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Os cinemas negros brasileiros e a transformação da imagem: percursos de um termo estético-político

The Brazilian black films and the transformation of the image: paths of an aesthetic-political term

Resumo

O presente artigo discute os processos históricos, políticos e sociais que favoreceram a difusão de festivais, mostras, encontros, cineclubes e coletivos de cinema/audiovisual negro na última década no Brasil. O texto aponta como a maior formação técnica e artística de pessoas negras diante da democratização e expansão do ensino superior, em conjunto com mobilizações coletivas de profissionais negros(as) do audiovisual, criaram um crescente cenário de produção e circulação de filmes de autoria negra no país. Por fim, reflete-se como esses filmes podem indicar novas formas de se pensar e fazer cinema, ao proporem uma transformação na representação racial.

Palavras-chave:
Cinema; Cinema negro; Raça; Representação; Audiovisual brasileiro

Abstract

This article discusses the historical, political and social processes that promote the diffusion of festivals, movie’s shows, movie’s meetings, film clubs and black cinema/audiovisual collectives in the last decade in Brazil. The text points out how the greatest technical and artistic training of black people in the face of the democratization and expansion of higher education, together with collective mobilizations of black people in the audiovisual sector, creates a growing scenario for the production and circulation of films by authorship black in the country. Finally, it is reflected how these films can indicate new ways of thinking and making cinema, in proposing a transformation in racial representation.

Keywords:
Cinema studies; Black film; Race; Representation; Brazilian audiovisual

Palavras-chave:
Cinema; Cinema negro; Raça; Representação; Audiovisual brasileiro

Keywords:
Cinema studies; Black film; Race; Representation; Brazilian audiovisual

Introdução: o nascimento do cinema negro no Brasil

Embora seja impossível afirmar que o termo “cinema negro” surgiu somente na última década, é nesse período que ele vem ganhando força no Brasil. Fora daqui, mais especificamente nos Estados Unidos, o termo race movie já era usado no início do século passado para nomear qualquer filme com personagens negros protagonizando uma narrativa. Os race movies, em suma, eram filmes que contavam histórias de pessoas negras, sensíveis às questões raciais, para serem assistidos pelo público negro. Oscar Micheaux foi o diretor, produtor e roteirista expoente desse gênero, tendo sido o primeiro homem negro a realizar um longa-metragem na história dos Estados Unidos (Cripps, 1978CRIPPS, Thomas. Black film as genre. Bloomington, IN: Indiana University Press, 1978.). A partir de Micheaux surgiu a ideia embrionária de um “cinema negro” (black film) (hooks, 2019).

Posteriormente, já na década de 1970, essa ideia se radicaliza quando uma geração de cineastas negros(as) começa a questionar como esse tipo de produção pode significar novos modos de pensar e fazer cinema, em suas estéticas e narrativas. Ainda nos Estados Unidos, no mesmo período de atuação política do Partido dos Panteras Negras (Black Panther Party) e do movimento de contracultura Black Power (Carvalho, 2012CARVALHO, Noel dos Santos. O produtor e cineasta Zózimo Bulbul - o inventor do cinema negro brasileiro. Revista Crioula, n. 12, Nov. 2012.), tivemos uma geração chamada de “La Rebellion”, formada por cineastas negros(as) graduados(as) na Universidade da California, em Los Angeles (UCLA). Para essa geração, o poder de olhar por trás das câmeras importava mais, e o que eram apenas filmes sensíveis às questões raciais, tornaram-se filmes que valorizavam a criatividade da autoria negra e o talento de atores e atrizes negros(as) como personagens principais, não mais secundários, dos enredos (Reid, 1993REID, Mark A. Redefining black film. Berkeley, CA: University of California Press, 1993.).

Esse contexto político-cultural estadunidense, além das revoluções anticoloniais na África que ocorreram em efeito dominó a partir da década de 1960, também reverberou no Brasil durante a década de 1970, marcada por fim pela fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) (Domingues, 2007DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007.). Naquele período, grandes nomes da intelectualidade negra brasileira procuraram resgatar a centralidade do debate racial nas interpretações do Brasil e na esfera pública1 1 Vale destacar que foco aqui no tratamento do debate racial no meio político e na produção intelectual que refletiu sobre o cinema brasileiro entre as décadas de 1960 e 1970. Assim sendo, não cabe aprofundar - apesar de valer esta nota introdutória - sobre a atuação do Teatro Experimental do Negro (TEN) nas décadas anteriores. O TEN, sobretudo nas figuras de Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos e através do grupoterapia e da revista O Quilombo, foi pioneiro em questionar os estereótipos raciais na produção intelectual e cultural brasileira, pegando carona no pensamento pós-colonial da década de 1940 presente na literatura francófona. Por esse motivo, afirmo que a geração de 1970 buscou “resgatar” a centralidade do debate racial nas interpretações do Brasil. Para mais, cf. Barbosa, 2013. . Nomes como Clóvis Moura, Eduardo de Oliveira e Oliveira e Beatriz Nascimento foram expoentes em projetar o que eles mesmos chamaram de uma “Sociologia Negra” (Trapp, 2018TRAPP, Rafael Petry. A sociologia negra de Eduardo de Oliveira e Oliveira. Revista da ABPN, v. 10, n. 25, p. 194-221. 2018.), concepção de ciência social na qual o povo negro pudesse se colocar como sujeito do conhecimento teórico e agente de transformação social da realidade. Tratava-se de um projeto político e epistemológico que pretendia dar protagonismo a intelectuais e pesquisadores(as) negros(as) nas interpretações sobre as relações raciais, a fim de tensionar não somente o mito da democracia racial brasileira, mas também a desigualdade racial na produção intelectual.

Ali, surgia com força um pensamento social negro que buscava escapar do intelectualismo branco-europeu, que na visão deles(as), não estava atento à discriminação racial cotidiana e à colonização do próprio pensamento político-sociológico. Para resolver esse problema, seria necessário reposicionar pessoas negras e indígenas nas representações da história brasileira, até então “escrita por mãos brancas” - como afirma Beatriz Nascimento em sua conferência na Quinzena do Negro da USP de 1977 (Trapp, 2018TRAPP, Rafael Petry. A sociologia negra de Eduardo de Oliveira e Oliveira. Revista da ABPN, v. 10, n. 25, p. 194-221. 2018.: 203). Ao atestando a natureza política dos estudos raciais e acusando até mesmo os intelectuais mais progressistas de instrumentalizarem a negritude em teses distantes do seu próprio ponto de vista, o movimento deu uma resposta à supressão do debate racial que ocorria no ambiente político e artístico brasileiro durante os primeiros anos de vigência do Ato Institucional n.º 5 - com exceção, vale destacar, à “sociologia da práxis negra” de Clóvis Moura (Trapp, 2018:208) e A integração do negro na sociedade de classes, tese publicada em 1964 por Florestan Fernandes2 2 Oriunda de pesquisas sociais financiadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no início dos anos 1950, com o objetivo de investigar as relações raciais e o conceito de raça, em resposta ao holocausto nazista. O Brasil era visto como um grande laboratório pelo suposto caráter democrático de sua estrutura racial, o que é desmascarado pelo trabalho de Florestan. .

Injustas ou não, as críticas fomentadas por essa geração foram importantes vetores para uma pequena virada discursiva, que pretendia trazer o protagonismo de intelectuais e artistas negros(as) nas interpretações e representações sobre o Brasil. Testemunha dessa virada foi um cineasta negro que se incomodava com a diluição da identidade negra numa ideia homogênea de povo mestiço brasileiro. Assim começou a história da atuação artística e política de Zózimo Bulbul: ator, cineasta e multiartista considerado o pai do cinema negro brasileiro (Carvalho, 2012CARVALHO, Noel dos Santos. O produtor e cineasta Zózimo Bulbul - o inventor do cinema negro brasileiro. Revista Crioula, n. 12, Nov. 2012.).

Bulbul foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e frequentador do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE), tendo por meio deles contato com a produção cinematográfica do Cinema Novo. A partir de sua aproximação com o CPC, conseguiu seu primeiro trabalho como ator no curta Pedreira de São Diogo, dirigido por Leon Hirszman, um dos cinco episódios de Cinco vezes favela (Marcos Farias, Leon Hirszman, Carlos Diegues, Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade, 1962). Em 1963, Bulbul também

[...] atuou nos filmes Ganga Zumba (Carlos Diegues) e Grande sertão (Geraldo e Renato Santos Pereira). Em seguida trabalhou em El justicero (Nelson Pereira dos Santos, 1967), Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967), O homem nu (Roberto Santos, 1968), Proezas do Satanás na terra do leva-e-traz (Paulo Gil Soares, 1968) e O engano (Mário Fiorani, 1968). Em 1968 atuou ainda no filme Le Grabuge, produção francesa dirigida por Eduardo Luntz que nunca foi exibido comercialmente no Brasil (Carvalho, 2012CARVALHO, Noel dos Santos. O produtor e cineasta Zózimo Bulbul - o inventor do cinema negro brasileiro. Revista Crioula, n. 12, Nov. 2012.: 3).

Mas é no início da década de 1970, em Compasso de espera (Antunes Filho, 1973), que Bulbul realiza seu primeiro trabalho paradigmático. Nele, o ator interpreta Jorge, um artista e intelectual de classe média, que vive as contradições de ascender socialmente, relacionar-se sexualmente com mulheres brancas e conviver com o preconceito racial. Segundo o depoimento do próprio diretor do filme, Antunes Filho, em entrevista realizada por Carvalho (Carvalho, 2012CARVALHO, Noel dos Santos. O produtor e cineasta Zózimo Bulbul - o inventor do cinema negro brasileiro. Revista Crioula, n. 12, Nov. 2012.: 10-11), o filme foi diretamente influenciado pelas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil realizadas por Roger Bastide e Florestan Fernandes. A leitura do trabalho de Fernandes, diz Antunes Filho, foi determinante para que o filme não reproduzisse estereótipos sobre personagens negros(as).

Compasso de espera tornou-se um dos raros longas-metragens na história do cinema brasileiro com um personagem negro protagonista de classe média, sem que o debate racial fosse suprimido da narrativa. É preciso destacar que o próprio Zózimo Bulbul foi parceiro de Antunes Filho na escrita do roteiro, o que faz do filme a semente que germinaria na realização do primeiro projeto de cinema negro no Brasil. Jorge, personagem de Bulbul, parecia traduzir a tese de Fernandes para o cinema, ao ser um poeta negro que internalizou os códigos de conduta do “mundo dos brancos”, agindo passivamente diante de comentários racistas a fim de se integrar à alta sociedade. Não à toa, ao retornar para casa de sua mãe, Jorge é confrontado por sua irmã Zefa, interpretada por Léa Garcia, por abandonar completamente suas características e se comportar como um “branco”.

Não surpreende, Compasso de espera foi censurado pelo governo militar, sob a justificativa, segundo o próprio Bulbul, de que “no Brasil não tinha preconceito racial” (Carvalho, 2012CARVALHO, Noel dos Santos. O produtor e cineasta Zózimo Bulbul - o inventor do cinema negro brasileiro. Revista Crioula, n. 12, Nov. 2012.: 11). Após insistência do ator, o filme finalmente foi liberado três anos depois, em 1973, no mesmo ano que ele lançou, dessa vez também como diretor, seu primeiro filme autoral: Alma no olho (Zózimo Bulbul, 1973). O curta, que foi rodado com os negativos que sobraram de Compasso de espera, é considerado um marco para o cinema negro no Brasil, por ser inteiramente produzido, escrito, dirigido e atuado por uma pessoa negra (Carvalho, 2012: 13).

Ao som de Kulu Sé Mama, de John Coltrane, Bulbul escreve e dirige o curta em que ele mesmo atua solitariamente, performando de modo crítico a história da população negra brasileira da escravidão ao pós-abolição. O teor crítico sobre as desigualdades raciais no país fez Alma no olho também ser censurado pela ditadura militar, além de Bulbul se exilar na Europa, levando consigo cópias do filme. Após retornar ao país, em 1977, Bulbul se tornou ainda mais atuante em prol da mudança da imagem de pessoas negras no cinema brasileiro. Dessa vez, o artista parecia se voltar contra seus antigos parceiros de CPC-UNE, tecendo críticas diretas aos filmes de diretores como Cacá Diegues e Walter Lima Jr. (Carvalho, 2012CARVALHO, Noel dos Santos. O produtor e cineasta Zózimo Bulbul - o inventor do cinema negro brasileiro. Revista Crioula, n. 12, Nov. 2012.: 15).

O cineasta comprava para si a responsabilidade de transformar a representação racial do cinema brasileiro. Mas ele não agia apenas como crítico, já que também preparava terreno para a produção de seus próprios projetos, sendo o mais ambicioso deles um longa-metragem que viria para fazer uma revisão da história da cultura afro-brasileira. Abolição (Zózimo Bulbul, 1988), como o próprio nome indica, foi um projeto construído pelo artista para ser lançado no mesmo ano do centenário da Lei Áurea de 1888. O título parece ter um sentido ambíguo: ao mesmo tempo em que se registra o marco histórico, dá a entender, durante a narrativa, que uma “abolição” de fato nunca existiu. No documentário, Bulbul filma e entrevista diversos personagens da cultura afro-brasileira, além de intelectuais como Gilberto Freyre, autor da famosa tese da democracia racial brasileira.

Entendo que o projeto de cinema negro iniciado no Brasil por Zózimo Bulbul na década de 1970 estava na mesma esteira da “sociologia negra”, no que tange a transformação da negritude em agente das narrativas sobre si e a realidade social brasileira; e das lutas, políticas e culturais, dos movimentos negros diaspóricos (sobretudo nos Estados Unidos) e anticoloniais em África. Mesmo que Bulbul tivesse uma carreira de diretor muito marcada por interrupções e falta de recursos, seus trabalhos em Compasso de espera e Alma no olho já davam sinais de que o cineasta queria chamar atenção para dois problemas sociais mediante o cinema: a discriminação racial e a posição da negritude como “objeto” de interpretações e representações estereotípicas, difundidas pela produção cultural e intelectual branca.

Mas é apenas três décadas após Alma no olho, já no início dos anos 2000, que uma nova geração de cineastas negros(as) elabora uma cartilha sistematizada de como seria fazer um cinema negro no Brasil. Liderados por Jeferson De, Rogerio de Moura, Ari Candido, Noel Carvalho, Billy Castilho, Daniel Santiago, Lilian Solá Santiago e Luiz Paulo Lima (Carvalho & Domingues, 2018), o movimento batizado “Dogma Feijoada”3 3 O termo “dogma” havia sido inspirado no famoso “Dogma 95” de cineastas dinamarqueses. Liderados por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, o dogma dinamarques pretendia revolucionar o cinema local, especialmente em seus aspectos estéticos, rejeitando manipulações visuais e sonoras, estruturas cenográficas e outros recursos de produção que tornavam os filmes mais “artificiais” em relação à realidade. Já o movimento brasileiro optou por acrescentar o termo “feijoada”, trazendo o prato típico como símbolo de um cinema que também queria mudar as estéticas do cinema local, mas com base na valorização das referências culturais negras. publicou um manifesto no XI Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, definindo os princípios de um cinema negro brasileiro:

1. o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; 2. o protagonista deve ser negro; 3. a temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira; 4. o filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes; 5. personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; 6. o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro e 7. super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.

Um ano após o manifesto do “Dogma Feijoada”, em 2001, diversos cineastas, atores e atrizes negros(as) também se juntaram na V Festival de Cinema do Recife, dessa vez reivindicando mais espaços no mercado de trabalho para profissionais negros(as) do audiovisual. Chamado de “Manifesto do Recife”, esse movimento procurou criticar a representação racial no audiovisual por dentro, apontando como a ausência de profissionais negros(as) no processo de criação e dentro dos sets acabava distorcendo as imagens da composição étnico-racial brasileira nos filmes, telenovelas e propagandas comerciais (Carvalho, 2005______. Introdução. In: DE, Jeferson. Dogma Feijoada, o cinema negro brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Fundação Padre Anchieta, 2005.: 99). Desse modo, o manifesto pedia:

1. O fim da segregação a que são submetidos os atores, atrizes, apresentadores e jornalistas negros nas produtoras, agências de publicidade e emissoras de televisão; 2. a criação de um fundo para o incentivo de uma produção audiovisual multirracial no Brasil; 3. a ampliação do mercado de trabalho para atrizes, atores, técnicos, produtores, diretores roteiristas afro-descendentes; 4. a criação de uma nova estética para o Brasil que valorizasse a diversidade e a pluralidade étnica, regional e religiosa da população brasileira.

Embora o “Dogma Feijoada” e o “Manifesto do Recife” tenham sido importantes movimentos de contestação acerca da representação racial nas telas e atrás das câmeras, não foi imediatamente após eles que o cenário de produção de filmes de autoria negra começou a aflorar significativamente no país. Como aponta pesquisa recente do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa/Uerj) (Candido, Flor & Freitas, 2020FREITAS, Jefferson; PORTELA, Poema; FERES JÚNIOR, João; BESSA, Águida; NASCIMENTO, Vivian. Políticas de ação afirmativa nas universidades federais e estaduais (2013-2018). Levantamento das políticas de ação afirmativa. Rio de Janeiro: Gemaa (Uerj), 2020.), a partir de dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine), entre 1995 e 2018 houve uma presença ínfima, quase inexistente, de profissionais negros(as) ocupando as principais funções do cinema - direção, roteiro e atuação - em filmes do circuito comercial brasileiro. Os dados se tornam ainda mais alarmantes se considerarmos apenas a presença de mulheres negras.

Alguns fatores, para além da histórica desigualdade racial brasileira, ajudam a explicar esse cenário. Primeiro, antes do advento das câmeras digitais, no início dos anos 2000, fazer cinema era uma atividade ainda mais custosa que nos dias atuais. Os filmes precisavam ser rodados em película 35mm para acessarem as salas do circuito comercial e circularem pelos principais festivais de cinema do país. Como aponta Marcelo Ikeda,

Os festivais privilegiavam os filmes finalizados em película 35mm que, além de ser o padrão adotado no mercado de exibição cinematográfica, aliava qualidade técnica e profissionalismo, já que eram produzidos e realizados por uma estrutura de produção nitidamente mais robusta. Os principais festivais de cinema do período somente exibiam longas-metragens finalizados em película 35mm. [...] Se no início dos anos 2000 houve um exponencial aumento da produção audiovisual em vídeo, havia um gargalo para sua exibição, já que os festivais de cinema privilegiavam as obras em película cinematográfica. A crescente profusão do vídeo acabou naturalmente levando à busca de novos espaços de exibição, que pudessem refletir a variedade das novas formas de produção (Ikeda, 2018IKEDA, Marcelo. O “cinema de garagem”, provisoriamente: notas sobre o contexto de renovação do cinema brasileiro a partir da virada do século. Aniki, v. 5, n. 2, p. 457-479, 2018.: 462-463).

Outro ponto importante é que o principal modelo de financiamento do audiovisual no Brasil, baseado em leis de incentivos fiscais, privilegiava o fomento de longas-metragens, realizados majoritariamente por produtoras e cineastas já consolidados(as) no mercado (Ikeda, 2015______. Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos. São Paulo: Summus, 2015.: 148). Em síntese, existia pouco espaço para cineastas iniciantes produzirem seus filmes, o que era o caso de cineastas negros(as) que conseguiam ultrapassar as barreiras da formação profissional e já detinham conhecimento técnico na área. Ademais, a construção de carreira para esses cineastas era atravancada por não haver, naquele período, profusão de circuitos alternativos - como cineclubes e mostras - para exibição de filmes independentes de autoria negra, que pudessem aceitar produções em formato digital.

O ponto de virada deu-se justamente com as mudanças abruptas em relação às políticas por igualdade racial, sobretudo a partir da segunda década do milênio atual. Mais especificamente:

  1. a criação de cursos de cinema e audiovisual com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e nos Pontos de Cultura financiados pelo Ministério da Cultura (MinC);

  2. a Lei de Cotas de 2012; e

  3. a inclusão de ações afirmativas em editais públicos de fomento ao audiovisual, possibilitaram com que mais pessoas negras pudessem produzir e exibir seus filmes, principalmente nos circuitos alternativos.

Como mostrarei nas próximas duas seções, dois dados indicam isso:

  1. a quantidade de coletivos e eventos relacionados ao termo “cinema negro”, criados dentro de universidades federais na última década; e

  2. o número de produtoras negras que nasceram paralelamente à implementação de ações afirmativas em editais públicos.

As lutas dos movimentos negros e a primeira geração de cineastas pós-cotas raciais

Para entender como o termo “cinema negro” se expande é preciso retornar ainda no final da década de 1980 e toda a década de 1990, marcadas por reivindicações de movimentos negros organizados pela implementação de ações afirmativas nos diferentes setores da sociedade civil e pela promoção de políticas públicas que tensionassem as desigualdades raciais de modo geral. De início, destaco que a existência de diálogos entre movimentos negros e o Estado brasileiro foram os primeiros resultados da projeção do debate racial na esfera pública que mencionei anteriormente, fortalecidos pelo ambiente de abertura democrática, de formulação da nova Constituição, de centenário da abolição e de consolidação do MNU. Como afirma Márcia Lima:

Estudiosos das questões sociais e dos movimentos sociais são unânimes em apontar a Constituição de 1988 como um marco importante para as mudanças sociais ocorridas no país. No que se refere à temática racial, a nova Constituição introduziu a criminalização do racismo (que posteriormente definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor com a lei 7716/1989), o reconhecimento ao direito de posse da terra às comunidades quilombolas e a criação da Fundação Cultural Palmares. Tais ações podem ser interpretadas como uma resposta às reivindicações do Movimento Negro e se caracterizam por uma forma de reconhecimento (Lima, 2010______. Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula. Novos Estudos, n. 87, p. 77-95. 2010.: 78).

Ainda segundo a autora, somente da metade da década de 1990 para frente podemos visualizar uma relativa aceleração nas mudanças de tratamento da questão racial no Brasil, destacando dois acontecimentos como simbólicos para essas mudanças: a “Marcha Zumbi de Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, de 1995, e o “Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH I)”, de 1996. No primeiro caso, houve uma grande mobilização que deslocou as atenções do dia da abolição (13 de maio) para o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) e formalizou a entrega do Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial para o então presidente Fernando Henrique Cardoso. O programa tinha como norte pressionar o governo a aplicar as leis de igualdade de oportunidades e de punição às práticas discriminatórias estabelecidas pela Constituição de 1988, tendo como resultado imediato a criação, por parte do governo, de um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI).

No segundo caso, foram estabelecidas metas e estratégias de pequeno, médio e longo prazo para redução das desigualdades raciais em diversos setores da sociedade civil. O governo brasileiro comprometeu-se em incluir cor e raça em todos os sistemas públicos de informação e registro, incluir pessoas negras em propagandas institucionais, apoiar o setor privado em campanhas e medidas antidiscriminatórias, alterar o conteúdo de livros didáticos de modo a valorizar a história e as culturas afro-brasileiras e promover a inclusão de entidades da comunidade negra em diferentes setores do governo, ampliando os canais de diálogo (Lima, 2010______. Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula. Novos Estudos, n. 87, p. 77-95. 2010.: 80).

Como vemos, as mudanças na perspectiva de tratamento da questão racial pelo Estado brasileiro não foram meras iniciativas de governantes, mas frutos do fortalecimento de movimentos negros organizados, favorecendo o revigoramento do debate racial na esfera pública. Ainda assim, podemos dizer que o contexto político que se apresentou após a abertura democrática facilitou a atuação desses movimentos, que aproveitaram as “brechas” da nova Constituição Federal para agirem de forma mais efetiva frente ao Estado.

Nesse sentido, houve, a partir da década de 1990, o reconhecimento por parte do Estado sobre o caráter racializado das desigualdades sociais no país. Tal reconhecimento, embora bastante significativo, ainda não refletiu, naquele período, em ações para a diminuição concreta dessas desigualdades; apenas criou-se o compromisso em transformar, a longo prazo e por diferentes vias, a realidade social da população negra, por meio da aplicação de políticas públicas ancoradas nos princípios constitucionais de 1988. Como exemplo dessa mudança de perspectiva, tivemos em 2001, ainda no governo FHC, o Brasil assumindo papel de destaque na Conferência de Durban, África do Sul. O país posicionou-se oficialmente como liderança favorável às políticas de compensação social para os povos negros e indígenas, como aparece no artigo 108 da declaração oficial do evento4 4 Relatório da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia, e Intolerância Correlata. Declaração de Durban, 31 de Ago. 2001. Disponível em: <http://www.comitepaz.org.br/Durban_3.htm>. Acesso em: 15 Ago. 2022. .

Posteriormente, com a posse de Luís Inácio Lula da Silva ao cargo de presidente da República, em 2003, os movimentos negros organizados que construíram uma relação próxima ao Partido dos Trabalhadores (PT) desde a década de 1980 puderam finalmente incorporar-se à estrutura governamental, tendo como primeira conquista a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) já em março, menos de três meses após a posse de Lula. O governo passaria a ter uma secretaria específica5 5 A secretaria foi transformada em Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos em 2008, no segundo mandato de Lula. , para planejamento, articulação e implementação das políticas públicas para igualdade racial. A Seppir teria uma atuação interministerial, garantindo a transversalidade da questão racial em diversos órgãos do Poder Executivo, considerando sua urgência nos diferentes setores da sociedade civil (Lima, 2010______. Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula. Novos Estudos, n. 87, p. 77-95. 2010.: 83).

Com a criação da Seppir, foi mediante políticas focadas em educação e cultura que resultados mais concretos começaram a aparecer. Primeiramente houve a adoção do critério racial na seleção de estudantes a serem contemplados pelo Programa de Financiamento Estudantil (Fies)6 6 O Fies foi criado em 1999, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. . Posteriormente, já no governo de Dilma Rousseff, foi sancionada a Lei de Cotas 12.711/12, que obrigava as universidades e os institutos federais de ensino superior a reservarem 50% das vagas em cursos regulares para estudantes negros(as), indígenas e pessoas com deficiência, todos dentro do critério socioeconômico. Ainda que as primeiras iniciativas nesse sentido não tenham acontecido em âmbito federal7 7 Em 2003 a política de cotas raciais passou a vigorar em âmbito estadual na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Já em 2004, temos as primeiras implementações de critérios raciais de seleção nas universidades federais, primeiramente com a Universidade de Brasília (UnB) e logo em seguida na Universidade Federal da Bahia (Ufba). , é a partir da Lei de Cotas de 2012 que as universidades federais passam a adotar o critério racial de seleção em efeito dominó (Daflon; Feres Júnior; Campos, 2013DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148, p. 302-327, 2013.).

Paralelo a isso, a expansão das universidades federais, por intermédio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), criado em 2007, também permitiu com que mais cursos de cinema, audiovisual e correlatos fossem criados em todas as regiões do país. Como vemos no Gráfico 1, a maioria dos cursos nessas áreas foram criados durante as duas primeiras décadas do milênio atual.

Gráfico 1
Evolução no número de cursos públicos de graduação em cinema e/ou audiovisual e correlatos entre 2000 e 2020*

Vemos no Gráfico 1 que houve uma expansão significativa no número de cursos públicos de graduação em cinema, audiovisual e áreas correlatas, mas não somente isso, com a adoção gradual dessas universidades às ações afirmativas de critério social e racial (50% das vagas), houve naturalmente a presença maior de estudantes negros(as) em processo de capacitação para atuar nos diversos mercados da área. Outro relatório do Gemaa/Uerj (Freitas; Portela; Feres Júnior; Bessa; Nascimento, 2020FREITAS, Jefferson; PORTELA, Poema; FERES JÚNIOR, João; BESSA, Águida; NASCIMENTO, Vivian. Políticas de ação afirmativa nas universidades federais e estaduais (2013-2018). Levantamento das políticas de ação afirmativa. Rio de Janeiro: Gemaa (Uerj), 2020.) aponta como a Lei de Cotas foi responsável pelo aumento, também significativo, na proporção de vagas destinadas a pretos, pardos e indígenas (PPIs) nas universidades públicas, sobretudo federais - universidades com maior incidência de cursos de cinema, audiovisual e correlatos.

Como adiantei, o cenário de acesso escasso e desigual aos recursos para produção cinematográfica no início do milênio atual causou impactos de diferentes naturezas no setor como um todo. Primeiro, cineastas precisaram financiar de modos alternativos seus filmes, produzindo-os em formato digital e em linguagens experimentais - conhecidas como “cinema de garagem” (Ikeda, 2018IKEDA, Marcelo. O “cinema de garagem”, provisoriamente: notas sobre o contexto de renovação do cinema brasileiro a partir da virada do século. Aniki, v. 5, n. 2, p. 457-479, 2018.). Além disso, foi preciso criar um circuito de exibição que pudesse escoar essas produções, já que ainda não existia a cultura de exibição de filmes em formato digital na maioria dos festivais e mostras do país. Assim, cresceram o número de cineclubes, que não apenas foram criados para exibição de filmes de baixo orçamento, mas também para o fortalecimento de redes profissionais. Essas redes possibilitaram, em geral, o acúmulo de experiências de trabalho entre novos(as) cineastas (Ikeda, 2018).

No entanto, cabe refletir: onde estavam cineastas negros(as) nesse mesmo cenário? Como esses cineastas produziam seus filmes em condição de precariedade ainda maior? Onde seus filmes foram exibidos? Como eles foram financiados? Uma das pistas para responder essas perguntas está no próprio processo de expansão e democratização do ensino superior. Com a entrada maior de estudantes negros(as) nas universidades, houve não somente a fundação de inúmeros coletivos universitários negros (Lima & Campos, 2020LIMA, Márcia; CAMPOS, Luiz Augusto. Apresentação: inclusão racial no ensino superior. In: Dossiê raça, desigualdades e políticas de inclusão. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 39, n. 2, p. 245-254, 2020.), mas também coletivos de cinema negro - isto é, coletivos voltados para a produção e exibição de filmes de autoria negra. Como vemos no Quadro 1, a maior parte dos coletivos surgidos na década recortada veio de dentro de universidades federais.

Quadro 1
Coletivos de cinema e/ou audiovisual negro por ano de fundação e cidade*

Com o Quadro 1 podemos perceber a difusão de coletivos autodeclarados de “cinema negro” por quase todas as regiões do país, excetuando a Região Norte, a partir da segunda década do milênio atual. O ano de fundação desses coletivos é importante para percebermos também o recorte temporal de surgimento dos primeiros eventos e das primeiras produtoras de cinema negro no país, como veremos na sequência. Essa tendência também evidencia o hiato de uma década após o manifesto do “Dogma Feijoada”, conferindo importância à democratização/expansão do ensino superior no processo de consolidação do termo por outra geração de cineastas. Esses coletivos, em alguns casos, foram responsáveis por iniciar pequenos circuitos de exibição de filmes de autoria negra nas diversas regiões do país (Rodrigues, 2021RODRIGUES, Anthony. Cinemas negros brasileiros: projetos políticos e movimentos culturais sob uma perspectiva sociológica. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), Rio de Janeiro, 2021.), filmes estes produzidos no âmbito dos próprios cursos formativos ou em redes cineclubistas.

Destaco ainda a existência de diversos cursos livres de cinema e audiovisual espalhados pelo país, que existem ou existiram como Pontos de Cultura - projetos financiados a partir de 2004 pelo Ministério da Cultura (MinC) visando impacto sociocultural em comunidades e territórios periféricos. Como exemplos notáveis relacionados à minha formação, cito os casos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu (RJ); Escola Popular de Comunicação Crítica (Espocc) do Complexo da Maré, Rio de Janeiro (RJ); Mate com Angu, de Duque de Caxias (RJ); o GatoMídia do Complexo do Alemão, também no Rio de Janeiro; e a Diáspora Conecta, plataforma de educação e de desenvolvimento de carreiras de profissionais negros do audiovisual brasileiro. Tais exemplos mostram a importância de se mapear também essas múltiplas iniciativas, algumas mais ligadas à questão territorial, que contribuíram para a formação de profissionais negros(as) do audiovisual atuantes no mercado.

No Quadro anexo vemos que houve a criação de um pequeno circuito de exibição de filmes de autoria negra mais intensamente no início dos anos 2010. Esse circuito de exibição, ainda que incipiente à época, possibilitou a formação de redes de cineastas negros(as) e a circulação de seus filmes em diferentes regiões do país (Rodrigues, 2021RODRIGUES, Anthony. Cinemas negros brasileiros: projetos políticos e movimentos culturais sob uma perspectiva sociológica. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), Rio de Janeiro, 2021.). O circuito veio como primeira resposta mais incisiva às barreiras impostas pelo mercado, aos estereótipos raciais no cinema e audiovisual brasileiro e as vantagens de cineastas brancos - mesmo os de produções independentes - em submeterem seus filmes às principais mostras e festivais do país.

Algumas características desses eventos chamam atenção. Primeiramente, cabe destacar o pioneirismo do I Encontro de Cinema Negro ,de 2007, criado e organizado por Zózimo Bulbul, no mesmo ano de fundação do Centro Afrocarioca de Cinema - a primeira escola de cinema (também Ponto de Cultura do MinC) voltada especificamente para a formação de cineastas negros(as) no país. O I Encontro tinha como proposta

aproximar os cineastas afrodescendentes brasileiros com os cineastas africanos por meio de suas obras, num foro de reflexões, debates e discussões, na tentativa de abrir novos caminhos para a produção artística entre os dois povos, onde suas histórias sejam mostradas e divulgadas por aqueles que as realizam hoje, sujeitos de suas próprias trajetórias (Oliveira, 2018OLIVEIRA, Janaína. “Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma Feijoada” aos dias de hoje. In: SIQUEIRA, Ana, et al. Festival Internacional de curtas de Belo Horizonte (catálogo). Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018.: 262).

Viviane Ferreira (2019FERREIRA, Viviane. Cinemas negros: modelos de negócios viáveis às mulheres negras. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (PPGCOM/UnB), Brasília, 2019.) detalha que a proposta de Bulbul com o Encontro, desde o início, foi fugir do modelo comum dos grandes festivais de cinema, que privilegiavam a competição entre os filmes. O próprio termo “encontro” no lugar de “festival” dá a entender que o evento tinha como finalidade a proximidade entre cineastas negros(as), não só de diferentes regiões brasileiras, mas também de diferentes diásporas africanas e do próprio continente africano. A formação de uma identidade coletiva, mediante o cinema, fez do I Encontro um segundo marco, após o “Dogma Feijoada”, no que tange à consolidação do termo “cinema negro” no Brasil, e também de criação de um circuito de exibição mais sólido, de periodicidade regular.

Outra questão importante é a quantidade de mostras que surgiram após as experiências bem sucedidas de cineclubes e coletivos, como são os casos da Mostra de Performance Negra do Cinema Brasileiro, originada do Cineclube Mário Gusmão; da Mostra Ousmane Sembene de Cinema, originada do cineclube Cinemalês; da Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, organizada pelo coletivo Quariterê; da Mostra Teresa de Benguela, advinda de cineclube homônimo; e, por fim, do Cineclube Afoxé, organizado pelo coletivo homônimo.

Temos os casos de cineclubes que nasceram ligados a territórios periféricos, mas que ressaltam o critério racial de sua identidade, como são os casos do Cine Taquara e o Favela Cineclube, ambos na cidade do Rio de Janeiro8 8 Em vista do critério metodológico utilizado, é muito difícil mapear esses cineclubes, visto que na maioria dos casos eles não sinalizam explicitamente o critério racial de seleção e exibição dos filmes. . Mas destaco principalmente os eventos restritos para produções de autoria negra feminina, como são os casos das mostras Diretoras Negras do Cinema Brasileiro, Empoderadas e a CineQuebradas, que ainda é focada nas produções de autoria de mulheres negras LGBTQIA+. Mostras como a CineQuebradas, de periodicidade regular, indicam a existência, ainda que tímida, de um circuito de exibição para o escoamento de produções negras interseccionadas com outros marcadores sociais sub-representados nos maiores festivais de cinema.

A Bahia é o estado brasileiro com o maior número de eventos de cinema negro, todos com periodicidade regular desde seu ano de criação: Cineclube Mário Gusmão e sua Mostra Performance Negra no Cinema Brasileiro em Cachoeira; Cinemalês e sua Mostra Ousmane Sembene de Cinema em São Francisco do Conde; a Mostra de Cinema Negro de São Félix; a Mostra Itinerante de Cinema Negro Mohamed Bamba e a já mencionada CineQuebradas, de Salvador. A região do Recôncavo baiano se destaca, primeiro pelo enorme percentual de população afrodescendente e sua forte influência cultural, mas principalmente pela existência do curso de cinema e audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que gerou também uma das produtoras mais reconhecidas de cinema negro do país: a Rosza Filmes.

Também destaco a existência pequena de mostras competitivas e festivais, embora esse tipo de evento ligado ao cinema negro venha aumentando nos últimos anos. O primeiro caso foi da Mostra Competitiva Adélia Sampaio, de Brasília, em 2017; depois tivemos o Festival de Cinema Negro Zélia Amador de Deus, de Belém, em 2019; o Festival Griot de Cinema Negro Contemporâneo, realizado anteriormente como Mostra do Cinema Negro Brasileiro, em Curitiba, e se tornando festival, com competição entre os filmes, no ano de 2020; o Festival Internacional do Audiovisual Negro do Brasil, organizado pela Associação dos(as) Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) e acontecendo em modo remoto, devido à pandemia da Covid-19, no final do ano de 2020; e, por fim, a Semana do Audiovisual Negro do Recife, que se tornou competitiva em sua segunda edição, no início de 2021.

Assim como no mapeamento de coletivos, a crescente criação de eventos de cinema e audiovisual negro é outro indicador da expansão e consolidação do termo, enquanto movimento, pelo país. No Gráfico 2, vemos que houve uma evolução nesse tipo de evento desde a criação do I Encontro de Cinema Negro por Zózimo Bulbul, em 2007, atingindo um pico de 26 eventos no ano de 2019.

Gráfico 2
Evolução no número de mostras, festivais, encontros e cineclubes de filmes de autoria negra entre 2007 e 2020*

Mesmo com a pandemia da Covid-19, o ano de 2020 não representou uma queda significante no número de eventos de cinema negro em relação aos anos anteriores, ainda que esses eventos tenham acontecido em formato remoto. O que chama mais atenção é que o pico no circuito de exibição aconteceu no momento de maior crise orçamentária do cinema brasileiro desde o período pré-retomada (início dos anos 1990) (Ikeda, 2018IKEDA, Marcelo. O “cinema de garagem”, provisoriamente: notas sobre o contexto de renovação do cinema brasileiro a partir da virada do século. Aniki, v. 5, n. 2, p. 457-479, 2018.), com a paralisação e corte de 43% dos recursos oriundos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA)9 9 Danielle Brant & Gustavo Uribe, Em ofensiva contra Ancine, Bolsonaro corta 43% de fundo do audiovisual, Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/em-ofensiva-contra-ancine-bolsonaro-corta-43-de-fundo-do-audiovisual.shtml>. Acesso em 22 Jan. 2021. Categoria específica do Fundo Nacional da Cultura (FNC) para destinação dos recursos integrais recolhidos pela Condecine. O Condecine, por sua vez, é a contribuição tributária dividida em “Título” e “Teles”. A primeira trata-se de um imposto que “incide sobre a exploração comercial de obras audiovisuais em cada um dos segmentos de mercado (salas de exibição, vídeo doméstico, TV por assinatura, TV aberta e outros mercados)”. A segunda refere-se à cobrança “pelas concessionárias, permissionárias e autorizadas de serviços de telecomunicações que prestam serviços que se utilizem de meios que possam distribuir conteúdos audiovisuais”. Disponível em: <https://antigo.ancine.gov.br/pt-br/condecine>. Acesso em 16 Ago. 2022. e as ameaças, por parte do presidente Jair Bolsonaro, de extinção ou aparelhamento completo da Ancine, acusado por ele de usar dinheiro público em “filmes pornográficos”10 10 Gustavo Maia, Bolsonaro fala em extinguir Ancine “se não puder ter filtro” ou transformar agência em secretaria. O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/bolsonaro-fala-em-extinguir-ancine-se-nao-puder-ter-filtro-ou-transformar-agencia-em-secretaria-238 19229>. Acesso em 16 Ago. 2022. .

Os cinemas negros realizados por produtoras negras

A organização dentro dos coletivos e a formação de redes de cineastas e profissionais negros(as) do audiovisual, reforçadas e renovadas pelo circuito de exibição mais consolidado, possibilitaram também uma maior articulação em torno do termo “cinema negro”, dando a ele contorno mais próximo de um movimento estético-político. Não à toa, tivemos a fundação, em 2016, da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), após a reunião de realizadores(as) no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul de 2015 (Ferreira, 2019FERREIRA, Viviane. Cinemas negros: modelos de negócios viáveis às mulheres negras. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (PPGCOM/UnB), Brasília, 2019.: 30).

O primeiro caso de ações afirmativas de critério racial em editais públicos de fomento ao audiovisual brasileiro aconteceu justamente no mesmo ano da Lei de Cotas, em 2012. Chamado de “Curta afirmativo: protagonismo da juventude negra na produção audiovisual”, o edital selecionou 30 obras audiovisuais de curta-metragem, de 10 a 15 minutos, dirigidos ou produzidos por jovens negros. Com remuneração de R$ 100 mil para cada contemplado, o Curta afirmativo foi a primeira experiência com ações afirmativas no fomento ao cinema brasileiro (Ferreira, 2019FERREIRA, Viviane. Cinemas negros: modelos de negócios viáveis às mulheres negras. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (PPGCOM/UnB), Brasília, 2019.: 30).

Após o Curta afirmativo de 2012, houve outra edição, em 2014, dessa vez contemplando 13 projetos de médias-metragens, além de 33 curtas-metragens. No ano seguinte, em 2015, tivemos a primeira experiência com ações afirmativas em um edital exclusivo para produção de longas-metragens, utilizando integralmente recursos oriundos do FSA. Foi lançado o edital Longa BO Afirmativo, que premiou três projetos com R$ 1,250 milhão cada. Esse edital foi responsável por financiar os filmes Um dia com Jerusa, de Viviane Ferreira, Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso, e o recém-indicado para representar o Brasil no Oscar de melhor longa-metragem: Marte Um, de Gabriel Martins.

Em relação às experiências regionais, Pernambuco foi o estado pioneiro, com a aprovação de cotas raciais, de gênero e territoriais nos editais lançados pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE) e a adoção de comissões paritárias, incluindo pessoas negras e mulheres, na seleção dos projetos a partir de 2016. Além desse caso, a empresa pública de fomento ao cinema do município de São Paulo (Spcine) também adotou, no mesmo ano, reserva de cotas raciais, de gênero e territoriais em seus editais, apesar de sofrer interrupções no processo por questionamentos do Tribunal de Contas do Município ( (Ferreira, 2019FERREIRA, Viviane. Cinemas negros: modelos de negócios viáveis às mulheres negras. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (PPGCOM/UnB), Brasília, 2019.: 47).

Como mencionei, diante do gradativo aumento de profissionais negros(as) atuando no mercado, da circulação de filmes de autoria negra e da criação de circuitos de exibição alternativos, foi fundada em 2016 a Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan). A instituição veio para contribuir no “fomento, valorização e divulgação de realizações audiovisuais protagonizadas por negras e negros bem como a promoção de profissionais também negros para o mercado audiovisual”11 11 Disponível em: <https://apan.com.br/sobre/>. Acesso em: 16 Ago. 2022. .

Em 2017, uma matéria no site da Fundação Palmares12 12 MinC debate políticas afirmativas em editais de audiovisual. Ministério da Cultura. Disponível em: <https://www.palmares.gov.br/?p=47143>. Acesso em: 16 Ago. 2022. destacou a relevância institucional que a Apan conquistou com apenas um ano de existência, tendo participado - por meio de sua presidente, Viviane Ferreira - de um debate com o MinC sobre a importância da adoção de políticas afirmativas para viabilizar e visibilizar as produções de cineastas negros(as) e indígenas.

Segundo a matéria, o encontro teria sido motivado por uma crítica realizada pela Apan em relação à ausência de ações afirmativas nos editais do Programa Nacional de Fomento ao Audiovisual (Proav). Em sua fala, o até então secretário do audiovisual, João Batista Silva, afirmou que o MinC também iria apoiar a presença paritária de pessoas negras, indígenas e mulheres nas comissões dos editais, de modo a garantir a igualdade e a diversidade das obras selecionadas. Como primeiro resultado concreto da iniciativa, durante a Semana da Consciência Negra e na presença da atriz Ruth de Souza, foi apresentada a Comissão de Gênero e Diversidade da Ancine.

Por ter a responsabilidade de ajudar a Ancine a regular as desigualdades raciais e de gênero no cinema brasileiro, a comissão divulga, no início de 2018, os primeiros resultados de uma pesquisa acerca da sub-representação no circuito comercial do ano de 2016, onde 75,4% dos filmes lançados foram dirigidos por homens brancos13 13 Luísa Pécora, Cinema nacional exclui mulheres negras, aponta estudo. Mulher no cinema. Disponível em: <http://mulhernocinema.com/numeros/estudo-da-ancine-mostra-exclusao-de-negros-sobretudo-mulheres-no-cinema-nacional/>. Acesso em: 22 Ago. 2022. . Diante desses dados, e da atuação efusiva da Apan, a Ancine aprovou cotas para mulheres, negros e indígenas no edital nacional Concurso Produção para Cinema de 2018, retificando o edital original que havia sido publicado sem a presença de cotas. Paralelamente, outro ponto retificado pelo edital chama atenção: foram alterados os pesos nos critérios meritocráticos para contemplação de projetos de longas-metragens de ficção, documentário e animação, facilitando o acesso aos recursos por produtoras iniciantes (Rodrigues, 2021RODRIGUES, Anthony. Cinemas negros brasileiros: projetos políticos e movimentos culturais sob uma perspectiva sociológica. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), Rio de Janeiro, 2021.: 91).

Esse ponto é central, já que apesar de completada uma década de crescimento gradual dos cinemas negros pelo país, há um pequeno número de produtoras cinematográficas autodeclaradas negras. Em outras palavras, mesmo que coletivos e eventos sejam importantes para se produzir e fazer circular filmes de autoria negra, o modelo de negócio para o cinema e audiovisual negro no Brasil ainda encontra barreiras quase intransponíveis de entrada no mercado, especialmente devido à dificuldade de acessar recursos públicos, diante da concorrência com as grandes produtoras em cada localidade.

Nesse sentido, além da Apan, as articulações locais, mobilizadas por coletivos, foram responsáveis pela adoção de ações afirmativas e pela inserção de mais pessoas negras nas comissões de seleção dos projetos em editais regionais. Essas ações teriam contemplado produtoras negras de audiovisual em diferentes regiões do país, que finalmente teriam recursos financeiros para produzir seus próprios filmes, longas-metragens em alguns casos. Apesar da dificuldade metodológica de se mapear produtoras negras (nem todas as produtoras majoritariamente negras se identificam como produtoras de “cinema e/ou audiovisual negro”), a existência delas mostra que há uma demanda de abertura em editais públicos para quem está iniciando no mercado, principalmente se considerarmos os recortes raciais e territoriais.

Como vemos no Quadro 3, diferentemente das produtoras que lideram o mercado cinematográfico no país, a maioria das produtoras negras está localizada fora do eixo Rio-São Paulo, reforçando também a necessidade de cotas raciais e territoriais - dentro dos estados e municípios - nos editais regionais financiados pelo FSA.

Quadro 3
Produtoras de cinema e/ou audiovisual negro por cidade e ano de fundação

No Quadro 3 vemos que, assim como nos eventos de cinema negro, a maior parte das produtoras negras estão sediadas na Bahia. A de maior destaque é a Rosza Filmes, tendo já produzido quatro longas-metragens por meio da parceria de direção e roteiro de Glenda Nicácio e Ary Rosa: Café com canela (2017), Ilha (2018), Até o fim (2020) e Voltei! (2021).

Outro caso de destaque, também fora do eixo Rio-São Paulo, é a produtora Filmes de Plástico, localizada em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte (MG). A Filmes de Plástico, além de ser uma das primeiras produtoras do país fundadas por cineastas negros, talvez seja a mais bem sucedida, tendo lançado longas-metragens como Ela volta na quinta (2015) e Temporada (2018), ambos dirigidos por André Novais; No coração do mundo (2019), codirigido por Gabriel Martins e Maurílio Martins e Marte um, de Gabriel Martins.

Por fim, destaco também as produtoras Odun Filmes, Preta Portê Filmes e Saturnema Filmes, que, por meio de suas cineastas fundadoras Viviane Ferreira, Juliana Vicente e Ana do Carmo, produziram, respectivamente, curtas como O dia de Jerusa (2014)14 14 Curta que deu origem ao longa-metragem Um dia com Jerusa (2020), também escrito e dirigido por Viviane Ferreira. , Cores e botas (2010) e A mulher no fim do mundo (2019).

Conclusão

Mas afinal, o que significa fazer “cinema negro”? Por que o termo vem sendo tão mobilizado na última década? Embora eu entenda, por consequência dessa pesquisa, que a reivindicação de um cinema negro no Brasil cumpra uma função mais política, devido às lutas por ações afirmativas em editais públicos e à maior inserção de pessoas negras no mercado de trabalho, também é preciso lembrar que os questionamentos acerca dos estereótipos raciais - estéticos e narrativos - no audiovisual brasileiro foram primordiais para a adoção do termo.

Nesse sentido, fazer cinema negro não diz respeito apenas à autoria negra em uma realização cinematográfica, como o manifesto do “Dogma Feijoada” preconizou. Envolve também responsabilidades relacionadas aos modos de pensar e fazer cinema, de quais e como histórias estão sendo contadas ao colocarem pessoas negras nos centros das narrativas e dos enquadramentos em tela.

Uma das reflexões que vem sendo desenvolvidas com o aumento na produção e circulação desses filmes, não somente no Brasil, está na suposta responsabilidade de cineastas negros(as) em rediscutir racismo e relações raciais a partir de uma ótica própria. Nesse sentido, o termo “cinema negro” frequentemente carrega consigo, para o senso comum, clichês narrativos como violência policial, favelas (ou, no caso de filmes estadunidenses, guetos), gírias, estilos musicais, modos de se vestir, performances corporais e outros aspectos culturais que acabam sendo ligados diretamente a uma ideia de negritude “autêntica”.

Diante disso, pensadores(as) como Michael B. Gillespie e Racquel J. Gates (2020GATES, Racquel J.; GILLESPIE, Michael B. Reinvindicando os estudos de filme e mídia pretos. São Paulo: Abraccine Traduções, 2020.) e Kênia Freitas (2018FREITAS, Kênia; MESSIAS, José. O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo - as distopias do presente. Revista Imagofagia, v. 17, p. 402-424, 2018.) questionam até que ponto os filmes de autoria negra estão caminhando por trocar estereótipos raciais dos filmes de autoria branca por uma “captura” (Freitas, 2020) própria da ideia de “negritude”. Gillespie, por exemplo, tenta resolver o imbróglio no qual o termo foi condenado substituindo-o por “negritude fílmica”, entendendo que o novo termo implica em fugir de “uma ética da representação positiva e negativa que insiste no cinema negro em termos de política cultural, categoria imanente, gênero ou corroboração mimética da experiência negra” (Gillespie, 2016: 2 apud Sobrinho, 2020SOBRINHO, Gilberto A. O Afroperspectivismo de A Trilogia da Bicha Preta, de Juan Rodrigues: construindo as estéticas das resistências. Logos, v. 27, n. 1, p. 152-167, 2020.).

Assim, ao defender que devemos repensar o cinema negro, não o entendendo como receita ligada à ética da representação positiva sempre relacional à negativa do cinema de autoria branca, o autor avança na discussão ao propor filmes menos presos às experiências miméticas da vida cotidiana de pessoas negras, como se suas expressões artísticas estivessem sempre limitadas ao compromisso político de uma performance negra conflitiva, por consequência da discriminação racial. Freitas, por sua vez, leva a crítica de Gillespie ao limite, propondo uma ruptura com a concepção de cinema negro “transparente” e “autêntico”, através do que ela chama de “estratégias de opacidade” e “fabulações críticas” (Freitas & Barros, 2018) - já encontradas em filmes afrofuturistas e afropessimistas (Freitas & Messias, 2018).

Porém, ao levarmos em conta seu processo interno de amadurecimento e as condições materiais ainda precárias para cineastas negros(as) no audiovisual brasileiro, é necessário refletir e investigar as negociações que envolvem a consolidação desses cinemas, no momento em que eles passam a existir sob a pronúncia de um termo.

Para Stuart Hall (2003______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.; 2006), estamos em um período que o mundo “pós-moderno” faz concessões conscientes - ainda que condicionadas - relacionadas às questões raciais, num movimento de aceitação, incorporação e valorização da imagem do “diferente” (no caso, de pessoas negras) para a manutenção do status quo no jogo de disposições de poder sobre quem pode representar o “outro”.

A construção de uma ideia de “negritude”, baseada na produção cultural, já era uma estratégica política de resistência de movimentos negros organizados desde as primeiras décadas do século XX, como é o caso do Teatro Experimental do Negro no Brasil (Barbosa, 2013BARBOSA, Muryatan S. O Ten e a negritude francófona no Brasil: recepção e inovações. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 1, p. 171-184. 2013.). Paul Gilroy (2001GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.: 88) argumenta que é mediante reivindicações culturais de uma negritude “autêntica”, ainda que problemáticas pelo essencialismo identitário, que se formam comunidades negras mais coesas em contexto de diáspora e se mostram os maiores tensionamentos acerca das relações raciais nas ex-colônias, diluindo gradativamente ideários brancos de nacionalidade.

Nesse sentido, os cinemas negros brasileiros, em momento de efervescência e expansão, vivem agora o dilema de perseguir a autonomia de sua formação estético-política, explodindo ou deslocando, mediante linguagens cinematográficas, “capturas” sobre a negritude construídas na história do cinema nacional; ou de se colocarem em oposição ao cinema de autoria branca, propondo a representação de uma negritude “autêntica”. Tudo isso, penso eu, depende da continuidade dos avanços sociopolíticos descritos no texto: a ampliação do debate racial na esfera pública, a formação técnica e artística de profissionais negros(as) para o audiovisual, a inserção desses(as) profissionais nas principais funções criativas do mercado e a implementação de ações afirmativas em editais que ainda não as possuem. Continuemos observando seus rumos

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  • LIMA, Márcia; CAMPOS, Luiz Augusto. Apresentação: inclusão racial no ensino superior. In: Dossiê raça, desigualdades e políticas de inclusão. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 39, n. 2, p. 245-254, 2020.
  • OLIVEIRA, Janaína. “Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma Feijoada” aos dias de hoje. In: SIQUEIRA, Ana, et al. Festival Internacional de curtas de Belo Horizonte (catálogo). Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018.
  • REID, Mark A. Redefining black film. Berkeley, CA: University of California Press, 1993.
  • RODRIGUES, Anthony. Cinemas negros brasileiros: projetos políticos e movimentos culturais sob uma perspectiva sociológica. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), Rio de Janeiro, 2021.
  • SOBRINHO, Gilberto A. O Afroperspectivismo de A Trilogia da Bicha Preta, de Juan Rodrigues: construindo as estéticas das resistências. Logos, v. 27, n. 1, p. 152-167, 2020.
  • TRAPP, Rafael Petry. A sociologia negra de Eduardo de Oliveira e Oliveira. Revista da ABPN, v. 10, n. 25, p. 194-221. 2018.
  • 1
    Vale destacar que foco aqui no tratamento do debate racial no meio político e na produção intelectual que refletiu sobre o cinema brasileiro entre as décadas de 1960 e 1970. Assim sendo, não cabe aprofundar - apesar de valer esta nota introdutória - sobre a atuação do Teatro Experimental do Negro (TEN) nas décadas anteriores. O TEN, sobretudo nas figuras de Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos e através do grupoterapia e da revista O Quilombo, foi pioneiro em questionar os estereótipos raciais na produção intelectual e cultural brasileira, pegando carona no pensamento pós-colonial da década de 1940 presente na literatura francófona. Por esse motivo, afirmo que a geração de 1970 buscou “resgatar” a centralidade do debate racial nas interpretações do Brasil. Para mais, cf. Barbosa, 2013.
  • 2
    Oriunda de pesquisas sociais financiadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no início dos anos 1950, com o objetivo de investigar as relações raciais e o conceito de raça, em resposta ao holocausto nazista. O Brasil era visto como um grande laboratório pelo suposto caráter democrático de sua estrutura racial, o que é desmascarado pelo trabalho de Florestan.
  • 3
    O termo “dogma” havia sido inspirado no famoso “Dogma 95” de cineastas dinamarqueses. Liderados por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, o dogma dinamarques pretendia revolucionar o cinema local, especialmente em seus aspectos estéticos, rejeitando manipulações visuais e sonoras, estruturas cenográficas e outros recursos de produção que tornavam os filmes mais “artificiais” em relação à realidade. Já o movimento brasileiro optou por acrescentar o termo “feijoada”, trazendo o prato típico como símbolo de um cinema que também queria mudar as estéticas do cinema local, mas com base na valorização das referências culturais negras.
  • 4
    Relatório da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia, e Intolerância Correlata. Declaração de Durban, 31 de Ago. 2001. Disponível em: <http://www.comitepaz.org.br/Durban_3.htm>. Acesso em: 15 Ago. 2022.
  • 5
    A secretaria foi transformada em Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos em 2008, no segundo mandato de Lula.
  • 6
    O Fies foi criado em 1999, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso.
  • 7
    Em 2003 a política de cotas raciais passou a vigorar em âmbito estadual na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Já em 2004, temos as primeiras implementações de critérios raciais de seleção nas universidades federais, primeiramente com a Universidade de Brasília (UnB) e logo em seguida na Universidade Federal da Bahia (Ufba).
  • 8
    Em vista do critério metodológico utilizado, é muito difícil mapear esses cineclubes, visto que na maioria dos casos eles não sinalizam explicitamente o critério racial de seleção e exibição dos filmes.
  • 9
    Danielle Brant & Gustavo Uribe, Em ofensiva contra Ancine, Bolsonaro corta 43% de fundo do audiovisual, Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/em-ofensiva-contra-ancine-bolsonaro-corta-43-de-fundo-do-audiovisual.shtml>. Acesso em 22 Jan. 2021. Categoria específica do Fundo Nacional da Cultura (FNC) para destinação dos recursos integrais recolhidos pela Condecine. O Condecine, por sua vez, é a contribuição tributária dividida em “Título” e “Teles”. A primeira trata-se de um imposto que “incide sobre a exploração comercial de obras audiovisuais em cada um dos segmentos de mercado (salas de exibição, vídeo doméstico, TV por assinatura, TV aberta e outros mercados)”. A segunda refere-se à cobrança “pelas concessionárias, permissionárias e autorizadas de serviços de telecomunicações que prestam serviços que se utilizem de meios que possam distribuir conteúdos audiovisuais”. Disponível em: <https://antigo.ancine.gov.br/pt-br/condecine>. Acesso em 16 Ago. 2022.
  • 10
    Gustavo Maia, Bolsonaro fala em extinguir Ancine “se não puder ter filtro” ou transformar agência em secretaria. O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/bolsonaro-fala-em-extinguir-ancine-se-nao-puder-ter-filtro-ou-transformar-agencia-em-secretaria-238 19229>. Acesso em 16 Ago. 2022.
  • 11
    Disponível em: <https://apan.com.br/sobre/>. Acesso em: 16 Ago. 2022.
  • 12
    MinC debate políticas afirmativas em editais de audiovisual. Ministério da Cultura. Disponível em: <https://www.palmares.gov.br/?p=47143>. Acesso em: 16 Ago. 2022.
  • 13
    Luísa Pécora, Cinema nacional exclui mulheres negras, aponta estudo. Mulher no cinema. Disponível em: <http://mulhernocinema.com/numeros/estudo-da-ancine-mostra-exclusao-de-negros-sobretudo-mulheres-no-cinema-nacional/>. Acesso em: 22 Ago. 2022.
  • 14
    Curta que deu origem ao longa-metragem Um dia com Jerusa (2020), também escrito e dirigido por Viviane Ferreira.

Anexo 1


Encontros, festivais, mostras e cineclubes dedicados à produção cinematográfica de autoria negra por cidade e ano da primeira edição (2007-2020)*

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2022
  • Aceito
    08 Set 2022
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