O livro “Cuerpo, Placer y Deseo. Una mirada etnográfica al homoerotismo en Aguascalientes”, de Juan Bobadilla Domínguez, parte de observações de campo e interações com frequentadores de uma sauna (“spa”) localizada na cidade de Aguascalientes, no México. O autor é professor e pesquisador na Universidad Autónoma de Aguascalientes (UAA). Capital do estado de mesmo nome, localizado no centro do país, Aguascalientes é uma cidade de médio porte onde, como nos diz o autor, se conjuga um rápido processo de crescimento e de modernização com uma tradição conservadora, marcada pelo catolicismo. Apesar disso, como nos conta Bobadilla Domínguez, há cerca de 20 anos existe na cidade um mercado de lazer, sociabilidade e entretenimento, ainda que inconstante, voltado ao segmento de pessoas cujas vidas são marcadas por dissidências de sexualidade e de gênero. É nele que o autor localiza os locais comerciais destinados a encontros sexuais entre homens, incluindo a sauna onde realizou seu trabalho de campo.
O livro é composto por cinco capítulos. No primeiro, o autor apresenta o cenário da pesquisa e contextualiza a sociabilidade homossexual no México e em Aguascalientes, valendo-se de perspectivas históricas e sociológicas. No segundo, apresenta uma digressão acerca do tema do desejo, escrutinando imaginários e repertórios simbólicos em torno do homoerotismo, inclusive no México. No terceiro, Bobadilla Domínguez apresenta o espaço onde conduziu seu trabalho de campo, uma sauna onde homens mantém uma sociabilidade homoerótica e encontros sexuais. No capítulo 4, o autor interpreta e analisa as dinâmicas desse espaço a partir de um olhar atento a marcadores sociais de diferença que, contextualmente, incidem sobre a produção de relações, interações, corpos e sujeitos sexuais. Por fim, no capítulo 5, apresenta as conclusões da pesquisa e retoma os principais aspectos discutidos na obra.
O livro é uma etnografia no sentido estrito do termo, que permite estabelecer distintas conexões socioantropológicas. Cinco aspectos, a meu ver, apontam para isso. Em primeiro lugar, a obra evidencia o potencial da etnografia e da Antropologia para deslocar sensos comuns. Ao voltar-se para a socialidade e o erotismo entre homens em Aguascalientes, no México, desloca o olhar de estudos que vêm sendo majoritariamente realizados em grandes centros urbanos e em contextos metropolitanos. Assim, o trabalho traz elementos novos para o campo dos estudos sobre sexualidades disparatadas, a partir de um contexto local escassamente explorado.
Em segundo lugar, para completar uma definição de etnografia no sentido estrito do termo, Bobadilla Domínguez contextualiza as normas e as convenções sociais, incluindo as de mercado, que operam em Aguascalientes, desde um ponto de vista histórico e sociológico. Com inspiração no interacionismo, desvela os repertórios simbólicos mobilizados por seus colaboradores de pesquisa e por ele próprio - já que trata-se também de uma autoetnografia. Procura, assim, dotar de significados as experiências vividas em um espaço comercial destinado ao sexo entre homens, sentidos estes que são disputados, contingentes, ambivalentes e sob rasura.
Em terceiro lugar, o autor interpreta tais repertórios, no melhor estilo antropológico, à luz de um volume considerável de leituras e teorias sobre sexualidades, corpo, mercado, masculinidades, subjetividades e interseccionalidades. Assim, em quarto lugar, desloca seu objeto de visões simplistas lançadas sobre espaços associados ao sexo entre homens, que muitas vezes os restringem ao risco, ao sexo anônimo e à busca pelo prazer efêmero. A abordagem do autor leva em consideração tais elementos nesses espaços, mas aponta para as outras possibilidades de agenciamento e de criação de relações sociais neles e a partir deles, o que inclui a formação de redes de amizade, o estabelecimento da sociabilidade e, também, a produção de subjetividades.
Em quinto lugar, Bobadilla Domínguez enfrenta uma questão teórica nada fácil, que é a de etnografar o desejo, que muitas vezes é dito e produzido discursivamente como algo dado, inefável, que escapa à linguagem e, portanto, aos repertórios simbólicos. Trata-se de uma etnografia, no limite, sobre o desejo, sobre sua economia simbólica e sobre suas potencialidades contestatórias. Indaga criticamente (afinal, o “bonde chamado desejo” se produz a partir das ambivalências), sobre os modos como, neste contexto, as relações sociais produzidas em torno do desejo também reforçam uma série de estereótipos, de preconceitos, de violências, de riscos e de desigualdades que os frequentadores desses espaços performatizam e corporificam.
A obra interessa a diversas áreas da Antropologia. Entre estas, aquela voltada ao estudo das relações de gênero, da sexualidade e do corpo e também a Antropologia do consumo. Como mostra o autor, em diálogo com outras etnografias de cenários que se aproximam daquele que ele etnografou, é impossível não levar em consideração, por um lado, o impacto da epidemia de aids na perseguição a espaços voltados para práticas eróticas, bem como, de outro lado, a reformulação de elementos simbólicos que vinham sendo mobilizados pela assim chamada “cultura gay” em torno da masculinidade, do prazer, das experimentações eróticas e de novas possibilidades de modelos de relacionamento. Assim, o fato é que, a partir de finais dos anos 1990, surge, ou ressurge, em variados contextos, um mercado de bens eróticos e de sociabilidade erótica entre homens. Processos que passam pela mediação de um mercado de consumo que, em variadas latitudes e a partir de registros variados, passa a ocupar um lugar privilegiado no dispositivo da sexualidade (Foucault, 1977FOUCAULT, Michel. 1977. A História da Sexualidade, vol. 1 - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.). Teria este hoje um lugar ao lado dos saberes associados por Michel Foucault ao surgimento de tal dispositivo, como a medicina, a jurisprudência e a psicanálise?
Bobadilla Domínguez mostra o lugar do mercado como produtor de repertórios simbólicos que incidem na construção de subjetividades e de corporalidades. Sua etnografia aponta para as ambivalências, inclusive em termos políticos, desse processo. Por um lado, a ampliação das possibilidades de ser e estar no mundo, bem como a produção, circulação e usos de bens eróticos que expadem as fronteiras e limites do moralmente vigiado e aceito; por outro lado, os processos de exclusão e de reafirmação de fronteiras, inclusive no que tange à fruição sexual e à busca pelo prazer.
Na produção de estereótipos associados à virilidade nesse mercado e nas maneiras como os empresários e frequentadores os performatizam, “nem toda nudez é castigada”. Como eu disse na minha etnografia em clubes de sexo para homens em São Paulo e em Madrid (Braz, 2012BRAZ, Camilo. 2012. À meia-luz...: uma etnografia em clubes de sexo masculinos. Goiânia: Editora UFG.), o que se vive nesses locais é um “descontrole controlado das emoções”. Estes elementos estão muito presentes na etnografia de Bobadilla Domínguez e nos seus relatos etnográficos e autoetnográficos das cenas vividas no spa que dão inteligibilidade a seus frequentadores, interseccionando marcas de diferença, sobretudo de gênero, de idade, de raça e de classe social.
Mas não é apenas à Antropologia ou à Sociologia que esse trabalho interessa. Leitores e leitoras de outras áreas encontrarão neste livro elementos ricos para o diálogo. Em particular, ele representa uma significativa contribuição para o campo da Saúde Coletiva e das estratégias de prevenção e controle de riscos relacionados à sexualidade. Nesse sentido, na linha do deslocamento dos sensos comuns antes mencionado, a reflexão que o texto traz com relação às experiências eróticas (e não apenas) vividas pelos sujeitos torna-se significativa. Ele apresenta redes e estratégias comunitárias de redução de danos e de minimização de riscos associados ao sexo, que não apenas servem para pensar a aids e outras infecções sexualmente transmissíveis, mas também poderiam ser trazidas com mais ênfase quando se trata de pensar sobre risco no contexto da covid-19. Alguns trabalhos vêm mostrando como a experiência acumulada pela chamada comunidade gay no enfrentamento da epidemia de aids, em saberes locais e “glocais”, podem contribuir para uma reflexão séria em torno da pandemia de covid-19. Sem tocar nessas questões diretamente, a etnografia de Domínguez certamente traz elementos para ampliar essa discussão.
Por fim, Cuerpo, Placer y Deseo traz elementos etnográficos e tece importantes considerações teóricas e políticas sobre as ondas neo-conservadoras a respeito do gênero e da sexualidade que assolam variados contextos, em particular os latino-americanos. Nesse sentido, apesar do seu olhar crítico das maneiras como muitas vezes as fronteiras em torno do prazer são reforçadas, intersectadas por dinâmicas de consumo, a etnografia de Bobadilla Domínguez permite refletir sobre seu potencial contestatório. Trata-se de um universo que, talvez, por conta da pandemia de covid-19 não exista mais, ou não venha voltar a existir como antes. Nesse sentido, a minha foi, por vezes, uma leitura nostálgica. Mas esta etnografia nos coloca também um sorriso no canto da boca, nos leva a pensar que onde há desejo, embora haja sim normas, controles e convenções, talvez haja possibilidades de resistências e de crítica cultural. Talvez esse desejo, agora afetado por uma pandemia uma vez mais, apenas tenha que se reinventar novamente - e continuar provocando os “homens de bem e de bons costumes”, à meia-luz e entre vapores.
“Cuerpo, Placer y Deseo. Una mirada etnográfica al homoerotismo en Aguascalientes”, publicado pela editora da Universidad Autónoma de Aguascalientes (UAA) e pela editora da Universidad Autónoma de la Ciudad de México (UACM), está disponível em formato EPUB.
Referências bibliográficas
- BRAZ, Camilo. 2012. À meia-luz...: uma etnografia em clubes de sexo masculinos Goiânia: Editora UFG.
- FOUCAULT, Michel. 1977. A História da Sexualidade, vol. 1 - A vontade de saber Rio de Janeiro: Graal.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jan 2023 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
02 Mar 2022 -
Aceito
16 Nov 2022