Letícia Lanz é psicanalista, poeta e escritora. Mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, 2014), Psicanalista (SPOB-Sociedade Sul Brasileira de Psicanálise, 2006) e Especialista em Gênero e Sexualidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, 2014). Graduou-se em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (FACE-UFMG, 1973) e fez mestrado em Administração de Empresas pelo Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (CEPEAD-FACE-UFMG, 1980). Trabalhou por mais de três décadas como consultora de Recursos Humanos e palestrante nas áreas de Desenvolvimento Pessoal e Profissional, passando por instituições como Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial/SENAI-MG, Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, entre outras. Desde o início dos anos 2000 dedica-se à escrita, palestras e reflexões sobre transgeneridade, diversidade sexual e de gênero e direitos humanos. Desde 2006 escreve regularmente no blog Arquivo Transgênero (leticialanz.blogspot.com), bem como em suas redes sociais, como Facebook e Instagram. É autora de diversos artigos sobre as temáticas anteriormente mencionadas e publicou os seguintes livros: O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero (2017)LANZ, Letícia. 2017. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Curitiba: Editora Transgente. e A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero (2021)LANZ, Letícia. 2021. A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero. São Paulo: Companhia das Letras ..
Gênero e orientação social só sobrevivem como critérios de classificação e hierarquização dos seres humanos graças à permanente ratificação - ou contestação - do olhar do outro, que é, em última análise, o olhar de aprovação ou de reprovação da própria sociedade. Fica clara a repulsa imediata das pessoas transgêneras que eventualmente são atingidas pela deslegitimação do olhar do outro, assim como está implícito que, da mesma forma que repudiam a rejeição, esperam, aceitam, ou melhor, exigem a permanente confirmação, pelo olhar do outro, da identidade de gênero que desejam expressar. A falta do olhar ratificador do outro deixa a vítima da vigilância de gênero visivelmente frustrada na sua intenção de ser vista pelos outros dentro de um determinado modelo identitário. Aqui se constata como a sociedade mantém as pessoas escravas da permanente confirmação da sua identidade pelo olhar do outro. Se o outro atestar quem eu sou (ausência de crítica ou comentário não deixa de ser uma forma efetiva de ratificação...), quer dizer que eu sou; mas, se o outro colocar em dúvida que eu estou sendo, eu deixo imediatamente de ser (Lanz, 2016LANZ, Letícia. 2016. Ser uma pessoa transgênera é ser um não ser. Revista Periódicus, v. 1, no. 5, p. 205-220., p.212).
Letícia, uma primeira questão para nossa conversa diz respeito ao caráter deste seu novo livro, ™A construção de mim mesma∫. Digo isto porque seu livro anterior ™O corpo da roupa∫, bem como seu trabalho no EGeS1 1 EGeS - Especialização em Gênero e Sexualidade, ofertada pelo CLAM/IMS/UERJ. Na edição de 2014 deste curso, Letícia Lanz obteve o título de especialista em Gênero e Sexualidade com o trabalho de conclusão de curso intitulado: “Manual de Redação, Ética e Etiqueta na Abordagem de Assuntos Transgêneros pela Mídia”. , têm um caráter acadêmico e são voltados tanto para reflexões acerca da transgeneridade e dos chamados transgender studies para a língua portuguesa a partir da escrita e reflexão de uma pessoa transgênera (e, neste sentido, talvez sejam mais voltados para o público acadêmico), como também objetivam trazer informações qualificadas e didáticas sobre a transgeneridade, tanto que você estabeleceu um glossário conceitual sobre tal tema. Já ™A construção de mim mesma∫ é também um livro didático, mas que traz uma narrativa afetiva e cativante em primeira pessoa. Queria que você comentasse estes dois momentos e objetivos das duas obras.
Meu objetivo com o “O Corpo da Roupa” foi escrever um trabalho didático, de natureza introdutória aos Estudos Transgêneros, até hoje uma subdivisão dos Estudos de Gênero muito pouco explorados e muito pouco divulgados nos meios acadêmicos do país. Minha ideia, algo ambiciosa, era de reunir e apresentar conceitos e abordagens teóricas fundamentais para a compreensão do fenômeno transgênero nas sociedades humanas. Em “A Construção de Mim Mesma” a ideia principal foi descrever os conflitos e os confrontos enfrentados por uma pessoa transgênera com as normas de conduta de gênero em vigor na sociedade, desde a descoberta da condição transgênera, ainda na infância, à longa jornada que vai terminar na transição de gênero. O que “O Corpo da Roupa” me exigiu em termos de horas de pesquisa, análise e síntese de material acadêmico, “A Construção de Mim Mesma” me exigiu em termos de reflexão profunda, muitas vezes desconfortável e dolorosa, a respeito de mim mesma, em que eu tive que me amparar fortemente na psicanálise a fim de manter a minha própria integridade. O resultado desse trabalho é, como você classificou, e eu concordo plenamente, um relato altamente afetivo e cativante, da vida de uma pessoa transgênera, da minha vida.
Você mencionou os Estudos Transgêneros e podemos dizer que temos visto uma crescente de produções feitas por pessoas trans dentro dos chamados Estudos Transgêneros. Como você tem recebido tais produções, tanto no que se refere a talvez uma maior abertura, possibilidade ou mesmo o impacto destas escritas e narrativas como também acerca das diferenças políticas, geracionais, narrativas, etc dentro deste campo no Brasil.
Além de mim mesma, desconheço a existência, aqui no Brasil, de alguma pessoa transgênera que se identifique publicamente como estudiosa e/ou pesquisadora no campo dos Estudos Transgêneros. Há, inclusive, um repúdio ao próprio termo “transgênero”, visto por muitas como tentativa neocolonial de apropriação do movimento de travestis e transexuais no país. Por causa disso, os estudos produzidos têm forte concentração em questões basicamente identitárias, e giram em torno das transidentidades de travesti e transexual, únicas reconhecidas e aceitas como legítimas (e hegemônicas) representantes da condição transgênera no Brasil. Desnecessário dizer que estudos e debates fundamentais envolvendo outras transidentidades, como é o caso de crossdressers, andróginos, transformistas, drag queens e não-“bináries”, têm sido não só excluídos do mainstream acadêmico, como tratados com descaso e até repulsa.
Você mencionou a importância da psicanálise em sua vida. Tanto a psicanálise como o campo psi mais amplo vêm tendo sua base cisgênera questionada ™desde dentro∫, digamos assim, tanto por pessoas trans originárias do campo psi, como, por exemplo, Jaqueline de Jesus2 2 Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (DIHS/ENSP/FIOCRUZ). Autora de diversos textos em que conceitua e aborda o transfeminismo a partir de perspectiva interseccional, organizadora da coletânea “Transfeminismo: teorias & práticas” (2014). , Céu Cavalcanti3 3 Psicóloga, doutoranda em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Psicóloga Conselheira do Conselho Regional de Psicologia/CRP do Rio de Janeiro. Autora de textos sobre transgeneridade/travestilidade, segurança pública e direitos humanos. e Sofia Favero4 4 Psicóloga, doutoranda em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. Autora de diversos textos sobre cisgeneridade, em especial os livros “Pajubá-terapia: ensaios sobre a cisnorma” (2020) e “Crianças trans: infâncias possíveis” (2020a). , como também por pessoas que não exatamente se identificam como psi, mas que vêm buscando questionando o campo a partir da perspectiva transgênera, como é o seu caso e de pessoas como Viviane Vergueiro5 5 Ativista transfeminista, doutoranda em Estudos sobre Gênero, Mulheres e Feminismos na Universidade Federal da Bahia/UFBA. Autora do livro “Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial” (2018). e, especialmente no âmbito internacional, Paul Preciado6 6 Filósofo, professor da Universidade de Paris VIII, França. Autor de livros como “Manifesto contrasexual: práticas de subversão da identidade” (2017) e “Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica” (2018). Em 2019 proferiu a conferência “Je suis un monstre qui vous parle - Rapport Pour Une Académie de Psychanalystes” (tradução livre: “Eu sou o monstro que vos fala: Informe para uma Academia de Psicanalistas” na École de la Cause Freudienne, em Paris, França, tecendo diversas críticas de cunho epistemológico ao binarismo de gênero fundante da teoria psicanalítica. . Você acha que tais críticas e perspectivas podem reformar o campo psi e a psicanálise, especialmente por questionar o binarismo de gênero que embasa muitas teorias psi?
Para começar, devemos reconhecer que a perspectiva crítica da psicanálise é bem distinta da perspectiva psi em geral. Enquanto uma se volta para os próprios fundamentos da teoria psicanalítica, checando de maneira drástica e efusiva, as próprias estruturas epistemológicas e ontológicas da psicanálise, como é o caso que você citou de Paul Preciado, a crítica psi em geral fica focada em eventos e situações pontuais, percebidos por algumas estudiosas como envolvendo de alguma forma a psicologia, como é o caso da denúncia e combate da chamada “cura gay”, que tem mobilizado tanto a academia quanto os conselhos e sindicatos de psicologia. Ao contrário, portanto, de Paul Preciado, que comparece diante de um auditório de mais de 600 psicanalistas, com o objetivo claro, direto e inequívoco de questionar e desconstruir as bases do discurso psicanalítico, o campo psi não me parece tão interessado em questionar a fundo nem as teorias nem as práticas psicológicas, concentrando seus esforços em argumentações muito mais identitárias do que epistemológicas e/ou ontológicas.
Acerca deste caráter mais identitário que você identifica nas práticas e argumentações psicológicas, bem como possivelmente em outros campos, há uma passagem em seu livro que você afirma que:
Quem quiser me inscrever numa matriz cultural de inteligibilidade pode dizer que sou uma pessoa transgênera, com a identidade mais próxima de uma travesti ou transexual e orientação sexual lésbica. Meu aviso aos navegantes é que não me sinto nem um pouco responsável por eventuais contradições e desconfortos conceituais, lembrando que eu, pessoalmente, não tenho o menor interesse em me inscrever em nenhuma matriz cultural de inteligibilidade de gênero. Meu esforço é para me inscrever - e para me manter inscrita - numa matriz de sensibilidade social, na qual eu possa ser aceita, reconhecida, legitimada e amada pelas pessoas sendo tão unicamente a pessoa que eu sou (Lanz, 2021LANZ, Letícia. 2021. A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero. São Paulo: Companhia das Letras ., p.47).
Poderíamos dizer que este embate frente a inscrição em uma matriz cultural binária de gênero e a construção de uma matriz de sensibilidade social, ± que me parece buscar outras bases que não as rígidas normas sociais absolutamente generificadas, racializadas, etc ± seria a construção de um sujeito e uma política não identitários? E quais seriam seus limites, contradições, possibilidades e potencialidades?
Sistematicamente eu tenho combatido o binarismo de gênero como sistema de divisão, padronização e hierarquização das pessoas em função pura e simplesmente do seu órgão genital. Sistematicamente eu tenho denunciado essa apropriação indébita do código genético pelo código cultural, o aprisionamento do gene pelo meme, utilizando o conceito de meme exposto por Richard Dawkins na sua obra fundante “O Gene Egoísta” (2007DAWKINS, Richard. 2007. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras.). Às vezes as pessoas dizem que com essa minha posição eu pretendo destruir as lutas - e as conquistas identitárias. Mas não vejo mal nenhum que as pessoas queiram se expressar como homem, como mulher ou como outra personagem qualquer. O que é intolerável é continuar permitindo e patrocinando essa grande farsa social em que a identidade de gênero é determinada pelo sexo genital dos indivíduos. É simplesmente ridículo imaginar que um simples órgão, presente entre as pernas dos indivíduos ao nascer, determine toda a sua existência, condicionando todos os seus comportamentos e todas as suas escolhas ao longo da vida. Que continue a existir homem, mulher, travesti, transexual, andrógino, crossdresser, não-binário e o diabo a quatro. Que cada um se identifique naturalmente com o modelo identitário que mais lhe convier. O que é preciso ser detonado é o dispositivo binário de gênero - esse malfadado sistema de classificação e controle das pessoas, responsável pelas enormes desigualdades entre os indivíduos em função de um simples órgão genital.
Gostaria de retornar às questões mais psi, especialmente quando você relata que o preconceito que experimentou ao longo da sua trajetória a levou a um auto preconceito, produzindo ™autocomiseração e autopiedade neurótica∫ (Lanz, 2021LANZ, Letícia. 2021. A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero. São Paulo: Companhia das Letras ., p.42). Há aqui a produção de uma angústia, num sentido mais psicanalítico de um sofrimento existencial. Gostaria que você falasse um pouco sobre tais processos psíquicos que, se por um lado podem fazer parte da vida de pessoas cis e transgêneras, por outro são processos diferentes a depender da identificação de gênero frente ao gênero assignado no nascimento por uma sociedade calcada no binarismo.
Os “modelos” de identidade são fornecidos pela sociedade, através do “imaginário social” e batem em nós (ou nos abatem...) através das “invasões do simbólico”. Ou seja, os padrões são coletivos, mas os processos de identificação são totalmente individuais e subjetivos. Os esforços da sociedade são empenhados todos no sentido de que as identificações com os modelos identitários de homem e mulher ocorram sempre de acordo com o órgão genital de cada pessoa. O processo de socialização, através da educação (leia-se: adestramento, repressão, dissuasão, violência e terrorismo de gênero permanentemente exercidos pela família, pela escola e pela comunidade) se encarrega de tornar realidade a grande “aspiração social” de total compatibilidade entre o órgão genital e a identidade de gênero atribuída a cada indivíduo no momento do seu nascimento. A hereditariedade genética não é mais tida como um determinismo inexorável da natureza, assim como sabemos que a herança genética não contém em si a herança identitária.
Está mais do que evidenciado que nem toda pessoa que possui um pênis se identifica naturalmente como homem, da mesma forma que nem toda pessoa que possui uma vulva se identifica naturalmente como mulher. Enfim, nenhum ser humano pode ser considerado como resultado da carga genética que recebeu na sua concepção. Muito pelo contrário, cada indivíduo é resultado de um complexo processo de subjetivação que, a partir de um “corpo biológico”, vai se desenvolvendo contínua e ininterruptamente dentro de um determinado ambiente sociopolítico-cultural, histórico e geográfico (numa determinada época, num determinado local) em que uma pessoa nasce, cresce, vive e é “educada”.
Tanto a medicina quanto a psicologia - e a psicanálise - enquanto “entidades epistemológicas hegemônicas” continuam relutando muito em aceitar, ou pelo aceitar na sua totalidade, o quadro referencial que acabei de apresentar. A tendência ainda dominante é de patologizar qualquer expressão de identidade fora dos quesitos de enquadramento vigentes, baseados exclusivamente no órgão genital de cada pessoa. “Uma patologia ambulante”, foi assim que eu fui vista e tratada pela sociedade a maior parte da minha vida. Por decorrência, foi assim que eu me vi e me tratei a maior parte da minha vida: portadora de “transtorno mental” que me levava a me identificar como mulher, tendo nascido macho. Eu tive que lutar muito, que estudar muito, que pesquisar muito para entender que eu não era nada disso. Que eu era apenas vítima de um embuste sociopolítico-cultural, baseado na “adoção do sexo genital” como requisito de enquadramento de gênero.
Infelizmente, essa visão, completamente distorcida e adicionalmente patologizada - é a que ainda predomina na medicina, na psicologia e na psicanálise. Meu esforço é de mostrar que não é nada disso. Mas haja fôlego e argumentação!
Já que mencionamos anteriormente a política, você tem sido uma grande crítica de movimentos sociais identitários e, inclusive, relata não ter sido bem recebida em tais movimentos. Gostaria, então, que dissesse um pouco sobre suas concepções de mobilização e atuação política, principalmente porque apesar desta dissonância entre suas ideias e política e as que identifica no movimento social transgênero organizado, estamos falando de um coletivo e/ou população trans que, de uma forma geral, estão sob pressões, preconceitos e discriminações que se aproximam.
Os movimentos identitários existentes se comportam muito mais como movimentos de confronto com a ordem vigente do que como movimentos de superação, de desconstrução e extinção dessa mesma ordem cruel e abusiva. Particularmente, os movimentos transidentitários reivindicam o pleno reconhecimento das pessoas transgêneras NAS DUAS CATEGORIAS DE GÊNERO OFICIALMENTE EXISTENTES: homem e mulher. A reivindicação deve ser pela plena inclusão das pessoas COMO ELAS SÃO, independentemente dos rótulos identitários que lhe são postos, muito mais como dispositivos de controle do que de elementos de reconhecimento social. Para mim é tolice reivindicar a inserção de transidentidades - não como transidentidades em si - mas numa das duas categorias de gênero homem e mulher, inclusive através do “uso correto” de pronomes (aff...). É tipo querer entrar para um clube que não nos quer como sócios. Exigir o ingresso como sócio de um clube que, a partir dos seus próprios estatutos, exclui sumariamente a aceitação daquele tipo de pessoas em seus quadros. A luta, portanto, que faria sentido, seria pela extinção dos estatutos do clube, numa primeira etapa, e pela extinção do próprio clube, na etapa final. “Forçar a barra” junto ao clube, exigindo o enquadramento pleno de pessoas excluídas por princípio estatutário, não só é reconhecer a força e o poder do clube, como abonar os seus estatutos. É preciso reconhecer que o problema não é ser aceita ou não pelo clube, mas o próprio clube. Não pode haver revolução sem desconstrução.
Nas eleições municipais de 2020, você foi a candidata do PSOL à prefeitura de Curitiba. Como foi a construção desta candidatura e também desta forma de atuação política, que aqui passava pela gestão pública e inúmeras pautas sociais?
Pessoas transgêneras são, antes de tudo, cidadãs e cidadãos. E se eu ainda emprego o rótulo transgênero é para tentar me fazer entender dentro do contexto do seu questionamento. Eu me candidatei a partir de uma indicação do diretório do partido, naquele momento mergulhado em uma indesejável divisão interna. Meu nome surgiu como proposta de conciliação e, em princípio, foi muito bem aceito pelo partido. Na verdade, acabei conseguindo compor a chapa com a principal candidata da “outra” ala, minha amiga particular. Nós duas juntas compusemos uma chapa feminina, feminista e combativa que, embora não eleita, conseguiu dizer a que veio nesta cidade de Curitiba, conforme feedback que recebemos até das chapas opositoras de outros partidos. Nossas pautas estiveram centradas na ECONOMIA DO CUIDADO, em lugar da ECONOMIA DE MERCADO. Isso quer dizer que defendemos uma economia colaborativa, participativa, feita para todos e com ganhos e vantagens para todos, em vez de uma ECONOMIA DE MERCADO, feito por poucos e para poucos, com ganhos apenas para um pequeno grupo de privilegiados. Dentro desse eixo principal, gravitamos todas as nossas pautas de saúde, educação, transporte, trabalho, segurança e outros tópicos. Nossa grande dificuldade foi, pasme, dentro do próprio partido, a partir da tentativa de imposição e controle da nossa fala por membros antigos, “donos” de uma “pureza” doutrinária, tão retrógrada quanto inadequada para os tempos atuais.
Este dossiê busca contribuir com reflexões sobre estratégias e condições de acesso à saúde de pessoas trans e travestis no Brasil. Você abre seu livro com a ™luz azulada da UTI∫ (Lanz, 2021LANZ, Letícia. 2021. A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero. São Paulo: Companhia das Letras ., p.11) e o quanto um enfarte representou um momento de virada na sua vida, já que as angústias por viver sem assumir-se no gênero feminino com o qual se identificava, em suas palavras, ™foi a forma que o meu corpo encontrou de dizer que o meu conflito tinha atingido o limite do tolerável e que, definitivamente, eu não poderia mais viver daquele jeito. Dói muito não conseguir ser por fora a pessoa que a gente sente que é por dentro∫ (Lanz, 2021, p.12LANZ, Letícia. 2021. A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero. São Paulo: Companhia das Letras .). Como a Letícia não recusa a história e mesmo certa identificação com o Geraldo, como você analisa o acesso e cuidado em saúde no gênero masculino e, posteriormente, no feminino? Quais diferenças, demandas, entraves, solidariedades, etc. você observa nestes diferentes momentos de cuidado e acesso à saúde?
Em nenhum momento da minha transição eu fui desprezada ou tratada de maneira inadequada ou desrespeitosa pelos profissionais de saúde com quem tive contato. Pelo contrário, sempre recebi de todos eles uma atenção redobrada, seja pela curiosidade natural que a minha condição despertava em muitos deles, seja pelo interesse sincero de me ajudarem a cuidar da minha saúde da maneira mais efetiva possível. Posso assegurar que a minha condição de pessoa transgênera nunca constituiu entrave para que eu recebesse atendimento médico e/ou psicológico adequado. Nesse aspecto, não identifico nenhuma diferença entre o atendimento que eu recebia como Geraldo e o que eu passei a receber como Letícia. O que me chamou a atenção desde o início foi o alto grau de desinformação dos profissionais med-psi com relação à condição transgênera. Não me lembro de nenhum que soubesse exatamente do que se tratava e só de começar uma conversa com eles era possível verificar que, junto com a falta de informação, especialmente informação técnica, havia uma abundância de crenças e mitos infundados, exatamente como ocorre com a maioria da população. Em todos os casos, eu tive que informar detalhadamente aos profissionais quem eu era, como eu era e que tipo de demandas eu tinha na área de saúde. Por sorte, como eu disse, sempre fui muito bem recebida e todos os profissionais sempre demonstraram o máximo de interesse em saber tudo que fosse possível ao meu respeito, de modo a poder me ajudar de maneira mais efetiva. E, seguramente, ajudaram, como é o caso da minha médica endocrinologista, com quem já me consulto há quase duas décadas.
Devo dizer que o meu caso está longe, mas muito longe mesmo, de poder ser generalizado. As minhas condições pessoais eram, são, muito específicas. Estive o tempo todo coberta por plano de saúde, além de possuir um grau de informação muito elevado a respeito da minha condição, o que me permitiu compartilhar conhecimento e, num certo sentido, orientar os profissionais de saúde a respeito do meu próprio atendimento. Não é o caso - está muito longe de ser - da maioria da população transgênera, dependente de atenção do SUS, e muitíssimo pouco informada a respeito da sua própria condição.
Ainda sobre o tema da saúde, você menciona seu uso não prescrito (pelos serviços oficiais de saúde) de hormônios, afirmando inclusive que o lugar social que ocupava no início da sua transição/afirmação de gênero possibilitava o acesso à informação de qualidade sobre terapia hormonal. Mesmo assim, inicialmente a terapia hormonal se deu fora das instituições de saúde, o que acaba sendo bastante comum para grande parte das pessoas trans no Brasil. O que você endereçaria aos serviços e políticas de saúde para que pudessem efetivamente acolher as pessoas trans, especialmente no serviço público de saúde?
É muito grande o número de pessoas transgêneras que resistem ao máximo visitar profissionais de saúde. E, sinceramente, têm sérias razões para isso. Nenhuma faculdade de medicina aqui no Brasil, pelo menos que eu saiba, instrui seus alunos em aspectos específicos da conduta médica em caso de pessoas transgêneras. Essa falta de instrução e orientação adequadas das academias quanto aos procedimentos específicos e a conduta médica-psicológica a ser adotada no atendimento à população transgênera, faz com que haja um mundo de receios nessas pessoas em procurar um médico ou médica e se abrir com ele ou ela, expondo com exatidão as suas condições de vida e os seus sintomas. Isso fica ainda mais agravado pela transfobia estrutural que existe no nosso país e que, naturalmente, também vigora na área da saúde, fazendo com que muitos profissionais de saúde tenham reservas e façam juízos de valor muito desfavoráveis da conduta de pessoas transgêneras. Transexuais e travestis alegam sérias dificuldades em obter tratamento adequado no SUS - Sistema Único de Saúde e até mesmo nos sistemas de saúde privada, declarando-se muitas vezes constrangidas e acuadas em reportar claramente suas condições de saúde. A expectativa da maioria é de receber uma assistência médica ruim, inadequada e muitas vezes moralista, discriminatória e preconceituosa.
Os corpos modificados de travestis e transexuais, especialmente quando atingem a idade madura, por exemplo, podem causar muita ansiedade em profissionais de saúde que não foram sequer informados de que esses corpos existem e necessitam de assistência médica como quaisquer outros corpos humanos. É sempre constrangedor para um homem trans receber assistência ginecológica ou uma mulher trans não-reaparelhada genitalmente relatar desconfortos ao urinar que requeiram a assistência de um nefrologista.
O quadro exposto só se resolve, naturalmente, com formação e informação aos profissionais de saúde. A inclusão da temática transgênera no currículo dos cursos de graduação em medicina e psicologia ou, no mínimo, a oferta de cadeiras optativas nessa área já seria um grande avanço.
Você mencionou ainda que ™Nenhuma faculdade de medicina aqui no Brasil, pelo menos que eu saiba, instrui seus alunos em aspectos específicos da conduta médica em caso de pessoas transgêneras∫. Entendo esta crítica à formação médica e à formação no campo da saúde, de um modo geral, porém temos visto diversos esforços em prol da população trans baseados em universidade públicas, como a inserção de disciplinas de gênero na formação em saúde e criação de ambulatórios transespecíficos, como acontece com o CRAIST da UFU7 7 CRAIST - Centro de Referência e Assistência Integral para a Saúde Transespecífica - CRAIST, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia/UFU. , o Hospital Pedro Ernesto da UERJ8 8 Hospital credenciado pelo Ministério da Saúde dentro do chamado Processo Transexualizador (ver artigo de Márcia Brasil neste dossiê). , dentre outros. Você acha que ainda são insuficientes? Do que você acompanha de tais esforços e serviços, quais redirecionamentos acharia importantes e/ou necessários?
O problema que eu vejo nessas iniciativas de saúde destinadas especificamente à população transgênera é a ideologia intrínseca a todas elas. Por mais humanidade que tentem conferir ao discurso de tratamento de pessoas trans, têm sempre como ponto de partida o pressuposto de que se tratam de pessoas doentes, precisando de assistência médico-psicológica, quando não é nada disso. Essa posição arrogante e obscurantista da medicina acaba se transformando no pânico altamente difundido dentro da população transgênera de que, se a condição transgênera deixar de ser reconhecida como patologia, as pessoas trans perderão inteiramente a assistência do SUS. Ora, gravidez e velhice, por exemplo, não são doenças de maneira nenhuma. E eu não sei se alguém em sã consciência (não os malucos atualmente no poder) seria capaz de excluir essas duas condições da lista de prioridades de atendimento do SUS. A ideia da transgeneridade como doença, herança maldita do século XIX, é algo que me irrita profundamente, pois só faz consolidar a visão sociopolítica-cultural de que transidentidades são, antes de mais nada, pessoas social e psicologicamente desviadas, necessitando de “ajustes” psicológicos, anatômicos, fisiológicos e anatômicos (e morais!) a fim de poderem participar da sociedade como “pessoas normais”. Livres desse terrível viés ideológico, todos esses serviços têm e terão sempre todo o meu apoio.
Em um comentário recente em seu perfil do Facebook sobre a mudança promovida na CID-11 com relação à transexualidade, você afirmou que ™houve, na realidade, foi o deslocamento, por sinal péssimo e totalmente inapropriado, da transexualidade, que por décadas habitou o capítulo dos transtornos mentais, para o capítulo ™condições relacionadas à saúde sexual∫, passando a figurar, por exemplo, com distúrbios do tipo ™disfunção erétil, além de falar numa tal de ™incongruência de gênero∫, que nada mais é do que a ratificação do famigerado dispositivo binário de gênero. Neste sentido, queria que você comentasse um pouco mais acerca destes movimentos que segundo determinada perspectiva podem ser vistos como uma mudança em prol das pessoas trans, mas que não abre mão de certa gestão e normatização da transgeneridade, especialmente pelo campo biomédico.
Além de inapropriado e esdrúxulo, confundindo coisas que não têm nenhuma relação entre si, como é o caso de sexo e gênero, o deslocamento que eu mencionei é uma forma de manter, sim, o caráter patológico da transgeneridade e, portanto, a sua jurisdição ao território biomédico. Trata-se de uma clara e inequívoca mensagem da medicina de que ela não abre mão de “tratar” a transexualidade como doença, não lhe importando nem um pouco que tipo de doença seja ou que natureza tenha. A medicina não quer despatologizar a condição transgênera. Leia-se: não quer perder o domínio de impor tratamentos e manter a “doença” sob controle. Um atraso mental, em todo sentido. Da parte dos movimentos trans, existe sempre o medo, infundado, de que, se a transexualidade deixar de ser considerada uma condição patológica, as pessoas trans percam o acesso à assistência do SUS. Como eu digo, esse raciocínio está fora da realidade. Gravidez e velhice, por exemplo, não são patologias, mas duas condições próprias da existência humana. Alguém ousaria questionar que o SUS não deve atender gestantes nem pessoas idosas porque elas não são doentes?
Referências
- DAWKINS, Richard. 2007. O gene egoísta São Paulo: Companhia das Letras.
- DE JESUS, Jaqueline Gomes (Org.). 2014. Transfeminismo: teorias & práticas Rio de Janeiro: Editora Metanoia.
- FAVERO, Sofia. 2020. Pajubá-terapia: ensaios sobre a cisnorma 1. ed. Porto Alegre: Editora Nemesis.
- FAVERO, Sofia. 2020. Crianças trans: infâncias possíveis 1. ed. Salvador: Editora Devires.
- LANZ, Letícia. 2016. Ser uma pessoa transgênera é ser um não ser. Revista Periódicus, v. 1, no 5, p. 205-220.
- LANZ, Letícia. 2017. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero Curitiba: Editora Transgente.
- LANZ, Letícia. 2021. A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero São Paulo: Companhia das Letras .
- PRECIADO, Paul B. 2018. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica São Paulo: n-1 edições.
- PRECIADO, Paul.2017. Manifesto Contrassexual: práticas de subversão da identidade São Paulo: n-1 edições
- VERGUEIRO, Viviane. 2018. Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial 1. ed. Brasília: Padê editorial
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Entrevista: Letícia Lanz por Aureliano Lopes da Silva Junior, realizada no 1o trimestre de 2022
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EGeS - Especialização em Gênero e Sexualidade, ofertada pelo CLAM/IMS/UERJ. Na edição de 2014 deste curso, Letícia Lanz obteve o título de especialista em Gênero e Sexualidade com o trabalho de conclusão de curso intitulado: “Manual de Redação, Ética e Etiqueta na Abordagem de Assuntos Transgêneros pela Mídia”.
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Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (DIHS/ENSP/FIOCRUZ). Autora de diversos textos em que conceitua e aborda o transfeminismo a partir de perspectiva interseccional, organizadora da coletânea “Transfeminismo: teorias & práticas” (2014)DE JESUS, Jaqueline Gomes (Org.). 2014. Transfeminismo: teorias & práticas. Rio de Janeiro: Editora Metanoia..
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Psicóloga, doutoranda em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Psicóloga Conselheira do Conselho Regional de Psicologia/CRP do Rio de Janeiro. Autora de textos sobre transgeneridade/travestilidade, segurança pública e direitos humanos.
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Psicóloga, doutoranda em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. Autora de diversos textos sobre cisgeneridade, em especial os livros “Pajubá-terapia: ensaios sobre a cisnorma” (2020)FAVERO, Sofia. 2020. Pajubá-terapia: ensaios sobre a cisnorma. 1. ed. Porto Alegre: Editora Nemesis. e “Crianças trans: infâncias possíveis” (2020a)FAVERO, Sofia. 2020. Crianças trans: infâncias possíveis. 1. ed. Salvador: Editora Devires..
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Ativista transfeminista, doutoranda em Estudos sobre Gênero, Mulheres e Feminismos na Universidade Federal da Bahia/UFBA. Autora do livro “Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial” (2018)VERGUEIRO, Viviane. 2018. Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial. 1. ed. Brasília: Padê editorial.
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Filósofo, professor da Universidade de Paris VIII, França. Autor de livros como “Manifesto contrasexual: práticas de subversão da identidade” (2017)PRECIADO, Paul.2017. Manifesto Contrassexual: práticas de subversão da identidade. São Paulo: n-1 edições e “Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica” (2018)PRECIADO, Paul B. 2018. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições.. Em 2019 proferiu a conferência “Je suis un monstre qui vous parle - Rapport Pour Une Académie de Psychanalystes” (tradução livre: “Eu sou o monstro que vos fala: Informe para uma Academia de Psicanalistas” na École de la Cause Freudienne, em Paris, França, tecendo diversas críticas de cunho epistemológico ao binarismo de gênero fundante da teoria psicanalítica.
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CRAIST - Centro de Referência e Assistência Integral para a Saúde Transespecífica - CRAIST, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia/UFU.
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Hospital credenciado pelo Ministério da Saúde dentro do chamado Processo Transexualizador (ver artigo de Márcia Brasil neste dossiê).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022