Resumo:
Passadas mais de três décadas do advento da Constituição de 1988, o centralismo de poder e competências em torno da União ainda se mostra presente no Estado federal brasileiro, em prejuízo da autonomia político-administrativa dos entes subnacionais. Contribui para tal centralização a alargada interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao princípio da simetria constitucional. O problema posto na pesquisa parte justamente de verificar quais são os critérios atualmente utilizados pela Corte Constitucional brasileira em torno da aplicação da simetria constitucional e seus efeitos sobre a autonomia político-administrativa dos entes federativos. Como objetivo geral, o presente artigo busca analisar a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao princípio da simetria constitucional. Como objetivos específicos, intenta-se traçar a adequada concepção jurídica da simetria constitucional a partir dos princípios constitucionais estruturantes previstos na vigente Constituição, com a apresentação de balizas interpretativas mais claras e concretas em relação à sua extensão conceitual e aplicação pelo Poder Judiciário. Adotar-se-á, para tanto, o método dedutivo de pesquisa, partindo das premissas gerais estabelecidas no texto constitucional para a formação do pensamento crítico correlato ao problema proposto. Como conclusão, a simetria constitucional destina-se à salvaguarda dos princípios constitucionais estruturantes quando do exercício da autonomia político-administrativa dos entes da Federação, sem prejuízo da preservação dos núcleos mínimos essenciais da autodeterminação dos Estados, Municípios e Distrito Federal, sem os quais não se alcançará uma Federação efetivamente descentralizada e plural.
Palavras-chave:
Autonomia político-administrativa; Federação; Princípios constitucionais estruturantes; Simetria constitucional.
Abstract:
More than three decades after the advent of the 1988 Constitution, the centralization of power and competences around the Union is still present in the Brazilian federal state, to the detriment of the political-administrative autonomy of the sub-national entities. Contributing to this centralization is the broad interpretation given by the Federal Supreme Court to the principle of constitutional symmetry. The problem posed by the research is precisely to verify which criteria are currently used by the Brazilian Constitutional Court regarding the application of constitutional symmetry and its effects on the political-administrative autonomy of federal entities. As a general objective, this article seeks to analyze the interpretation given by the Federal Supreme Court to the principle of constitutional symmetry. The specific objectives are to outline the appropriate legal conception of constitutional symmetry based on the structuring constitutional principles set out in the current Constitution, with the presentation of clearer and more concrete interpretative guidelines in relation to its conceptual extension and application by the Judiciary. To this end, the deductive research method will be adopted, starting from the general premises established in the constitutional text to form the critical thinking correlated to the proposed problem. In conclusion, constitutional symmetry is intended to safeguard the structuring constitutional principles when exercising the political-administrative autonomy of the entities of the Federation, without prejudice to preserving the minimum essential nuclei of self-determination of the States, Municipalities and the Federal District, without which an effectively decentralized and plural Federation will not be achieved.
Keywords:
Political-administrative autonomy; Federation; Structuring constitutional principles; Constitutional symmetry.
1. INTRODUÇÃO
Em denso e provocativo estudo a respeito das relações de poder entre os entes federativos a partir da Constituição de 1988, Abrucio (1998, p. 21) lançou o seguinte questionamento: “que Federação estamos construindo desde o início da redemocratização e qual queremos para o futuro?”. Mais do que uma despretensiosa pergunta, Abrucio apresentou uma provocação ao leitor frente às relações de poder então presentes na Federação brasileira e os cenários que se avizinhavam no horizonte da República Federativa.
Apesar da longa tradição brasileira com o modelo federal, presente nas sucessivas Constituições desde o Estatuto Político de 1891, o modelo de Federação adotado pelo Brasil sempre foi alvo de críticas, fundamentadas, em grande parte, na constatação de que, ao longo do tempo, o Estado federal brasileiro, mesmo sob diferentes regimes constitucionais, não conseguiu efetivar plenamente o processo de descentralização político-administrativa que se esperava com a proclamação da República, resultando em uma Federação que não materializa a essência do federalismo: a efetiva e equilibrada distribuição de poderes entre o Estado nacional e os Estados-membros, a partir da autonomia político-administrativa assegurada a estes pela Constituição.
Nesse contexto, a Constituição de 1988 representou uma tentativa de guinada na história democrática e de conjugação dos poderes políticos nacionais, incluindo a remodelagem do federalismo brasileiro. Concebida em meio ao processo de redemocratização vivenciado na década de 80, trouxe sensíveis avanços no compartilhamento e na distribuição de competências e receitas tributárias entre os entes da Federação, chancelando (ao menos no campo formal) a autonomia político-administrativa dos entes subnacionais, com a peculiar inclusão dos municípios como entes federativos, na busca de restabelecer os valores democráticos e salvaguardar o Estado do autoritarismo e centralismo político-administrativo.
Entretanto, mesmo com os avanços em seu texto original, a Constituição de 1988 não conseguiu superar os laços historicamente constituídos em torno da centralização de poderes (e receitas) no governo central, inclusive em relação à própria concepção (interpretação) jurídica das normas sobre a ampla autonomia delegada pela Carta Política aos entes subnacionais. Passadas mais de três décadas de sua vigência, vislumbra-se, ainda, o excesso de centralismo político e fiscal em torno da União, em prejuízo dos ideais do federalismo integrativo e cooperativo1.
Em suma, o êxito alcançado pela Constituição de 1988 no combate ao autoritarismo e na preservação dos valores democráticos (rompendo de vez com o regime militar) não foi acompanhado, infelizmente, pela efetiva descentralização de poder e melhor equilíbrio federativo (sob o prisma vertical e horizontal)2, na medida em que ainda são muitas as assimetrias federativas e os percalços no exercício da plenitude da autonomia dos entes estaduais e locais (inclusive no que tange ao constitucionalismo subnacional).
Daí porque o questionamento lançado por Abrucio mantém-se oportuno e necessário, bem como pode ser realizado sob diferentes prismas críticos da Federação: do desequilíbrio socioeconômico das regiões no Brasil ao centralismo de poder em torno do Governo Federal, passando, nesse longo caminhar, pela análise da postura do Poder Judiciário no julgamento de temas afetos à autonomia político-administrativa dos entes federativos subnacionais (Estados, Municípios e Distrito Federal).
Nesse contexto, o problema posto na pesquisa parte da verificação de quais são os critérios atualmente utilizados pelo Supremo Tribunal Federal em torno da aplicação do princípio da simetria constitucional quando do controle de constitucionalidade das Constituições subnacionais, bem como seus efeitos sobre a autonomia político-administrativa dos entes federativos, em conformidade com o arranjo federativo delimitado pela Constituição de 1988.
Como objetivo geral, o presente artigo busca analisar a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao princípio da simetria constitucional. Como objetivos específicos, busca-se traçar a adequada concepção jurídica da simetria constitucional a partir dos princípios constitucionais estruturantes previstos na vigente Constituição, com a apresentação de balizas interpretativas mais claras e concretas em relação à sua extensão conceitual e aplicação pelo Poder Judiciário. Adotar-se-á, para tanto, o método dedutivo de pesquisa, partindo das premissas gerais estabelecidas no texto constitucional para a formação do pensamento crítico correlato ao problema proposto.
Portanto, adverte-se desde já o leitor. O presente artigo não objetiva expor os motivos determinantes que guiaram o modelo centralizador de poder no Brasil. Muito menos pretende apresentar soluções para os problemas federativos atualmente enfrentados, inclusive de baixa cooperação entre os entes da Federação. O foco do estudo centra-se na análise crítica (e propositiva) de apenas um desses elementos que impactam o processo de (des)centralização de poderes em torno da União: o princípio (ou regra) da simetria constitucional, amplamente adotado pelo Supremo Tribunal Federal no processo de controle de constitucionalidade (difuso e concentrado) das Constituições subnacionais.
2. A AUTONOMIA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA E O REGIME DE COMPETÊNCIAS: O CONSTITUCIONALISMO SUBNACIONAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O Estado federal3 pode ser caracterizado, em apertada síntese, pela presença de três componentes: uma Constituição que normatiza a organização do Estado composto por diferentes unidades de poder com autonomia político-administrativa (governos nacional e subnacionais), um sistema constitucional de distribuição de poderes entre os diferentes níveis de governo (repartição de competências) e um mecanismo judicial para proteger o pacto federativo estabelecido pela Constituição (um Tribunal Constitucional)4.
É corolário do Estado federal o reconhecimento aos entes subnacionais de autonomia político-administrativa envolta em um regime de competências de natureza executória e, especialmente, legislativa, capaz de possibilitar aos entes que compõem a Federação o regramento de normas próprias relacionadas à sua autodeterminação política e administrativa, dentro dos limites estabelecidos pela própria Carta Política. Para Horta (2003, p. 363-364), a autonomia federativa deve ser compreendida como a capacidade de expedir normas que organizem, preencham e desenvolvam o ordenamento jurídico dos entes públicos, balizando seu pensamento nas lições de Santi Romano, que atrelava a autonomia federativa à ideia de autolegislação, isto é, à competência para criar normas no ordenamento jurídico; e nas de Mortati, que concebia dois elementos centrais em torno da autonomia: a auto-organização e a autonormatização.
Assim, a autonomia federativa diz respeito ao poder de autodeterminação, isto é, à existência de competências decorrentes da própria Constituição, destinadas à normatização e organização de suas próprias estruturas políticas e administrativas, necessárias ao exercício autônomo das atribuições (dever-poder) que lhe são impostas pelo arranjo federativo. Os níveis (graus) de autonomia político-administrativa dos Estados-membros variam em cada Estado federal, decorrentes do arranjo federativo concebido na respectiva Constituição5. Ainda assim, é intrínseco ao modelo federal o reconhecimento do poder de autodeterminação aos entes subnacionais, sem o qual ter-se-ia um Estado unitário ou regional (também com suas múltiplas variações de níveis de descentralização administrativa). (Barile; Cheli; Grassi, 2013, p. 17-18).
Dessa maneira, as competências decorrentes da autonomia político-administrativa do Estado-membro derivam diretamente da Constituição, de modo que nenhum nível de governo possa sobrepujar o outro, muito menos vilipendiar a repartição de competências estabelecida na Carta Política. A autonomia político-administrativa pressupõe, portanto, a existência de um regime de competências, sem o qual inexiste Estado federal. Daí porque o regime de competências constitucionais é a linha mestra da organização da Federação, dando-lhe vida e concretude.
No contexto da Constituição de 1988, a Federação - em conjunto com os primados da República6, da Democracia e da garantia dos direitos fundamentais - compõe o núcleo duro dos valores assegurados pelo Constituinte originário, funcionando como princípios constitucionais estruturantes7 (também conhecidos como princípios sensíveis8 ou fundamentais9). Daí porque tais matérias não são passíveis de emenda constitucional (art. 60, § 4º), assim como sua inobservância pelos Estados-membros dá ensejo à intervenção federal (art. 34, VII). Esse é o vértice de partida do sistema constitucional brasileiro, de onde irradiam princípios e regras que devem ser interpretados sempre voltados à salvaguarda dos valores essenciais à formação, à organização e ao funcionamento do Estado.
Como corolário da forma federativa de Estado, consta da Carta de 1988 um rol de competências para cada nível de governo (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), consubstanciadas num sistema complexo e, não raramente, repleto de incertezas jurídicas. Ao lado dos poderes enumerados, de competência exclusiva e privativa da União, e dos poderes reservados, de competência dos Estados, foram previstas competências comuns e concorrentes, buscando eliminar a excessiva centralização de poder em torno do governo nacional (característica indelével das Constituições de 1967 e 1969). Também foram reconhecidos poderes aos Municípios, conforme dispõe o art. 30 da Constituição Federal. Já no campo das áreas da saúde e educação, de relevantíssimo interesse social, a Constituição inseriu os Municípios como legitimados a atuarem conjuntamente com a União e os Estados, atestando, ao menos no campo formal, a descentralização de competências e a adoção do federalismo de cooperação (Probst, 2018, p. 83).
Em síntese, a Constituição de 1988 inaugurou um regime de competências muito mais complexo que o das Constituições que a antecederam10. Como principais exemplos desse regime intrincado e delicado de competências constitucionais, destacam-se: (i) a competência comum inserida no art. 23 da Constituição, que permite a atuação compartilhada entre os entes da Federação em matérias que transbordam o interesse de uma única unidade federativa, competindo às leis complementares fixarem as normas para a cooperação entre os entes federativos para o equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar em âmbito nacional (com o ajuste redacional dado pela Emenda Constitucional nº 53/2006); e (ii) a competência concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal, competindo àquela legislar sobre as normas gerais relativas a cada uma das matérias ali listadas, sem prejuízo aos Estados e ao Distrito Federal complementarem ou suplementarem a legislação nacional, naquilo que couber (Silva, 2016, p. 482).
Nesse cabedal de competências materiais e legislativas, em especial naquelas de natureza comum e concorrente, não raro objeto de tensões e conflitos, deve imperar como norte jurídico a predominância do interesse (Silva, 2016, p. 482), competindo à União executar e regrar as matérias de predominante interesse geral, de âmbito nacional, remanescendo aos entes subnacionais as matérias de predominante interesse regional (no caso dos Estados-membros) e de interesse local (no caso dos Municípios). Trata-se da aplicação conjunta dos arts. 23, 24 e 30 da Constituição Federal, e que revela o grau de importância conferido pelo ordenamento jurídico à autonomia dos entes federativos.
Entretanto, apesar dos louváveis avanços, o regime de competências previsto pelo Constituinte de 1988 manteve a excessiva concentração de competências em torno da União (privativas, exclusivas e concorrentes)11. Da leitura conjugada dos arts. 21, 22, 23 e 24, tem-se que a União, se não isoladamente, acaba por participar - quando não esgota a matéria, prevalecendo-se do poder de legislar sobre “normas gerais”12 - com os demais entes da Federação de praticamente todos os assuntos relevantes à nação, à exceção daqueles expressamente assegurados aos entes subnacionais (arts. 25, § 2º; e 30, V), que são poucos e não guardam tamanha envergadura no âmbito do funcionamento do Estado e do regramento de matérias sensíveis à sociedade. Em suma, a República Federativa do Brasil continua a girar fortemente em torno da União, sob qualquer vértice de apreciação (formal ou material, político ou jurídico).
A situação pode ser facilmente percebida nos bancos das Faculdades de Direito e na rotina dos Tribunais pátrios, onde prevalece, com larga folga, o estudo e a aplicação do ordenamento jurídico federal, reflexo direto do ainda presente centralismo de competências legislativas em torno da União. Como consequência, o constitucionalismo subnacional é subvalorizado e não encontra o merecido espaço de estudo e pesquisa no país, além de fragilizar a participação e relevância das unidades federativas no processo de construção das relações jurídicas, políticas, sociais e econômicas da nação13.
Além do regime de competências reconhecido aos entes da Federação, destacam-se os poderes derivados da própria Constituição Federal. O primeiro deles é o poder constituinte reformador, caracterizado pela própria alteração da Carta Constitucional frente à necessidade de atualizá-la, nos limites estabelecidos pelo art. 60 (as chamadas cláusulas pétreas14). O segundo, o poder constituinte revisor, voltado à chancela ou deliberação de tema pré-determinado quando da elaboração da Constituição, tal como previsto no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Por fim, o poder constituinte derivado (ou decorrente), inerente ao poder que os Estados da Federação (assim como os demais entes subnacionais) dispõem para promulgarem suas Constituições Estaduais, como derivação do poder reconhecido pelo próprio Constituinte originário, conforme previsão constante do art. 25 da Constituição de 1988 e art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (quanto aos Municípios e ao Distrito Federal, a previsão decorre, respectivamente, dos art. 29 e 32 da CF).
Portanto, o poder conferido aos Estados-membros para auto-organização através da respectiva Constituição Estadual está limitado, única e exclusivamente, pelo texto da Constituição Federal, nos moldes delineados pelo Poder Constituinte originário, não sendo passível de alteração ou supressão (art. 60, § 4º, da CF). Tal como ocorre com o poder derivado reformador (de emenda constitucional), o próprio Constituinte elencou os limites de atuação (escopo normativo) das Constituições subnacionais: (i) para as Constituições Estaduais, a observância dos princípios estabelecidos pela Constituição Federal; (ii) para as Leis Orgânicas, o respeito aos princípios previstos na Constituição Federal e na respectiva Constituição Estadual; e (iii) para todas as Constituições subnacionais, o cumprimento das regras expressamente já definidas no texto constitucional quanto à organização das unidades federativas, a exemplo da prerrogativa de foro de Governadores e Prefeitos (arts. 105, I e 29, X), período de mandato eletivo (arts. 28 e 29, I), fato gerador, alíquotas, imunidades e isenções de tributos estaduais e municipais (art. 150 e ss.), entre tantos outros temas já normatizados expressamente pelo texto primevo da Constituição.
O problema posto a partir do texto constitucional reside justamente na definição de quais seriam esses princípios abarcados pelos arts. 25, 29 e 32 da Constituição Federal e em que medida eles limitam a auto-organização e autolegislação dos Estados, Municípios e do Distrito Federal. Trata-se da dificuldade de dar vida ao referido comando normativo em meio aos diferentes princípios e regras abarcados pelo texto constitucional, que devem ser interpretados e aplicados a partir da salvaguarda dos princípios constitucionais estruturantes, eixo central do sistema constitucional brasileiro.
3. O PRINCÍPIO DA SIMETRIA CONSTITUCIONAL: ORIGEM, FUNDAMENTOS NORMATIVOS E ENTENDIMENTOS PREVALECENTES
O princípio (ou regra) da simetria constitucional15 não é uma novidade introduzida pela Constituição de 1988. Trata-se de norma-princípio já vislumbrada em anteriores regimes constitucionais, fruto da interpretação oriunda do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento das normas inseridas no âmbito das Constituições Estaduais16, que objetiva assegurar uma certa unidade federativa a partir do respeito às normas que refletem o inter-relacionamento entre os Poderes (salvaguarda da Separação dos Poderes). (Mendes; Branco (2018, p. 898).
Sua origem não é precisa. Pesquisas apontam que já na vigência da Constituição de 1946, em Representações ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República frente a supostas inconstitucionalidades existentes em Constituições Estaduais, o Supremo Tribunal Federal, mesmo não fazendo uso da nomenclatura específica da “simetria”, adotava como razão de decidir a (in)observância do princípio da Separação de Poderes17.
Como exemplo, cita-se a Representação nº 9418, julgada em 1947, na qual se discutia, em ação movida pela Procuradoria-Geral da República a pedido do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, a constitucionalidade de dispositivos da Constituição daquele Estado da Federação relativos à livre nomeação e exoneração de Secretários Estaduais pelo Chefe do Poder Executivo, em decorrência de novos dispositivos constitucionais que acarretavam num certo parlamentarismo estadual19. Em seu voto, o Ministro relator Castro Nunes expôs razões que muito se assemelham ao entendimento hodierno sobre o princípio da simetria constitucional20.
Em 1973, o princípio da simetria é mencionado textualmente na ementa de julgado sob a relatoria do Ministro Aliomar Baleeiro, nos autos do Recurso Extraordinário nº 74.19321, em matéria relacionada à majoração de vencimentos por isonomia. Do voto prolatado pelo Ministro relator, extrai-se: “Mesmo no regime, da C.F. de 1946, os Estados, nas linhas mestras do regime, como a divisão dos poderes e atribuições essenciais destes, estavam adstritos à simetria com as disposições análogas daquele Estatuto Político”22.
Sob a vigência da Carta Cidadã, o princípio da simetria constitucional encontra fundamento normativo nos seus arts. 25, 29 e 32, que disciplinam o poder derivado concedido, respectivamente, aos Estados, Municípios e Distrito Federal para disporem sobre seus respectivos diplomas legais (Constituição Estadual e Lei Orgânica), reafirmado no art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O Constituinte originário foi claro (e expresso) em determinar que a competência dos entes subnacionais, além de derivada da própria Constituição de 1988, encontrava limites justamente na observância de seus princípios. Em suma, a autodeterminação dos entes federativos não é plena e irrestrita, pois é subordinada ao próprio Estatuto Político que a reconhece.
Para Rocha (2021, p. 236-237), a simetria é regra de interpretação constitucional de conteúdo indeterminado, destinado a assegurar “o primado efetivo e eficaz da Constituição Federal”, “sob a qual as ordens estaduais e a legislação de qualquer das pessoas federadas são elaboradas”. No mesmo caminhar, Mendes e Branco (2018, p. 898) afirmam que a aplicação do princípio da simetria designa “a obrigação do constituinte estadual de seguir fielmente as opções de organização e de relacionamento entre os poderes acolhidos pelo constituinte federal”.
O Supremo Tribunal Federal, já sob a égide da Constituição de 1988, possui farto repertório jurisprudencial em torno da matéria, com inúmeros precedentes adotando a simetria constitucional como ratio decidendi em processos envolvendo o controle de constitucionalidade (difuso e concentrado) de regramentos presentes em diferentes Constituições Estaduais.
Já decidiu o Tribunal da Federação, por exemplo, que viola o princípio da simetria as situações envolvendo: (i) a ampliação das hipóteses de reserva de lei complementar para além daquelas previstas na Constituição Federal23; (ii) a modificação do rol de matérias cuja iniciativa do projeto de lei é do Chefe do Poder Executivo, a exemplo de lei concernente à estrutura administrativa24; (iii) a ampliação do rol de autoridades sujeitas à fiscalização direta do Poder Legislativo25; (iv) a atribuição, aos Tribunais de Contas Estaduais, de competência para homologação dos cálculos das cotas do ICMS, devidas aos Municípios26; e (v) o quórum de 2/3 para aprovação de emenda à Constituição Estadual27.
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal referendou a autonomia dos Estados para legislar sobre matérias afetas à: (i) extensão das proibições e dos impedimentos estabelecidos a deputados estaduais e ao vice-governador28; (ii) exigência de prévia lei estadual para a utilização gratuita de imóveis do Estado29; (iii) autorização sobre empréstimo, acordos e convênios que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio estadual30; e (iv) previsão de iniciativa popular para o processo de reforma das respectivas Constituições Estaduais, em prestígio ao princípio da soberania popular31.
Em linhas gerais, o entendimento prevalecente no Supremo Tribunal Federal parte da lógica de que os entes subnacionais estão subordinados às normas de inter-relacionamento entre os Poderes, incluindo o processo legislativo, com o objetivo de “garantir, quanto aos aspectos reputados substanciais, homogeneidade na disciplina normativa da separação, independência e harmonia dos poderes, nos três planos federativos”32. Em outros termos, “A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal se consolidou no sentido de considerar que o princípio da separação de poderes compõe o conteúdo fundamental desta limitação ao poder constituinte derivado dos estados-membros”33.
Ocorre que as balizas interpretativas apresentadas pelo Supremo Tribunal Federal quanto à aplicação da simetria constitucional costumam ser vagas e incapazes de identificar, com a segurança jurídica desejável, um parâmetro decisório em relação ao tema. Afirmações em torno da necessidade de os entes subnacionais respeitarem a separação e harmonia dos Poderes pouco dizem sobre aquilo que, de fato, estaria excepcionado pela Constituição Federal para fins do exercício da autodeterminação dos Estados, Municípios e Distrito Federal.
Da mesma forma, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não discorre sobre os motivos pelos quais a simetria constitucional abarcaria tão somente a salvaguarda da harmonia e separação dos Poderes, quando existem outros princípios estruturantes no sistema constitucional brasileiro, a exemplo daqueles listados no § 4º do art. 60 da Constituição Federal.
Enfim, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, além de refratária às inovações organizacionais advindas dos entes subnacionais (pela leitura alargada da simetria constitucional), não permite identificar, ex-ante, elementos interpretativos prévios para a aplicação do princípio da simetria constitucional, exatamente pela ausência de uma teoria de base melhor assentada sobre a matéria, em prejuízo da estabilidade e previsibilidade das relações jurídicas afetas ao pacto federativo.
A literatura jurídica de longa data tece críticas em relação à amplitude concedida pelo Supremo Tribunal Federal ao princípio da simetria constitucional quando do controle de constitucionalidade das Constituições subnacionais, que impõe excessiva e indevida fragilização à autonomia dos entes da Federação (em especial dos Estados), em desvirtuamento da essência do federalismo tal como preconizado pelo Poder Constituinte originário34.
Representativa, porque advinda de Ministro do Supremo Tribunal Federal, é a análise de Barroso (2024, p. 195) sobre o tema. O autor reconhece que “mesmo sob a Constituição de 1988, a jurisprudência do STF resolve boa parte dos conflitos federativos em favor do poder central”, de forma que a aplicação do princípio da simetria no controle de constitucionalidade das Constituições Estaduais acaba por “inibir a criatividade do Estado e o experimentalismo democrático, permitindo que soluções alternativas às adotadas pela União sejam testadas”.
A passagem acima revela o quão sensível é o tema e, da mesma forma, a necessidade de voltar os olhos críticos para o atual entendimento preponderante nas últimas décadas no âmbito do Tribunal da Federação, por ora mantido na sua atual composição colegiada35. É o que se extrai de recentes julgados do Supremo Tribunal Federal, nos quais se observa a adoção dos mesmos fundamentos que levam à interpretação ampliativa da simetria constitucional em desfavor da autonomia e das competências dos Estados-membros36.
É bem verdade que, durante os momentos mais críticos do enfrentamento à pandemia do COVID-19, o Supremo Tribunal Federal referendou a autonomia dos entes subnacionais para a adoção de medidas de restrição parcial às liberdades individuais e econômicas, em complemento àquelas fixadas nacionalmente no âmbito da Lei nº 13.979/202037. Naquela ocasião, privilegiou-se o sistema de compartilhamento equilibrado de poderes existente no país e a adoção de medidas de cooperação pelos entes federativos, com leitura ponderada e cautelosa quanto à competência da União na fixação de normas gerais sobre matérias de competência comum (como é o caso dos serviços de saúde pública - arts. 23, II; 24, XII; 30, VII; e 196 e ss., da CF). Enfim, deu-se vida às competências e atribuições dos entes subnacionais, o que se mostrou essencial para a preservação da saúde pública no país naquela oportunidade.
Passado o período pós-pandêmico, é oportuno que esse mesmo sentimento federativo, voltado à pluralidade de competências e ao reconhecimento das autonomias dos entes subnacionais, reverbere na revisitação da atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em torno da simetria constitucional, com nova discussão dos parâmetros interpretativos frente ao sistema constitucional de 1988. Busca-se, de um lado, a preservação de certa unidade federativa diante do necessário respeito aos princípios constitucionais estruturantes; e, de outro, a efetiva salvaguarda (e não apenas retórica) dos poderes de auto-organização e autolegislação dos entes subnacionais, intrínsecos à própria concepção de Federação.
É chegada a hora de dar um passo além, no sentido de melhor delimitar o princípio da simetria no contexto da Constituição de 1988, estabelecendo balizas interpretativas mais claras quanto ao seu alcance normativo. Até porque, conforme Abboud (2018, p. 350), “Pensar em como o juiz deve decidir é essencial para a resolução de boa parte dos problemas da contemporaneidade.”. No capítulo seguinte lançam-se contribuições nesse sentido.
4. A SIMETRIA CONSTITUCIONAL E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES: CRITÉRIOS INTERPRETATIVOS PARA A GARANTIA DA ESTRUTURA FEDERATIVA BRASILEIRA
Como discorrido ao longo do presente artigo, a Federação é um dos pilares do sistema constitucional brasileiro, inserida, inclusive, como cláusula pétrea (art. 60, § 4º). A garantia da autonomia político-administrativa dos entes subnacionais (autodeterminação) decorre diretamente da Federação, tal como concebida pela Constituição (art. 18). De outro vértice, a própria Constituição Federal estabelece inúmeros comandos normativos em torno da organização dos Estados, Municípios e Distrito Federal, definindo previamente determinadas regras a serem observadas pelos entes políticos autônomos (a exemplo do tempo de mandato eletivo dos agentes políticos, das competências materiais e legislativas e dos tributos passíveis de serem arrecadados, entre tantos outros), sem prejuízo da observância dos princípios inseridos na Constituição.
É justamente nessa parte final que reside o problema: a ausência de uma melhor definição de que princípios seriam esses, bem como de que forma a observância deles não acarretará no esvaziamento injustificado (inconstitucional, portanto) da autonomia assegurada pelo art. 18 aos entes da Federação. Em suma, trata-se de delimitar a adequada interpretação dos princípios e regras constitucionais em torno da preservação dos elementos fundantes do Estado federal brasileiro.
O comando jurídico previsto no art. 25 da Constituição Federal (e parcialmente replicado nos arts. 29 e 32, e no art. 11 do ADCT) impõe a seguinte delimitação ao Constituinte Estadual: Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. Trata-se de uma norma descritiva com conteúdo indeterminado, voltada ao comportamento do legislador. A primeira parte dá completude ao princípio da autodeterminação dos Estados (art. 18 da CF). A segunda, de maior vagueza operacional, dá completude aos princípios assegurados pela Constituição, sem especificar quais seriam esses.
A concepção de uma simetria constitucional parte da premissa da necessidade de compatibilizar os dois comandos inseridos no âmbito do art. 25 da Constituição Federal: de um lado, o exercício da autodeterminação dos entes subnacionais; de outro, a necessidade de respeito aos princípios assegurados pela própria Constituição, exigindo a unidade do Estado enquanto nação.
Assim, os princípios referidos na parte final do art. 25 da Constituição Federal referem-se àqueles designados como estruturantes (sensíveis ou fundamentais), de observância obrigatória pelos entes federativos, pois intrínsecos à própria formação do Estado brasileiro. Daí que seu descumprimento justifica a intervenção federal prevista nos seus arts. 34 e 35, como exceção ao princípio da autodeterminação dos entes que compõem a Federação. Tratam-se, portanto, daqueles princípios inseridos no § 4º do art. 60 da Constituição Federal e designados como cláusulas pétreas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.
E tal interpretação parte justamente da lógica em torno da estruturação do Estado brasileiro. Se o próprio Constituinte originário estabeleceu um núcleo central de valores jurídicos incapaz de ser suprimido ou alterado pelo Constituinte reformador (cláusulas pétreas), é porque ali resta estabelecido o ponto central do sistema constitucional, isto é, os pilares de sustentação da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF). São esses os princípios constitucionais estruturantes que modelam o Estado brasileiro tal como concebido pelo Estatuto Político vigente, e que “sempre deverão observados, não podendo ser afastados por razões contrárias” (Ávila, 2016, p. 153).
Portanto, o poder de autodeterminação dos Estados-membros está vinculado ao respeito (i) dos princípios constitucionais estruturantes estabelecidos no § 4º do art. 60 da Carta de 1988, correlatos à salvaguarda dos valores republicanos, federativos e democráticos, no que se inclui a separação dos Poderes e os direitos e garantias fundamentais; e (ii) das regras previamente definidas pela Constituição Federal quanto à organização e atuação de cada ente estatal. Fora desse escopo normativo pré-estabelecido pela Constituição Federal, compete a cada ente federativo dispor, de forma integrativa, a respeito da sua organização e atuação político-administrativa, sem outras limitações que não aquelas previstas pelo Constituinte originário.
Portanto, o princípio da simetria constitucional pode ser conceituado como uma norma destinada à salvaguarda dos princípios constitucionais estruturantes quando do exercício da autonomia político-administrativa pelos entes que compõem a Federação.
Parece ser a interpretação mais consentânea com a lógica constitucional. Assim, é incompatível com o ordenamento jurídico vigente qualquer norma presente na Constituição Estadual que importe em ofensa aos direitos e garantias individuais (e.g., a limitação da participação de mulheres no âmbito da Polícia Militar) ou violação na forma como estruturada a República (e.g., a adoção de sistema parlamentarista no âmbito do Estado-membro). Enfim, a simetria constitucional vai além do âmbito da separação dos Poderes, albergando outros princípios estruturantes da Constituição Federal, com o objetivo de que a autonomia dos entes subnacionais seja exercida dentro de standards políticos e jurídicos pré-definidos pelo Constituinte originário e de observância cogente.
Dessa maneira, o alcance da simetria constitucional ultrapassa as dimensões comumente encontradas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, em linhas gerais, tem na simetria o dever de os Estados-membros respeitarem a harmonia e separação dos Poderes, a partir dos arts. 25 da Constituição Federal e 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A extensão do princípio da simetria constitucional é maior e alberga, para além da separação dos Poderes, o respeito aos valores relacionados à preservação da República, Federação, Democracia e dos direitos e garantias fundamentais, em interpretação conjugada com o art. 60, § 4º, da Carta de 1988.
Se, de um lado, o âmbito de aplicação do princípio da simetria constitucional é mais alargado que aquele tradicionalmente mencionado na doutrina e jurisprudência brasileiras, o que poderia acarretar, numa primeira leitura, na maior fragilização da autonomia político-administrativa dos entes federativos (o que, na prática, não subsiste, pois o Supremo Tribunal Federal já faz esse controle de constitucionalidade sob outro viés, que não através do princípio da simetria constitucional); de outro, sua aplicação somente deve imperar naquelas situações em que o regramento estabelecido pela Constituição Estadual, de fato, importe em grave ofensa aos princípios constitucionais estruturantes salvaguardados, apta a acarretar o descumprimento dos standards políticos e jurídicos intrínsecos à formação do Estado brasileiro.
Sendo assim, a hermenêutica a ser deduzida no campo abstrato da aplicação da norma deve caminhar no sentido da preservação da unidade do ordenamento jurídico, através da coerência na interpretação dos princípios e regras constitucionais postas sob o mesmo nível hierárquico (horizontalidade normativa). O dever de unidade do ordenamento jurídico não pode ser confundido com a concepção de uniformidade do ordenamento jurídico ou de uniformidade de organização dos entes da Federação, estes inexistentes no âmbito de qualquer Estado federal e, por consequência, não albergados pela Constituição de 1988.
Da mesma forma, há, entre os princípios constitucionais da autonomia político-administrativa dos entes federativos (art. 18 da CF) e da simetria constitucional (arts. 25, 29 e 32 da CF; e art. 11 da ADCT), relação de justificação recíproca (Ávila, 2016, p. 174), na medida em que ambos decorrem do princípio estruturante da Federação (art. 1º c/c art. 60, § 4º, da CF). Melhor expondo, a autonomia de qualquer ente da Federação é condicionada à lealdade federativa para com os demais entes federativos daquele Estado, numa relação de autocontenção de poderes (disciplinada pela Constituição), sob pena da autonomia de um ente sobrepor-se à do outro, sem que haja uma unidade federativa estabelecida (Estado-nação). Na mesma medida, a simetria constitucional deve ser compreendida dentro da lógica da preservação de certa parcela da autonomia político-administrativa aos entes subnacionais, somente relativizada diante de valores e normas predispostas pela Constituição como fundantes (estruturais) do Estado, sob pena de, à contrassenso, impor-se a ruptura da Federação pela completa centralização de poder e competências no âmbito do Governo Central (anencefalia dos entes subnacionais).
Nesse contexto, e ainda no campo abstrato da aplicação das normas constitucionais, inexiste a obrigatoriedade de Estados, Municípios e do Distrito Federal replicarem todas as formulações organizacionais estabelecidas no âmbito dos Poderes da União. Não há vinculação federativa com tamanha envergadura, sob pena de esvaziamento da norma-princípio constante do art. 18 da Constituição Federal, em inadequada prevalência ao princípio da simetria constitucional, que em momento algum pode ser compreendido como o dever de uniformidade de organização e atuação dos entes que compõem a Federação.
Reforça-se: a vigente Constituição Federal não replicou o mesmo regime jurídico constante das Constituições de 196738 e 196939, que continham regra de vinculação automática das Constituições Estaduais à Carta Política nacional. A Federação, como moldada pelo Constituinte de 1988, é fundamentada na cooperação e no pluralismo federativo, elementos que devem ser sopesados quando da interpretação do alcance da simetria constitucional. Aliás, tal constatação não é nova e já foi objeto de fortes críticas no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, a exemplo do voto divergente prolatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence em caso envolvendo a composição de determinada Câmara Municipal de Vereadores: “há muito, a jurisprudência do Tribunal tem imposto à ordenação jurídico-institucional de Estados e Municípios, sob a inspiração mítica de um princípio universal da simetria, cuja fonte não consigo localizar na Lei Fundamental.”40.
Daí porque a interpretação da simetria constitucional, além de observar os elementos hermenêuticos no campo abstrato de aplicação da norma (a exemplo da unidade do ordenamento jurídico, hierarquia e coerência), carece da aplicação dos critérios (postulados normativos, na nomenclatura adotada por Ávila) da razoabilidade, proporcionalidade e da proibição do excesso41, no intuito de melhor definir e estruturar os elementos em torno do seu campo de aplicação constitucional42.
Para exemplificar: determinado Estado da Federação dispôs em sua Constituição Estadual previsão no sentido de que a matéria afeta ao regime jurídico único dos servidores públicos estaduais deveria ser disciplinada por lei complementar, e não por lei ordinária. Adotando-se os critérios de aplicação da norma constitucional acima delineados, tem-se que tal regramento estadual não se apresenta inconstitucional. A uma, porque não há comando normativo específico e determinado (regra) na Constituição Federal determinando que os entes subnacionais disponham de tal matéria por lei ordinária. A duas, porque não há afronta direta a quaisquer dos princípios constitucionais estruturantes, muito menos ao da separação dos Poderes, pois referida norma estadual é (i) razoável-adequada como decorrência do exercício do poder de auto-organização e autolegislação dos Estados-membros, mantendo-se a discussão da matéria pelo Parlamento e sem prejuízo do poder de veto pelo Chefe do Poder Executivo, ou seja, sem que tal medida esvazie a função de quaisquer dos Poderes ou desnature os ideais republicanos, federativos ou democráticos; e (ii) proporcional, havendo correlação entre os meios adotados (quórum qualificado para a discussão do regime jurídico único dos servidores) e os fins almejados (maior amplitude na conformação de vontade do Parlamento), sem que houvesse outra alternativa legitimamente eficaz para tanto. A três, porque proibir o Estado-membro de disciplinar as situações correlatas às matérias afetas à lei ordinária ou complementar exorbita o núcleo central da própria simetria constitucional em prejuízo (esvaziamento) da autonomia dos entes da Federação (vedação ao excesso de proibição), atentando contra a unidade e congruência do sistema constitucional.
O balizamento acima proposto, contrário ao atual entendimento do Supremo Tribunal Federal43, procura dar maior concretude e segurança jurídica no controle de constitucionalidade realizado pelo Tribunal Constitucional, contribuindo para o aperfeiçoamento do controle jurisdicional exercido, por vezes, sem o adequado balizamento interpretativo da extensão do princípio da simetria constitucional. Busca-se, assim, afastar excessiva discricionariedade no julgamento de casos levados ao controle de constitucionalidade junto ao Poder Judiciário, através (i) da identificação clara de critérios prévios para justificar o comando decisório e (ii) da motivação em torno da existência de elemento concreto constante da norma subnacional capaz de violar qualquer dos princípios constitucionais estruturantes (violação direta e apta a desestruturar a modelagem estatal pré-definida pelo Constituinte originário).
Assim, a aplicação da simetria constitucional, no caso concreto, exige a ponderação de normas, de forma que a promoção de um princípio não acarrete a aniquilação do outro, o que pode ser adotado, caso a caso, através dos critérios interpretativos apresentados por diferentes teorias da argumentação. Seja qual for, a questão central remonta à necessidade de encontrar um adequado “calibramento federativo” na aplicação das normas constitucionais para a solução de situações empíricas envolvendo o pacto federativo delineado pela Constituição de 1988, sem prejuízo da manutenção da unidade estatal (garantida pelo art. 60, § 4º, da CF).
Aliás, a proposta aqui traçada não é em todo inovadora. Extrai-se da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal julgados em que se deu adequada concretude ao controle de constitucionalidade a partir da análise da norma impugnada frente aos critérios interpretativos da razoabilidade, proporcionalidade e vedação ao excesso de proibição, perpassando pela argumentação em torno dos efeitos da norma estadual frente aos princípios estruturantes do sistema constitucional brasileiro.
É o caso do bem lançado voto prolatado pelo Ministro Cezar Peluso na ADI nº 4298-MC, em que se discutia a constitucionalidade, em atenção à regra da simetria constitucional, de norma estadual do Estado de Tocantins relacionada à eleição indireta para provimento dos cargos de Governador e vice-Governador quando vagos nos dois últimos anos de mandato. Na oportunidade, prevaleceu o voto do Ministro relator pela inexistência de ofensa ao art. 81, § 1º, da Constituição Federal, pela inexistência de vinculação dessa regra por parte do Estado-membro. Do voto do Ministro Cezar Peluso, após acurada advertência sobre a necessária cautela na aplicação da simetria constitucional para preservação da estrutura federativa, extrai-se aprofundada ponderação do caso concreto frente aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade na adoção da regra jurídica pelo Estado do Tocantins, inclusive com a abordagem de alternativas outras à escolha feita pelo legislador estadual44.
Enfim, a questão central aqui abordada passa pela interpretação do texto constitucional voltada à preservação dos ideais do federalismo, sem prejuízo da preservação dos valores jurídicos umbilicalmente adstritos à formação do Estado brasileiro (princípios constitucionais estruturantes). Como bem nos lembra Grimm (2023, p. 187), em importante estudo sobre a preservação da jurisdição constitucional, “A Constituição não se concretiza por força própria. Ela depende da observância, e se necessário, da implementação dos próprios destinatários.”. É exatamente nesse contexto que caminham as contribuições lançadas ao longo do presente artigo. O fortalecimento dos entes federativos e, portanto, da própria Federação brasileira, somente se concretizará com a atuação voltada a tal mister por parte dos destinatários das normas constitucionais, cabendo ao Supremo Tribunal Federal, como guardião final da Constituição, encontrar a interpretação mais consentânea para a preservação dos princípios constitucionais estruturantes, dentre eles o da própria Federação.
5. CONCLUSÃO
Como discorrido ao longo do artigo, o Estado federal brasileiro ainda possui o centralismo como elemento presente nas relações federativas diuturnas, não somente pela própria concentração de competências estabelecidas no texto constitucional (apesar dos avanços da Constituição de 1988 em relação ao regime constitucional anterior), mas também pela interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal em torno da aplicação de uma simetria constitucional que acaba por impor, na prática, uma verticalização (uniformização) de regras sobre temas afetos à própria organização e atuação estatal, sob o prisma de salvaguarda da harmonia e separação dos Poderes.
Como se procurou demonstrar, a compreensão majoritária do tema no Supremo Tribunal Federal, além de partir de uma premissa equivocada - a simetria constitucional abarca outros princípios constitucionais estruturantes previstos na Constituição Federal, e não somente o da separação dos Poderes - tem uma compreensão excessivamente ampliada do princípio da simetria constitucional em detrimento do esvaziamento da autonomia político-administrativa dos entes subnacionais, sem a existência de elementos norteadores (critérios interpretativos) para a adequada e necessária ponderação das regras e princípios constitucionais, em grave desvirtuamento do pacto federativo.
Mas é preciso que a análise crítica dirigida ao Supremo Tribunal Federal não atraia, para este Tribunal, a responsabilidade pelo desequilíbrio de forças entre os entes que compõem a Federação. A situação é muito mais complexa, antiga e deriva de inúmeros fatores sociais, econômicos e políticos, a exemplo da atuação costumeiramente centralista da Presidência da República, da postura conivente do Congresso Nacional (em especial do Senado Federal, casa de representação dos Estados) com a aprovação de leis gerais que comumente extrapolam (e muito) os limites estabelecidos pelo § 1º do art. 24 da Constituição Federal, e dos próprios entes subnacionais, que por vezes não exercem adequadamente suas competências constitucionais (como ocorreu em 2018 no Estado do Rio de Janeiro, com a necessária intervenção federal na área da segurança pública estadual). Enfim, há uma celeuma enorme de corresponsáveis pela centralização de poder em torno da União, sendo o Supremo Tribunal Federal somente mais um ator nesse cenário.
É necessário virar a página da mera retórica em defesa do pacto federativo. É chegada a hora de dar verdadeira vida à Federação brasileira, a partir do respeito à autodeterminação dos entes subnacionais nos limites estabelecidos pela Constituição Federal, sem interpretações ampliativas e conceitos vazios, permitindo o florescimento dos valores jus-filosóficos intrínsecos ao Estado federal, em especial a limitação do poder central, através da efetiva descentralização de competências executórias e legislativas desprovidas de interesse nacional; e o pluralismo, inclusive no campo da organização político-administrativa, permitindo que várias soluções para um mesmo problema sejam testadas e implementadas em partes diferentes do território nacional, inclusive a partir das particularidades culturais, econômicas e sociais.
Objetivamente, a aplicação do princípio da simetria constitucional não pode desnaturar os elementos intrínsecos do federalismo, voltados como uma solução democrática de equilíbrio de poderes entre governos central e locais, a partir da ideia de governo parcialmente nacional e parcialmente federal. A materialização de uma Federação equilibrada, cooperativa e plural, portanto, está diretamente dependente do comportamento e das ações praticadas pelas instituições e pelos Poderes constituídos, nos três níveis da Federação. Retornando ao questionamento lançado por Abrucio mencionado no início do presente texto, para você, leitor, que Federação estamos construindo e qual queremos para o futuro?
REFERÊNCIAS
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1
Em relação às características do federalismo brasileiro e seus desdobramentos operacionais, remete-se o leitor para Probst (2018).
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2
Conforme Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil de 2022, organizado pelo PNUD e pelo IPEA, é significativa a diferença de IDHM entre o Distrito Federal (0,814, o maior) e o Estado do Maranhão (0,676, o menor). Disponível em:< Disponível em: <http://www.atlasbrasil.org.br/>. Acesso em 15/5/2024.
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3
Sobre as diferentes formas de Estado, remete-se o leitor para Kelsen (2000); Barile; Cheli; Grassi (2013), Bonavides (2016) e Cruz (2003).
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4
Desdobrando tais características, expõe Horta (1981, p. 14) que são elementos marcantes dos Estados federais modernos: a composição plural dos entes estatais, a indissolubilidade do vínculo federativo, a repartição de competências, a autonomia do Estado-membro, a intervenção federal, o sistema bicameral, a repartição tributária e a existência de um Supremo Tribunal, dotado de jurisdição conclusiva na interpretação e na aplicação da lei federal e da Constituição Federal.
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5
Em recente publicação coordenada por Nicolini e Valdesalici, encontram-se retratadas as múltiplas relações do poder local em Estados federais como a Índia, África do Sul, México, Bélgica, entre outros. Trata-se de importante estudo para melhor compreensão das assimetrias no modelo federal.
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6
No qual estão inseridos os sistemas de controle e fiscalização do Poder Público, assim como a harmonia e independência dos Poderes, como postulado por Ataliba (1998, p. 37).
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7
Canotilho (2002, p. 239 e ss.) se vale da mesma nomenclatura (princípios estruturantes) para descrever aqueles princípios que balizam a República Portuguesa: princípio do Estado de Direito, princípio democrático, princípio da socialidade, princípio da unidade do Estado e os princípios da integração europeia e da abertura ao Direito Internacional. Ávila (2016, p. 153), em análise ao ordenamento jurídico brasileiro, também utiliza tal nomenclatura para designar aqueles valores que “normatizam o modo e o âmbito de atuação estadual”.
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8
Designação amplamente adotada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (v.g., ADI nº 2799, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 18-09-2014; e ADI nº 4362, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 09/08/2017).
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9
É a designação dada por Silva (2016, p. 95-96) para esse núcleo de valores protegidos pela Constituição Federal.
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11
Trata-se de percepção majoritariamente aceita pela doutrina. Por todos, cita-se Barroso (2024, p. 194): “A cultura constitucional brasileira no tocante à Federação tem sido historicamente centralizadora, como visto. Em primeiro lugar, em razão da origem unitária do Estado brasileiro. Em segundo lugar, pelos descaminhos da República Velha, com a política dos governadores, a política do Café com Leite e as intervenções federais desvirtuando o modelo federativo. A isso se somam as duas ditaduras do período republicano, a do Estado Novo e a do Regime Militar. Ditaduras, como intuitivo, são centralizadoras do poder. A Constituição de 1988 acenou com maior equilíbrio. Ainda assim, as competências político-administrativas, legislativas e tributárias ficaram substancialmente concentradas na União Federal.”.
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12
Assim o fez a União quando da vigência da Lei nº 8.666/1993, renovando tal prática com o advento da Lei nº 14.133/2021, deixando asfixiada a competência dos entes subnacionais para regrar assuntos relacionados às licitações públicas e aos contratos administrativos. O Supremo Tribunal Federal afetou a matéria no âmbito do Tema nº 1.036 (Competência legislativa para editar norma sobre a ordem de fases de processo licitatório, à luz do art. 22, XXVII, da Constituição Federal).
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13
Tal situação não é particularidade do federalismo brasileiro. A subvalorização do constitucionalismo estadual também é objeto de forte crítica internacional, como demonstram relevantes estudos sobre o tema: Nicolini; Valdesalici (2023), Garza (2022) e Gamper (2014).
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14
Ao discorrer sobre as chamadas cláusulas pétreas, Sarlet (2024, p. 59) as considera como “limites materiais à reforma da Constituição”, assim como “objetivam assegurar a permanência de determinados conteúdos da Constituição, em virtude de sua relevância para a própria identidade da ordem constitucional, conteúdos que, na formulação de John Rawls, constituem os “elementos constitucionais essenciais”.
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15
Há certa divergência no entendimento da simetria constitucional como princípio (e.g., Mendes; Branco, 2018, p. 898; e Barroso, 2024, p. 68) ou regra (v.g.,Rocha, 2021, p. 236; Leoncy, 2011, p. 154). Tratar-se-á da simetria como princípio constitucional a partir dos conceitos apresentados por Ávila (2016, p. 107).
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16
Nesse sentido, Barroso (2024, p. 68): “Trata-se de princípio desenvolvido pela jurisprudência do STF e bastante consolidado nela, que implica alguma restrição da capacidade de auto-organização dos entes federativos, com o propósito de assegurar homogeneidade em temas que o Tribunal considera estruturantes da ordem constitucional.”.
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17
Em producente pesquisa de Mestrado no âmbito da Universidade Federal do Paraná, Costa (2019, p. 69 e ss.) expõe antigos julgados do Supremo Tribunal Federal ao longo de diferentes regimes constitucionais e que podem ser compreendidos como a linha condutora da criação do princípio da simetria constitucional naquela Corte, tal como hoje presente na jurisprudência do Tribunal Constitucional brasileiro.
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18
Representação nº 94, Rel. Min. Castro Nunes, julgado em 17/07/1947.
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19
V.g., dispunha o art. 82 da Constituição do Rio Grande do Sul, objeto da apreciação pelo Supremo Tribunal Federal e mencionado no voto do Ministro Castro Nunes: “Art. 82. Dependem os Secretários da confiança da Assembleia Legislativa e devem demitir-se quando ela lhes seja negada.”. Haviam outros dispositivos questionados na ação, a exemplo da possibilidade do Governador do Estado dissolver a Assembleia Legislativa (art. 85).
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20
Extrai-se excerto do voto do Min. Castro Nunes: “Na verdade o princípio da separação dos poderes, cuja independencia está pressuposta na Constituição, não comporta o regimen parlamentar ou qualquer de suas assemelhações. Se o comportasse, seria por igual admissível no jogo dos poderes da União. Porquanto o princípio, antes de ser inscrito com regra orgânica dos Estados, inscreve-se no mecanismo dos poderes da União, art. 36: São Poderes da União, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si. Se a vida de relação do Executivo e do Legislativo da União não pode ser posta em termos diversos dos estruturados na Constituição, não estando ao alcance do Congresso modificá-los por uma lei para estabelecer alguma fórmula de mais íntima penetração, é desde logo inconcebível que possam faze-lo os Estados, mesmo em função constituinte, a que se dirige, precipuamente, a menção daquele princípio na enumeração do n. VII.”.
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21
RE nº 74.193, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, julgado em 27/04/1973.
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22
Não se pode afirmar que se trata da primeira menção expressa ao princípio da simetria, mas em consulta virtual ao banco de dados do Supremo Tribunal Federal (https://portal.stf.jus.br/), trata-se do precedente mais antigo com tal menção em sua ementa.
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23
ADI nº 2872, Rel. p/ Acórdão Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 01/08/2011.
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24
ADI nº 4945, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 21/08/2019.
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25
ADI nº 6642, Relª. Minª. Rosa Weber, julgado em 14/09/2022.
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26
ADI nº 825, Rel. Min. Alexandre De Moraes, julgado em 25/10/2018.
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27
ADI nº 6453, Relª. Minª. Rosa Weber, julgado em 14/02/2022.
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28
ADI nº 253, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 28/05/2015.
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29
ADI nº 3594, Relª. Minª. Cármen Lúcia, julgado em 15/03/2021.
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30
ADI nº 331, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 03/04/2014.
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31
ADI nº 825, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 25/10/2018.
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32
ADI nº 4298-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 07/10/2009.
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33
ADI nº 3594, Relª. Minª. Cármen Lúcia, julgado em 15/03/2021.
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35
Ingressaram recentemente no Supremo Tribunal Federal, por ordem cronológica, os Ministros Nunes Marques (2020), André Mendonça (2021), Cristiano Zanin (2023) e Flávio Dino (2024).
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Exemplifica-se: “Consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o Poder Constituinte Decorrente não pode ampliar as hipóteses de reserva de lei complementar para além daquelas previstas na Constituição Federal.” (RE nº 1301579 AgR, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgado em 11/03/2024; e “2. Por força do princípio constitucional da simetria (CF, art. 25), não é dado ao legislador estadual alargar o catálogo de autoridades sujeitas ao poder fiscalizatório do Parlamento exercido mediante a requisição de informações por escrito. Precedentes” (ADI nº 6653, Rel. Min. Nunes Marques, julgado em 27/11/2023).
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Por exemplo: ADPF nº 672 MC-Ref, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 13/10/2020; ADI nº 6343 MC-Ref, Rel. p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 06/05/2020; e ACO nº 3463 MC-Ref, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 08/03/2021.
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Art 188 - Os Estados reformarão suas Constituições dentro em sessenta dias, para adaptá-las, no que couber, às normas desta Constituição. as quais, findo esse prazo, considerar-se-ão incorporadas automaticamente às cartas estaduais.
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Art. 200. As disposições constantes desta Constituição ficam incorporadas, no que couber, ao direito constitucional legislado dos Estados.
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RE nº 197.917-8/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 24/3/2004.
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Para Ávila (2016, p. 177), “os postulados normativos funcionam como estrutura para a aplicação de outras normas.”. Continua o Autor (2016, p. 222): “Com efeito, o exame de razoabilidade-equivalência investiga a relação entre duas grandezas ou entre uma medida e o critério que informa sua fixação. O exame de proporcionalidade investiga a relação entre a medida adotada, a finalidade a ser atingida e o grau de restrição causado nos direitos fundamentais atingidos. O exame da proibição de excesso analisa a existência de invasão no núcleo essencial de um princípio fundamental.”.
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Poderiam ser adotados outros critérios interpretativos, a exemplo daqueles apresentados por Robert Alexy, Ronald Dworkin ou Konrad Hesse, em suas prestigiadas teorias da argumentação. Preferiu-se adotar aqueles lançados por Humberto Ávila, que em grande medida absorve parcela dessas teorias na concepção das regras, dos princípios e dos postulados normativos. Deveras, a questão não passa pela adoção de um ou outro critério interpretativo (ou de um critério mais adequado do que outro), mas, sim, pela necessidade de estabelecer um padrão interpretativo da simetria constitucional frente ao sistema federativo brasileiro.
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RE nº 1.301.579-AgR, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgado em 11/03/2024; e ADI nº 5.003, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 05/12/2019.
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Consta do voto prolatado pelo Ministro Cezar Peluso: “Ora, a adoção da eleição indireta, no caso de dupla vacância no último biênio de mandato, já aparece, em primeiro lugar, como adequada, pois é apta a promover o objetivo constitucional de uma eleição democrática; depois, revela-se ainda necessária, na medida em que não se vislumbra alternativa igualmente célere, econômica, hábil e menos lesiva ao princípio excepcionado; e, por fim, não deixa de ser proporcional em sentido estrito, porque o grau de mutilação imposto a esse valor se afigura aceitável quando ponderado com os benefícios consequentes.” (ADI nº 4298-MC).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
08 Jul 2025 -
Aceito
06 Ago 2025
