fenômenos sociais que exigem, portanto, explicação sociológica. Uma sociologia do escândalo é um desdobramento da sociologia da moral, voltada à análise da dramatização pública de alegadas transgressões morais. Não se trata de observar, ao estilo de um realismo ingênuo, o que constitui em si uma transgressão moral em dado contexto, posto que para um mesmo tipo de ação ou evento as respostas não são constantes ou homogêneas.
Ari Adut (2008ADUT, Ari. On scandal: moral disturbances in society, politics, and art. New York: Cambridge University Press, 2008.) afirma que o escândalo depende de uma relação contextual entre uma presumida transgressão, sua publicização e o interesse público. Questões toleráveis em contextos privados podem se tornar alvo de reações públicas quando publicizadas. O escândalo envolve sua construção por atores sociais, o que não significa reduzi-lo a uma produção voluntarista. Sua compreensão exige articular a dimensão histórica e estrutural da qual é produto, com os interesses envolvidos. Escândalos são constantemente instrumentalizados em disputas intraelite e produzem efeitos ampliados, dado seu poder de contaminação a atores, instituições e valores que passam a ser associados à alegada transgressão (Adut, 2008).
A abertura de uma exposição com o tema da sexualidade sem classificação etária9 9 Em relação à ausência de classificação etária, havia uma equipe de monitores que orientava grupos com crianças ou menores de idade sobre obras com cenas de nudez ou referência a sexo, localizando os trabalhos com tais características. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2017/09/queermuseu-mostra-e-cancelada-apos-ataques-em-redes-sociais-9892968.html). Acesso em: 12 Mar. 2022. e com material educativo direcionado a professores de escolas que agendassem visitação fora utilizada como argumento pelos detratores da mostra para afirmar se tratar de parte de uma agenda da esquerda de doutrinação infantil. A acusação se tornou crível para certo público ao recuperar a campanha contra a chamada “ideologia de gênero” nas escolas. Especialmente entre os anos de 2014 e 2015, grupos de interesse diversos passaram a se posicionar frontalmente contra práticas pedagógicas voltadas a perspectivas de gênero, no bojo da discussão sobre os planos nacional, estaduais e municipais de educação. As imagens, os vídeos e as narrativas compartilhadas sobre a Queermuseu acabaram por reforçar uma interpretação de que as crianças seriam alvo de uma agenda perversa envolvendo as questões de gênero.
O uso do significante “ideologia de gênero” por grupos de interesse que lutam contra os direitos sexuais e reprodutivos e se opõem ao campo dos estudos de gênero é originário de posições do Vaticano e de intelectuais associados na segunda metade da década de 1990 (Junqueira, 2017JUNQUEIRA, Rogério Diniz. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária - ou a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”? In: RIBEIRO, Paula Regina Costa; MAGALHÃES, Joanalira Corpes. (Orgs.). Debates contemporâneos sobre educação para a sexualidade, p. 25-52. Rio Grande, RS: Editora Furg, 2017.; Corrêa, 2018CORRÊA, Sônia. A “política do gênero”: um comentário genealógico. Cadernos Pagu, n. 53. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/18094449201800530001, 2018>.
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). Entretanto, ele se difundiu no contexto brasileiro apenas na última década. “Ideologia de gênero” desqualifica como “mera ideologia” as demandas por igualdade entre homens e mulheres e reconhecimento LGBTI+, assim como a produção acadêmica que lida com temas correlatos. Em nosso contexto, diversos atores políticos e midiáticos espalharam o diagnóstico de que instituições (como as escolas, os partidos e as universidades) difundiriam a chamada “ideologia de gênero”, supostamente promovendo a “sexualização infantil” e a “pedofilia”.
A campanha contra a “ideologia de gênero”, entre 2011 e 2018, pode ser tomada como manifestação de pânico moral. Em 2011, um pequeno grupo de representantes políticos criou uma campanha contra a elaboração pelo Ministério da Educação (MEC) de um material didático de enfrentamento à homofobia nas escolas, batizado por seus detratores de “kit gay”. Entre 2014 e 2015, nas discussões em torno dos Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação, foi proibida a menção a gênero nos documentos e se difundiu nacionalmente a noção de “ideologia de gênero”. Em 2017, ocorreram os conflitos em torno do Queermuseu, em Porto Alegre, de uma performance artística no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo e da recepção agressiva à filósofa Judith Butler em um evento no Serviço Social do Comércio (Sesc) Pompeia (Balieiro, 2018BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. Não se meta com meus filhos: a construção do pânico moral da criança sob ameaça. Cadernos Pagu, e185306, 2018.). O caso foi retomado nas eleições presidenciais de 2018, quando se espalhou uma falsa denúncia de que o então candidato Fernando Haddad teria distribuído mamadeiras eróticas em creches quando prefeito de São Paulo.
O conceito de “pânico moral” foi criado por Stanley Cohen (1972COHEN, Stanley. Folk devils and moral panics: the creation of mods and rockers. London: MacGibbon & Kee, 1972.), na década de 1960, ao caracterizar fenômenos sociais de reação intensa nas mídias, com impacto na opinião pública, em relação a comportamentos e a atores sociais que pretensamente rompem com os padrões morais considerados a base da coesão social. Eric Goode e Nachman Ben-Yehuda (1994) elaboraram cinco indicadores que atestariam sua ocorrência: o consenso a respeito de um determinado assunto que mobiliza o pânico; a preocupação articulada à crença ampliada de que se trata de uma ameaça
“real”; a volatilidade, aparecendo de forma súbita e desaparecendo em seguida; a desproporcionalidade em relação à preocupação, baseada em percepção falseada ou exagerada; e a hostilidade a determinados grupos ou indivíduos que são responsabilizados pela ameaça.
O conceito buscava, originalmente, interpretar ansiedades sociais próprias de sua época, os anos 1960, em especial conflitos geracionais em torno da questão da juventude. O caso Queermuseu permite-nos repensar suas dinâmicas atuais em um novo contexto. As questões morais do caso analisado estão atreladas a estratégias políticas e eleitorais e o pânico emerge em uma nova configuração midiática. No caso analisado, não se trata da construção do medo do outro ou mesmo da angústia e paralisia em face do que é temido, como o termo pânico parece sugerir. Trata-se antes da projeção do Outro, englobando tanto uma elite cultural como a esquerda, como ameaça social, o que serviu como plataforma política para o MBL10 10 Em diálogo com a psicanálise, poder-se-ia denominar mais propriamente de histeria moral, em vez de pânico, conforme desenvolvido em artigo, ao considerar aspectos como a projeção, o recalque e a autodefesa na construção do Outro como ameaça (Marzochi & Balieiro, 2021). .
Uma primeira interpretação poderia sugerir que a campanha contra a exposição seria efeito da ação organizada de setores conservadores, inclinados a retirar os direitos adquiridos e a reverter transformações culturais. Tratar-se-ia de uma reação organizada diante de uma série de mudanças em prol da igualdade de gênero e da diversidade sexual. Entretanto, a análise voltada ao contexto mais amplo permite perceber que se trata de algo mais. Como afirma Gayle Rubin (2018RUBIN, Gayle. Pensando o sexo. In: _______. Políticas do sexo. São Paulo: Editora Ubu, 2018.: 63-64), polêmicas que envolvem sexualidade costumam aparecer em contextos de crise política e tempos de estresse social. São, em geral, um veículo para descarregar angústias sociais e intensidades emocionais concomitantes a ela. Além disso, como será demonstrado, tais ansiedades podem ser mobilizadas por atores políticos interessados em se apresentar como defensores da moralidade para segmentos sensíveis ao tema.
Estávamos no ano seguinte ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, cujo governo era acusado, por seus opositores, de organizar o maior escândalo de corrupção da história nacional. As denúncias de corrupção passavam a atingir também o governo então empossado. As páginas de jornal que traziam as notícias do fechamento da mostra artística vinham acompanhadas de notícias de escândalos políticos e seus desdobramentos, dentre eles, a acusação pelo então procurador-geral Rodrigo Janot de o presidente Michel Temer chefiar uma quadrilha que atuaria desviando dinheiro de órgãos públicos; a prisão do reitor da UFSC Luiz Cancellier, com suspeita de desvio de verbas da universidade; além do processo contra o ex-presidente Lula, que resultaria em sua prisão no semestre subsequente. Já se completavam três anos marcados pela cobertura diária dos jornais impressos e televisivos da operação Lava-Jato, pela qual se construía um enquadramento de oposição entre políticos corruptos e um judiciário virtuoso, corporificado na imagem do juiz Sérgio Moro11 11 Afora a indignação moral esperada em relação ao desvelamento de uma grande operação de corrupção, cabe ressaltar seu aspecto midiático, que apresentou um quadro interpretativo a ela. A exposição midiática da Operação Lava-Jato foi sistemática desde 2014, com inúmeras ações televisionadas: mandados de busca e apreensão, conduções coercitivas e prisões preventivas. Grandes empreiteiras e agentes públicos foram alvo da operação que envolvia desvio de dinheiro público a partir do pagamento de propina para o favorecimento de contratos em licitações da Petrobrás. Além das imagens de prisões e conduções policiais de investigados, a imprensa passaria a publicar continuamente material de denúncias fornecidas pelas delações premiadas. O ápice da operação se deu com a prisão do ex-presidente Lula no ano eleitoral de 2018. Dois anos antes ocorrera a amplamente televisionada condução coercitiva do líder petista em uma operação policial que foi marcada por sua magnitude. . Para além da mostra, o diagnóstico presente nas páginas dos jornais e no telejornalismo induzia seus respectivos públicos a pensar em um quadro de “crise moral” que acometia o país como um todo12 12 Como exemplo, algumas matérias analisadas da Zero Hora, de natureza distinta, parecem sintetizar tal diagnóstico, como o editorial de 15 de setembro, que defende o “cerco” judicial “à má política” e uma matéria do dia posterior sobre uma palestra do filósofo Clóvis de Barros Filho, com o título “Estamos assistindo a uma erosão da moral” em que convida os leitores do jornal a assistirem sua palestra “Por um país mais ético”. .
Qual seria a relação entre o diagnóstico espraiado de corrupção com uma exposição cujo tema é a diversidade sexual? A resposta a essa questão se apresentou empiricamente, comparando a cobertura do jornal Zero Hora com o enquadramento de atores político-midiáticos nas plataformas digitais. O enquadramento jornalístico apresenta uma esperada diferenciação na abordagem da crise política e o escândalo em torno da mostra (publicados em seções distintas do jornal, respectivamente, no primeiro caderno e no caderno cultural), já na abordagem dos vídeos e textos nas plataformas digitais, há uma relação de continuidade: a exposição revelaria nada menos do que o ápice da corrupção moral da esquerda, manifestada em suas piores expressões: a “pedofilia”, a “zoofilia” e a ofensa à tradição cristã.
A sexualidade não é apenas um campo de expressão afetiva das relações humanas, mas também um campo de significação no qual indivíduos, grupos e instituições são classificados. Não são poucos os exemplos em que a sexualidade “perversa” serviu como metáfora para designar períodos de crise social e política. De outro lado, trazer a sexualidade ao discurso pode aludir a uma promessa de liberação. Isso desde ao menos os anos 1960, quando a sexualidade adentrou a “esfera pública” com intensidade, a partir das pautas de movimentos feministas, da contracultura e dos que hoje chamamos de LGBTI+.
Ari Adut (2008ADUT, Ari. On scandal: moral disturbances in society, politics, and art. New York: Cambridge University Press, 2008.), ao analisar o escândalo midiático do affair Bill Clinton e Monica Lewinsky, afirma que os escândalos sexuais do presente não são uma expressão de suposta volta a um passado moralista e vitoriano. Ao contrário, sua presença salienta que a partir da politização da sexualidade em prol da mudança cultural, a sexualidade entrou de vez para a “esfera pública” e, dada sua publicidade, tornou-se não apenas objeto de embates valorativos entre posições políticas divergentes, mas também como tópico catalisador de escândalos - o que antes das décadas finais do século XX era menos provável de ocorrer dada a rejeição à publicidade de assuntos obscenos - que podem atingir indivíduos, grupos e instituições.
Trazer a sexualidade ao discurso significa remeter a sistemas de classificação formados por categorias relacionais (Seidman, 1996SEIDMAN, Steven. Queer theory/Sociology. Cambridge, MA: Blackwell, 1996.) mobilizadas por atores sociais de acordo com os universos simbólicos em que se situam. Por um lado, a sexualidade alude à diferenciação entre progresso/atraso, modernidade/arcaísmo, liberdade/opressão e diversidade/preconceito. De outro, pode remeter às díades de moralidade/imoralidade e virtude/perversão. A exposição poderia associar positivamente a marca Santander à contemporaneidade e à promoção à diversidade, mas acabou por vinculá-la à imoralidade. Decorrente da contaminação própria ao fenômeno do escândalo, as acusações se dirigiram da exposição, de seu curador, a artistas, ao banco, a partidos de esquerda e a uma intelectualidade voltada ao campo progressista13 13 Os defensores da mostra, por sua vez, passaram a se apresentar como representantes da liberdade artística, da democracia e dos direitos LGBTI+ em oposição a “reacionários” e “fundamentalistas”. Em ambos os casos, há possíveis ganhos simbólicos que potencialmente podem ser revertidos para a política. Gaudêncio Fidélis candidatou-se a deputado estadual, a convite do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2018. . Ao denunciar aqueles a quem se atribuía uma agenda perversa às crianças, os empreendedores morais de ocasião apresentavam-se a si mesmos como os defensores da moralidade.
Por meio do escândalo da Queermuseu, ressaltou-se o papel autoatribuído do MBL de protagonista em sua cruzada pela moralização nacional. Coerente com sua atuação prévia na campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff, e em substituição a ela, de modo oportuno o caso Queermuseu permitiu que retomasse seu protagonismo na seara das questões morais, incorporando uma pauta espraiada nas redes de direita, reativando o pânico moral em suposta defesa das crianças sob ameaça.
A compreensão do pânico moral sob análise exige observar sua construção processual, mas também considerar sua relação com conflitos latentes próprios de uma conjuntura social. Seu desenvolvimento coincidiu com o contexto de crise política, agravado pelo aprofundamento de uma crise econômica. Além disso, acompanhou uma profunda transformação tecnológica e midiática. Trata-se de um contexto de ampliação massiva do acesso à Internet a partir do barateamento dos dispositivos móveis, os quais também permitiram - com as redes móveis - o surgimento de uma conectividade ubíqua, a produção e o consumo de mídia individualizados14 14 As últimas décadas foram marcadas pela expansão do acesso à Internet, o que foi intensificado a partir de meados da década de 2010, com o barateamento do custo dos telefones móveis e da expansão das redes móveis. Em 2014, o acesso via celulares ultrapassou aquele realizado por computadores, consolidando uma nova forma de consumo midiático, ultrassegmentado e individualizado (Miskolci & Balieiro, 2018). . As mudanças sociotécnicas acabaram por forjar uma nova e complexa ecologia midiática, trazendo implicações no acesso a informações de interesse público e ao próprio debate público. Entre as características da nova ecologia midiática, destacam-se a descentralização, a automatização, a plataformização e a midiatização.
Enquadramento midiático na “esfera pública” tecnomidiatizada
Manuel Castells (2015______. O poder da comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.) definiu o contexto midiático em que vivemos como autocomunicação de massas, ou seja, uma forma de comunicação não mais marcada pela relação potencialmente unidirecional entre emissor-receptor da comunicação de massas. Na autocomunicação de massas, o conteúdo é autogerado, a emissão é autodirecionada e a recepção autosselecionada. A mudança teria permitido certa autonomia aos sujeitos, ampliando o acesso à informação e comunicação.
A perspectiva de que o próprio usuário escolha o conteúdo que quer acessar ou mesmo que o produza destaca horizontalidade na comunicação, mas obscurece como as redes se constituem de forma hierárquica por nódulos de influência que centralizam a difusão de informação para públicos segmentados que tendem a compartilhar as mensagens de seus membros ou grupos mais influentes. A autocomunicação produz uma segmentação profunda, a qual, apesar de potencialmente estender nossas fontes de informação, pode nos expor a uma menor diversidade de enfoques e pontos de vista, a partir das seleções que cada usuário faz no uso de diversas plataformas digitais. Essa característica é reforçada com a automatização.
A automatização se refere a dimensões técnicas das plataformas, como a mediação algorítmica que distribui os conteúdos de forma personalizada. Os mecanismos automatizados são designados por Eli Pariser (2011PARISER, Eli. The filter bubble: what the Internet is hiding from you. New York: Penguin Press, 2011.) de “filtros-bolha”, os quais, a partir de informações coletadas do perfil do usuário, encaminham conteúdo personalizado. Muitos críticos reforçam como a automatização favorece a produção de enclaves ideológicos, produzindo câmaras de eco, nas quais informações e posicionamentos divergentes são dirimidos. De acordo com Frank Pasquale (2017PASQUALE, Frank. A esfera pública automatizada. Líbero, Ano XX, n. 39, p. 16-35, Jan.-Ago. 2017.), experimentamos hoje uma “esfera pública” automatizada, na qual a agenda pública passa a ser conduzida por algoritmos que classificam o conteúdo e dirigem os usuários da Internet com base no processamento de dados de buscas individuais e coletivos15 15 A teoria da esfera pública, de origem habermasiana, está novamente na ordem do dia nas discussões contemporâneas sobre a questão do impacto que as transformações midiáticas oferecem à democracia. A “esfera pública”, na acepção de Jürgen Habermas (2014), caracteriza-se por um contexto comunicativo baseado no princípio de prover “discussão pública mediante razões”. A despeito das críticas à sua concepção restritiva de “esfera pública” (Fraser, 1990), interessa retomar como Habermas levou em conta a uma mudança estrutural no processo de formação da opinião pública em um contexto de emergência dos meios de comunicação de massa. .
Ao considerar os aspectos mencionados, pode-se dizer o papel de gatekeeper do jornalismo profissional foi reduzido. Em decorrência da abundância informacional, os jornalistas não monopolizam mais a seleção do conteúdo a ser publicado, mas passam a qualificar e redistribuir a informação já publicada. Novos atores midiáticos passam a competir com a imprensa na disseminação de interpretações sobre acontecimentos e a credibilidade do jornalismo é posta em xeque por aqueles que disputam a construção da agenda das questões públicas.
Poucas plataformas digitais passaram a ter um papel central como via de acesso à informação e ao debate público. A plataformização se refere à lógica comercial que conduz os usos da Internet em um sistema oligopolizado. Segundo José Van Djick, Tomas Poell e Martijhn de Wall (2018) a lógica da plataformização depende da transformação dos dados dos usuários em mercadoria. Quanto mais participativos os usuários, mais contribuem para a formação de um banco de dados comercial, matéria-prima da publicidade e do consumo personalizados.
Não à toa, as plataformas digitais tendem a incentivar seus usuários a permanecerem conectados, interagirem de forma instantânea e estabelecem meios de quantificar suas interações, como nas métricas de engajamento (curtidas, visualizações, comentários e compartilhamentos). Van Djick (2016) postula que a arquitetura das plataformas digitais é modelada no “princípio de popularidade”, o qual ranqueia as publicações, dando mais visibilidade àquelas com maiores índices de interação dos usuários. Na visão da autora, não se trata de característica meramente técnica, está ancorada em uma ideologia que privilegia a competitividade e favorece formas de comunicação de adesão imediata, dando mais visibilidade a um tipo de conteúdo de apelo emocional.
A tônica emocional no uso das plataformas digitais fora abordada por diversos autores. Castells (2013______. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.) ressalta como imediaticidade e interatividade própria da era digital fomenta certas formas de ação coletiva nas quais a emoção precede a organização institucionalizada e racionalizada das estratégias e dos objetivos dos protestos sociais. Em suas palavras,
[...] quanto mais rápido e interativo for o processo de comunicação, maior será a probabilidade de formação de um processo de ação coletiva enraizado na indignação, propelido pelo entusiasmo e motivado pela esperança (Castells, 2013______. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.: 23).
O autor se refere com otimismo em relação à potencialidade da organização de protestos forjados no individualismo em rede. Em oposição a formas clássicas de movimento social, os mais recentes protestos seriam mais flexíveis e dinâmicos, caracterizados por projetos instáveis e mutantes e impulsionados pela esperança ou pela indignação forjada instantaneamente em rede.
A dimensão emocional própria da comunicação nas plataformas digitais fora abordada de forma mais crítica por diversos autores, como Van Djick (2016), Richard Miskolci (2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada, v. 1. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.), Samira Marzochi e Fernando Balieiro (2021MARZOCHI, Samira Feldman; BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. Muralha de espelhos: o narcisismo político nas plataformas digitais. Revista Brasileira de Sociologia (RBS), v. 9, n. 23, p. 121-148, 2021.) que ressaltam a assimétrica precedência do afetivo sobre o reflexivo no debate de questões de interesse público na era digital. Sobretudo ao considerar a capacidade de manipulação passional por aqueles que possuem meios de lidar com banco de dados digitais desprotegidos para fins comerciais, como desvelado no escândalo da Cambridge Analytica, mas também no reforço narcísico das convicções promovidas pelas câmaras de eco das plataformas digitais. Em livro mais recente, o próprio Castells mudou o tom em relação à questão, quando afirma criticamente: “Esse parece ser um dado fundamental da conduta política de nosso tempo. Os cidadãos selecionam as informações que recebem em função de suas convicções enraizadas nas emoções” (Castells, 2018: 60).
Um dos desdobramentos, de natureza propriamente midiática do apelo emocional que predomina nas plataformas digitais é o que Jeffrey Berry e Sarah Sobieraj (2014BERRY, Jeffrey M; SOBIERAJ, Sarah. The outrage industry: political opinion media and the new incivility. New York: Oxford University Press, 2014.) chamaram de discurso indignado (outraged discourse), prevalente nas câmaras de eco, avessas ao debate matizado, reflexivo e ponderado:
O discurso indignado envolve esforços para provocar respostas emocionais (por exemplo, raiva, medo, indignação moral) pela audiência por meio do uso de supergeneralizações sensacionalismo, informação enganadora ou patentemente não acurada, ataques ad hominem e depreciação ridicularizadora dos oponentes. A indignação acompanha as nuances confusas de complexos tópicos políticos em favor do melodrama, do exagero deturpado, a zombaria, e previsões hiperbólicas de desgraça iminente (Berry & Sobieraj, 2014BERRY, Jeffrey M; SOBIERAJ, Sarah. The outrage industry: political opinion media and the new incivility. New York: Oxford University Press, 2014.: 7).
Próprio de um estilo midiático de longa data, o jornalismo sensacionalista, o discurso indignado pôde se difundir em plataformas digitais que lucram ao incentivar tais formas de comunicação, dada sua capacidade de reter a atenção dos espectadores. Tal aspecto nos leva a pensar como as mudanças sociotécnicas abordadas estão inseridas em um contexto de aprofundamento do consumo e exposição às mídias, consumo que cada vez mais se apresenta como generalizado por quase toda a população, ubíquo (permanente) e individualizado. Neste contexto, diversos veículos e formatos de mídia convergem em um sistema comunicacional híbrido e multimodal no qual as mídias passam a mediar as relações sociais.
Stig Hjarvard (2012_______. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. Matrizes, v. 5, n. 2, p. 53-91, 2012.) denomina de midiatização o processo, próprio da modernidade tardia, no qual as mídias adquirem certa autonomia frente a outros aspectos da vida social, ao mesmo tempo em que - dada sua centralidade - impõem sua lógica a eles. Quando se refere à lógica midiática, não se trata de uma definição estanque, mas de um aspecto a ser investigado, necessitando da contextualização e análise empírica do modus operandi das mídias e como suas características reconfiguram outros campos da vida social, dentre elas, seus aspectos organizacionais, estéticos e tecnológicos, suas regras formais e informais e suas dimensões materiais e simbólicas. São vários os autores (Hjarvard, 2014; Strömbäck, 2008STRÖMBÄCK, Jesper. Four phases of mediatization: an analysis of the mediatization of politics. International Journal of Press/Politics, v. 13, n. 3, p. 228-46, 2008. Disponível em: <http://dx.doi.org/ 10.1177/1940161208319097>.
http://dx.doi.org/ 10.1177/1940161208319...
) que fazem uso do conceito para a compreensão de profundas transformações na vida política.
Miskolci (2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada, v. 1. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.) reelabora criticamente essas características da nova ecologia midiática para a sua conceituação de “esfera pública” tecnomidiatizada. O autor salienta que o debate de questões de interesse público se reconfigurou em uma sociedade mediada pela lógica comercial das plataformas digitais. Salienta ainda que a lógica da popularidade, da instantaneidade e da competição degradou a “esfera pública”. Uma das consequências visíveis do novo contexto seria o ataque frequente aos mediadores culturais, sejam eles as universidades, o jornalismo profissional ou seus representantes. As formas legitimadas de produção do conhecimento e da informação passam a concorrer com outras modalidades, não mais balizadas pelo controle da comunidade acadêmica ou pelos critérios do jornalismo profissional.
Essas características impactaram em questões-chave, como a construção da agenda pública e o enquadramento midiático16 16 O agendamento é o nome que se dá ao poder da mídia de pautar certos temas como relevantes ou não. Trata-se da discussão em torno do poder - especialmente do jornalismo - de produzir e hierarquizar temas conforme o grau de importância atribuído. Derivada da teoria da agenda setting, criada originalmente por Maxwell MacCombs e Donald Shaw (1972), não se trata da discussão sobre os pontos de vista dominantes, mas da relevância, hierarquia e exclusão dos temas abordados. Já o enquadramento midiático se refere a como as mídias, além de trazer um tema para o debate público, são um veículo importante para gerar e disseminar uma interpretação sobre o mesmo. , os quais se tornaram um campo de disputa entre o jornalismo profissional e outros atores políticos com expertise e capital midiático. Em contraste com usuários comuns, alguns atores têm acesso diferencial a base de dados, ferramentas sofisticadas de monitoramento das plataformas digitais e conhecimento técnico avançado para se manter em condição de visibilidade nas plataformas ou para a disseminação em massa de determinadas mensagens. Atores competentes no processamento e interpretação dos dados e no domínio técnico das características automatizadas das plataformas - o que evidentemente demanda recursos financeiros e disposições específicas - passam a disputar o agendamento e o enquadramento midiático para seus próprios objetivos.
O conceito de enquadramento midiático permite evitar a análise simplista das representações midiáticas a partir de uma dicotomia entre uma suposta apreensão factual ou enviesada dos acontecimentos. Há uma série de determinantes que perpassam as rotinas de produção das notícias, as convenções e crenças profissionais, as fontes consultadas, o julgamento da audiência, além de matrizes interpretativas que conformam um determinado contexto cultural. Além da intencionalidade política expressa em enquadramentos editoriais, há aspectos institucionais que conformam as possibilidades de enquadramento, destaco os ideais de objetividade e facticidade presentes na formação e prática do jornalismo profissional. Ainda que sejam ideais, eles funcionam como norma que exige a justificação e validação social.
Atores sociais disputam os enquadramentos interpretativos dos acontecimentos, como políticos, partidos, sindicatos, movimentos sociais, associações profissionais. Entretanto, os grupos de interesse diversos até recentemente tinham poder limitado de disseminar seu próprio enquadramento, atuando como fontes privilegiadas no jornalismo ou quando conseguiam destaque na cobertura televisiva. Ainda assim sua visão era mediada por outro enquadramento, o do jornalismo, que se apresenta como profissional, neutro e objetivo. A capacidade de agendamento e enquadramento se transformou nas últimas décadas, com as transformações abordadas da ecologia midiática.
O enquadramento midiático do debate público tornou-se mais complexo em um contexto, segundo os termos de Judith Butler, de “onipresença das câmeras dispersas”. Butler (2015BUTLER, Judith. Tortura e a ética da fotografia: pensando com Sontag. In: ______. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) aborda a centralidade das imagens (audio)visuais na construção do nosso campo de percepção, considerando que é a partir da visualidade que se configura nossa capacidade de reagir com indignação, antagonismo e crítica. Estamos em contexto de diversificada produção audiovisual, produto da difusão de dispositivos móveis com câmeras, além de uma infinidade de dispositivos, softwares de edição e plataformas de divulgação. Em um contexto no qual se pode produzir, editar e publicar fotografias e vídeos, o enquadramento tem que ser repensado, especialmente na medida em que as imagens ou os vídeos, construídos a partir da
intencionalidade de quem os produz, aparecem como evidência transparente da realidade.
Da exposição à polêmica pelas lentes do jornal Zero Hora
Stuart Hall e equipe (1999HALL, Stuart, et al. A produção social das notícias: o mugging nos media. In TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Veja, 1999.), ao discutirem as práticas rotineiras de produção de notícias, abordam tanto a estrutura organizacional do jornalismo, sua separação em departamentos temáticos (a parte cultural e a esportiva, por exemplo), como também sua dependência de fontes institucionais regulares e credíveis, os chamados definidores primários, aqueles que definem sua interpretação primária, conduzindo o enquadramento do problema. Ao conservar a atualidade do argumento dos autores, a cobertura do evento artístico esteve inicialmente atrelada aos termos de divulgação do Santander Cultural. Entretanto, dentro de uma nova ecologia midiática, o enquadramento inicial foi profundamente deslocado, quando disputado por atores político-midiáticos que passaram também a aparecer nas páginas do jornal.
Mudanças expressivas nas últimas décadas incidiram sobre o jornalismo com a plataformização das notícias (Van Djick, Poell & Wall, 2018). A própria prática da leitura das notícias modificou-se radicalmente, tornando-se pulverizada e com a curadoria editorial afetada em razão da mediação das plataformas digitais que distribuem as notícias individualmente, de acordo com o perfil dos usuários. Sem aprofundar nessas questões, importa mencionar a produção simultânea das notícias sobre a Queermuseu pelo Zero Hora em sua versão impressa e digitalizada. Boa parte dos textos publicados na versão impressa também fora digitalizada. Entretanto, a produção digital das notícias teve volume muito superior, marcada pelo imperativo da publicação imediata, acompanhando os conflitos em tempo real.
Em agosto, mês inicial da mostra, foram poucas as matérias publicadas, sempre descritivas e convidativas, no intuito de divulgação das atividades do Santander Cultural. Destaca-se a matéria assinada pelo próprio curador da mostra, Gaudêncio Fidélis, a quatro dias do início da exposição, salientando a estética transgressiva e provocativa da exposição queer. Outra matéria adotava um tom também convidativo, apresentando a exposição como “promotora da discussão sobre diversidade nas artes visuais”. A última abordou a exposição com certa complexidade, tocando em diversos aspectos da mostra, passando pela proposta do curador, a visão do representante do Santander, a disposição das obras no espaço e as características de algumas obras destacadas. Nesse primeiro momento, o enquadramento da exposição é afinado com o enquadramento das fontes privilegiadas, quais sejam, o curador e o espaço cultural.
A partir de setembro há uma profusão de matérias, tanto no formato digital como na versão impressa. A abordagem mudou do foco da proposta estética da exposição para a polêmica em torno das acusações de promoção à “pedofilia”, “blasfêmia” e “zoofilia” e da defesa da exposição e da liberdade artística, apresentando os atores sociais envolvidos em um conflito em torno do fechamento da exposição e a respeito da natureza das obras. Há, portanto, a partir do reenquadramento nas plataformas digitais, uma guinada na abordagem da exposição para um conflito instalado em torno da interpretação da exposição.
Ressalta-se a publicação de muitas matérias opinativas, com jornalistas e professores universitários. Ainda que com visões distintas sobre a exposição, todos os artigos criticaram o seu fechamento. Além da posição comum de que, por princípio democrático, não se deve proibir exposição artística, os textos traziam críticas ao grupo que liderou a campanha. Encontra-se desde o questionamento do caráter genuinamente liberal do MBL à comparação do episódio com práticas de silenciamento de grupos de esquerda, à classificação dos detratores da exposição como fascistas, a depender da visão do crítico. O espaço aberto a uma variedade de vozes contrárias ao fechamento da mostra fez prevalecer no jornal uma visão crítica de seus detratores e, majoritariamente, em defesa da exposição, seu curador, bem como as e os artistas.
Entretanto, a demarcada presença do MBL, em repetidas matérias, fez com que seu enquadramento ganhasse espaço nas matérias do jornal. Nelas são apresentados recorrentemente os pontos defendidos pelo grupo político: a crítica ao conteúdo da exposição, supostamente contendo “pedofilia”, “zoofilia” e ofensa à fé cristã; a crítica ao financiamento público da exposição por meio de lei de incentivo à cultura; o questionamento da qualidade artística das obras contidas na exposição, consideradas de má qualidade; a defesa do boicote, entendido como expressão maior do livre mercado. O jornal ainda abriu espaço para o curador do evento que, sem poder afetar o novo enquadramento disseminado, repudia as interpretações do MBL, em réplica às acusações.
Ainda que escape ao corpus analítico desta pesquisa, é importante mencionar que o MBL teve presença marcada em vários outros veículos midiáticos17 17 Destaca-se a presença de representantes do MBL em programas da TV Bandeirantes, TV Gazeta, TVE do Rio Grande do Sul e na Rádio Guaíba. A abordagem televisiva sobre o escândalo não foi homogênea. Ressalta-se o contraste entre uma matéria do Fantástico, da TV Globo, e outra no Domingo Espetacular, da TV Record. A primeira, voltada ao tema da intolerância, convida especialistas jurídicos que recusam as acusações dos detratores da mostra e defendem a liberdade artística. Já a segunda matéria apresenta especialistas que afirmam a incompatibilidade da exposição - e de performance ocorrida posteriormente no MAM - com o público infantil, supostamente representando uma violação aos direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). , com destaque para programas de diversos canais televisivos que apresentaram o conflito seja entrevistando membros do próprio grupo ou dando espaço igual às partes - favoráveis e contrárias ao fechamento da exposição - ambas entendidas enquanto interlocutoras legítimas. O episódio atesta a capacidade do grupo político em projetar seu enquadramento nas mídias convencionais.
A atuação político-midiática do MBL
Criado em 2014, com sede em São Paulo, o Movimento Brasil Livre (MBL) esteve entre os grupos organizadores das manifestações massivas pelo impeachment de Dilma Rousseff. Originário, em parte, do grupo Students for Liberty, que participara dos protestos de 2013, sua formação está associada indiretamente ao apoio da rede de think tanks Atlas Network (Gohn, 2017GOHN, Maria da Glória. Manifestações e protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade. São Paulo: Cortez, 2017.)18 18 A data de origem do grupo é discutível. Salienta-se que uma página com o nome de Movimento Brasil Livre foi criada no Facebook no dia 17 de junho de 2013, durante as manifestações de rua. Aparentemente trata-se de uma marca criada pela agremiação Estudantes pela Liberdade (EPL) para poder participar das manifestações sem comprometer as doações de organizações americanas ao grupo (Caldara, 2020). . Oportunamente, no lastro do Movimento Passe Livre (MPL), organização que protagonizou as manifestações de rua de 2013, formou-se o MBL, mobilizando progressivamente a indignação expressa nas grandes manifestações de rua. As chamadas Jornadas de Junho surgiram em defesa do transporte público gratuito, mas dado seu caráter descentralizado, esteve aberta para uma diversidade de outras pautas, incluindo a denúncia da corrupção e o rechaço aos partidos, sentimento coletivo que abriria uma janela de oportunidade para um grupo de jovens se apresentar como alternativa para a renovação da política nacional.
Sua visão política sempre esteve atrelada a um posicionamento moral: o combate à corrupção e ao governo e aos partidos de esquerda foram seus principais focos de atuação. Diante do diagnóstico de corrupção generalizada no país, a qual era também atribuída a um suposto papel exacerbado do Estado na economia e nas políticas públicas, o grupo, desde então, defende a diminuição do papel do Estado na economia e amplas políticas de privatização. Maria da Gloria Gohn (2017GOHN, Maria da Glória. Manifestações e protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade. São Paulo: Cortez, 2017.) afirma que o MBL se aproxima mais de um grupo de pressão do que de um movimento social, uma vez que não possui base social organizada. Ainda que tal definição seja coerente com sua primeira fase, o MBL se tornaria algo distinto nos anos subsequentes. Especialmente após o impeachment, o grupo político passou a se dividir entre a política institucional e uma política midiática, buscando preservar sua relevância digital.
No contexto pós-impeachment de Dilma Rousseff, grupos de direita se articulavam em vista das eleições de 2018, com destaque para a campanha de Jair Bolsonaro nas plataformas digitais. Trata-se de um momento de refluxo das grandes manifestações, no qual o MBL passou cada vez mais a se voltar para a disputa pelo agendamento midiático de questões políticas e à profissionalização da carreira política de seus principais membros. Desde 2016, o MBL atua na política formal, elegendo oito candidatos no estado de São Paulo, dentre eles, uma de suas principais lideranças, o jovem Fernando Holiday, vereador na capital. Em 2018, elegeu outras duas de suas lideranças nacionais, Kim Kataguiri, como deputado federal e Arthur do Val, deputado estadual. Destaca-se que todos foram eleitos pelo Democratas, partido tradicional da direita, em relação ao qual adotou-se a justificativa de que os membros do MBL teriam autonomia de posicionamento, vantagem que não teria sido oferecida por outra legenda.
O MBL associou-se mais claramente ao conservadorismo moral já a partir do segundo ano de sua formação, mas o tema passou a ocupar uma parte importante de suas atuações após o impeachment, em 2016. Desde 2015, o MBL defende o projeto Escola sem Partido19 19 Idealizado por Miguel Nagib, o projeto se apresenta como proposta que supostamente defende a pluralidade, ocultando suas motivações conservadoras. Trata-se de um projeto de lei com o objetivo de vigilância dos professores, estimulando a judicialização das relações pedagógicas e a delação de professores por alunos ou colegas. A partir de 2015, seus defensores passam a combater de forma direta a chamada “ideologia de gênero” nas escolas (Miguel, 2016). , constando do documento apresentado em seu primeiro Congresso Nacional “Propostas de Políticas Públicas do MBL”. Em 2016, sua atuação passa pelo enfrentamento de mobilizações de esquerda, em um período profícuo de ocupações em escolas públicas, além das incursões do vereador Fernando Holiday nas escolas para pretensamente combater a suposta doutrinação ideológica dos professores. A atuação do grupo, no caso do Queermuseu, representou uma forma de amplificar seu protagonismo nesta seara de combate ideológico e moral à esquerda com apelo a segmentos eleitorais afinados com as redes de direita.
Parte da bibliografia sobre o MBL o caracteriza por sua expertise na utilização das plataformas digitais para fins de organização de manifestações de segmentos da sociedade civil. Essa abordagem vê as mídias digitais como meio de organização política, deixando de abordar como o MBL se constituiu propriamente enquanto ator midiático. A comunicação digital é característica definidora do grupo, o que é visível na criação do sítio de notícias próprio, o MBLNews, mas especialmente em sua atuação em diversas plataformas digitais. Como conta o documentário produzido por eles mesmos sobre a história do grupo até o impeachment20 20 Trata-se do filme “Não vai ter golpe! O nascimento de uma nação livre” (2019), de Alexandre Santos e Fred Rauh. , o audiovisual é algo central desde os momentos embrionários do grupo, a partir de então voltado à elaboração de vídeos e “memes descolados”. Soma-se à expertise no uso das plataformas de redes sociais a capacidade e as escolhas estratégicas a respeito dos temas e das abordagens com apelo à audiência, e habilita a disseminação destes vídeos por canais diversos.
O caso Queermuseu é exemplar da atuação política-midiática do MBL a partir de um estilo de discurso que visava produzir a indignação moral de suas audiências. Um dos expoentes mais relevantes foi Arthur do Val, do canal de YouTube “MamãeFalei”. Nascido em 1986, deputado estadual de São Paulo - hoje cassado -, Arthur do Val é uma das lideranças atuais do MBL, mas à diferença dos outros membros, entrou apenas em 2016. Seu canal no YouTube, desde que se notabilizou, sempre teve mais inscritos do que o do próprio MBL, cuja atuação se dava prioritariamente pelo Facebook. Ele é por volta de dez anos mais velho do que os dois jovens líderes que despontaram, inicialmente, como a jovem face pública do MBL, Kim Kataguiri e Fernando Holiday. Incorporado ao grupo, Arthur do Val se destaca na comunicação pelo YouTube, marcada por um estilo provocativo, tendo a esquerda como seu alvo preferencial.
Quase um ano após sua criação, no dia 18 de março de 2016, com a publicação do vídeo “Testando a militância petista na manifestação pró-governo”, com mais de um milhão de visualizações, do Val criou um estilo de produção audiovisual. Na parte destinada aos comentários, o próprio YouTuber relata, dois anos depois, que foi o vídeo que mudou a sua vida, em decorrência da visibilidade alcançada. A partir de então, tornaram-se correntes os vídeos em que ele adentra em manifestações organizadas por partidos ou movimentos de esquerda, para provocar os manifestantes, levando-os a entrar em contradição e expondo-os para efeitos cômicos. Ao editar os vídeos nas manifestações, faz valer a ideia de que os manifestantes de esquerda são alienados, desconhecendo verdadeiramente as causas que dizem defender e, portanto, não passam de manipulados pelos organizadores das manifestações.
Não raro, suas abordagens provocativas resultam em conflitos que podem chegar às vias de fato, sugerindo o caráter violento dos manifestantes para sua audiência que, por sua vez, apenas têm uma visão parcial dos conflitos, com a filmagem e edição de Do Val. O YouTuber esteve no centro dos debates envolvendo o Queermuseu. Além dele, o estilo provocativo de seus vídeos fora adotado por outro YouTuber local, correligionário do grupo na causa.
Dois tipos de produção audiovisual em torno da exposição se difundiram sobre a exposição. O primeiro, produto da portabilidade dos dispositivos digitais que possibilita a produção audiovisual de eventos in loco, caracterizou-se pela abordagem de dentro do Santander Cultural e suas adjacências, permitindo o recorte de certos fragmentos do acontecimento, direcionando a interpretação da audiência. O segundo, produzido em estúdio, caracterizado pela comunicação direta entre o comunicador e sua audiência, interpelando-a afetivamente e compartilhando uma narrativa.
Rafinha BK, YouTuber de Porto Alegre, gravou um vídeo que teve um papel relevante na campanha contra a Mostra do QueerMuseu. Como seu canal foi criado posteriormente ao Mamãe-Falei, presume-se que tenha sido influenciado por Arthur do Val, publicando vídeos confrontando estudantes da UFRGS em ocupação estudantil. A circulação de seu vídeo sobre a QueerMuseu rendeu a divulgação de seu nome nas páginas do jornal Zero Hora, confundido como membro do MBL. No vídeo “Censura: Santander incentiva a pedofilia!”21 21 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v= OWNQNFuSKBY&ab_channel=BKTuber>. Acesso em: 13 Mar. 2022. , publicado em 9 de setembro de 2017, ele apresenta a gravação como uma denúncia. A todo tempo é informado por funcionários que não se pode filmar dentro do Santander Cultural, recusando obedecer às orientações, e afirmando a existência de crimes nas obras expostas, de “blasfêmia” e “pedofilia”. Circula pela exposição, com um apoiador que o segue, denunciando o caráter “absurdo” que enxerga em certas obras e perguntando aos funcionários se há público infantil que visita a exposição. O vídeo termina quando ele é retirado à força por seguranças.
As filmagens in loco persistiram no dia de manifestação contrária ao fechamento da exposição. Não reconhecido por parte do público, Arthur do Val filmou a manifestação contrária ao fechamento da exposição, entrevistando os participantes22 22 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v= npS8U5Vp0gg&ab_channel= Mamaefalei>. Acesso em: 06 Mar. 2022. . Sem se apresentar, dirigia-se ao público perguntando e rebatendo o argumento de que o MBL realizou uma espécie de censura da exposição, quando a seu ver seria um boicote, além de questionar a opinião a respeito do projeto de lei Escola Sem Partido. Um manifestante que o reconheceu passa a abordá-lo perguntando quanto recebeu para estar lá, ao que ele responde que está lá para expor pessoas como ele. A exposição midiática é perceptível no vídeo, na tentativa de desmoralizar seus entrevistados, tentando contradizer os entrevistados ou deixá-los sem resposta, aumentando a provocação com o desenrolar do vídeo. Um dos manifestantes lhe dirige um soco, o que é filmado e reproduzido não apenas pela câmera do YouTuber, mas por outras duas câmeras em outros ângulos. Os manifestantes expulsam o YouTuber, atingindo-o corporalmente. Ele retorna à manifestação e filma um grupo de pessoas chamando-o de fascista.
BK Tuber publicou outros dois vídeos, um na mesma manifestação e outro em um debate23 23 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=x-bqkbDx4dQ&ab_channel=BKTuber> e <https://www.youtube.com/watch?v= JoYMSvT7Uqo&list= PLFlr3z62yNBFDGr6 NON2CCcAQ2 MThXQos&index= 9&ab_channel=BKTuber>. Acesso em: 06 Mar. 2022. com o desembargador federal e procurador do Ministério Público Federal, no sindicato dos bancários de Porto Alegre, no dia 20 de setembro. O vídeo, reproduzido na página do MBL24 24 O título da matéria na página é “O Bk tuber foi até um debate com o curador do Queermuseu e mais uma militância defensora de exposições com sexo e nudez para crianças e [tentou] falou verdades sobre o assunto. Óbvio que Gaudêncio fugiu do debate e sua militância ficou irritada com o caso”. Disponível em: <https://web.facebook.com/watch/?v= 71849695160 7784>. Acesso em: 14 Mar. 2022. , apresenta uma abordagem ainda mais provocativa. Chega ao local e se apresenta como um admirador e abraça Gaudêncio Fidélis, que demora a reconhecê-lo. Passa então a acusá-lo diretamente, de frente para as câmeras, de apologia ao crime e diz que vai participar do debate. A câmera é usada não apenas para captar a discussão, mas para constranger as pessoas ali presentes. Expõe o curador e os participantes da mesa, dizendo que se o país fosse sério eles deveriam ser exonerados e Fidélis preso. A provocação chega ao ápice quando é retirado do espaço, desta vez por participantes da discussão que o levam para fora do local. Entretanto, ele continua a perseguir o curador até este entrar no carro que o retiraria dali.
Em concomitância aos vídeos in loco produzidos e/ou divulgados pelo MBL, vídeos narrativos foram também elaborados. Kim Kataguiri, defendendo-se da acusação de que promovera a censura da exposição, afirmou: “quem foi que pegou o dinheiro do pagador de impostos, em meio a uma das maiores crises da história do país, para fazer uma exposição que promove zoofilia, pedofilia e ataca o cristianismo, para crianças. E que fique bastante claro: era para crianças!”. Ao defender o boicote, finaliza dizendo: “quer organizar essa porcaria dessa mostra, organiza com dinheiro privado e para adultos”25 25 Disponível em: <https://web.facebook.com/watch/?v=681719215285558. Acesso em: 14 Mar. 2022. .
Arthur do Val divulgou um vídeo que resumiu sua visão do teor da mostra:
Educação, cultura e diversidade são obras de arte com zoofilia, pedofilia, crianças trans? [...] Isso faz parte claramente de uma agenda autoritária de esquerda. [...] Por pessoas querendo de maneira autoritária empurrar isso goela abaixo [...] para crianças e para jovens26 26 Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v= FiSNvXJYmP4>. Acesso em: 13 Mar. 2022. .
Seu vídeo termina associando a exposição com a campanha contra a suposta doutrinação nas escolas e afirma para a audiência que para acabar com a doutrinação das crianças, parte da agenda da esquerda autoritária, é preciso apoiar o projeto Escola Sem Partido. A descrição do vídeo trazia o link para uma petição favorável ao projeto de lei Escola Sem Partido criada pelo próprio MBL no sítio Citizen Go.
Poucos dias depois do fechamento da mostra, outra apresentação artística se tornou objeto de discussão pública: a performance “La Bête”, do artista Wagner Schwartz, na abertura da exposição “Panorama de arte brasileira”, no MAM-SP, inspirada na obra “Os bichos”, de Lígia Clark. Na apresentação,
[...] o artista nu manipulou uma réplica de plástico de uma das esculturas da série de Lígia Clark e convidou o público a articular as diferentes partes de seu corpo por meio de suas dobradiças (Silva, 2019SILVA, Sara Raquel de Andrade. Reação, mobilização e produção de sentidos na arte: um olhar sobre a trajetória da exposição Queermuseu. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2019.: 244).
Outro escândalo foi construído a partir da circulação de um vídeo da performance, na abertura da mostra para uma plateia seleta, que captou um momento no qual uma criança participava da apresentação tocando no tornozelo do artista. O nu era encarado como sinônimo de sexualidade, visando o público infantil.
Dentre vários vídeos e postagens do MBL sobre o ocorrido, Kim Kataguiri divulgou um vídeo com o seguinte título: “Exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo é mais uma que mostra a falta de bom senso e de decência de pessoas que querem seguir uma agenda criminosa e nociva para nossas crianças”. No vídeo, ele diz: “E eu não sei qual é a tara que essa gente tem por criança! [...] Por que fazer isso com criança? [...] Para quê? Qual a agenda que está por trás disso?”. A interpretação de ambos os membros do MBL associa a exposição e a performance artística a uma agenda política de esquerda que visaria o público infantil27 27 Disponível em: <https://www.facebook.com/kataguiri.kim/videos/vb.833053646745836/1668934713157721>. Acesso em: 13 Mar. 2022. .
O episódio teve seus desdobramentos finais quando Gaudêncio Fidelis, curador da exposição Queermuseu, foi convocado a depor na CPI de Maus-Tratos a Crianças e Adolescentes, no dia 23 de novembro de 2017, na mesma sessão em que depôs também Luiz Camillo Osório, curador da exposição do MAM. O Ministério Público abriu inquérito para investigar Schwartz em denúncia de conteúdo impróprio às crianças, e o artista prestou depoimento de quase três horas na 4ª Delegacia de Polícia de Repressão à Pedofilia.
Considerações finais
Este artigo buscou analisar as disputas de enquadramento midiático em torno do escândalo da QueerMuseu, comparando a abordagem jornalística do Zero Hora com a abordagem do MBL disseminada nas plataformas digitais. Foi possível atestar como o grupo político foi capaz de difundir o seu enquadramento também nas mídias convencionais, ampliando a recepção para além de seu público segmentado, desvelando um continuum entre as mídias em um contexto de complexa convergência midiática. Seu enquadramento se caracterizou por um estilo de comunicação passional com o objetivo de produzir indignação moral, interpelando emocionalmente segmentos sensíveis a sua interpretação.
Em contraste com interpretações correntes que deslocaram a polêmica a uma disputa entre o que se chamou de “fundamentalistas religiosos” e “ativistas dos direitos humanos”, o caso específico do QueerMuseu não foi protagonizado por religiosos, os quais apenas se posicionaram em um segundo momento, junto com outros atores políticos e não de forma homogênea28 28 A exceção são políticos de bancadas religiosas que fizeram uso palavra em parlamentos municipais, estaduais e municipais para manifestarem repúdio à exposição e, em acréscimo, à esquerda. Entretanto, não foram apenas os políticos religiosos que se manifestaram, mas também aqueles situados no espectro político da direita, como o então prefeito da cidade de São Paulo, João Dória, que se manifestou contra a performance no MAM. Cabe ainda ressaltar que a polêmica rendeu dividendos políticos ao outro lado do embate moral, em defesa da exposição artística e dos direitos LGBTI+. Gaudêncio Fidélis, curador da mostra, tornou-se candidato a deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. O fato de não ter sido eleito - ao contrário de seus detratores do MBL - talvez seja um indicativo de que os ganhos políticos em torno das polêmicas morais são mais favoráveis ao campo da direita, historicamente associado ao conservadorismo moral. . A Arquidiocese de Porto Alegre, por exemplo, difundiu nota crítica em relação à exposição em 11 de setembro, depois de seu fechamento, com outro tom. A crítica se dirige à utilização de símbolos religiosos, recusando-se a reproduzir a acusação de “pedofilia”, além de reiterar a importância de se combater o preconceito e a intolerância de qualquer espécie29 29 Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/artes/noticia/2017/09/eliminar-as-dificuldades-jamais-pode-significar-desrespeitar-o-outro-e-suas-crencas-diz-arquidiocese-de-poa-sobre-mostra-queermuseu -9894242.html>. Acesso em: 14 Mar. 2022. .
A reabertura da exposição no Parque Lage, no Rio de Janeiro, entre agosto e setembro de 2018, com financiamento coletivo de apoiadores, demonstra que a interpretação do MBL nem de longe se tornou unânime. Entretanto, ela certamente serviu para reforçar sua presença nas mídias em um tema sensível para segmentos de direita, ao reforçar uma visão espraiada de corrupção moral de esquerda. Ao se apresentarem como representantes do povo, em crítica a uma presumida elite cultural, protagonizaram uma batalha moral. Sua posição destacada nas mídias apareceu em momento oportuno, na preparação para o ano eleitoral de 2018, a partir do qual a política institucional faria cada vez mais parte dos objetivos do grupo.
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Queer, vocábulo de origem inglesa que designa dissidência sexual, remete tanto ao questionamento das normas sexuais quanto à indeterminação sexual, em oposição ao essencialismo identitário. A proposta curatorial recusa sua tradução como termo guarda-chuva das questões LGBTI+, com a pretensão de incorporar a questão das diferenças, de forma a desestabilizar o cânone artístico que, historicamente as invisibilizou. Sobre a utilização conceitual do queer na exposição, consultar Fidélis, 2017.
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A exposição foi contemplada com 800 mil reais, via renúncia fiscal, pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, quantia que seria devolvida aos cofres públicos, segundo declaração oficial do Santander.
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Ainda que não seja essa a denominação escolhida pelo curador, diversidade foi o termo que sintetizou a abordagem oficial da exposição pelo espaço cultural promotor. Sérgio Rial, presidente do Santander Cultural, em texto de abertura do catálogo da mostra deixa claro como a política da diversidade está ancorada em uma estratégia empresarial: “O que é diverso e tem multiplicidade, seja na área cultural ou étnica, na crença ou na linguística, ganha cada vez mais atenção por parte da nossa organização. Diferentes ângulos de visão e abordagens são fundamentais e extrapolam questões institucionais ou relacionadas ao politicamente correto. Trata-se de um valor para nossa empresa, pois acreditamos que a diversidade é a impulsora da criatividade e da eficiência” (Fidélis, 2017: 1). Na sequência, manifesta a pretensão de pioneirismo do banco em adotar a abordagem: “Esta é a primeira exposição já realizada no Brasil com a referida abordagem, além de ser a primeira com tal envergadura na América Latina, o que insere plenamente o Santander em um contexto global. Queremos cultivar a diversidade em uma organização contemporânea, plural, criativa e madura (Fidélis, 2017: 1).
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“[...] ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”. Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/santanderbrasil/ posts/1015472037 3470588/>. Acesso em: 02 Mar. 2022.
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5
Refere-se à dimensão interpretativa realizada pelas mídias que, ao se voltarem para determinados eventos, não apenas os reproduzem, mas são partes constitutivas de sua construção social. O conceito de enquadramento midiático ou media framing têm como influência indireta a obra madura de Erving Goffman (2012), que compreende enquadramento como a forma em que um indivíduo enxerga a realidade sempre a partir de matrizes interpretativas anteriormente formadas. A abordagem do autor foi apropriada a partir dos anos 1980 pelas áreas da comunicação e da sociologia das mídias, especificamente no estudo do jornalismo.
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Disponível em: <https://www.locusonline.com.br/2017/09/06/santander-cultural-promove-pedofilia-pornografia-e-arte-profana-em-porto-alegre>. Acesso em 13 Mar. 2022.
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Parte da bibliografia a respeito do evento classificou os detratores da mostra como “fundamentalistas religiosos”, categoria acusatória que menos explica do que confunde, ao deixar de fora da análise o fato de que o principal grupo vinculado à campanha contra a exposição não era religioso, mas laico e autocompreendido como liberal. Tal visão se espraiou nas próprias falas do curador do evento, Gaudêncio Fidélis, e em textos que circularam na imprensa, como o de Ivana Bentes (2017). A interpretação reduz a polêmica à oposição entre os defensores da exposição e “religiosos”, considerados ameaça à laicidade do Estado.
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Como exemplo, a polêmica circulou em grupos de extrema-direita voltadas à pré-candidatura de Bolsonaro no Facebook, associando arte e uma suposta agenda da esquerda com a “pedofilia”. Publicações retomavam a atuação do então deputado federal contra o kit anti-homofobia, em 2011, e se compartilhou um programa televisivo no qual Bolsonaro afirmava a necessidade de se “fuzilar” os envolvidos na mostra, salientando que se tratava de uma expressão em sentido figurado (Dalmonte & Souza, 2019).
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Em relação à ausência de classificação etária, havia uma equipe de monitores que orientava grupos com crianças ou menores de idade sobre obras com cenas de nudez ou referência a sexo, localizando os trabalhos com tais características. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2017/09/queermuseu-mostra-e-cancelada-apos-ataques-em-redes-sociais-9892968.html). Acesso em: 12 Mar. 2022.
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Em diálogo com a psicanálise, poder-se-ia denominar mais propriamente de histeria moral, em vez de pânico, conforme desenvolvido em artigo, ao considerar aspectos como a projeção, o recalque e a autodefesa na construção do Outro como ameaça (Marzochi & Balieiro, 2021).
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Afora a indignação moral esperada em relação ao desvelamento de uma grande operação de corrupção, cabe ressaltar seu aspecto midiático, que apresentou um quadro interpretativo a ela. A exposição midiática da Operação Lava-Jato foi sistemática desde 2014, com inúmeras ações televisionadas: mandados de busca e apreensão, conduções coercitivas e prisões preventivas. Grandes empreiteiras e agentes públicos foram alvo da operação que envolvia desvio de dinheiro público a partir do pagamento de propina para o favorecimento de contratos em licitações da Petrobrás. Além das imagens de prisões e conduções policiais de investigados, a imprensa passaria a publicar continuamente material de denúncias fornecidas pelas delações premiadas. O ápice da operação se deu com a prisão do ex-presidente Lula no ano eleitoral de 2018. Dois anos antes ocorrera a amplamente televisionada condução coercitiva do líder petista em uma operação policial que foi marcada por sua magnitude.
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Como exemplo, algumas matérias analisadas da Zero Hora, de natureza distinta, parecem sintetizar tal diagnóstico, como o editorial de 15 de setembro, que defende o “cerco” judicial “à má política” e uma matéria do dia posterior sobre uma palestra do filósofo Clóvis de Barros Filho, com o título “Estamos assistindo a uma erosão da moral” em que convida os leitores do jornal a assistirem sua palestra “Por um país mais ético”.
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Os defensores da mostra, por sua vez, passaram a se apresentar como representantes da liberdade artística, da democracia e dos direitos LGBTI+ em oposição a “reacionários” e “fundamentalistas”. Em ambos os casos, há possíveis ganhos simbólicos que potencialmente podem ser revertidos para a política. Gaudêncio Fidélis candidatou-se a deputado estadual, a convite do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2018.
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As últimas décadas foram marcadas pela expansão do acesso à Internet, o que foi intensificado a partir de meados da década de 2010, com o barateamento do custo dos telefones móveis e da expansão das redes móveis. Em 2014, o acesso via celulares ultrapassou aquele realizado por computadores, consolidando uma nova forma de consumo midiático, ultrassegmentado e individualizado (Miskolci & Balieiro, 2018).
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A teoria da esfera pública, de origem habermasiana, está novamente na ordem do dia nas discussões contemporâneas sobre a questão do impacto que as transformações midiáticas oferecem à democracia. A “esfera pública”, na acepção de Jürgen Habermas (2014), caracteriza-se por um contexto comunicativo baseado no princípio de prover “discussão pública mediante razões”. A despeito das críticas à sua concepção restritiva de “esfera pública” (Fraser, 1990), interessa retomar como Habermas levou em conta a uma mudança estrutural no processo de formação da opinião pública em um contexto de emergência dos meios de comunicação de massa.
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O agendamento é o nome que se dá ao poder da mídia de pautar certos temas como relevantes ou não. Trata-se da discussão em torno do poder - especialmente do jornalismo - de produzir e hierarquizar temas conforme o grau de importância atribuído. Derivada da teoria da agenda setting, criada originalmente por Maxwell MacCombs e Donald Shaw (1972), não se trata da discussão sobre os pontos de vista dominantes, mas da relevância, hierarquia e exclusão dos temas abordados. Já o enquadramento midiático se refere a como as mídias, além de trazer um tema para o debate público, são um veículo importante para gerar e disseminar uma interpretação sobre o mesmo.
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Destaca-se a presença de representantes do MBL em programas da TV Bandeirantes, TV Gazeta, TVE do Rio Grande do Sul e na Rádio Guaíba. A abordagem televisiva sobre o escândalo não foi homogênea. Ressalta-se o contraste entre uma matéria do Fantástico, da TV Globo, e outra no Domingo Espetacular, da TV Record. A primeira, voltada ao tema da intolerância, convida especialistas jurídicos que recusam as acusações dos detratores da mostra e defendem a liberdade artística. Já a segunda matéria apresenta especialistas que afirmam a incompatibilidade da exposição - e de performance ocorrida posteriormente no MAM - com o público infantil, supostamente representando uma violação aos direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
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A data de origem do grupo é discutível. Salienta-se que uma página com o nome de Movimento Brasil Livre foi criada no Facebook no dia 17 de junho de 2013, durante as manifestações de rua. Aparentemente trata-se de uma marca criada pela agremiação Estudantes pela Liberdade (EPL) para poder participar das manifestações sem comprometer as doações de organizações americanas ao grupo (Caldara, 2020).
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Idealizado por Miguel Nagib, o projeto se apresenta como proposta que supostamente defende a pluralidade, ocultando suas motivações conservadoras. Trata-se de um projeto de lei com o objetivo de vigilância dos professores, estimulando a judicialização das relações pedagógicas e a delação de professores por alunos ou colegas. A partir de 2015, seus defensores passam a combater de forma direta a chamada “ideologia de gênero” nas escolas (Miguel, 2016).
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Trata-se do filme “Não vai ter golpe! O nascimento de uma nação livre” (2019), de Alexandre Santos e Fred Rauh.
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Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v= OWNQNFuSKBY&ab_channel=BKTuber>. Acesso em: 13 Mar. 2022.
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O título da matéria na página é “O Bk tuber foi até um debate com o curador do Queermuseu e mais uma militância defensora de exposições com sexo e nudez para crianças e [tentou] falou verdades sobre o assunto. Óbvio que Gaudêncio fugiu do debate e sua militância ficou irritada com o caso”. Disponível em: <https://web.facebook.com/watch/?v= 71849695160 7784>. Acesso em: 14 Mar. 2022.
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Disponível em: <https://web.facebook.com/watch/?v=681719215285558. Acesso em: 14 Mar. 2022.
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Disponível em: <https://www.facebook.com/kataguiri.kim/videos/vb.833053646745836/1668934713157721>. Acesso em: 13 Mar. 2022.
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A exceção são políticos de bancadas religiosas que fizeram uso palavra em parlamentos municipais, estaduais e municipais para manifestarem repúdio à exposição e, em acréscimo, à esquerda. Entretanto, não foram apenas os políticos religiosos que se manifestaram, mas também aqueles situados no espectro político da direita, como o então prefeito da cidade de São Paulo, João Dória, que se manifestou contra a performance no MAM. Cabe ainda ressaltar que a polêmica rendeu dividendos políticos ao outro lado do embate moral, em defesa da exposição artística e dos direitos LGBTI+. Gaudêncio Fidélis, curador da mostra, tornou-se candidato a deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. O fato de não ter sido eleito - ao contrário de seus detratores do MBL - talvez seja um indicativo de que os ganhos políticos em torno das polêmicas morais são mais favoráveis ao campo da direita, historicamente associado ao conservadorismo moral.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Ago 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
-
Recebido
18 Mar 2022 -
Aceito
18 Maio 2022