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Políticas públicas e constitucionalismo contemporâneo crítico: sistematizações para subsidiar análises em Direito e políticas públicas

Public policies and critical contemporary constitutionalism: systematizations to subsidize analysis in Law and public policies

Resumo

O presente artigo de referência reúne, organiza e sistematiza os conceitos e tipologias em políticas públicas com maior inserção no Direito; ao passo que delimita o estado da arte do debate sobre o constitucionalismo contemporâneo de perspectiva crítica, inventariando suas principais contribuições potenciais para a Abordagem Direito e Políticas Públicas (DPP) no contexto jurídico brasileiro. Tem como objetivo tratar do caráter retroalimentador desses dois saberes; sistematizar as bases de linguagem que vem sendo compartilhadas no meio jurídico quanto a políticas públicas; e apresentar possíveis incrementos críticos que o enfoque do constitucionalismo contemporâneo pode aportar à Abordagem DPP. Realiza-se uma revisão sistematizada de literatura acerca do debate. Aborda-se as diferentes conceituações, as tipologias e os modelos teóricos de políticas públicas, com enfoque na interface com o Direito. Realiza-se incursão no debate sobre avaliação, monitoramento e controle de políticas públicas. Sistematiza-se uma revisão da literatura sobre constitucionalismo contemporâneo e as transformações da dogmática juspublicista brasileira. Incursiona-se na perspectiva crítica do constitucionalismo contemporâneo, para a subsequente análise dos potenciais desse enfoque para incremento da Abordagem DPP. Por fim, analisa-se o desenvolvimento jurídico-institucional das normativas sobre avaliação e monitoramento de políticas públicas no Brasil, em direção a uma maior imbricação institucional dos dois campos.

Palavras-chave:
Abordagem DPP; Constitucionalismo Crítico; Direito e Políticas Públicas; Brasil

Abstract

The present reference article gathers, organizes and systematizes the concepts and typologies of public policies with greater insertion in Law. Whilst it delimits the state of the art of debate regarding a critical perspective of the contemporary constitutionalism, cataloging its main potencial contributions to the Law and Public Policies Approach (LPPA) in Brazilian legal context. The goal is to address the feedback feature of both knowledges; systematize the bases of the language that have been shared in the legal environment as to public policies; and introduce possible critical increments that the focus of contemporary constitutionalism may contribute to the LPP Approach. It executes a systematic review of the literature on the debate. It addresses the different concepts, typologies and theoretical models of public policies, focusing on the interface with Law study. It performs an incursion on the debate about evaluating, monitoring and controlling public policies. It systematizes a review of the literature about the contemporary constitutionalism and the transformations of Brazilian juridic publicity dogmatic. It incurs on the critical perspective of contemporary constitutionalism, to the subsequent analysis of the potencial to increment the LPP approach. At last, it analyses the juridical-institucional development of the normative about evaluation and monitoring of public policies in Brazil, towards a greater institucional superposition of both fields.

Keywords:
LPP Approach; Critical Constitutionalism; Law and Public Policies; Brazil

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo busca realizar uma revisão sistematizada de literatura acerca do debate sobre políticas públicas e suas imbricações na experiência e na linguagem jurídicas. Isso, para então construir considerações exploratórias acerca das contribuições do constitucionalismo contemporâneo em seu enfoque crítico, para a abordagem Direito e Políticas Públicas (Abordagem DPP), tal como definido por Maria Paula Dallari Bucci (2019BUCCI, Maria Paula Dallari. Método e aplicações da abordagem Direito e políticas públicas. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 5, nº 3, p. 791-832, set./dez. 2019.). Entende-se que a Abordagem DPP consiste no tratamento (analítico e propositivo) mais consistente no meio jurídico brasileiro quanto a esse fenômeno. Não obstante, postula-se que o incremento advindo de um enfoque constitucionalista crítico pode somar importantes aprimoramentos complementares a tal referencial de pesquisa e prática.

Mais detalhadamente, portanto, esse paper tem como objetivo tratar do caráter retroalimentador, que esses dois saberes (Direito e Políticas Públicas), potencialmente apresenta; sistematizar as bases de linguagem que vêm sendo compartilhadas no meio jurídico quanto a políticas públicas; e apresentar possíveis incrementos críticos que o enfoque do constitucionalismo contemporâneo pode aportar à Abordagem DPP. Primeiramente, portanto, percorre-se o caminho das Políticas Públicas no Direito. Assim, realiza-se um esforço de sistematização e síntese de conceitos importantes do campo de políticas públicas para seu uso no Direito, em referenciais como Dye (2009DYE, Thomas R. Mapeamento dos modelos de análise de políticas públicas. In: HEIDEMANN Francisco G.; SALM, José Francisco (org.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2009, p. 99-132.), Schmidt (2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018.), Souza (2006SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, p. 20-45, jul./dez. 2006.) e Bucci (2002BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. e 2019BUCCI, Maria Paula Dallari. Método e aplicações da abordagem Direito e políticas públicas. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 5, nº 3, p. 791-832, set./dez. 2019.), dentre outros. Em sequência, trilha-se o iter do Direto nas Políticas Públicas: analisa-se a importância da inserção interdisciplinar do Direito como saber de base na discussão de Políticas Públicas (e não apenas como conhecimento meramente instrumental nesse campo), notadamente a partir de um olhar estruturado no constitucionalismo contemporâneo de matriz crítica, em referenciais como Neves (2018NEVES, Marcelo. Constituição e direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. Trad. Antônio Luz Costa. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes, 2018.), Streck (2012), Bercovic (2018), Coelho (2017 e 2019COELHO, Diva Júlia Sousa da Cunha Safe; COELHO, Saulo de Oliveira Pinto; DINIZ, Ricardo Martins Spindola. Direitos fundamentais, dignidade humana e jurisdicição constitucional entre laudatórias e inefetividades: paradoxos da experiência constitucional e sua auto-descrição crítica no Brasil. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, nº 59, p. 60-87, set./dez. 2019.), Binenbojm (2014BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.), Moreira Neto (2006MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar , 2006.).

Assim, o presente estudo parte do postulado de que o Direito Público pode ser tratado concretamente numa dogmática juspublicista crítica, para além das abstrações do discurso jurídico tradicional, geralmente laudatório, autocentrado e relativamente desconectado dos desafios complexos da sociedade atual, bem como propenso a arrefecer o papel inclusivo do projeto constitucional social e democrático, frente à razão instrumental do sistema-mundo vigente, capitaneado pela primazia do econômico sobre o humano e o social.

Contra isso, um direito público pautado num enfoque crítico do constitucionalismo contemporâneo, ao mesmo tempo que demanda o saber-fazer do campo de políticas públicas (que tem um importante papel na organização transparente e responsiva das atividades estatais, para sua aferição frente ao projeto constitucional), é, por outro lado, um importante componente no debate de políticas públicas (o Direito contribui não apenas na instrumentalização mas também na fundamentação e concepção de políticas públicas).

No itinerário do trabalho, abordam-se em sede de revisão de literatura as diferentes conceituações de políticas públicas, as tipologias de políticas públicas, os modelos teóricos de políticas públicas e aqueles mais coadunados à interface com o campo do Direito, com destaque ao modelo do Ciclo de Políticas Públicas; realiza-se, de modo específico, uma incursão no debate sobre avaliação, monitoramento e controle de políticas públicas, suas implicações e suas potencialidades no campo jurídico.

Em sequência, realiza-se sintética revisão da literatura sobre constitucionalismo contemporâneo e sobre as transformações da dogmática jurídica juspublicista, com destaque para o Direito Administrativo. A partir daí, incursiona-se na perspectiva crítica do constitucionalismo contemporâneo, em contraposição a perspectivas puramente laudatórias existentes sobre esse fenômeno.

Esse itinerário dá a base para a subsequente análise dos potenciais desse enfoque crítico do constitucionalismo para incremento da Abordagem DPP; e, por fim, analisa-se o desenvolvimento jurídico-institucional das normativas sobre avaliação e monitoramento de políticas públicas no Brasil, em direção a uma maior imbricação institucional dos dois campos. Imbricação essa, que tem na Abordagem DPP um relevante método referencial de organização e operacionalização.

2 POLÍTICAS PÚBLICAS: CONCEITOS, TIPOLOGIAS, MODELOS TEÓRICOS E O CICLO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

2.1 Políticas públicas: aspectos conceituais, tipologias e modelos teóricos

O estudo das políticas públicas surgiu como subcampo da Ciência Política nos Estados Unidos (EUA), em especial a partir da década de 1950 no contexto do pós-guerra, que coincide com a expansão do Estado de Bem-Estar Social em vários países e com o consequente aumento das despesas públicas (Schmidt, 2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 119-120).

Essa nova disciplina acadêmica surgida nos EUA rompeu com a tradição europeia nessa área, que se concentrava na mais na análise sobre o Estado e suas instituições do que na produção dos governos propriamente dita; assim, buscava-se compreender como e por que os governos optam por determinadas ações (Souza, 2006SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, p. 20-45, jul./dez. 2006., p. 21-22).

Porém, não era apenas isso: a expectativa inicial com esse novo enfoque de análise era de que os cientistas políticos poderiam apontar soluções científicas neutras e metodologicamente estruturadas para tornar mais efetivas e racionais as ações do governo, tendência que não se confirmou como esperado, o que ensejou diferentes formulações teóricas que captassem toda a complexidade envolvida no processo de tomada de decisões dos governos (Schmidt, 2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 119-121).

A revisão de literatura especializada permite interpretar que há dois caminhos básicos que o campo das Políticas Públicas trilhou para sua difusão, a depender da configuração político-constitucional. Em países mais alinhados ao neoliberalismo e a lógicas de austeridade (como o Chile e, em certos períodos, a Inglaterra), a avaliação de políticas públicas aparece como forma de garantir que o gasto público atenda a noções de economicidade, sem desperdícios ou gastos ineficientes com políticas eventualmente de pouco ou nenhum resultado. Já em países mais claramente comprometidos com um constitucionalismo social (como Alemanha e, em certos períodos, a própria Inglaterra), o estudo de Políticas Públicas baseado em evidências se prestava a gerar aprimoramentos nos programas de governo de modo a maximizar resultados e a legitimar o gasto público, notadamente o gasto social. É o que analisam Diniz, Coelho e Borges (2018DINIZ, Ricardo; COELHO, Saulo; BORGES, Alexandre. Apresentação. Direito e políticas públicas nos 30 anos da constituição: experiências e desafios na promoção e tutela dos direitos sociais e econômicos. Florianópolis: Tirant lo Blanch , 2018.) e, no mesmo sentido, Bonifácio, Silva e Rocha (2018BONIFÁCIO, Robert; SILVA, Tancredo; ROCHA, Claudiney. Avaliação de políticas públicas pós constituição de 1988: definição, experiências internacionais e estado do campo no Brasil. In: DINIZ; COELHO; BORGES (orgs.). Direito e políticas públicas nos 30 anos da constituição: experiências e desafios na promoção e tutela dos direitos sociais e econômicos. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.).

Assim, o conceito de políticas públicas não é unívoco nem surge de maneira uniforme entre os estudiosos; comporta inúmeras e diversas concepções.

Talvez a mais ampla, comumente apontada pela literatura, é a formulada por Thomas Dye, que definia política pública como tudo aquilo que os governos decidem fazer ou não fazer (Souza, 2006SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, p. 20-45, jul./dez. 2006., p. 24). Essa perspectiva ampla (e um tanto limitada, ao que parece), tem o condão de chamar atenção para aspectos do realismo em políticas públicas, e o estudioso do fenômeno deve atentar para o fato de que não se pode ignorar nem mesmo a possibilidade de indivíduos e grupos participarem mais vigorosamente do processo de não-tomada de decisões (non decision-making process) e seus efeitos (Bachrach e Baratz, 2011BACHRACH, Morton S.; BARATZ, Peter. Duas faces do poder. Revista Sociologia Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 149-157, out. 2011., p. 152).

Sem desmerecer referida contribuição teórica, outra formulação clássica que recebe especial atenção pela literatura - e que traz uma perspectiva ainda mais realista para o estudo das políticas públicas - é aquela proposta por Harold Laswell1 1 Ao lado de Harold Laswell, outros 3 (três) clássicos são apontados pela literatura como os “pais” fundadores da área de políticas públicas, a saber, Herbert Simon, Charles E. Lindblom e David Easton (SOUZA, 2006, p. 23). , segundo o qual políticas públicas implicam respostas às seguintes questões: “quem ganha o que, quando e como?” (Schmidt, 2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 120), questões que repercutem fortemente até hoje, por evidenciar que não existe política neutra e sim que esta acaba refletindo prioridades estatais para alguns problemas públicos, a implicar escolhas e decisões.

João Schmidt (2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 123) entende que a definição de política pública deve começar pela compreensão do que lhe é fundamental nesse mister, isto é, as demandas sociais vinculadas a problemas políticos. Num esforço de sintetizar as premissas em que se baseia o autor para desenvolver seu conceito, destaca-se que a política pública constitui uma resposta - estruturada num conjunto de ações - a um problema político, entendido como aquele socialmente relevante e que ostente caráter público (de interesse de toda a coletividade) ou mesmo coletivo (de interesse de determinado segmento social), ainda que essa resposta não seja capaz de atender a todos nem de trazer soluções adequadas ao problema vislumbrado (Schmidt, 2018, p. 123-127). Cabe adicionar que um enfoque constitucionalista crítico da Abordagem DPP imprimiria complementarmente a esse conceito a necessidade de que esse “problema político”, a ser tratado em uma política pública, necessite ser um problema legitimamente merecedor, segundo a constituição, de um esforço de proteção ou promoção pelo poder público; ou seja, um problema político que esteja conforme aos objetivos, direitos, e princípios constitucionais (cf. Bitencourt; Reck, 2021BITENCOURT, Caroline Mulle; RECK, Janrie. O Brasil em crise e a resposta das políticas públicas: diagnósticos, diretrizes e propostas. Curitiba: Ithala, 2021., p. 83-85). Isto, porém, é um plus analítico que vem da Abordagem DPP, pois o campo da ciência política, de onde provem originalmente no Brasil o estudo de políticas públicas, em geral não considera o aspecto da conformidade constitucional material.

A partir dessas premissas, Schmidt (2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 127) define política pública como “um conjunto de decisões e ações adotadas por órgãos públicos e organizações da sociedade, intencionalmente coerentes entre si, que, sob coordenação estatal, destinam-se a enfrentar um problema político”. Esse conceito sintetiza alguns aspectos centrais no debate sobre o tema, a saber: a) ainda que revestidas de importância, ações isoladas não configuram uma política, a qual é sempre um conjunto de ações e decisões; b) deve haver a intencionalidade, ou propósito, de resolução de um problema político, ainda que na prática a coerência entre as ações seja frágil ou mesmo inexista; c) a execução das ações pode ocorrer diretamente pelo poder público ou este também pode delegá-la a organizações sociais ou privadas2 2 Interessante que se diga, que a compreensão das políticas públicas como protagonistas da ação estatal, e que o fato de sua realização dependa múltiplas e complexas redes de decisões que estão interconectadas, é difícil retirar um certo protagonismo estatal não apenas no âmbito da sua coordenação, mas também quando da execução e implementação das políticas públicas. Sendo assim, ainda que possa contar com parcerias de organizações sociais e entidades privadas, o Estado não deve sob a lógica das políticas públicas comportar-se como um mero regulador dessas atividades que busquem sua concretização. As políticas públicas usualmente se valem de mais de um instrumento. Espera-se que, da conjugação das decisões tomadas nos instrumentos, alcancem-se os objetivos das políticas públicas. Essa é a razão pela qual arquitetar as políticas públicas significa fazer um bom uso dos instrumentos não só de forma isolada, mas também de forma coordenada. Considera-se instrumentos das políticas públicas: os serviços públicos, o fomento, os bens públicos, obras públicas, poder de políticas, programas, intervenção do Estado na propriedade, dentre tantos outros. BITENCOURT, Caroline; RECK, Janriê. O Brasil em crise a resposta das políticas públicas. Curitiba: Ithala, 2021. ; d) numa democracia, ao Estado cabe sempre o papel de coordenação das ações de interesse público, ainda que executadas total ou parcialmente pela sociedade civil, bem como de legitimação do processo político (Schmidt, 2018, p. 127).

As políticas públicas devem ser compreendidas, portanto, a partir de 2 (dois) elementos que lhe são fundamentais e estruturantes, a saber, “intencionalidade pública e resposta a um problema público” (Secchi, 2013SECCHI, Leonardo. Políticas públicas: conceito, esquemas de análise e casos práticos. 2. ed. São Paulo, SP: Cengage Learning, 2013., p. 2).

Em harmonia com essas premissas, políticas públicas também podem ser entendidas como “coordenação dos meios à disposição do Estado, harmonizando as atividades estatais e privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados” (Bucci, 2002BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002., p. 241). A autora adiciona e esse conceito as seguintes características das Políticas Públicas: complexidade, articulação, processualidade, planejamento e escala (Bucci, 2019BUCCI, Maria Paula Dallari. Método e aplicações da abordagem Direito e políticas públicas. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 5, nº 3, p. 791-832, set./dez. 2019.).

Assim, a definição de políticas públicas não se compatibiliza com uma visão estreita que as identifica apenas com o desenvolvimento de atividades executivas, visto que compreende também sua “atuação normativa, reguladora e de fomento, nas mais diversas áreas” (Barcelos, 2008BARCELOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 111-147, 2008., p. 112), bem como, a articulação das entidades estatais e destas com o segundo e terceiro setores (visando à conformação destes aos desígnios do projeto constitucional, materializados em políticas públcias).

Também contribuíram para a noção de políticas públicas diversos manuais governamentais no Brasil, como aqueles elaborados pelo Ministério da Saúde e Tribunal de Contas da União (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica. Série B (Textos Básicos de Saúde). Política nacional de plantas medicinais e fitoterápicos. Brasília: MS, 2006a.; Brasil, 2014BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial para avaliação de governança em políticas públicas. Brasília: TCU, 2014. Disponível em: Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/61/86/7D/09/8CA1F6107AD96FE6F18818A8/Referencial_avaliacao_governanca_politicas_publicas.PDF . Acesso em: 25 dez. 2020.
https://portal.tcu.gov.br/data/files/61/...
), além de instituições financeiras, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID, 2006), cada qual adaptado a sua própria configuração institucional e voltado a orientar a respectiva atuação específica.

Além do conceito, revela-se importante destacar, ainda que brevemente, as principais tipologias e modelos teóricos de políticas públicas.

As políticas públicas podem ser classificadas de acordo com diversas tipologias, conforme aponta João Schmidt (2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 128-130), a partir de diversos autores: (a) políticas sociais e políticas econômicas (Thomas Marshall); (b) políticas universais e políticas focalizadas (Mény e Thoenig); (c) políticas distributivas, redistributivas, regulatórias e constitutivas (Theodor Lowi); (d) políticas majoritárias, clientelistas, empreendedoras e de grupo de interesse (James Wilson); (e) políticas reais, pseudopolíticas, simbólicas e sem sentido (Gunnel Gustaffsson). Isso, sem falar na tipologia bastante em voga no meio jurídico brasileiro, entre (f) políticas de governo e políticas de Estado, merecedoras de análises críticas por parte de Maria Dallari Bucci3 3 Sobre a distinção entre Políticas Públicas de Estado e Políticas públicas e de Governo, Maria Paula Dallari Bucci (2006), há mais de uma década, alertava que caracterizar o mero suporte normativo como política pública para abarcar tal distinção seria um tanto falho, não se mostrando suficiente a mera associação de positivação a nível Constitucional ou infraconstitucional. A ausência de utilidade na distinção Política Pública de Governo e de Estado aparece com maior nitidez quando se constata não ser possível essa distinção pelo fato de que toda política que a doutrina comumente chama de política pública de Governo possui elementos de uma política pública de Estado. O mesmo vale para as políticas públicas de Estado que também possuem elementos de políticas públicas de governo. Sobre as críticas dessa proposta de distinção, ver o artigo Políticas públicas de Governo e de Estado - uma distinção um pouco complexa: necessidade de diferenciação entre modelos decisórios, arranjos institucionais e objetivos de políticas públicas de Governo e Estado, de Bitencourt e Reck (2021). . Tais classificações podem ser visualizadas, em maior ou menor grau, nas mais diferentes políticas públicas, conforme o respectivo desenho e execução, para sua melhor compreensão.

Quanto aos modelos teóricos, também denominados de “modelos conceituais”, estes servem a diferentes propósitos, notadamente o de simplificar e esclarecer ideias sobre política e políticas públicas e ajudar a compreender como estas são concebidas, estruturadas e legitimadas (DYE, 2009DYE, Thomas R. Mapeamento dos modelos de análise de políticas públicas. In: HEIDEMANN Francisco G.; SALM, José Francisco (org.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2009, p. 99-132., p. 100). Thomas Dye aponta os seguintes modelos conceituais: a) institucional; b) processo; c) grupo; d) elite; e) racional; f) incremental; g) teoria de jogos; h) opção pública; e, por fim i) sistêmico.

O mesmo autor ainda destaca que nenhum desses modelos foi concebido especificamente para estudar política pública, mas cada um deles oferece uma visão diferente que auxilia na compreensão sobre a política e até sugere certas causas e consequências gerais de políticas públicas, além de que não constituem modelos “competitivos”, visto que no processo real vários deles podem estar presentes e “combinados”, à vista da complexidade da realidade política (Dye, 2009DYE, Thomas R. Mapeamento dos modelos de análise de políticas públicas. In: HEIDEMANN Francisco G.; SALM, José Francisco (org.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2009, p. 99-132., p. 100-101).

A seguir, apresenta-se uma proposta de síntese dos modelos retro mencionados, a partir de Dye (2009DYE, Thomas R. Mapeamento dos modelos de análise de políticas públicas. In: HEIDEMANN Francisco G.; SALM, José Francisco (org.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2009, p. 99-132.), com complementações elaboradas por esta equipe de pesquisa:

a) Modelo Institucional: o institucionalismo vê a política como aquilo que as instituições oficialmente estabelecem, implementam e fazem cumprir como políticas públicas; estas não existem, em outras palavras, sem uma instituição que lhe empreste legitimidade, universalidade e coerção, o que revela a relação muito íntima entre políticas públicas e instituições. Dye, contudo, pondera que nos estudos institucionais praticamente não tem sido examinada a relação entre os arranjos institucionais e o conteúdo das políticas e que este problema empírico merece maior investigação.

b) Modelo de Processo: enxerga a política como atividade política que possui entre seus principais objetivos identificar padrões de atividades ou “processos”, cujo resultado é um conjunto de ações político-administrativas, que usualmente obedece ao seguinte esquema geral: i) identificação de problemas; ii) elaboração de agenda para deliberação; iii) formulação de propostas; iv) legitimação das propostas; v) implementação; e vi) avaliação. Esse modelo conceitual é o que a literatura comumente refere como “ciclo de políticas públicas”, ao qual se voltará para exame mais detalhado.

c) Modelo de Grupo: concebe a política como o equilíbrio entre as reivindicações. O grupo torna-se a ponte essencial entre o indivíduo e o governo, e a política consiste no resultado da luta entre os grupos de interesse para influenciar as políticas públicas. A tarefa do administrador público consiste em administrar o conflito entre grupos quanto às questões que merecem atenção governamental.

d) Modelo de Elite: a teoria elitista vê a política como resultado da preferência das elites governantes; sugere que o povo é mal informado quanto às políticas públicas e a elite molda mais a opinião das “massas” do que estas moldam a opinião da elite; e os administradores e funcionários públicos apenas executam as políticas determinadas por estas. Em razão do conservadorismo das elites, as mudanças nas políticas públicas são de ordem mais incremental do que revolucionárias. O acesso à elite tem suas dinâmicas próprias de resiliência e a comunicação flui de cima para baixo, o que também caracteriza a formulação de políticas públicas (top-down). Por fim, apregoa haver mais consenso do que discordância entre as elites, embora estas possam também competir entre si, ainda que em relação a número limitado de questões.

e) Modelo Racional: voltado a produzir o “máximo ganho social”. Pautada em identificar e evitar políticas cujos custos superem seus benefícios, propugna que os gestores públicos devem escolher aquelas que produzam o maior benefício em relação a seus custos. Não se trata de escolher a política pública que produza o maior custo-benefício apenas em termos de valores monetários, mas sim a que leve em consideração todos os valores sociais, políticos e econômicos numa determinada sociedade. Embora haja muitas barreiras à formulação de políticas públicas racionais, o modelo em análise ainda permanece útil para ajudar a identificar as barreiras a essa racionalidade esperada.

f) Modelo Incremental: formulado por Charles Lindblom para contrapor o modelo racional, o incrementalismo considera as políticas públicas como a continuação das atividades desenvolvidas por governos anteriores, apenas com mudanças advindas da experiência da própria política ou da inserção de novos atores no processo; é considerado por Dye como um modelo conservador, na medida em que geralmente os formuladores de políticas aceitam tacitamente a legitimidade dos programas já estabelecidos ao dar continuidade às políticas anteriores, com variações incrementais. No entanto, deve-se acrescentar à análise que esse modelo, ao poder ser complementado por outros (em vista do caráter não-competitivo dos modelos, ressaltado pelo próprio Dye), pode ser um referencial interessante para evitar quebras de continuidade de aprendizado institucional acerca do saber-fazer e das melhores práticas, em políticas públicas especializadas.

g) Modelo da Teoria dos Jogos: este modelo concebe as políticas públicas como escolhas racionais em situações competitivas. Parte da premissa que não existe um “melhor” de forma neutra, mas sim que melhores resultados dependem daquilo que outros façam; assim, a decisão que me trará resultados mais expressivos depende da postura que será adotada por meu adversário, como numa matriz de jogo. Tal modelo pode sugerir questões interessantes para tratar da formulação de políticas em contextos conflitivos.

h) Modelo da Opção Pública: trata-se da aplicação das análises econômicas à formulação de políticas públicas, ou seja, pessoas perseguem seu próprio interesse tanto na política como no mercado. Reconhece que o governo deve exercer certas funções que o mercado não consegue realizar adequadamente, como as externalidades (quando atividades de um indivíduo, grupo ou governo impõe certos custos não compensados a outros). Propõe análises a partir da economia comportamental e de um realismo quanto à mensuração dos cálculos de escolha e respectivas vantagens comparativas que guiam os formuladores.

i) Modelo Sistêmico: desenvolvido por David Easton, encara as políticas públicas como respostas do sistema político (outputs ou saídas) às forças que o afetam (inputs ou entradas) a partir do meio, entendido este como qualquer condição ou circunstância alheia aos limites do sistema político. O processamento das demandas produz decisões e ações como respostas. Assim, o sistema político preserva-se por meio: a) da produção de outputs razoavelmente satisfatórios; b) da sujeição a suas próprias e inúmeras vinculações internas; e c) do uso, ou da ameaça do uso, da força.

Os modelos teóricos acima mencionados não são os únicos desenvolvidos pelos estudiosos. Como exemplo, Celina Souza (2006SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, p. 20-45, jul./dez. 2006., p. 30-37) cita o modelo garbage can (lata do lixo), da coalizão de defesa, das arenas sociais, do “equilíbrio interrompido” e outros influenciados pelo “novo gerencialismo público” e pelo ajuste fiscal; João Schmidt (2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 142-145), por sua vez, aponta, dentre outros, também os modelos do corporativismo, do neoinstitucionalismo e do comunitarismo.

Apresentados os modelos, passa-se ao aprofundamento em relação a um em específico: o modelo processual ou do ciclo de políticas públicas.

2.2 Ciclo de Políticas Públicas

Fundamental para compreender as políticas públicas é conhecer sua abordagem a partir do “ciclo de políticas públicas”, caracterizado por uma sequência teórica de etapas nas quais se desenvolve a ação pública estatal, desde a identificação do problema político que se pretende resolver e das propostas de encaminhamento de ações para o seu tratamento (avaliação ex-ante) até a avaliação da política pública criada (avaliação ex-post). Trata-se da abordagem do “modelo de processo” referida anteriormente.

Essa abordagem do “ciclo” não é infensa a críticas - como nenhum outro modelo teórico o é e nem poderia sê-lo - centradas principalmente na suposta rigidez dessas fases, como se desenvolvessem numa cronologia sequencial e bem definida, o que é contraposto ao fato de que o processo de construção das políticas públicas revela-se complexo na realidade (Pinto, 2008PINTO, Isabela Cardoso de Matos. Mudanças nas políticas públicas: a perspectiva do ciclo de política. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 12, nº 1, p. 27-36, 2008., p. 29). As críticas alertam para a “necessidade de não se considerar as fases como rígidas etapas sequenciais, ou seja, é possível que as sequências se alternem e as fases se misturem” (Raeder, 2014RAEDER, Savio Túlio Oselieri. Ciclo de políticas: uma abordagem integradora dos modelos para análise de políticas públicas. Revista Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, vol. VII, nº 13, p. 121-146, jan./jun. 2014., p. 127).

Não obstante as críticas, tal modelo se afigura útil na identificação das principais características das etapas que constituem as políticas públicas (Duarte, 2013DUARTE, Clarice Seixas. O ciclo das políticas públicas. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; SMANIO, Gianpaolo Poggio (orgs.). O Direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 16-43., p. 25-26), em caráter complementar ao modelo sistêmico de David Easton. Para a devida compreensão dessa abordagem, “mais importante do que a sequência que o ciclo apresenta é o entendimento de que a política pública é composta por estágios que possuem características específicas” (Raeder, 2014RAEDER, Savio Túlio Oselieri. Ciclo de políticas: uma abordagem integradora dos modelos para análise de políticas públicas. Revista Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, vol. VII, nº 13, p. 121-146, jan./jun. 2014., p. 127).

Ainda, Thomas Dye pondera que alterações ocorridas em quaisquer das fases do ciclo de políticas públicas - como a maior ou menor participação de grupos de interesse na fase de formulação da política - não necessariamente conduzirão a mudanças significativas sobre o conteúdo da política (Dye, 2009, p. 106DYE, Thomas R. Mapeamento dos modelos de análise de políticas públicas. In: HEIDEMANN Francisco G.; SALM, José Francisco (org.). Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2009, p. 99-132.).

Embora haja certo consenso em relação à importância do ciclo, há diferentes concepções teóricas sobre o número e a definição das fases que o compõem4 4 Savio Raeder (2014, p. 130-131) afirma que, segundo Homlett, Ramesh e Perl, o precursor do “ciclo” foi Harold Laswell, que o definiu nos 7 (sete) estágios a seguir: a) informação; b) promoção; c) prescrição; d) invocação; e) aplicação; f) término e g) avaliação. Thomas Dye, em seu modelo do processo, concebe 6 (seis) fases para o ciclo de políticas públicas. O Manual da Metodologia para Avaliação da Execução de Programas de Governo, elaborado pela Controladoria-Geral da União - CGU (BRASIL, 2015, p. 8-9), tendo como referencial teórico Werner Jann e Kai Wegrich, estabelece apenas 4 (quatro) fases para o ciclo, suprimindo a de “identificação dos problemas” que usualmente configura a primeira: a) definição da agenda política (agenda-seeting); b) formulação (policy formulation); c) implementação (policy implementation); e d) avaliação (policy evaluation). . A mais difundida na literatura é a que identifica 5 (cinco) fases a seguir identificadas: a) percepção e definição de problemas; b) formação da agenda decisória; c) formulação de programas e projetos; d) implementação das políticas; e e) monitoramento e avaliação das ações executadas (Schmidt, 2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 131; Raeder, 2014, p. 128RAEDER, Savio Túlio Oselieri. Ciclo de políticas: uma abordagem integradora dos modelos para análise de políticas públicas. Revista Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, vol. VII, nº 13, p. 121-146, jan./jun. 2014.).

Não é objetivo, aqui, tecer longas considerações sobre cada uma das etapas mencionadas - que no geral já recebem a devida atenção dos estudiosos de políticas públicas - mas numa apertadíssima síntese pode-se mencionar o seguinte sobre as 4 (quatro) primeiras fases do ciclo, em análise baseada em Schmidt (2018, p. 130-139)SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018. e Raeder (2014, p, 127-137)RAEDER, Savio Túlio Oselieri. Ciclo de políticas: uma abordagem integradora dos modelos para análise de políticas públicas. Revista Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, vol. VII, nº 13, p. 121-146, jan./jun. 2014.:

a) percepção e definição de problemas: há uma infinidade de problemas numa sociedade, mas somente alguns atraem a atenção desta e do governo para que haja um enfrentamento político da questão. Diversos fatores podem chamar a atenção para determinados problemas, como acidentes naturais ou provocados, mobilizações sociais, ações deflagradas por governos ou grupos influentes e, contemporaneamente, a mídia, cuja influência tem crescido cada vez mais;

b) formação da agenda decisória: trata-se do conjunto de assuntos selecionados pelo governo para serem “tratados” pelo sistema político nas demais etapas do ciclo, quanto a um problema a ser enfrentado pela política. Não estão necessariamente arrolados num documento formal ou escrito, basta que sejam debatidos pelos agentes públicos e sociais. A agenda nunca é natural, porquanto é produto em permanente construção gerada a partir de disputas entre grupos de interesse, o próprio governo e outros agentes. John Kingdon cunhou a expressão “janela de oportunidade política” (policy window) para expressar que determinados fatores podem influir na inserção de temas na agenda política em detrimento de outros;

c) formulação de programas e projetos: trata-se da definição quanto à maneira de solucionar o problema político, mediante formulação de uma ou mais propostas dentre as alternativas disponibilizadas pelos diferentes agentes envolvidos; por isso, envolve conflitos, negociação e acordos do qual participam autoridades governamentais, agentes sociais e privados. Nessa etapa específica é que se visualizam com mais nitidez as perspectivas dos modelos teóricos do racionalismo, incrementalismo, do “garbage can” (lata de lixo) e sondagem mista (mixed scanning);

d) implementação das políticas delineadas: fase da execução, para concretizar aquilo que foi planejado na etapa da formulação, a partir dos objetivos, das estratégias e das diretrizes eleitas nos documentos que instrumentalizam a política, os planos, os programas e os projetos do governo; frequentemente são exigidas novas decisões, de cunho instrumental e operacional, e redefinições de determinados aspectos da formulação inicial. A execução pode ser direta pelo poder público, ou delegada para o setor privado e/ou sociedade civil. A implementação vincula-se ao orçamento público vigente, compreendido em sentido amplo quanto a seus distintos instrumentos.

Além dessas, merece especial destaque, para os propósitos deste trabalho, a última fase, a de monitoramento/avaliação, que tem se sobressaído em relação às demais em termos de literatura produzida sobre o tema5 5 Enrique Saravia, no volume 1 de sua conhecida coletânea intitulada “Políticas Públicas”, afirma que a “etapa de avaliação será matéria de outra coletânea” (FERRAREZI e SARAVIA, 2006a, p. 13) e, no volume 2, reforça o motivo: a existência de “bibliografia farta sobre o tema” (FERRAREZI e SARAVIA, 2006b, p. 13). Assim, a coletânea se detém sobre as demais etapas do ciclo, à exceção unicamente da avaliação, por considerar que aquelas ainda se ressentiam de uma produção bibliográfica mais detida, o que não ocorreria em relação à avaliação. .

2.3 Avaliação de Políticas Públicas

Antes propriamente de se enfrentar a finalidade da avalição dentro da noção de ciclo de políticas públicas, há um elemento importante a ser mencionado quando se trata de avaliação: não se trata de uma mera constatação quanto a se os objetivos da política pública foram ou não atingidos, mas também a avaliação deve ser observada dentro de um quadro do processo decisório. Os próprios critérios que serão objetos de decisão dependerão das áreas nas quais a avaliação vai incidir. Em um processo avaliativo o determinante é a concepção teórica que está subjacente nos métodos e técnicas de investigação social, ou seja, não se trata de um processo meramente descritivo, mas também prescritivo. É importante compreender a própria avaliação de políticas públicas como uma pesquisa social e, portanto, eivada de elementos que subsistem em cada debate sobre como definir os critérios avaliativos, especialmente no aspecto qualitativo para além do aspecto quantitativo. Evidente que todo processo de avaliação precisa estar conectado com o planejamento da políticas pública e esse vinculado também aos objetivos constitucionalmente postos.

Sobre a finalidade da avaliação, João Schmidt (2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 137) assim se manifesta em linhas gerais:

A avaliação de uma política consiste no escrutínio dos êxitos e das falhas do processo de sua implementação. Ela proporciona retroalimentação (feedback) e pode determinar a continuidade, a mudança ou a cessação da política. Uma avaliação é um julgamento, uma atribuição de valia, de valor. Nunca é neutra ou puramente técnica. Mesmo que seu recorte seja econômico, o modelo avaliativo deve considerar as características gerais do governo, do programa proposto aos eleitores, dos valores que orientam os políticos e gestores, das relações estabelecidas interna e externamente.

Raeder (2014RAEDER, Savio Túlio Oselieri. Ciclo de políticas: uma abordagem integradora dos modelos para análise de políticas públicas. Revista Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, vol. VII, nº 13, p. 121-146, jan./jun. 2014., p. 135) esclarece que a fase de avaliação pode ocorrer em 3 (três) diferentes etapas da implementação da política: antes (ex ante), durante (in itinere ou monitoramento) ou depois (ex post). A importância da avaliação nessas diferentes etapas foi reconhecida pelo governo federal, que recentemente publicou um manual específico para a avaliação ex ante e outro para a ex post, os quais também servem de referência para as avaliações realizadas por órgãos públicos em geral (Brasil, 2018aBRASIL. Casa Civil da Presidência da República. Avaliação de políticas públicas: guia prático de análise ex ante. Brasília: IPEA, 2018a. Disponível em: Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/180319_avaliacao_de_politicas_publicas.pdf . Acesso em 04 jan. 2020.
https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
e 2018bBRASIL. Casa Civil da Presidência da República. Avaliação de políticas públicas: guia prático de análise ex post. Brasília: IPEA , 2018b. Disponível em: Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/181218_avaliacao_de_politicas_publicas_vol2_guia_expost.pdf . Acesso em 04 jan. 2020.
https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
).

A relevância das avaliações consiste em que “encerram o ciclo da política pública, fornecendo subsídios para o início de um novo ciclo, voltado para a resolução do problema não equacionado ou indicando a resolução completa das questões que a política objetivava resolver” (Raeder, 2014RAEDER, Savio Túlio Oselieri. Ciclo de políticas: uma abordagem integradora dos modelos para análise de políticas públicas. Revista Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, vol. VII, nº 13, p. 121-146, jan./jun. 2014., p. 135). O encerramento do ciclo referido é algo no plano da organização teórica da política pública, porquanto, no plano concreto, o ciclo se retroalimenta continuamente e a avaliação precisa ser compreendida junto com o monitoramento, enquanto uma tarefa contínua e de múltiplas funções no aprimoramento da atividade estatal.

Para João Schmidt (2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 137), a avaliação envolve amplo conjunto de mecanismos e múltiplos agentes, do ponto de vista administrativo, por meio de órgãos estatais de monitoramento e acompanhamento (v.g. tribunais de contas, controladorias) e agências de avaliação independentes (universidades, institutos, think tanks, consultorias); jurídico (Judiciário); e também político (conselhos, partidos e cidadãos).

Essa diversidade de mecanismos e de agentes de avaliação permite também avançar para outro modelo teórico do ciclo de políticas públicas, desenhado por Clarice Duarte (2013DUARTE, Clarice Seixas. O ciclo das políticas públicas. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; SMANIO, Gianpaolo Poggio (orgs.). O Direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 16-43., p. 25-26), o qual, embora possua 5 (fases), diferencia a fase de “avaliação” da de “fiscalização e controle”, nos seguintes termos:

(a) identificação dos problemas e demandas a serem atacados para a definição das prioridades a serem decididas junto aos formuladores de políticas públicas; (b) formulação de propostas concretas entre diferentes opções de programas a serem adotados; (c) implementação propriamente dita da política, com a criação da estrutura necessária e observância da burocracia existente, gasto de recursos e aprovação de leis; (d) avaliação dos resultados da política por meio da verificação dos resultados e impacto da política, para que se possa aferir se ela realmente funciona ou não; (e) fiscalização e controle da execução da política por meio da atuação da sociedade civil, dos Tribunais de Contas e do Ministério Público. (Duarte, 2013DUARTE, Clarice Seixas. O ciclo das políticas públicas. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; SMANIO, Gianpaolo Poggio (orgs.). O Direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 16-43., p. 25-26, grifou-se).

Reconhece-se que o modelo supracitado, ao destacar uma fase final e específica a “fiscalização e controle”, pode também ser objeto de críticas, por: a) aparentar uma separação completa da fase anterior de avaliação, com a qual geralmente se confunde nos demais modelos; b) passar a impressão de que os agentes mencionados na fase de “fiscalização e controle” (sociedade civil, tribunais de contas, etc) não possam fazer avaliação nos termos da fase anterior; e c) inserir a fase de “fiscalização e controle” em momento posterior à própria “avaliação”, o que costuma não corresponder à realidade.

Mesmo reconhecendo a procedência dessas críticas, entende-se que a grande contribuição do modelo teórico ora problematizado consiste em destacar que há diferenças entre as 2 (duas) fases supra destacadas, ainda que possam apresentar certas semelhanças: a) a fase de avaliação busca verificar os resultados e impactos da política pública, de acordo com os critérios de efetividade, eficiência, eficácia e legitimidade (Schmidt, 2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 137), à luz da expertise do campo de públicas, da economia e demais áreas correlatas; b) a fase de fiscalização e controle tem por objetivo verificar o cumprimento dos requisitos normativos estabelecidos para a correta implementação da política, em respeito ao ordenamento jurídico, à luz da Ciência do Direito.

Assim, a principal contribuição da proposta de Duarte (2013DUARTE, Clarice Seixas. O ciclo das políticas públicas. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; SMANIO, Gianpaolo Poggio (orgs.). O Direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 16-43.) consiste em evidenciar esses dois aspectos (análise de regularidade e conformidade; e análise de impacto ou de custo benefício da política), que podem ser compreendidos como avaliação em sentido amplo.

Por fim, importante registrar que há diferentes modelos de monitoramento e avaliação de políticas públicas em todo o mundo, conforme o órgão que o realiza, de modo que se pode falar em modelo concentrado, descentralizado e independente:

No modelo centralizado, a governança do sistema de M&A é estruturada em torno do centro de governo, em que as autoridades orçamentárias e de planejamento exercem a coordenação do sistema, acompanham as recomendações advindas das avaliações e integram as evidências para tomada de decisão sobre o orçamento e sobre o aperfeiçoamento das políticas. No modelo descentralizado, departamentos setoriais, responsáveis pela gestão e implementação da política, conduzem as avaliações. Possuem acessos aos dados das políticas de forma mais facilitada e utilizam as informações de M&A para aprimoramento de seus programas e políticas. E por último, no modelo independente, um órgão específico, sem vínculo institucional entre o departamento responsável pela política e/ ou o governo, é criado para a coordenação e a implementação do M&A. Os principais objetivos são transparência, controle social e accountability (Lacerda, 2021LACERDA, Gabriela. Tomada de decisão com base em evidência: contributos do Legislativo. Cadernos ASLEGIS, Brasília, nº 61, 2º sem. 2021., p. 63)6 6 A título de informação, em relação a diferentes realidades, Lacerda (2021) prossegue afirmando que Chile e México adotam o modelo concentrado, com algumas ressalvas no caso desse último; Canadá, África do Sul e Austrália, o modelo descentralizado; e o Reino Unido, por fim, o modelo independente. Nenhum modelo é perfeito, cada qual apresenta suas vantagens e desvantagens (LACERDA, 2021). Indo além, entende-se que devem ser adaptados à realidade de cada ente federado que se proponha a realizar o monitoramento e a avaliação de políticas públicas. .

Por fim, afigura-se relevante, no modelo do Ciclo de Políticas Públicas e na fase de Avaliação, tratar dos diferentes tipos de avaliação. Adota-se neste trabalho classificação que aborda os quatro seguintes tipos: avaliação de desenho; avaliação de processos (procedural); avaliação de impacto (resultado) e avaliação de eficiência7 7 As explicações que seguem quanto aos tipos de avaliação são baseadas na muito bem construída abordagem feita pelo Instituto J-PAL, em parceria com a ENAP, no curso “Avaliação de Impacto de Programas Sociais”, oferecido na plataforma pública desta Escola. .

Quanto à avaliação de desenho de políticas públicas, é preciso que as políticas públicas desenhadas pelo Estado possuam capacidade de receber uma descrição realista do seu desempenho provável, bem como critérios claros para análise da qualidade e consistência dessa projeção de ações estatais, frente a outras opções possíveis para a formulação ou desenho de uma política pública. Nesse modelo de avaliação, o objetivo é projetar quais são asintervenções necessárias e ótimaspara suprir certasnecessidades específicasde umapopulação alvo, frente a direitos e objetivos que se busca efetivar. É preciso, portanto, avaliar teorias sobre como tratar em termos de políticas públicas certos problemas, pois o aprendizado anterior sobre políticas públicas não raramente acaba por se organizar em teorias. A intenção da avaliação da teoria aplicada numa política pública é avaliar a qualidade da proposição que a mesma projeta para o enfrentamento e busca dos objetivos. Toda teoria sobre uma política pública deve ser avaliada quanto à sustentação do diagnóstico do qual ela parte e quanto à “teoria de mudança” que ela propõe (ou seja, a proposta de intervenção que ela faz para alterar certa realidade em direção aos objetivos almejados). Partindo-se de dados concretos, uma teoria relativa a uma política pública deve ser capaz de projetar com coerência as intervenções vislumbradas, a viabilidade das mesmas, os insumos e recursos dos quais dependem, os impactos imediatos prováveis e os resultados potenciais de médio e longo prazo previstos.

A avaliação de processo foca na análise da concreta implementação de um programa de ações relacionado a uma política pública, com o objetivo de entender as transformações reais entre o que se projetou em teoria e os modos práticos de funcionamento concreto. É preciso, nesse âmbito de avaliação, entender em que medida o programa funciona conforme o planejado e em que medida não. Avaliar processos, em políticas públicas, nos permite corrigir rotas, a partir da percepção de vicissitudes práticas, e trabalhar de forma consistente com a ilação entre teoria e prática no campo das políticas públicas.

A avaliação de impacto busca mensurar a diferença entre a situação dos beneficiários quanto aos objetivos da política pública após a implementação das ações, e a projeção da situação em que se encontrariam os beneficiários se não houvesse a política e as ações. Várias questões podem ser aferidas pela avaliação de impacto. Dentre elas podemos listar: saber se o programa de fato teve efeitos sobre os beneficiários; se esses efeitos se mantiveram ao longo do tempo; se todos os componentes e ações do programa concorrem para os efeitos alcançados ou se há componentes e ações que não estão contribuindo para o impacto; se há discrepância entre grupos de beneficiários quanto à intensidade dos efeitos; se há efeitos adversos resultantes das ações etc.

Já a análise de eficiência de um programa normalmente se expressa em termos decusto-benefício. Nesses casos, normalmente a avaliação é monetizada, focada em resultados imediatos e não-comparativa em relação a outros programas (a alternativas potenciais ou reais). Mas a avaliação de eficiência também pode ser organizada em termos decusto-efetividade. No modelo custo-efetividade, busca-se monetizar custos, com enfoque no custo efetivo para os resultados principais de fato alcançados; e busca-se realizar a crítica comparativa com outros programas alternativos ao programa avaliado. Num enfoque constitucionalista crítico (que muitas vezes falta ao especialista em políticas públicas), essas comparações de alternativas devem ser orientadas não pela simples eficiência econômica, mas por um referencial de eficiência norteado pelo projeto constitucional, para a combinar fatores comparativos e atribuir pesos de modo coerente com os objetivos e direitos constitucionais a serem perquiridos.

3 CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: ENFOQUE CRÍTICO E IMPLICAÇÕES NO DIREITO PÚBLICO BRASILEIRO

Desenvolvido o caminho das Políticas Públicas como conhecimento organizado, naquilo que esse know-how pode colaborar com o Direito Público e o projeto constitucional, cabe agora desenvolver o caminho com Constitucionalismo, como saber fulcral da linguagem jurídica contemporânea, para perquirir por suas contribuições potenciais ao debate interdisciplinar em Políticas Públicas e suas experiências de formulação, implementação, avaliação e controle.

Cabe aqui novamente ressaltar que a linguagem constitucional passou por um giro relevante, notadamente na última quadra histórica, cabendo aos juristas, no debate interdisciplinar de políticas públicas, esclarecer e situar essas transformações e seus contributos potenciais.

3.1 Crise e transformação do Direito Público no contexto do constitucionalismo contemporâneo

O constitucionalismo contemporâneo tem seu início a partir do segundo pós-guerra, a partir da busca por resgatar ou, no mínimo, reforçar o elemento ético-político do Estado Constitucional, os direitos fundamentais, como baliza real de atuação do poder público (Streck, 2017STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017., p. 36-39).

O constitucionalismo contemporâneo realiza, quanto ao Direito Público, uma crítica, seja do caráter autocentrado no Estado que tem o Direito Administrativo em suas origens (disso decorrendo uma equivocada identificação entre interesse público e interesse do Estado), seja do caráter um tanto autoritário8 8 Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem, renomados publicistas paranaenses, contestam a crítica - formuladas por outros renomados juristas como Gustavo Binenbojm, Humberto Bergmann Ávila, Daniel Sarmento, Alexandre Santos de Aragão, Paulo Schier e Marçal Justen Filho - de que o Direito Administrativo e o princípio da supremacia do interesse público tenham origens autoritárias no sentido de que surgiram como discursos retóricos para manter as velhas práticas do Antigo Regime que eclodiu na Revolução Francesa de 1789 (GABARDO e HACHEM, 2010). Contudo, independentemente da crítica realizada por esses últimos autores e da “crítica da crítica” formulada pelos dois primeiros juristas mencionados, parece não haver dúvidas de que as origens do Direito Administrativo possuem elementos autoritários (típicos do Ancien Regime) que precisam ser superados continuamente; e que o constitucionalismo contemporâneo e a “nova” dogmática propiciada (em tese) pelo giro hermenêutico-constitucional do Direito, visa a uma aproximação mais intensa da dogmática com a conexão entre mundo-da-vida e direitos fundamentais. De modo que a aproximação entre Direito Administrativo é constitucionalismo democrático é muito bem-vinda. do Direito Administrativo nas suas origens. A partir daí, busca resgatar, ou ao menos reforçar, o elemento ético e democrático do Estado Contemporâneo e do Direito Público, traduzido este num compromisso mais evidente da Administração Pública com os Direitos Fundamentais plasmados na Constituição (num levar realmente a sério os direitos fundamentais como critério de decidir no exercício do poder). Inclusive, essa é uma nova tendência entre parte dos administrativistas brasileiros, a defesa de que a concepção do direito administrativo alinhado com os compromissos constitucionais de 1988 traz os contornos do que se tem denominado como um direito administrativo social9 9 É preciso demarcar os espaços para o desenvolvimento do direito administrativo social, que, nas lições de Hachem, tem como proteção central a tutela das igualdades com base em uma Administração Pública inclusiva, apartada de um Direito Administrativo individualista, que, além de se preocupar com a realização da dimensão individual dos direitos fundamentais, tenha por preocupação a efetivação de ações universalizantes, que alcancem todos os cidadãos necessitados e não apenas aqueles que possuem meios de buscar a tutela judicial. A proposta de um Direito Administrativo Social entra em colisão com a proposta de um Direito Administrativo neoliberal, pois este “[...] propõe a diminuição das incumbências administrativas ligadas à prestação direta de utilidades e matérias imprescindíveis à satisfação das necessidades da cidadania, conferindo ao Estado um papel subsidiário”. (BITENCOURT; RECK, 2021) .

Com efeito, e nessa mesma esteia do constitucionalismo, o segundo pós-guerra trouxe inúmeros desafios ao Direito Administrativo, até então marcado por forte viés positivista e assentado em 4 (quatro) grandes paradigmas clássicos, tidos como verdades absolutas (Binenbojm, 2014BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014., p. 29-45): a) a noção de supremacia do interesse público sobre o privado, como princípio jurídico ou postulado normativo de preponderância absoluta do coletivo sobre o individual ou do público sobre o privado; b) a legalidade como vinculação positiva à lei, em que a Constituição era encarada como mera carta enunciadora de princípios e valores abstratos despidos de normatividade própria no plano prático; c) o da discricionariedade como espaço de livre decisão do gestor público, decorrente da rígida dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários; d) um Poder Executivo centrípeto, que concentra em sua estrutura piramidal todas as instâncias de decisão e poder.

Porém, o processo de constitucionalização do Direito Administrativo e o constitucionalismo desenvolvido no contexto do pós-positivismo afasta-se, em tese, daquelas premissas autoritárias para buscar assentar os direitos fundamentais e a democracia como elementos estruturantes do Estado. Assim, “toda a discussão sobre o que é, para que serve e qual a origem da autoridade do Estado e do direito converge, na atualidade, para as relações entre a teoria dos direitos fundamentais e a teoria democrática” (BINENBOJM, 2014BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014., p. 49).

Esse constitucionalismo de giro linguístico e democrático, ao resgatar o compromisso da Administração Pública com o cidadão, vem ao encontro da crítica de Joaquim Salgado (1998SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 37-68, abr./jun. 1998.) ao Estado Poiético (o Estado em que os direitos fundamentais não passam de um elemento do discurso e em que o concreto fazer do Estado se pauta eminentemente num produzir econômico), rumo à pretensão de um Estado Constitucional Contemporâneo em que os direitos fundamentais sejam tratados como a expressão possível do bem comum numa sociedade democrática, a nortear de modo capital o exercício do poder, sem o qual esse exercício se revela ilegítimo.

Assim, no Estado Poiético, “o produto do fazer é o econômico, que nenhum compromisso tem com o ético, e procura, com a aparência de cientificidade, subjugar o político, o jurídico e o social. Não é ético, porque o seu fazer não se dirige a realizar os direitos sociais” (Salgado, 1998SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 37-68, abr./jun. 1998.). A burotecnocracia assume, no Estado poiético, proeminência ímpar, ao passo de “sufocar” o debate político constitucional, mediante a manipulação de dados e informações.

Talvez a maior crítica salgadiana ao Estado Poiético consista precisamente em sua “despersonalização”, isto é, na perda da centralidade no ser-humano e no bem-estar social, para centrar-se na economia e na financeirização da vida, revelando-se como Estado técnico, que instrumentaliza aquilo que deveria ser o seu norte de funcionamento e seu fim primordial: a dignidade da pessoa humana e os direitos a ela necessários. Os efeitos dessa despersonalização no Direito Administrativo já foram explorados por Justen Filho (1999JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, Malheiros, nº 26, 1999.) em interessante artigo a respeito.

Separado da sociedade civil e desprovido do elemento ético de compromisso com a realização dos direitos fundamentais, o Estado Poiético instrumentaliza os direitos fundamentais, que passam a funcionar como discurso de legitimação do Estado, mas sem funcionar com verdadeiro critério de tomada de decisão nesse Estado.

A partir dessa base reflexiva, aqueles paradigmas tradicionais do Direito Administrativo se oferecem à crítica, no contexto do constitucionalismo contemporâneo, na medida em que, segundo Binenbojm (2014BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014., p. 29-45):

  1. a)

    a supremacia do interesse público deve ceder ao dever de proporcionalidade/ponderação10 10 Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem, em capítulo de livro de autoria conjunta em obra coletiva, criticam a posição defendida por Binenbojm e outros no sentido da crítica ao princípio da supremacia do interesse público, por entenderem que esse princípio: a) hodiernamente, possui outra conotação que não se confunde com aquela dominante na época de seu surgimento no contexto da revolução francesa, e mesmo esta já representava inegável avanço na proteção do cidadão contra o antigo regime, por afirmar a garantia dos direitos individuais (civis e políticos) deste; b) se compreendido como “resultante da parcela coincidente dos interesses individuais de determinada sociedade, externado pela dimensão coletiva desses interesses e fixado pelo próprio Direito positivo” cuja ontologia é constitucional , “não há qualquer perigo de confundi-lo com o interesse secundário, relativo aos anseios da máquina estatal ou da pessoa física do administrador público”; nem mesmo de ser promovida uma restrição inconstitucional de direitos subjetivos. (GABARDO e HACHEM, 2010, p. 195). Não obstante essas críticas, a proposição formulada por Binenbojm merece ser reconhecida por 2 (dois) motivos básicos. Primeiro, porque a própria crítica formulada por Gabardo e Hachem admite que na prática a noção de “interesse público” assuma concepções autoritárias, quando, por exemplo, se o confunde com os interesses da máquina estatal ou do próprio gestor público. Daniel Hachem acaba ratificando, ainda que parcialmente, a crítica de Binenbojm, ao afirmar em outro artigo que “O manejo das prerrogativas públicas não permite, contudo, que o Estado faça o interesse geral prevalecer sobre os interesses individuais e coletivos juridicamente protegidos em todas as vezes que houver choque entre eles. Tal prevalência dependerá das circunstâncias do caso concreto, uma vez que ambos os interesses em jogo encontram respaldo normativo” (HACHEM, 2011, p. 101-103). , tendo em vista que o atendimento do interesse público reside na própria preservação dos direitos fundamentais (e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto da coletividade);

  2. b)

    o primado da lei deve ser substituído pelo da Constituição, a qual passa a ser encarada como fonte que deve direcionar o olhar sobre todo o ordenamento jurídico, de modo que a legalidade estrita deve dar lugar à juridicidade administrativa, isto é, da conformidade não só com a lei, mas também, e principalmente, com a Constituição;

  3. c)

    a discricionariedade, vista como espaço de livre decisão, não se compatibiliza com a juridicidade administrativa, vinculação direta da Administração Pública à Constituição, de modo que a dicotomia clássica de atos discricionários/vinculados deve ceder espaço a atos administrativos com diferentes graus de vinculação;

  4. d)

    a concepção de um Poder Executivo unitário e piramidal deve ceder espaço à uma Administração Pública policêntrica.

Na mesma toada, Diogo Figueiredo Moreira Neto (2006MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar , 2006., p. 63-70), de modo parcialmente coincidente com Binenbojm (2014BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.), já destacava como os 4 (quatro) pilares do constitucionalismo democrático:

  1. a)

    os direitos fundamentais, como fator determinante do reequilíbrio das relações entre sociedade e Estado na política e no Direito contemporâneos;

  2. b)

    a subsidiariedade estatal, resultante do contínuo processo de desmonopolização do poder, como característica de sociedades pluriclasses e de alta complexidade, a fim de proporcionar as condições para um atendimento das múltiplas necessidades sociais11 11 Sobre a crítica como a subsidiariedade é concebida na lógica brasileira, ante a mentalidade que o Estado é ineficiente, enquanto o privado é eficaz na prestação desses serviços, indica-se a leitura do artigo O mito da subsidiariedade e as reformas do Estado Social: um brainstorm sobre o governo e a administração no Brasil atual, de Gabardo e Bitencourt (2021, p. 31-60). ;

  3. c)

    a busca da legitimidade da ação do poder público, mediante o reconhecimento da importância da participação cidadã (aberta, assegurada e incentivada pelo Estado), como forma de responsividade estatal; e

  4. d)

    a Constituição como ordem de valores jurídicos, ao elevar os princípios constitucionais ao patamar de categoria normativa dotada de pretendida supremacia dogmática e de eficácia própria.

Todos esses postulados são reflexos de um Direito que buscaria se remodelar, no plano teórico, para garantir, num ambiente democrático, a realização dos direitos fundamentais de forma mais comprometida do que na dogmática publicista tradicional.

Torna-se imperioso, assim, adotar enfoque compatível com a “personalização do Direito”, de modo a evitar que elementos dogmáticos como o princípio da eficiência administrativa sejam manejados às custas do aviltamento do indivíduo e do próprio princípio da dignidade humana, bem como que a solução da crise fiscal do Estado não se traduza em mera patrimonialização do Direito Público (Justen Filho, 1999JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, Malheiros, nº 26, 1999.).

3.2 O déficit de efetividade do Direito Público brasileiro pelo enfoque do constitucionalismo crítico

Essas considerações podem muito bem ser aplicadas ao constitucionalismo brasileiro, que erige a dignidade da pessoa humana como fundamento da República e, no plano teórico, desenha um projeto de Estado social e democrático, daí derivando a centralidade potencial das políticas públicas e o do enfoque de um Direito Administrativo Social, nos termos indicados no tópico anterior.

Nesse contexto, em que o giro linguístico-constitucional abala os antigos paradigmas do Direito Administrativo e aponta para a importância da democracia e dos direitos fundamentais, é que as políticas públicas assumem relevância ímpar no Estado Democrático de Direito, porquanto, é por meio destas que aqueles podem ser concretizados, com transparência e responsividade, tendo em vista que constituem respostas políticas a problemas públicos, cujo tratamento revela-se indispensável à concretização dos mencionados direitos.

Contudo, após mais de 30 (trinta) anos de promulgação da CRFB, verifica-se que esse projeto constitucional ainda se encontra longe de ser alcançado, sobretudo devido a inércia ou insuficiência de atuação administrativa para concretização dos direitos fundamentais, num extremo; e, no outro, a tentativa de estudiosos em depositar no Judiciário toda a esperança de concretizar o ideário constitucional, que tem conduzido à excessiva judicialização, com efeitos perversos. Há quem defenda, por isso, que o projeto constitucional não passou de mera ilusão (Bello, Bercovici e Lima, 2018BELLO, Enzo; BERCOVICI, Gilberto; LIMA, MartonioMont’Alverne Barreto. O fim das ilusões constitucionais de 1988. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol. 10, nº 03, p. 1769-1811, 2019.).

Marcelo Neves (2018NEVES, Marcelo. Constituição e direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. Trad. Antônio Luz Costa. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes, 2018., p. 147-150) denomina de “constitucionalismo aparente” a realidade experimentada pelos países de modernidade periférica em geral em que o aparente e bem intencionado projeto constitucional encontra-se nitidamente apartado da realidade social subjacente. Nesses casos, a força normativa do texto constitucional se esvai e cede ante uma “Constituição álibi”, isto é, uma Constituição cuja principal função prática tem sido a de servir à legitimação simbólico-ideológico do poder mediante efeitos que ocultam a realidade.

Neves afirma que “no Brasil e em outros Estados periféricos, apesar da adoção do modelo textual de constitucionalismo democrático-social, as condições de exclusão de amplas parcelas da sociedade e de privilégios de uma parcela minoritária persistem” (NEVES, 2018NEVES, Marcelo. Constituição e direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. Trad. Antônio Luz Costa. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes, 2018., p. 402). Ainda, o chamado neoconstitucionalismo, ao superestimar o emprego de princípios como panaceia à concretização constitucional, teria superestimado o Judiciário em detrimento dos poderes democraticamente eleitos e levou à judicialização simbólica em prejuízo à efetividade da Constituição (Neves, 2018, p. 409-410).

Em outro contexto, o da análise da atuação dos governantes e formuladores de políticas, João Schmidt (2018SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018., p. 126) destaca que as respostas do poder público aos problemas políticos não necessariamente refletem soluções adequadas:

A necessidade de dar respostas às demandas sociais é tão premente para os governantes que por vezes as respostas não passam de simulacros ou jogos de cena. Sem capacidade real para resolver um problema, são adotadas medidas paliativas ou de desvio de atenção. Um exemplo: a criação de comissões, de grupos de trabalho ou de um novo órgão público após a ocorrência de eventos de grande repercussão (como desastres ambientais, deslizamentos de terra, enchentes, rompimento de barragens). Passado o momento inicial de comoção e pressão, em grande parte dos casos nenhuma política pública consistente é estabelecida e o problema volta a se repetir ciclicamente.12 12 Importante registrar que a observação de Schmidt se faz sob o prisma estritamente político e, assim, não tem a pretensão de corroborar as categorias de “Direito Administrativo do espetáculo” (JUSTEN FILHO, 2009) e nem de “constitucionalismo do espetáculo” (ASSIS e COELHO, 2017) explicadas adiante, embora indiretamente acabe trazendo uma constatação da ciência política que acaba corroborando a perspectiva dos outros autores mencionados (SCHMIDT, 2018, p. 125).

Consoante Francisco Mata Machado Tavares (2008TAVARES, Francisco Mata Machado. A dimensão política da crise fiscal dos estados contemporâneos: um estudo sobre o potencial da democracia deliberativa para a coibição das concorrências tributárias danosas. 2008. 193f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008., p. 86-89), essa adoção de soluções em tom de “simulacro”, sem capacidade real para resolver um problema público, pode ser explicado, em parte, no fato de que muitas vezes os governantes pautam as respectivas atuações tendo em mira o êxito eleitoral como critério único ou, ao menos, preponderante de legitimação das escolhas públicas. Nessa linha intelectiva:

A limitada lógica de circunscrição da avaliação das decisões públicas ao calendário eleitoral se presta como estímulo para que os agentes políticos atuem, apenas, com vistas à demonstração de resultados que sejam observados e identificados no contexto das eleições. Assim como no mercado é o código dos preços que atribui valor ou não aos elementos introjetados no sistema, no jogo da democracia eleitoral são os votos a medida do êxito ou fracasso das ações empreendidas. Não prevalecem, necessariamente, as melhores razões quanto a cada questão politicamente relevante [...] (Tavares, 2008TAVARES, Francisco Mata Machado. A dimensão política da crise fiscal dos estados contemporâneos: um estudo sobre o potencial da democracia deliberativa para a coibição das concorrências tributárias danosas. 2008. 193f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008., p. 87).

De outro lado, outros estudiosos - a partir do conceito de “Sociedade do Espetáculo”, cunhado em obra assim intitulada de autoria do sociólogo francês Guy Debord - afirmam que o estado de coisas vigentes no Brasil em matéria de promoção de direitos fundamentais corresponde a um “Direito Administrativo do espetáculo” (Justen Filho, 2009JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, nº 100, jun. 2009.) e a um “constitucionalismo do espetáculo” (Assis e Coelho, 2017ASSIS, Alline Neves de; COELHO, Saulo Pinto. Um constitucionalismo do espetáculo? Espetacularização das políticas públicas e ineficiência do controle jurídico-constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 115, p. 541-584, 2017.), na medida em que se busca conferir uma aparência de efetividade em contraste com a inefetividade real de políticas públicas que se proponham a transformar a realidade nos termos do projeto constitucional.

Para Justen Filho (2009)JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, nº 100, jun. 2009., “a atividade administrativa de espetáculo consiste essencialmente na demonstração pública de grande azáfama governativa”, na qual “os administradores públicos produzem permanente informação à Platéia relativamente às ações imaginárias que desenvolvem”, ainda que sem efetividade real. Essa atividade administrativa de espetáculo se utiliza de conceitos e expressões técnico-científicas para impressionar o cidadão e produz notícias institucionais “para prender a atenção dos indivíduos comuns, neutralizando o seu senso crítico e impedir qualquer comparação entre a ação administrativa e o mundo real não imaginário”.

Toda essa atividade administrativa de espetáculo conduz a importantes reflexos na deficiência da atividade controladora (administrativa, judicial e social):

Para assegurar a continuidade da atividade administrativa de espetáculo, é necessário impedir o exame e o controle aprofundado das escolhas do governante, mas mantendo a aparência e a ilusão da existência desse controle. O “Direito Administrativo de espetáculo” destina-se essencialmente a gerar a imagem de controle, sem que isso traduza uma efetiva capacidade de interferir sobre a evolução dos fatos. (Justen Filho, 2009, p. 6JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, nº 100, jun. 2009.)

Não se trata apenas de um conceito teórico desprovido de utilidade prática, visto que a espetacularização da política, do Estado e das próprias políticas públicas, com forte influxo da mídia e dos discursos oficiais divulgados, acaba produzindo um senso de conformação geral da população com as ações (ou pseudo-ações) de seus governantes, sem que isso seja efetivamente objeto de controle pelas instituições competentes.

Com efeito, análise percuciente levantou evidências teóricas da inefetividade em relação às mais diversas formas de controle de políticas públicas quanto ao fenômeno de sua constante espetacularização no país (Assis e Coelho, 2017ASSIS, Alline Neves de; COELHO, Saulo Pinto. Um constitucionalismo do espetáculo? Espetacularização das políticas públicas e ineficiência do controle jurídico-constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 115, p. 541-584, 2017.). Essa síndrome de inefetividade das próprias instituições controladoras faz com que estas acabem se inserindo nesse contexto do constitucionalismo do espetáculo, “preocupando-se mais em parecer altamente eficazes no controle das atividades públicas do que de fato controlar de modo realmente efetivo e transformador, tais atividades” (Assis e Coelho, 2017, p. 578). O alto grau de discricionariedade para interpretar princípios jurídico-constitucionais é visto como algo pernicioso nesse ciclo, notadamente por inexistir um controle efetivo de finalidade dos atos estatais (Assis e Coelho, 2017, p. 578; Justen Filho, 200913 13 De outro lado, na defesa do princípio da supremacia do interesse público e da origem do Direito Administrativo atrelada à finalidade de tutelar o indivíduo em face dos abusos estatais, Emerson Gabardo e Daniel Hachem (2010) criticam a ideia de “Direito Administrativo de espetáculo” cunhado por Marçal Justen Filho. A crítica é endereçada especificamente a Marçal Justen Filho porque, até a primeira década do século XXI, era o principal defensor dessa nova categoria jurídica. Porém, atualmente, outros estudiosos também têm perfilhado o mesmo entendimento e o desenvolvido além da concepção inicialmente formulada por Justen Filho (ASSIS e COELHO, 2017). Não obstante, a crítica de Gabardo e Hachem (2010) está calcada, nesse ponto, em defender uma origem histórica virtuosa para supremacia do interesse público e, por consequência, do Direito Administrativo, como meio de proteção do indivíduo em face do Estado. Isso, no nosso entender, desconsiderando analises como as de Michel Foucault e de Airton Seerlaender, que demonstram que as origens do Direito Administrativo são outras, voltadas para instrumentalizar a razão governamental, operacionalizar o poder, mais que garantir as liberdades. O Direito Administrativo passa por mudanças, já no século XX (mas não em suas origens), para se aproximar mais à ideia de democracia e sociedade, mas isso é um fenômeno recente no Direito Administrativo. O que a teoria do Estado do Espetáculo, a partir de Guy Debord, aporta, é uma crítica da baixa efetividade estrutural dos direitos declarados pelo Estado. Essa baixa efetividade também se observa nos mecanismos de controle de políticas. Busca-se, portanto no sentido de superar dialeticamente o quadro denunciado por diversos estudiosos quanto à deficiência desses controles em face do fenômeno da denominada “espetacularização” (ASSIS e COELHO, 2017; JUSTEN FILHO, 2009). Tais autores denunciam, ademais, a decepção com o fato de que, após mais de 30 (trinta) anos de vigência do texto constitucional, ainda se verifica enorme abismo entre o discurso no plano teórico e a realidade prática vivenciada (BELLO, BERCOVICI e LIMA, 2018; COELHO, COELHO e DINIZ, 2019). E o Direito Administrativo tem sua parcela de responsabilidade, nesse estado de coisas de inefetividades. ).

É cediço que os problemas diagnosticados pela ideia de “Direito Administrativo do espetáculo” (Justen Filho, 2009JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, nº 100, jun. 2009.) e “constitucionalismo do espetáculo” (Assis e Coelho, 2017ASSIS, Alline Neves de; COELHO, Saulo Pinto. Um constitucionalismo do espetáculo? Espetacularização das políticas públicas e ineficiência do controle jurídico-constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 115, p. 541-584, 2017.) são reais, imensos e extremamente desafiadores. Por mais que os paradigmas do constitucionalismo contemporâneo visem à superação daqueles postulados epistemológicos que ensejam o fenômeno da “espetacularização” das ações dos governos e, por conseguinte, das políticas públicas, a realidade nacional é outra.

Embora algumas proposições tenham sido formuladas na tentativa de superação dessa problemática, como as formulações de Justen Filho (2009)JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, nº 100, jun. 2009. e a aposta num controle social mais efetivo (Assis e Coelho, 2017ASSIS, Alline Neves de; COELHO, Saulo Pinto. Um constitucionalismo do espetáculo? Espetacularização das políticas públicas e ineficiência do controle jurídico-constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 115, p. 541-584, 2017.), entende-se que, nesse particular, o ciclo de políticas públicas, notadamente a fase de avaliação, pode trazer relevantes contribuições para mensurar o impacto das ações tomadas pelos gestores públicos e, assim, reduzir o máximo possível esses fenômenos de “espetacularização”, de “simulacro” e de realização “simbólica” supra apresentados.

Nessa perspectiva, calha observar também o conceito de direito fundamental à boa administração pública, desenvolvido por Juarez Freitas em obra homônima, e considerado como direito fundamental à administração pública “eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas” (Freitas, 2014, p. 21FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2014.).

Boa administração pública, nesse contexto, pode ser entendida também como aquela em que os atos de seus governantes são passíveis de serem mensurados e avaliados criticamente à luz do dever de concretização dos direitos fundamentais. Sobre a importância da avaliação das políticas públicas, como decorrência do direito à boa administração pública, Juarez Freitas (2015FREITAS, Juarez. Políticas públicas, avaliação de impactos e o direito fundamental à boa administração. Revista Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, nº 70, p. 115-133, jun. 2015., p. 208) argumenta:

Quer dizer, o controle das políticas públicas, imantado pelo direito fundamental à boa administração pública, requer o escrutínio em inovadores termos, que dê conta da inteireza do processo de tomada das decisões administrativas, desde a escolha do agir (em vez de se abster) até culminar na pós-avaliação dos efeitos primários e secundários, no encalço (baseado em argumentos e, sobretudo, em evidências) do primado empírico, ao longo do tempo, dos benefícios no cotejo com os custos sociais, ambientais e econômicos.

Assim, “[...] as decisões políticas demandam informações claras e objetivas, voltadas à elucidação dos fins e valores almejados, tendo em vista instrumentalizar a definição dos objetivos de cada política pública e reforçar seu aspecto de legitimidade” (Silva, 2012SILVA, Rogerio Luiz Nery da. Políticas públicas e Administração Democrática. Revista Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, nº 64, p. 57-84, jul. 2012., p. 68). Essas informações, claras e objetivas, devem ser produzidas pelo governo e estarem acessíveis aos órgãos de controle e à sociedade em geral, para que possam se desincumbir de seu múnus constitucional e do exercício da cidadania plena e, assim, investigar com a profundidade necessária se as políticas públicas estão sendo realmente efetivas ou apenas tendo sua efetividade camuflada e espetacularizada.

Portanto, à luz do enfoque crítico do constitucionalismo contemporâneo, torna-se cada vez mais relevante que as ações dos governos sejam transparentes e efetivamente mensuradas, de modo a que possam atender a noções de responsividade; e também para que seja possível uma identificação de simulacros e espetacularizações. Daí a importância da avaliação, do monitoramento e do controle no ciclo de políticas públicas, e da inserção do enfoque crítico do constitucionalismo nessas atividades.

4 A EVOLUÇÃO REGULATÓRIA DA AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO DIREITO BRASILEIRO

A discussão sobre a efetividade de políticas públicas, dos serviços públicos, e a importância da respectiva avaliação deixou de ficar circunscrita ao campo de públicas e da Ciência Política, para ser introduzida paulatinamente no ordenamento jurídico brasileiro de diferentes entes federados, desde a União até Municípios, em especial a partir da última década.

Uma das iniciativas pioneiras nesse sentido foi protagonizada pelo Senado Federal por meio de sua Resolução nº 44/2013, por meio da qual se incluiu o art. 96-B ao respectivo regimento interno para estabelecer o procedimento de avaliação de políticas públicas no âmbito daquela Casa.

Em síntese, segundo esse modelo, as comissões permanentes devem selecionar, na área de sua competência, até o último dia útil de março de cada ano, políticas públicas desenvolvidas no âmbito do Poder Executivo para serem avaliadas; e, ao final da respectiva sessão legislativa, a comissão devem apresentar relatório com as conclusões da avaliação realizada. Desde 2014, as comissões permanentes do Senado Federal têm realizado essas avaliações, que se encontram divulgadas na página eletrônica oficial daquele Poder no campo destinado a cada comissão.

No âmbito do Poder Executivo federal, o Decreto nº 9.834/2019 instituiu o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, de natureza consultiva, com a finalidade de avaliar as políticas públicas selecionadas, que são financiadas por gastos diretos ou subsídios da União; e monitorar a implementação das propostas de alteração das políticas públicas resultantes da avaliação, em consonância com as boas práticas de governança. Desde 2019 o Conselho vem publicando seus relatórios avaliativos em sua página eletrônica oficial (Brasil, 2022BRASIL. Ministério da Economia. Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas. Brasília, DF, 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/cmap . Acesso em 11 jan. 2022.
https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso...
).

Em movimento semelhante, ainda em âmbito nacional, importante registrar a introdução no ordenamento jurídico da análise de impacto regulatório, prevista nos arts. 6º da Lei nº 13.848/2019 e 5º da Lei nº 13.874/2019, regulamentadas em âmbito federal pelo Decreto nº 10.411/2020, o qual desdobra aquele instituto em 2 (dois) instrumentos distintos:

a) análise de impacto regulatório, que é o procedimento, a partir da definição de problema regulatório, de avaliação prévia à edição de atos normativos, que deve conter informações e dados sobre os seus prováveis efeitos para verificar a razoabilidade do impacto e subsidiar a tomada de decisão;

b) avaliação de resultado regulatório, que consiste na verificação dos efeitos decorrentes da edição de ato normativo, considerados o alcance dos objetivos originalmente pretendidos e os demais impactos observados sobre o mercado e a sociedade, em decorrência de sua implementação.

A avaliação de resultado regulatório caminha no mesmo sentido de produzir decisões mais informadas a partir de uma avaliação ex post quanto aos efeitos de determinado ato normativo. Embora essa análise tenha sido concebida no campo da liberdade econômica e das agências reguladoras, podem também contribuir para o monitoramento e a avaliação de políticas públicas, tendo em vista que estas também possuem seus respectivos arcabouços legais e normativos e, muitas vezes, o sucesso ou insucesso de uma política pode ter relação com seu modelo regulatório (desenho).

No âmbito nacional, importante destacar também a EC nº 108/2020, que dentre as alterações trazidas incluiu o parágrafo único ao art. 193 da CRFB, segundo o qual “O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas”. O art. 4º da referida Emenda prevê cláusula de vigência imediata, porém com eficácia diferida para 1º/01/2021.

Interessante notar, ainda, que a aludida Emenda nenhum prazo estabeleceu para regulamentação mencionada no parágrafo único do art. 193. Não se verifica a publicação de qualquer norma regulamentadora, ao menos não em nível nacional, visto que o novo dispositivo menciona “na forma da lei” e ostenta caráter programático, portanto, embora não tenha restado claro se essa regulamentação em nível legal pode ser editada no âmbito de cada ente federado ou se o dispositivo constitucional exige, de fato, uma lei nacional sobre o tema.

De modo similar, porém mais diretamente voltada sobre a avaliação, sobreveio a publicação da EC nº 109/2021, que promoveu diversas alterações no texto do corpo permanente da Constituição e do respectivo ADCT. Uma das modificações no corpo permanente foi a inclusão do § 16 do art. 37 para prever que “Os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei”. Novamente, a exigência de lei regulamentadora se fez presente.

Ainda, a EC nº 109/2021 acrescentou o § 16 ao art. 165 da CRFB para prever que as leis do chamado ciclo orçamentário (PPA, LDO e LOA) - também comumente denominadas de “peças orçamentárias - “devem observar, no que couber, os resultados do monitoramento e da avaliação das políticas públicas previstos no § 16 do art. 37 desta Constituição”. Em outras palavras, o constituinte derivado tentou, com essas previsões, gerar mais responsividade na instituição, manutenção e eventual revisão ou extinção de políticas públicas, ante a necessidade de serem baseadas em evidências científicas e dados de avaliações.

No que tange aos serviços públicos e à eficiência administrativa, importante destacar também a Lei nº 13.460/2017, de aplicação em âmbito nacional, que dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário desses serviços; e a Lei nº 14.129/2021, de aplicação em âmbito federal, que dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública e dá outras providências.

O art. 3º, IV, dessa última Lei prevê como um dos princípios e diretrizes do Governo Digital e da eficiência pública a transparência na execução dos serviços públicos e o monitoramento da qualidade desses serviços, além de diversas disposições pertinentes ao aperfeiçoamento da gestão e das políticas públicas.

Interessante observar que a maioria dessas alterações constitucionais e legais no plano nacional ou federal foram efetivadas a partir de 2019, em um governo de viés acentuadamente neoliberal, que deposita no aspecto fiscal um dos principais alicerces das sucessivas reformas realizadas e daquelas que ainda pretende realizar14 14 Registre-se, como principais demonstrações dessa preocupação “fiscalista”, a Reforma da Previdência (EC nº 103/2019) e a PEC nº 32/2020 (Reforma Administrativa), esta última ainda em tramitação no Congresso Nacional na data de confecção deste texto (07/03/2022). .

Esse quadro revela, ou ao menos sugere, nítido intuito de aproximar a exigência de avaliação de políticas públicas ao objetivo principal de garantir sustentabilidade financeira e equilíbrio fiscal, a repetir, de certa forma, uma constatação da literatura de que a centralidade da avaliação de políticas públicas se acentuou a partir dos anos 1980 na América Latina para conferir credibilidade ao processo de reforma do Estado e sustentabilidade política às diretrizes de desregulamentação e de redução do tamanho do governo (FARIA, 2005FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. A política de avaliação de políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 20, nº 59, p. 97/109, out. 2005., p. 98-100).

Não obstante esse propósito que aparentemente ensejou as recentes alterações mencionadas no texto constitucional, em especial na CRFB, a avaliação de políticas públicas pode se revelar como relevante instrumento em benefício do aprimoramento da gestão pública e, em última análise, à realização dos fundamentos e objetivos constitucionais, desde que não prevaleça uma visão puramente economicista.

Com efeito, num Estado de bem-estar social, como o desenhado pela CRFB, referida avaliação deve se pautar por abordagem sistêmica e perspectiva metodológica plural, tendo em vista que “políticas e programas públicos são criados para garantir direitos sociais e melhores condições de vida ao cidadão, bem como maior justiça e coesão social para a sociedade” (Januzzi, 2016, p. 132).

No âmbito estadual, o Espírito Santo foi um dos primeiros Estados a instituir seu Sistema de Monitoramento e de Avaliação de Políticas Públicas, por meio da Lei nº 10.774/2017. O sistema foi instituído no âmbito do Poder Executivo e tem como objetivos institucionalizar o monitoramento e a avaliação das políticas públicas de forma coordenada e articulada no ciclo orçamentário; aprimorar as políticas públicas conduzidas pelo Poder Executivo; e melhorar a qualidade do gasto público (art. 1º).

De acordo com os arts. 3º e 4º daquela Lei, compõem a estrutura do sistema a Comissão de Análise Estratégica, responsável por selecionar anualmente as políticas públicas a serem monitoradas e avaliadas; o Núcleo de Monitoramento e de Avaliação de Políticas Públicas, responsável pela coordenação e execução do monitoramento e da avaliação; e os órgãos finalísticos, executores das políticas públicas. Ainda, o Núcleo é coordenação pelo Instituto Jones dos Santos Neves (art. 5º, I).

Ainda, a cada ciclo anual avaliativo é divulgado o Relatório Anual de Monitoramento e Avaliação, que contém uma síntese das avaliações já realizadas (art. 8º, § 1º), sem prejuízo da publicação dos relatórios específicos de cada avaliação, o que tem sido divulgado página eletrônica oficial do Instituto Jones dos Santos Neves (Espírito Santo, 2022ESPÍRITO SANTO. Instituto Jones dos Santos Neves. Centro de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas - SIMAPP. Vitória, ES, 2022. Disponível em: Disponível em: http://www.ijsn.es.gov.br/simapp . Acesso em 11 jan. 2022.
http://www.ijsn.es.gov.br/simapp...
).

Nessa mesma linha de intelecção, relevantes iniciativas gestadas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal de Goiás (PPGDP/UFG) lograram êxito no sentido de alterar textos constitucionais e legais vigentes no Estado de Goiás, para que inserir previsão normativa de instituição de sistema integrado de monitoramento e avaliação de políticas públicas no Estado.

Pode-se destacar que a primeira alteração relevante no âmbito estadual ocorreu com a publicação da EC nº 63/2019-GOGOIÁS. Secretaria de Estado da Casa Civil. Legisla Goiás. Legislação. Emenda Constitucional nº 63, de 04 de dezembro de 2019. Altera os dispositivos da Constituição Estadual que especifica. Goiânia, GO, 2019. Disponível em: Disponível em: https://legisla.casacivil.go.gov.br/pesquisa_legislacao/103149/emenda-constitucional-63 . Acesso em: 18 jun. 2021.
https://legisla.casacivil.go.gov.br/pesq...
, de 04 de dezembro, cujo art. 1º incluiu o inciso XV no art. 5º e o art. 30-A no texto permanente da CE/GO para disciplinar o denominado “sistema permanente de monitoramento e avaliação de políticas públicas”. Para melhor visualização, transcrevem-se abaixo os dispositivos inseridos por aludida Emenda goiana:

Art. 5º - Compete ao Estado:

[...].

XV - manter sistema permanente de monitoramento e avaliação de políticas públicas.

[...].

Art. 30-A. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema permanente de monitoramento e avaliação de políticas públicas, com o objetivo de promover o aperfeiçoamento da gestão pública, na forma da lei, ao qual compete:

I - avaliar a economicidade, a efetividade, a eficácia e a eficiência das políticas públicas de responsabilidade estadual;

II - fornecer subsídios técnicos para o monitoramento de políticas públicas vigentes e para a formulação e para a implementação de novas políticas públicas;

III - observar o princípio da periodicidade;

IV - disponibilizar informações, relatórios, dados e estudos relativos às políticas públicas para livre acesso de qualquer cidadão;

V - ampliar a sistemática articulação entre os órgãos dos Poderes que desempenhem as atividades de monitoramento e avaliação de políticas públicas no âmbito do Estado de Goiás;

VI - firmar parcerias com universidades, fundações, associações sem fins lucrativos, organizações não governamentais e outras instituições, visando:

a) conceder maior transparência aos dados de responsabilidade governamental;

b) dotar de maior qualidade as análises dos dados; e

c) agilizar e facilitar os trabalhos de monitoramento e de avaliação.

Parágrafo único. O órgão central do sistema permanente de monitoramento e avaliação de políticas públicas é a Assembleia Legislativa, que contará com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, dos órgãos integrantes do sistema de controle interno de cada Poder, e outros órgãos que possuam missões similares.

Ressalte-se que, embora o regramento constitucional seja bastante assertivo em suas disposições, o caput do art. 30-A supra transcrito exige a regulamentação por lei desse sistema, o que até o presente momento ainda não ocorreu, de modo similar ao registrado nas EC’s nºs 108/2020 e 109/2021.

Independentemente de qualquer regulamentação, entende-se que o sistema delineado no supratranscrito art. 30-A da CE/GO, é meritório ao pretender integrar todos os Poderes; ao passo que não teve qualquer pretensão nem efeito de impedir que referidos Poderes façam seus próprios monitoramentos e avaliações, de acordo com seus próprios meios e recursos, como no caso do Instituto Mauro Borges (IMB/GO), vinculado ao Executivo, que vem publicando diversos trabalhos avaliativos; ou mesmo do parlamento goiano, caso queira instituir sistemáticas de avaliação similares àquelas decorrentes da Resolução nº 44/2013 do Senado Federal.

No âmbito estadual, registre-se também a publicação da Lei nº 20.846/2020, que institui a Política Estadual de Atendimento ao Cidadão e cria o Programa SIMPLIFICA GOIÁS, que se propõe a ser “um novo modelo de prestação de serviços públicos com agilidade, simplificação e respeito, para a melhoria acentuada e constante do atendimento aos cidadãos”, além de conter dispositivos sobre avaliação de impacto normativo (arts. 29, IV, e 34 a 36), de modo similar ao Decreto nº 10.411/2020.

Ainda, no âmbito do Município de Goiânia foi publicada a Emenda à Lei Orgânica nº 80, de 03/03/2020, que imprimiu dispositivos na Lei Orgânica (arts. 11, XXIX, e 104-A) com praticamente a mesma redação e o mesmo propósito da inovação inserida na Constituição Estadual de Goiás: a previsão de criação de um sistema integrado de monitoramento e avaliação, com a exigência de lei regulamentadora, embora ainda não tenha sido aprovada qualquer regulamentação sobre o tema.

Portanto, todas essas alterações realizadas nos âmbitos nacional, federal, estaduais e municipais caminham no sentido de prever a obrigatoriedade de avaliação de políticas públicas segundo o modelo estabelecido em cada ente federado e revelam-se importantes, desde que efetivamente implementadas e com uma metodologia de trabalho que respeite os estandares científicos de avaliação e monitoramento, bem como com um animus institucional voltado à concretização constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais.

5 CONCLUSÃO

Neste fechamento, para além de uma síntese das conclusões alcançadas durante as análise realizadas neste trabalho, intenta-se lançar provocações voltadas ao diálogo e à reflexão sobre os caminhos que estamos a percorrer nas questões de fundo do Direito Público brasileiro e o papel que o saber-fazer das políticas públicas pode ter nos rumos do projeto constitucional brasileiro, bem como o papel que o próprio constitucionalismo pode e deve ter no aperfeiçoamento das políticas públicas, como conhecimento a somar-se ao demais que compõem esse campo interdisciplinar.

Nesse sentido, cabe iniciar com uma imagem ou metáfora-síntese já explorada por Coelho (2014, p. 41-46; 2021, p. 11-14): o constitucionalismo contemporâneo vive atualmente numa encruzilhada; e, tal como demonstrado neste artigo, tanto o Direito Público quanto o conhecimento em Políticas Públicas jogam um papel determinante no rumo a ser tomado. Essa situação de encruzilhada é também uma situação crítica; e o constitucionalismo brasileiro a vivencia com notas singulares, que precisam ser bem compreendidas. Esse momento, grave e crucial, reverbera em toda a experiência jurídica brasileira, de modo especial nas áreas do Direito relacionadas à gestão pública.

Trata-se da encruzilhada entre seguir por um caminho em que o Direito vivido serve de instrumento de dominação, estabilização do capitalismo tardio, de precarização, de instrumento das institucionalidades extrativo-excludentes (Acemoglu e Robinson, 2012ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Por qué fracasan los países: los orígines del poder, la prosperidad y la probleza. Barcelona: Deusto, 2012.); ou, por outro lado, um caminho em que o Direito encontra-se consigo mesmo (com sua projeção-de-ser lançada em 1988), trilhando um caminho de redução das desigualdades, de promoção da inclusão socioeconômica e identitária, um caminho pautado em levar a sério os direitos, de todos, para todos. ,

Em outras palavras, trata-se de ser mera engrenagem, estruturada top-down, de um gerenciamento do sistema-mundo capitalista-consumista-espetacularista (Wallenstein, 2006WALLERNSTEI, Imannuel. Analisis del Sistema Mundo: una introducción. Ciudad de México: Siglo XXI, 2006.; Debord, 2007DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 2007.), de um sistema neoliberal de financeirazação da vida e de tudo; ou ser, ao contrário, uma experiência autêntica de construção coletiva, de uma sociedade de respeito, de fraternidade, de diálogo e de direitos a valer; seguir no caminho de uma linguagem constitucionalista social e democrática que consiga se fazer valer criticamente frente à razão instrumental financeirista.

Mas o problema no Brasil é mais grave, no sentido de que, por aqui, parece que se trilham ao mesmo tempo os dois caminhos antagônicos acima narrados. Frente à encruzilhada, busca-se o projeto de 1988 que foi cindido. No nível da práxis, somos estruturalmente excludentes (Acemoglo e Robinson, 2012ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Por qué fracasan los países: los orígines del poder, la prosperidad y la probleza. Barcelona: Deusto, 2012.), com um sistema jurídico que reluta, mas serve a essa lógica de financeirização da vida, ainda que com ocorrências marginais no sentido contrário, que acabam por espetaculosamente servir de exemplos (enganosos) para se dizer o contrário. Já no plano do discurso, tal como indicado nesse artigo a partir de Coelho, Coelho e Diniz (2019COELHO, Diva Júlia Sousa da Cunha Safe; COELHO, Saulo de Oliveira Pinto; DINIZ, Ricardo Martins Spindola. Direitos fundamentais, dignidade humana e jurisdicição constitucional entre laudatórias e inefetividades: paradoxos da experiência constitucional e sua auto-descrição crítica no Brasil. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, nº 59, p. 60-87, set./dez. 2019.), a linguagem jurídica brasileira se auto-descreve como um Direito de primeiro mundo, com a melhor Constituição do mundo, e um judiciário dentre os melhores do mundo, etc. O Brasil é, inclusive, um país relativamente pródigo em declarar direitos, pois entre declarar direitos e respeitá-los, promovê-los, a todos, há significativa distância, que se acaba por naturalizar no estado-de-coisas do Direito brasileiro.

As necessidades que emergiam da população no contexto democrático, como a concretização das promessas constitucionais dos direitos sociais, pareciam em descompasso com o cenário de acentuada “crise” do modelo de bem-estar social, acompanhada de uma narrativa crescente de austeridade em um ambiente cada vez mais de desregulação e desestatização a partir do avanço das políticas neoliberais15 15 Ressalta-se que se acredita em que o neoliberalismo no atual contexto é muito mais do que uma teoria econômica, é uma forma de governar, o que evolve aspectos políticos, sociais, econômicos e mesmo morais. (LAVAl; DARDOT, 2016). que passaram a dominar o espaço político, trazendo uma espécie de conflito jurídico com a promessa constitucional e a realidade política que desafiava as possibilidades de sua implementação. Assim, as tensões entre desigualdades, democracia e desenvolvimento contribuem para o ambiente hostil ao desenvolvimento do próprio Estado Social.

Assim, é possível dizer, como já mencionado em outro estudo (Coelho, 2015COELHO, Diva Júlia Sousa da Cunha Safe; COELHO, Saulo de Oliveira Pinto; DINIZ, Ricardo Martins Spindola. Direitos fundamentais, dignidade humana e jurisdicição constitucional entre laudatórias e inefetividades: paradoxos da experiência constitucional e sua auto-descrição crítica no Brasil. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, nº 59, p. 60-87, set./dez. 2019.), que O Brasil se comporta como um Estado Bipolar, que oscila quase concomitantemente entre discurso de respeito aos direitos e odes à dignidade humana, por um lado, e sistemáticas inoperâncias em situações de ofensas a estes mesmos direitos e em situações claras de precarização da vida humana que persistem por décadas nosso cotidiano social, sem resposta institucional adequada. Isso, por vezes, com prejuízo ao bem-estar coletivo a favor de interesses econômicos pouco ou quase-nada conectados com os objetivos constitucionais brasileiros (que são objetivos includentes, voltados a colocar a livre iniciativa em consonância com interesse social) (Bitencourt, Reck, 2021BITENCOURT, Caroline Mulle; RECK, Janrie. O Brasil em crise e a resposta das políticas públicas: diagnósticos, diretrizes e propostas. Curitiba: Ithala, 2021.).

Nesse sentido, o Direito, como comunidade de linguagem, precisa entender que ele mesmo é também parte do problema, ao não dar resposta jurídico-institucional adequada a muitas das situações que espelham esse contrassenso em termos constitucionais. A Constituição plasmou decisões de caráter político-social no sentido de uma sociedade fraterna e justa, vocacionada à redução de desigualdades e ao respeito e promoção da dignidade humana. Contudo, percebe-se esta utopia constitucional efabulada em 1988 (Cunha, 2011) se converter em uma quimera cada vez menos capaz de tensionar os processos de tomadas de decisão em direção ao modelo social e democrático nela preconizado.

É possível, na análise dos discursos jurídicos nacionais (tanto os institucionais, quanto, até mesmo, em discursos acadêmicos), identificar situações em que se desrespeita a Constituição e os direitos, ao mesmo passo em que se fundamenta esse desrespeito em discursos contraditoriamente elogiosos à Constituição e aos direitos. Esse paradoxo de não-constituição sustentada na laudatória à Constituição, esse cinismo institucional e jurídico brasileiro, é um dos diversos sintomas de nossa experiência mal sucedida até o presente.

Essas contradições e esses paradoxos da experiência jurídico-político-constitucional brasileira (cujos modus operandi são variados) não devem passar incólume, livre de críticas. E tal olhar crítico deve também sustentar a própria dogmática jurídica, para que nesta caiba também trabalhos voltados a diagnosticar e oferecer respostas prospectivas, quanto a esses problemas e desafios e suas incidências em problemas jurídicos específicos.

Por isso, é fundamental pensar os desafios da dinâmica jurídica e institucional de um modelo constitucional social e democrático no contexto brasileiro, partindo de uma Abordarem Direito e Políticas Públicas. Uma linguagem jurídica menos infensa ao abismo entre discurso e práxis institucional existente no estado-de-coisas brasileiro, menos sujeita, portanto, a coadunar com os paradoxos da experiência jurídica brasileira, passa por uma assimilação, pelos juristas (especialmente os dedicados ao Direito Público) do saber-fazer em Políticas Públicas. De outra parte, somente por meio de uma articulação mais consistente do trabalho do jurista no conjunto complexo de capacidades estatais que se organizam proceduralmente nos ciclos de políticas públicas, é que haverá a chance de entender melhor as razões das insuficiências na promoção de cada direito e, com isso, entender os caminhos (sem ativismos) de solução desses gaps de efetividade.

Nesse percurso, afigura-se necessário entender que o Direito Administrativo não constitui um ramo do Direito apartado do projeto constitucional; não pode ser lido e trabalhado de modo legítimo, sem um irrestrito compromisso com o debate constitucionalista e a realidade social a ele subjacente. Todo jusadministrativista deveria ser, antes, um constitucionalista, no sentido de ser um amante do debate constitucional e um partícipe dele, além de fazer uso da Abordagem DPP para enfrentar os graves déficits de concretização de direitos fundamentais ainda amplamente presentes na realidade brasileira.

E uma das principais contribuições dessa Abordagem DPP consiste em os juristas, em especial jusadministrativistas, voltarem seus olhares ao ciclo de políticas públicas, em especial para a fase de avaliação de políticas públicas, a fim de que tanto o poder público como entidades independentes e a própria sociedade civil organizada procedam a avaliações dos programas governamentais, no intuito de produzir diagnósticos fiéis à realidade e prognósticos capazes de ampliar a concretização dos direitos fundamentais no contexto de um Estado Social e Democrático de Direito como o desenhado pelo projeto constitucional de 1988. Isso pressupõe transparência sobre a gestão pública e um levar realmente a sério, por todos os atores políticos e sociais, o compromisso transformador da realidade social, na direção almejada pelo constituinte.

A importância da avaliação de políticas públicas e a preocupação com a qualidade dos serviços públicos vem deixando de ficar circunscrita ao debate meramente teórico para, aos poucos, ser positivada expressamente em textos constitucionais, legais e normativos de diversos entes federados, com destaque, no âmbito nacional, para as EC nºs 108/2020 e 109/2020, as Leis nºs 13.460/2017 e 14.129/2021, além do Decreto nº 10.411/2020; a Resolução nº 44/2013, no âmbito do Senado Federal; o Decreto nº 9.834/2019, no âmbito do Poder Executivo Federal; a Lei nº 10.774/2017, no âmbito do Estado do Espírito Santo; a EC nº 63/2019 e a Lei nº 20.846/2020, no âmbito do Estado de Goiás; a Emenda à Lei Orgânica nº 80/2020 do Município de Goiânia/GOGOIÂNIA. Câmara Municipal. Diretoria Legislativa. Divisão de Documentação. Lei Orgânica do Município de Goiânia: texto revisado e atualizado até a Emenda à Lei Orgânica n.º 080, de 03 de março de 2020 (DOM N° 7.259, de 16-03-2020). Goiânia, GO, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.goiania.go.leg.br/leis/lei-organica-municipal . Acesso em: 18 jun. 2021.
https://www.goiania.go.leg.br/leis/lei-o...
, apenas para citar alguns exemplos.

Não obstante, a importância do desenvolvimento constitucional, legal e normativo acerca dessa temática no país, a Abordagem DPP reclama muito mais que a mera previsão abstrata dessas normas. Assim, além da regulamentação que ainda resta pendente em relação a vários diplomas citados (v.g. EC’s nºs 108/2020 e 109/2021), revelam-se sobremaneira relevante para esse desiderato a institucionalização nos diversos Poderes, órgãos e entes da federação de rotinas e práticas avaliativas de políticas públicas numa perspectiva constitucionalmente adequada, isto é, que adote uma pluralidade metodológica compatível com a complexidade da realidade social e do desafio constitucional que constitui objeto da avaliação, focada na máxima concretização dos direitos fundamentais no contexto do Estado Social e Democrático de Direito.

Este artigo, por meio de um iter que vai de uma apresentação das bases de uma teoria das Políticas Públicas, passando pelas bases para uma Teoria do Direito Público e Constitucionalismo Contemporâneo, procurou aclarar o estado da arte do debate atual sobre o papel das políticas públicas no Direito e a importância do constitucionalismo contemporâneo em perspectiva crítica, para uma análise e tratamento jurídico adequado de políticas públicas.

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  • GOIÁS. Secretaria de Estado da Casa Civil. Legisla Goiás. Legislação. Emenda Constitucional nº 63, de 04 de dezembro de 2019. Altera os dispositivos da Constituição Estadual que especifica. Goiânia, GO, 2019. Disponível em: Disponível em: https://legisla.casacivil.go.gov.br/pesquisa_legislacao/103149/emenda-constitucional-63 Acesso em: 18 jun. 2021.
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  • JANNUZZI, Paulo de Martino. Eficiência econômica, eficácia procedural ou efetividade social: três valores em disputa na avaliação de políticas e programas sociais. Revista Desenvolvimento em Debate, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 117-142, 2016.
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  • WALLERNSTEI, Imannuel. Analisis del Sistema Mundo: una introducción. Ciudad de México: Siglo XXI, 2006.
  • 1
    Ao lado de Harold Laswell, outros 3 (três) clássicos são apontados pela literatura como os “pais” fundadores da área de políticas públicas, a saber, Herbert Simon, Charles E. Lindblom e David Easton (SOUZA, 2006, p. 23).
  • 2
    Interessante que se diga, que a compreensão das políticas públicas como protagonistas da ação estatal, e que o fato de sua realização dependa múltiplas e complexas redes de decisões que estão interconectadas, é difícil retirar um certo protagonismo estatal não apenas no âmbito da sua coordenação, mas também quando da execução e implementação das políticas públicas. Sendo assim, ainda que possa contar com parcerias de organizações sociais e entidades privadas, o Estado não deve sob a lógica das políticas públicas comportar-se como um mero regulador dessas atividades que busquem sua concretização. As políticas públicas usualmente se valem de mais de um instrumento. Espera-se que, da conjugação das decisões tomadas nos instrumentos, alcancem-se os objetivos das políticas públicas. Essa é a razão pela qual arquitetar as políticas públicas significa fazer um bom uso dos instrumentos não só de forma isolada, mas também de forma coordenada. Considera-se instrumentos das políticas públicas: os serviços públicos, o fomento, os bens públicos, obras públicas, poder de políticas, programas, intervenção do Estado na propriedade, dentre tantos outros. BITENCOURT, Caroline; RECK, Janriê. O Brasil em crise a resposta das políticas públicas. Curitiba: Ithala, 2021.
  • 3
    Sobre a distinção entre Políticas Públicas de Estado e Políticas públicas e de Governo, Maria Paula Dallari Bucci (2006), há mais de uma década, alertava que caracterizar o mero suporte normativo como política pública para abarcar tal distinção seria um tanto falho, não se mostrando suficiente a mera associação de positivação a nível Constitucional ou infraconstitucional. A ausência de utilidade na distinção Política Pública de Governo e de Estado aparece com maior nitidez quando se constata não ser possível essa distinção pelo fato de que toda política que a doutrina comumente chama de política pública de Governo possui elementos de uma política pública de Estado. O mesmo vale para as políticas públicas de Estado que também possuem elementos de políticas públicas de governo. Sobre as críticas dessa proposta de distinção, ver o artigo Políticas públicas de Governo e de Estado - uma distinção um pouco complexa: necessidade de diferenciação entre modelos decisórios, arranjos institucionais e objetivos de políticas públicas de Governo e Estado, de Bitencourt e Reck (2021)BITTENCOURT, Caroline Müller; RECK, Janriê Rodrigues. Políticas públicas de Governo e de Estado -uma distinção um pouco complexa: necessidade de diferenciação entre modelos decisórios, arranjos institucionais e objetivos de políticas públicas de Governo e Estado. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 12, n. 3, p. 631-667, set./dez, 2021..
  • 4
    Savio Raeder (2014, p. 130-131)RAEDER, Savio Túlio Oselieri. Ciclo de políticas: uma abordagem integradora dos modelos para análise de políticas públicas. Revista Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, vol. VII, nº 13, p. 121-146, jan./jun. 2014. afirma que, segundo Homlett, Ramesh e Perl, o precursor do “ciclo” foi Harold Laswell, que o definiu nos 7 (sete) estágios a seguir: a) informação; b) promoção; c) prescrição; d) invocação; e) aplicação; f) término e g) avaliação. Thomas Dye, em seu modelo do processo, concebe 6 (seis) fases para o ciclo de políticas públicas. O Manual da Metodologia para Avaliação da Execução de Programas de Governo, elaborado pela Controladoria-Geral da União - CGU (BRASIL, 2015, p. 8-9BRASIL. Controladoria-Geral da União. Manual da metodologia para avaliação da execução de programas de governo. Brasília: CGU, 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/auditoria-e-fiscalizacao/arquivos/manual_aepg.pdf/view . Acesso em: 28 dez. 2020.
    https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de...
    ), tendo como referencial teórico Werner Jann e Kai Wegrich, estabelece apenas 4 (quatro) fases para o ciclo, suprimindo a de “identificação dos problemas” que usualmente configura a primeira: a) definição da agenda política (agenda-seeting); b) formulação (policy formulation); c) implementação (policy implementation); e d) avaliação (policy evaluation).
  • 5
    Enrique Saravia, no volume 1 de sua conhecida coletânea intitulada “Políticas Públicas”, afirma que a “etapa de avaliação será matéria de outra coletânea” (FERRAREZI e SARAVIA, 2006a, p. 13FERRAREZI, Elisabete; SARAVIA, Enrique (orgs.). Políticas públicas: coletânea. Vol. 1. Brasília, DF: Escola Nacional de Administração Pública, 2006a.) e, no volume 2, reforça o motivo: a existência de “bibliografia farta sobre o tema” (FERRAREZI e SARAVIA, 2006b, p. 13FERRAREZI, Elisabete; SARAVIA, Enrique (orgs.). Políticas públicas: coletânea. Vol. 2. Brasília, DF: Escola Nacional de Administração Pública , 2006b.). Assim, a coletânea se detém sobre as demais etapas do ciclo, à exceção unicamente da avaliação, por considerar que aquelas ainda se ressentiam de uma produção bibliográfica mais detida, o que não ocorreria em relação à avaliação.
  • 6
    A título de informação, em relação a diferentes realidades, Lacerda (2021)LACERDA, Gabriela. Tomada de decisão com base em evidência: contributos do Legislativo. Cadernos ASLEGIS, Brasília, nº 61, 2º sem. 2021. prossegue afirmando que Chile e México adotam o modelo concentrado, com algumas ressalvas no caso desse último; Canadá, África do Sul e Austrália, o modelo descentralizado; e o Reino Unido, por fim, o modelo independente. Nenhum modelo é perfeito, cada qual apresenta suas vantagens e desvantagens (LACERDA, 2021LACERDA, Gabriela. Tomada de decisão com base em evidência: contributos do Legislativo. Cadernos ASLEGIS, Brasília, nº 61, 2º sem. 2021.). Indo além, entende-se que devem ser adaptados à realidade de cada ente federado que se proponha a realizar o monitoramento e a avaliação de políticas públicas.
  • 7
    As explicações que seguem quanto aos tipos de avaliação são baseadas na muito bem construída abordagem feita pelo Instituto J-PAL, em parceria com a ENAP, no curso “Avaliação de Impacto de Programas Sociais”, oferecido na plataforma pública desta Escola.
  • 8
    Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem, renomados publicistas paranaenses, contestam a crítica - formuladas por outros renomados juristas como Gustavo Binenbojm, Humberto Bergmann Ávila, Daniel Sarmento, Alexandre Santos de Aragão, Paulo Schier e Marçal Justen Filho - de que o Direito Administrativo e o princípio da supremacia do interesse público tenham origens autoritárias no sentido de que surgiram como discursos retóricos para manter as velhas práticas do Antigo Regime que eclodiu na Revolução Francesa de 1789 (GABARDO e HACHEM, 2010GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do direito administrativo: uma crítica da crítica. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (coord.). Direito Administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 155-201.). Contudo, independentemente da crítica realizada por esses últimos autores e da “crítica da crítica” formulada pelos dois primeiros juristas mencionados, parece não haver dúvidas de que as origens do Direito Administrativo possuem elementos autoritários (típicos do Ancien Regime) que precisam ser superados continuamente; e que o constitucionalismo contemporâneo e a “nova” dogmática propiciada (em tese) pelo giro hermenêutico-constitucional do Direito, visa a uma aproximação mais intensa da dogmática com a conexão entre mundo-da-vida e direitos fundamentais. De modo que a aproximação entre Direito Administrativo é constitucionalismo democrático é muito bem-vinda.
  • 9
    É preciso demarcar os espaços para o desenvolvimento do direito administrativo social, que, nas lições de Hachem, tem como proteção central a tutela das igualdades com base em uma Administração Pública inclusiva, apartada de um Direito Administrativo individualista, que, além de se preocupar com a realização da dimensão individual dos direitos fundamentais, tenha por preocupação a efetivação de ações universalizantes, que alcancem todos os cidadãos necessitados e não apenas aqueles que possuem meios de buscar a tutela judicial. A proposta de um Direito Administrativo Social entra em colisão com a proposta de um Direito Administrativo neoliberal, pois este “[...] propõe a diminuição das incumbências administrativas ligadas à prestação direta de utilidades e matérias imprescindíveis à satisfação das necessidades da cidadania, conferindo ao Estado um papel subsidiário”. (BITENCOURT; RECK, 2021BITENCOURT, Caroline Mulle; RECK, Janrie. O Brasil em crise e a resposta das políticas públicas: diagnósticos, diretrizes e propostas. Curitiba: Ithala, 2021.)
  • 10
    Emerson Gabardo e Daniel Wunder Hachem, em capítulo de livro de autoria conjunta em obra coletiva, criticam a posição defendida por Binenbojm e outros no sentido da crítica ao princípio da supremacia do interesse público, por entenderem que esse princípio: a) hodiernamente, possui outra conotação que não se confunde com aquela dominante na época de seu surgimento no contexto da revolução francesa, e mesmo esta já representava inegável avanço na proteção do cidadão contra o antigo regime, por afirmar a garantia dos direitos individuais (civis e políticos) deste; b) se compreendido como “resultante da parcela coincidente dos interesses individuais de determinada sociedade, externado pela dimensão coletiva desses interesses e fixado pelo próprio Direito positivo” cuja ontologia é constitucional , “não há qualquer perigo de confundi-lo com o interesse secundário, relativo aos anseios da máquina estatal ou da pessoa física do administrador público”; nem mesmo de ser promovida uma restrição inconstitucional de direitos subjetivos. (GABARDO e HACHEM, 2010, p. 195GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do direito administrativo: uma crítica da crítica. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (coord.). Direito Administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 155-201.). Não obstante essas críticas, a proposição formulada por Binenbojm merece ser reconhecida por 2 (dois) motivos básicos. Primeiro, porque a própria crítica formulada por Gabardo e Hachem admite que na prática a noção de “interesse público” assuma concepções autoritárias, quando, por exemplo, se o confunde com os interesses da máquina estatal ou do próprio gestor público. Daniel Hachem acaba ratificando, ainda que parcialmente, a crítica de Binenbojm, ao afirmar em outro artigo que “O manejo das prerrogativas públicas não permite, contudo, que o Estado faça o interesse geral prevalecer sobre os interesses individuais e coletivos juridicamente protegidos em todas as vezes que houver choque entre eles. Tal prevalência dependerá das circunstâncias do caso concreto, uma vez que ambos os interesses em jogo encontram respaldo normativo” (HACHEM, 2011, p. 101-103).
  • 11
    Sobre a crítica como a subsidiariedade é concebida na lógica brasileira, ante a mentalidade que o Estado é ineficiente, enquanto o privado é eficaz na prestação desses serviços, indica-se a leitura do artigo O mito da subsidiariedade e as reformas do Estado Social: um brainstorm sobre o governo e a administração no Brasil atual, de Gabardo e Bitencourt (2021, p. 31-60)BITENCOURT, Caroline Muller . O mito da subsidiariedade e as reformas do Estado Social: um brainstorm sobre o governo e a administração no Brasil atual. In: NOHARA, Irene Patrícia; SALGADO, Rodrigo Oliveira. (Org.). Gestão Pública, infraestrutura e desenvolvimento. 1ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
  • 12
    Importante registrar que a observação de Schmidt se faz sob o prisma estritamente político e, assim, não tem a pretensão de corroborar as categorias de “Direito Administrativo do espetáculo” (JUSTEN FILHO, 2009JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, nº 100, jun. 2009.) e nem de “constitucionalismo do espetáculo” (ASSIS e COELHO, 2017ASSIS, Alline Neves de; COELHO, Saulo Pinto. Um constitucionalismo do espetáculo? Espetacularização das políticas públicas e ineficiência do controle jurídico-constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 115, p. 541-584, 2017.) explicadas adiante, embora indiretamente acabe trazendo uma constatação da ciência política que acaba corroborando a perspectiva dos outros autores mencionados (SCHMIDT, 2018, p. 125SCHMIDT, João Pedro. Para estudar políticas públicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas. Revista de Direito da UNISC, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 119-149, set/dez. 2018.).
  • 13
    De outro lado, na defesa do princípio da supremacia do interesse público e da origem do Direito Administrativo atrelada à finalidade de tutelar o indivíduo em face dos abusos estatais, Emerson Gabardo e Daniel Hachem (2010)GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do direito administrativo: uma crítica da crítica. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (coord.). Direito Administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 155-201. criticam a ideia de “Direito Administrativo de espetáculo” cunhado por Marçal Justen Filho. A crítica é endereçada especificamente a Marçal Justen Filho porque, até a primeira década do século XXI, era o principal defensor dessa nova categoria jurídica. Porém, atualmente, outros estudiosos também têm perfilhado o mesmo entendimento e o desenvolvido além da concepção inicialmente formulada por Justen Filho (ASSIS e COELHO, 2017ASSIS, Alline Neves de; COELHO, Saulo Pinto. Um constitucionalismo do espetáculo? Espetacularização das políticas públicas e ineficiência do controle jurídico-constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 115, p. 541-584, 2017.). Não obstante, a crítica de Gabardo e Hachem (2010)GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do direito administrativo: uma crítica da crítica. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (coord.). Direito Administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 155-201. está calcada, nesse ponto, em defender uma origem histórica virtuosa para supremacia do interesse público e, por consequência, do Direito Administrativo, como meio de proteção do indivíduo em face do Estado. Isso, no nosso entender, desconsiderando analises como as de Michel Foucault e de Airton Seerlaender, que demonstram que as origens do Direito Administrativo são outras, voltadas para instrumentalizar a razão governamental, operacionalizar o poder, mais que garantir as liberdades. O Direito Administrativo passa por mudanças, já no século XX (mas não em suas origens), para se aproximar mais à ideia de democracia e sociedade, mas isso é um fenômeno recente no Direito Administrativo. O que a teoria do Estado do Espetáculo, a partir de Guy Debord, aporta, é uma crítica da baixa efetividade estrutural dos direitos declarados pelo Estado. Essa baixa efetividade também se observa nos mecanismos de controle de políticas. Busca-se, portanto no sentido de superar dialeticamente o quadro denunciado por diversos estudiosos quanto à deficiência desses controles em face do fenômeno da denominada “espetacularização” (ASSIS e COELHO, 2017ASSIS, Alline Neves de; COELHO, Saulo Pinto. Um constitucionalismo do espetáculo? Espetacularização das políticas públicas e ineficiência do controle jurídico-constitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 115, p. 541-584, 2017.; JUSTEN FILHO, 2009JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, nº 100, jun. 2009.). Tais autores denunciam, ademais, a decepção com o fato de que, após mais de 30 (trinta) anos de vigência do texto constitucional, ainda se verifica enorme abismo entre o discurso no plano teórico e a realidade prática vivenciada (BELLO, BERCOVICI e LIMA, 2018BELLO, Enzo; BERCOVICI, Gilberto; LIMA, MartonioMont’Alverne Barreto. O fim das ilusões constitucionais de 1988. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol. 10, nº 03, p. 1769-1811, 2019.; COELHO, COELHO e DINIZ, 2019COELHO, Diva Júlia Sousa da Cunha Safe; COELHO, Saulo de Oliveira Pinto; DINIZ, Ricardo Martins Spindola. Direitos fundamentais, dignidade humana e jurisdicição constitucional entre laudatórias e inefetividades: paradoxos da experiência constitucional e sua auto-descrição crítica no Brasil. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, nº 59, p. 60-87, set./dez. 2019.). E o Direito Administrativo tem sua parcela de responsabilidade, nesse estado de coisas de inefetividades.
  • 14
    Registre-se, como principais demonstrações dessa preocupação “fiscalista”, a Reforma da Previdência (EC nº 103/2019) e a PEC nº 32/2020 (Reforma Administrativa), esta última ainda em tramitação no Congresso Nacional na data de confecção deste texto (07/03/2022).
  • 15
    Ressalta-se que se acredita em que o neoliberalismo no atual contexto é muito mais do que uma teoria econômica, é uma forma de governar, o que evolve aspectos políticos, sociais, econômicos e mesmo morais. (LAVAl; DARDOT, 2016DARDOT, Pierre. A Nova Razão Do Mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echelar. São Paulo: Contracorrente, 2016.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2022
  • Aceito
    08 Jun 2022
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