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Protoformas do Processo Transexualizador no Brasil: apontamentos sobre a tortuosa institucionalização da assistência à saúde de pessoas Trans no SUS entre 1997 e 2008

Protoformas del proceso de transexualización en Brasil: apuntes sobre la tortuosa institucionalización de la atención a las personas trans en el SUS entre 1997 y 2008

Protoforms of the Transsexualizing Process in Brazil: notes on the tortuous institutionalization of health care for Trans people in SUS between 1997 and 2008

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar o Processo Transexualizador no Brasil a partir do exame da sua constituição histórica entre 1997 e 2008. Considera-se neste trabalho os anos anteriores sua institucionalização em 2008, tendo como marco inicial a autorização do Conselho Federal de Medicina, em 1997, para que os médicos realizassem cirurgias de transgenitalização em caráter experimental no interior dos quatro hospitais universitários pioneiros nessa modalidade assistencial no país. Procurou-se compreender os limites e possibilidades desse processo, buscando identificar o papel desempenhado por alguns dos principais sujeitos políticos que atuaram nesse cenário. Entende-se que o reexame dessas origens, a compreensão acerca das características dos serviços pré-institucionalização e algumas de suas limitações são fundamentais para o entendimento do Programa hoje, contribuindo, assim, para a elucidação e enfrentamento de seus inúmeros desafios.

Palavras-Chave:
processo transexualizador; institucionalização do processo transexualizador; saúde transexual; Sistema Único de Saúde; trajetória do processo transexualizador

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar el Proceso Transexualizador en Brasil a partir del análisis de su constitución histórica entre 1997 y 2008. En este trabajo se considera los años anteriores a su institucionalización en 2008, teniendo como marco inicial la autorización del “CFM - Conselho Federal de Medicina” (agencia pública encargada de la regulación profesional y la licencia médica en Brasil), en 1997, para que los médicos realicen cirugías de transgenitalización en carácter experimental en el interior de los cuatro hospitales universitarios pioneros en esta modalidad asistencial en el país. Se buscó comprender los límites y posibilidades de ese proceso, buscando identificar el papel desempeñado por algunos de los principales sujetos políticos que actuaron en ese escenario. Se entiende que el reexamen de esos orígenes, la comprensión sobre las características de los servicios preinstitucionalizados y algunas de sus limitaciones son fundamentales para el entendimiento actual del Programa, contribuyendo, así, para el esclarecimiento y afrontamiento de sus innúmeros desafíos.

Palabras clave:
proceso de transexualización; institucionalización del proceso de transexualización; salud transexual; Sistema Único de Salud; trayectoria del proceso de transexualización

Abstract

This article aims to analyze the Transsexualization Process in Brazil from the examination of its historical constitution between 1997 and 2008. This study privileged the years prior to its institutionalization in 2008, with the initial milestone being the authorization by the Federal Council of Medicine, in 1997, for doctors to perform experimental transgenitalization surgeries within the four pioneering university hospitals in this modality of care in the country. We tried to understand the limits and possibilities of this process, trying to identify the role played by some of the main political subjects who acted in this scenario. It is understood that the re-examination of these origins, the understanding about the characteristics of pre-institutionalization services and some of their limitations are fundamental for the understanding of the Programme today, thus contributing to the elucidation and facing of its numerous challenges.

Keywords:
transsexualization process; institutionalization of the transsexualization process; transsexual health; Unified Health System; trajectory of the transexualization process

Introdução

O interesse por pesquisar a trajetória do Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde partiu da minha inserção como assistente social, há dez anos, e também da minha atuação há sete anos como Coordenadora Técnica Ambulatorial de uma Unidade Especializada dessa modalidade de atenção em uma das cinco unidades assistenciais de referência cirúrgica/ambulatorial no Processo Transexualizador do SUS no país. Ao longo dessa trajetória profissional, estando inserida no âmago desse campo assistencial, pude me deparar com uma série de dilemas e obstáculos que, a meu ver, impossibilitaram e impossibilitam o desenvolvimento de uma atenção integral, e de qualidade, aos usuários que buscam assistência nos serviços especializados. Levei essas inquietações para o curso do doutorado, onde pude aprofundar a pesquisa sobre a institucionalização do Processo Transexualizador no Brasil através da tese “Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do Processo Transexualizador no Brasil”, da qual se originou o presente artigo.

Para fins desse estudo, por uma necessidade de recorte metodológico do objeto, optei por analisar apenas as cinco primeiras unidades de atenção especializada no Processo Transexualizador do país. Com isso, durante a pesquisa de campo foi necessário realizar visitas para a observação e realização de entrevistas em Brasília e em outros quatro estados da federação, além do Rio de Janeiro.

Ao todo, visitei os estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Brasília, Goiás e Pernambuco. Assim, foram cobertos todos os estados pioneiros na prestação dessa modalidade assistencial e onde existiam unidades especializadas nas modalidades ambulatorial e cirúrgica do Processo Transexualizador. No âmbito das visitas institucionais, ressalta-se que estive também no Ministério da Saúde, em Brasília, onde pude entrevistar alguns/algumas ex-gestores(as).

É importante declarar que ao longo dos dez anos de trabalho numa unidade de atenção especializada, tive a possibilidade de participar de inúmeras reuniões e de outros espaços coletivos de trabalho junto aos/às demais representantes dos serviços para discussão do programa. Alguns desses encontros ocorreram no Ministério da Saúde ou em espaços como as secretarias estaduais e municipais de saúde, o Conselho Federal de Medicina (CFM), as universidades, entre outros. Assim, a realização da pesquisa de campo contou com uma série de recursos metodológicos, onde se destacaram reuniões, visitas institucionais, observação participante e 22 entrevistas realizadas com vários sujeitos integrantes desse processo, entre ativistas do movimento social de travestis e transexuais, pesquisadores, gestores, técnicos dos serviços e um Juiz.

Portanto, busca-se nestas breves linhas analisar a institucionalização do Processo Transexualizador no Brasil a partir do exame da sua constituição histórica entre 1997 e 2008. Considera-se neste trabalho os anos anteriores à sua institucionalização em 2008, tendo como marco inicial a autorização do Conselho Federal de Medicina, em 1997, para que os médicos realizassem cirurgias de transgenitalização em caráter experimental no interior dos quatro hospitais universitários pioneiros nessa modalidade assistencial no país. A partir do lugar, e do olhar, de alguém que está dentro dos serviços, procurou-se compreender os limites e possibilidades desse processo, buscando identificar o papel desempenhado por alguns dos principais sujeitos políticos que atuaram nesse cenário. Entende-se que o reexame dessas origens, a compreensão acerca das características dos serviços pré-institucionalização e algumas de suas limitações são fundamentais para a compreensão do Programa hoje, contribuindo, assim, para a elucidação e enfrentamento de seus inúmeros desafios.

Breve caracterização do engendramento do Processo Transexualizador no Brasil

A institucionalização do Processo transexualizador no Brasil se deu no ano de 2008 quando o Ministério da Saúde (MS), por meio da Portaria Nº. 457/08, credenciou quatro Hospitais Universitários (HU’s), vinculados às Universidades Federais e Estaduais, para a realização de cirurgias de redesignação em mulheres transexuais. Trata-se de um evento extremamente complexo, em torno do qual se articulou uma ampla variedade de sujeitos e determinações que não podem ser compreendidas sem que se observe as características e o modo de ser dos governos petistas e a forma como esses governos − sobretudo o governo Lula − lidaram com as políticas públicas e com a maneira de implementá-las, particularmente quando isso envolvia uma forte presença de movimentos sociais, como foi o caso das ações voltadas para o campo LGBTQIA+.

Com a institucionalização do processo em 2008, inúmeras unidades hospitalares, que já prestavam assistência às pessoas trans, tiveram seus atendimentos reconhecidos e institucionalizados. Foram elas: a unidade do hospital de clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Hospital de Clínicas da Universidade de Goiás (UFG) e do Hospital Universitário Pedro Ernesto, vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (HUPE/UERJ). Vale ressaltar que tal assistência de fato já era realizada há pelo menos uma década, se considerarmos apenas o período posterior à Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) de 19971 1 A Resolução CFM nº 1.482 /97 normatizou e legitimou as cirurgias de transgenitalização tirando esse procedimento da clandestinidade sob a justificativa que essa era a única forma de tratamento para o “transexualismo”, entendido aqui como uma doença. , que retirou da clandestinidade essa modalidade assistencial.

Se considerássemos os atendimentos anteriores à Resolução do CFM, certamente encontraríamos mais de vinte anos de atendimento a essas demandas no Brasil, sem o reconhecimento institucional do MS pela sua peculiaridade. O caso “Farina”2 2 Roberto Farina foi um médico brasileiro e professor de cirurgia plástica na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp). Ficou conhecido na década de 1970 por, supostamente, ter sido o precursor das cirurgias de transgenitalização no Brasil. Waldirene Nogueira, primeira mulher trans operada no país teve sua cirurgia realizada por este profissional em 1971, o que resultou na cassação do registro profissional de Roberto Farina nos anos subsequentes. Cf.: Rossi, A. “Monstro, prostituta, bichinha”: como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil. BBC Brasil, São Paulo, 2018. , e outros relatos que nos chegam por meio da experiência pessoal de algumas pessoas trans, como João W Nery, por exemplo, que apontam para essa realidade.

Em estudos anteriores (Arán e Murta, 2009ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. (2009) “Transexualidade e saúde pública no Brasil”. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Agosto de 2009. Vol. 14, nº 4, p. 1141-1149.), foi identificada a existência de dez unidades assistenciais com atendimentos voltados às pessoas trans no Brasil antes da Portaria nº 457/08, que funcionavam fundamentadas pela Resolução do CFM de 1997. Foram elas: o Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (PROTIG) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre - UFRGS, a Unidade de Urologia Reconstrutora Genital do Hospital Universitário Pedro Ernesto - UERJ, o Ambulatório de Transexualidade do Projeto Sexualidade (PROSEX) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, o Projeto Transexualismo do Hospital das Clínicas de Goiânia, o Programa de Atendimento a Transexuais e Cirurgia de Transgenitalização do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, o Ambulatório de Endocrinologia Especial (Transtorno de Identidade de Gênero) do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE), o Hospital das Clínicas da UFMG, o Projeto Transexualidade - Serviço de Urologia da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto da Faculdade de Medicina e Hospital de Base, o Atendimento Ambulatorial a Transexuais do Hospital Universitário de Brasília e o Departamento de Psicologia do Instituto Paulista de Sexualidade. No entanto, além dessas dez instituições, identifiquei também o Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes da Universidade Federal do Espírito Santos/UFES e o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, UFPE.3 3 Essa identificação se deu por meio de visita técnica ao Hospital Universitário da UFES, ocorrida em 2018, quando tomei conhecimento que a instituição fazia atendimentos às pessoas trans desde 1998. Em relação à UFPE, tomei conhecimento, também na pesquisa de campo para realização de Tese de Doutorado, que o mesmo iniciou os atendimentos às pessoas trans no ano de 2000.

Dentre essas instituições, havia unidades vinculadas a universidades federais, estaduais, secretarias estaduais de saúde e até mesmo uma unidade de natureza privada. Algumas dessas instituições não realizavam cirurgias, como o Ambulatório de Atendimento a Transexuais do Hospital Universitário da UnB e o Departamento de Psicologia do Instituto Paulista de Sexualidade, que é uma instituição de natureza privada (Arán e Murta, 2009ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. (2009) “Transexualidade e saúde pública no Brasil”. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Agosto de 2009. Vol. 14, nº 4, p. 1141-1149.).

É possível que outras instituições realizassem atendimentos dessa natureza antes da institucionalização pelo MS em 2008, e mesmo antes da Portaria do CFM de 1997, quando os atendimentos eram realizados na clandestinidade. O exemplo mais ilustrativo disso foi a famosa situação, já sinalizada anteriormente, envolvendo o médico Roberto Farina, que teria feito a primeira cirurgia de transgenitalização no Brasil, em 1971, tendo, posteriormente, seu registro profissional cassado pelo Ministério Público de São Paulo sob a acusação de prática de mutilação.

Há registros na pesquisa de Pietra Munin (2018MUNIN, P. M. 2018. Processo transexualizador: discurso, lutas e memórias - Hospital das Clínicas de São Paulo (1997-2013). Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.) de que o HC da FMUSP iniciou os atendimentos a transexuais em 1979, graças aos esforços empreendidos pela médica endocrinologista Dorina Quaglia4 4 Dorina Rosetta Giannetta Epps Quaglia, médica endocrinologista e psicanalista, professora da. Faculdade de Medicina da USP, fundadora do núcleo de estudos de intersexo. , pioneira nesse tipo de atendimento em São Paulo. Com sua saída, outra médica endocrinologista, Berenice Bilharinho de Mendonça, teria assumido essa assistência. Em 1984, outros médicos da Clínica de Endocrinologia e da Divisão de Psicologia iniciaram um ambulatório multidisciplinar para atendimentos de transexuais (Munin, 2018MUNIN, P. M. 2018. Processo transexualizador: discurso, lutas e memórias - Hospital das Clínicas de São Paulo (1997-2013). Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Se existiram outras práticas semelhantes, só a pesquisa histórica dirá, por ora, trabalharemos com os dados que já são conhecidos e sistematizados em estudos anteriores, além de acrescentar o Ambulatório de Urologia da HUCAM - Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes/ UFES e o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE.

Sobre esses dois últimos serviços, é importante sinalizar que há registros de que o hospital universitário da UFES iniciou o atendimento cirúrgico a pessoas trans em 19985 5 Cf.: “Ufes possui técnica inédita no mundo para cirurgia de mudança de sexo” reportagem publicada na página oficial da UFES em 3 de maio de 2013. http://www.ufes.br/conteudo/ufes-possui-t%C3%A9cnica-in%C3%A9dita-no-mundo-para-cirurgia-de-mudan%C3%A7a-de-sexo . O dado oficial a que tive acesso aponta que até o ano de 2013 tinham sido realizadas, naquela instituição de saúde, 33 cirurgias e que 12 pessoas estariam na fila de espera naquele momento, embora não haja informações discriminando os tipos de cirurgias realizadas. Esta instituição não foi credenciada pelo MS como uma das unidades do Processo Transexualizador, mas em função da Resolução do CFM de 1997, a unidade esteve autorizada a realizar tais procedimentos, havendo relatos de que do ano de 2013 em diante, a assistência continuou sendo prestada, porém de forma esporádica e descontínua. Contudo, em 2018, a instituição foi habilitada pelo MS para a realização de atendimentos ambulatoriais6 6 Cf.: “Hospital Universitário inaugura Ambulatório de Diversidade de Gênero no ES” reportagem publicada na página oficial da UFES em 9 de junho de 2018. http://www.ufes.br/ conteudo/hospital-universit%C3%A1rio-inaugura-ambulat%C3%B3rio-de-diversidade-de-g%C3%AAnero-no-es. .

Quanto ao hospital universitário da UFPE, as informações obtidas indicaram que os atendimentos com o propósito de realizar cirurgias de transgenitalização se iniciaram em 2001, tendo sido interrompidos em 2009, em função da aposentadoria do médico que realizava as cirurgias e também de relatos de supostos insucessos técnicos na oferta assistencial. Em 2014, uma nova equipe foi instituída, o serviço foi totalmente reformulado e credenciado pelo MS, passando a ser a quinta unidade plena do Processo Transexualizador no país7 7 A esse respeito, cf.: G1 “Hospital das Clínicas é habilitado para atendimento a transexuais em PE”. 14/010/2014. Além de matérias jornalísticas, foi possível acompanhar as discussões envolvendo esse serviço por meio de reuniões no MS que eu acompanhava na condição de gestora ambulatorial da equipe do processo transexualizador do HUPE/UERJ. .

Há assim uma certa imprecisão de informações acerca da história dos serviços existentes e também sobre quando, de fato, iniciaram seus atendimentos, se antes ou se depois da Resolução do CFM de 1997. Isso expressa também uma realidade preocupante que diz respeito à ausência de transparência dessas ações e à falta de controle social que as circundam. A atuação de alguns profissionais médicos, mesmo tendo suas ações de pesquisa reguladas por Comitês de Ética em Pesquisa vinculados ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), passaram ao largo de outras formas de regulação, monitoramento e controle de suas práticas, uma vez que se respaldaram na lacuna em torno da assistência a pessoas trans e no desinteresse político em promovê-la.

Essa situação teve como resultado a agudização do sofrimento das pessoas trans que buscaram assistência e encontraram serviços descontínuos com rotinas incertas e obscuras. Tais pessoas vivenciaram, algumas vezes, o sentimento de serem cobaias à disposição dos experimentos de determinados profissionais. Foram situações recorrentes por conta da ausência regulatória do Estado, que não ofertava e não regulava adequadamente a assistência à saúde trans8 8 Os relatos de pessoas trans denunciado mal atendimento e erro médico são públicos, notórios e recorrentes, podendo ser ilustrados por exemplo, por meio de publicações jornalísticas que dão conta da punição por perda de registro do médico Jalma Jurado, o encerramento do primeiro programa da UFPE em 2009, registrado por Tenório e Livadias, 2017, bem como alguns relatos contidos no livro de Arilha, Lapa & Pisaneschi, 2010. .

Tais instituições, até a institucionalização no ano de 2008, prestavam assistência, sobretudo cirúrgica, às pessoas transexuais residentes na sua região geográfica ou até mesmo em outros estados e países, como é o caso do Hospital Universitário Pedro Ernesto, que atendia pessoas de várias regiões do país, bem como contava com pelo menos uma usuária proveniente da Argentina. Os programas possuíam características variadas e uma composição interna muito diversa, como também eram distintas suas formas de atendimentos e os resultados de suas ações.

Portanto, por ora, importa sinalizar que os atendimentos assegurados pela Portaria GM/MS nº 1.707, de 18 de agosto de 2008 e pela Portaria Nº. 457 de 19 de agosto de 20089 9 As Portarias GM/MS nº 1.707, de 18 de agosto de 2008 e 457 de 19 de agosto de 2008, instituíram e definiram as diretrizes nacionais para o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde permitindo que as pessoas transexuais tivessem acesso a cirurgias de redesignação sexual pelo SUS. se limitavam a alguns procedimentos cirúrgicos genitais (notadamente dirigidos apenas às mulheres trans) e, embora houvesse nesses instrumentos o reconhecimento das necessidades de acompanhamento para reposição hormonal e de cirurgias mamárias, a normatização do MS não previu a oferta de hormônios e das próteses mamárias nas unidades de saúde referenciadas ou em quaisquer outras. Além disso, não houve uma previsão de atendimentos para as demandas dos homens trans e das travestis. Posteriormente, em 2013, houve a alteração das primeiras Portarias, que incluiu, ainda que parcialmente, a assistência aos homens trans e às travestis e, no ano seguinte, houve o credenciamento de mais um hospital universitário para a realização dos atendimentos ambulatoriais e cirúrgicos a pessoas trans, que foi o Hospital das Clínicas vinculado à UFPE10 10 A Portaria GM/MS nº 2803 de novembro de 2013 substituiu, alterou e ampliou as ações do Processo Transexualizador no SUS. .

Aquele hospital, de forma semelhante aos programas que tinham sido credenciados anteriormente, também teve reconhecida uma assistência que já praticava há, pelo menos, quatorze anos, sendo que, para o credenciamento pelo MS em 2014, foi necessária uma reformulação das práticas e equipes responsáveis. O Hospital foi habilitado após a Portaria de 2013 e também após a habilitação dos demais hospitais, tendo contado, portanto, com condições mais favoráveis para balizar a experiência.

Após o credenciamento daquela que até o presente momento tornou-se a última unidade hospitalar credenciada, totalizou-se no Brasil 5 instituições autorizadas à realização de procedimentos cirúrgicos no âmbito do Processo Transexualizador (duas na região Sudeste, uma na região Centro Oeste, uma no Sul e uma no Nordeste).

O sinuoso engendramento da possibilidade de assistência à saúde de pessoas Trans no SUS

É importante atentar para as particularidades do engendramento do Processo Transexualizador no Brasil, porque elas ajudam a entender a forma como o Programa se materializa na realidade contemporânea. Uma dessas particularidades diz respeito à direção para a qual apontou essa modalidade assistencial. Inicialmente, podemos dizer que o atendimento às demandas de pessoas trans por procedimentos cirúrgicos surgiu “de baixo para cima”.

Consideramos aqui, no entanto, que essa direção “de baixo para cima” não diz respeito, como poderíamos pensar, à atenção primária de saúde, mas sim às iniciativas mais ou menos autônomas de médicos(as) que, por interesses científicos e/ou humanitários, começaram a atender inicialmente mulheres trans que buscavam modificações corporais para que pudessem se sentir mais confortáveis com sua aparência em relação ao seu gênero autorreferido11 11 Alguns/alguns desses/as profissionais tinham compreensões distintas do significado das modificações corporais reivindicadas. Alguns/algumas tinham compreensões mais patologizantes da transexualidade outros menos. Por isso, para alguns/algumas, a autorreferência da identidade tinha menor importância do que o fato de se enquadrarem em estritos critérios diagnósticos psiquiátricos. A respeito desses critérios, cf: Bento, 2008; Murta, 2007; Arán, 2006. .

Essas ações, que associo aqui a um movimento de “baixo para cima”, carecem de mais pesquisas para que possam ser mais compreendidas, todavia, do pouco conhecimento que nos chega acerca de tais iniciativas, pode-se considerar a existência de alguns atendimentos às pessoas trans anteriores à Portaria nº 457/08, e mesmo anteriores à Resolução do CFM de 1997, como foi a situação envolvendo os médicos Roberto Farina e Jalma Jurado12 12 Trata-se de um cirurgião plástico brasileiro, PhD em Medicina pela USP, atualmente com 84 anos. Tornou-se nacionalmente conhecido por ser o pioneiro em cirurgias de transgenitalização consideradas de qualidade no Brasil para mulheres transexuais. Em 2014, o colegiado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) decidiu que Jalma Jurado não poderia mais operar em função de processos que envolvem denúncias de lesão corporal, mutilação, exercício irregular da profissão e homicídio. Ver: G1 Globo.com (30 de junho de 2020). .

Aqui é necessário destacar, reconhecer e louvar a importância do protagonismo das pessoas trans na construção embrionária dessa assistência que, de forma obstinada, reivindicaram serviços de saúde que minimamente reconhecessem como legítimas suas demandas por modificações corporais e acesso à saúde de maneira geral, à despeito da invisibilização a que tradicionalmente essa população esteve reservada. Foram essas pessoas que vocalizaram suas necessidades de saúde aos serviços, forçando sua abertura e fazendo com que alguns médicos fossem convencidos da legitimidade de suas demandas e buscassem ofertar um atendimento, ainda que incipiente e carente de atenção específica para as necessidades de saúde dessa população13 13 O protagonismo das pessoas trans na luta pela construção de um modelo assistencial que contemple as necessidades gerais e específicas da população travesti e transexual tem sido expresso na produção teórica/política de algumas/alguns ativistas e pesquisadoras/res trans, como Keila Simpson, Guilherme Almeida, Fernanda Benvenutty. Cf.: Arilha, 2010; Sena e Souto, 2015. .

É possível que essa assistência médica, inicialmente não regulamentada, voltada especificamente ao atendimento das demandas cirúrgicas de pessoas trans, tenha contribuído para a reação do CFM e feito com que a entidade tivesse que discutir mais a questão e elaborar, logo em seguida, a Resolução Nº. 1482/97BRASIL. 1997. Resolução 1.482 de 10 de setembro de 1997. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo no Brasil. Conselho Federal de Medicina, Brasília, DF, 10 de setembro de 1997. Disponível em: Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/1997/1482_1997.pdf Acesso: 24 de outubro de 2021.
https://sistemas.cfm.org.br/normas/arqui...
, que normatizou a realização dos procedimentos cirúrgicos de transgenitalização14 14 Daniela Murta discorre sobre o processo histórico que culminou nesta Resolução (Murta, 2007, p.48-52). . É importante assinalar que esses atos foram marcados por intenso protagonismo do saber médico e profunda verticalização presente na relação médico/paciente, bem como foram ações nucleadas em torno da psiquiatrização e sob rígidos critérios diagnósticos15 15 A compreensão da transexualidade como uma doença psiquiatra, fundamentada nos manuais e códigos internacionais de classificação de diagnósticos tem sido duramente questionada e criticada por autores como: Arán, 2006; Murta, 2007; Bento, 2008; Lionço,2009; Teixeira, 2009, entre outros. , características que permaneceram no modelo assistencial após a sua institucionalização e que gradativamente vem sendo questionadas, conformando esse espaço como um lócus de disputa de concepções políticas, de saberes e de práticas.

As ações realizadas pelas equipes médicas dos hospitais de ensino, vinculadas às universidades, foram fundamentadas apenas na Resolução do CFM, com ampla liberdade e autonomia, sem que houvesse uma diretriz comum de trabalho entre as quatro primeiras unidades. Essas equipes tiveram uma ampla autonomia para organizar a assistência de acordo com as diretrizes daquele Conselho e a partir de suas próprias compreensões e possibilidades locais. Isso foi facilitado, muito provavelmente, pelo desconhecimento e desinteresse que havia em torno desse tema, fazendo com que poucos profissionais se envolvessem com a questão que, por sua vez, ficava mais restrita às poucas pessoas trans que procuravam assistência naqueles locais.

Esses serviços ficaram por muito tempo entregues à própria sorte e às iniciativas bem-sucedidas (ou não) de seus proponentes, que montavam suas equipes16 16 Em geral essas equipes eram constituídas por urologistas, psiquiatras, endocrinologistas, ginecologistas, cirurgiões plásticos, psicólogos e assistentes sociais. Dada a ausência de discussão e normatização em âmbito nacional para esse tipo de assistência, essas duas últimas categorias profissionais atuavam sem normativas específicas e sem que seus conselhos profissionais exercessem maiores interferências sobre sua atuação, o que dava margem - se estes profissionais não fossem ética e tecnicamente qualificados - a balizarem suas intervenções pelas diretrizes advindas das Resoluções do CFM e não de suas categorias e saberes específicos. da maneira que fosse possível, dada as características de cada unidade.

Pelo que se pode perceber ao longo da pesquisa que fundamentou este estudo, do ponto de vista formal, as concepções sobre a transexualidade, o poder e o saber desses sujeitos eram pouco ou nada tensionados/refutados no âmbito institucional e acadêmico, o que ganhou uma nova configuração com a entrada em cena de pesquisadoras como Márcia Arán, Berenice Bento, Flávia Teixeira e Tatiana Lionço, que começaram a tensionar esse campo com suas abordagens questionadoras das concepções biomédicas que, até então, centralizavam as discussões em torno da transexualidade. O que se afirma aqui é que essas pesquisadoras foram fundamentais nesse processo, pois puderam interpelar os saberes e práticas médicas a partir de uma outra posição de poder e puderam contribuir com a difusão e aprimoramento do debate sobre o cuidado com as pessoas trans numa lógica não patologizadora.

Todavia, essas confrontações ao saber/poder médico já existiam muito antes das interpelações produzidas pelas pesquisadoras e se dava por meio de diferentes estratégias que algumas pessoas trans estabeleciam para conseguirem assistência, aparentemente - e, muitas vezes, só aparentemente - se submetendo aos rígidos códigos e protocolos estabelecidos pelas equipes médicas. Nesse contexto é que se estabeleceu o famoso “dar o truque”, expresso, por exemplo, no fato de muitas pessoas trans aprenderem os códigos e a linguagem médica para “responderem” o que os profissionais queriam ouvir e, assim, poderem acessar a assistência possível. A propósito, lembro-me de uma situação em que durante o atendimento por mim realizado a um homem trans na sala do Serviço Social, ele contava, de maneira sarcástica, sobre os testes de personalidade que tinha acabado de realizar e sobre os desenhos que havia feito. Segundo ele, já havia conversado com outras pessoas trans e com amigos(as) psicólogos(as), lido sobre os testes em artigos científicos e em sites da internet e tinha certeza de que seus desenhos “estavam dentro do esperado” e que passaria nos testes.

Em geral as pessoas trans atendidas combinam entre si o que podem ou não falar durante as consultas, o que podem ou não vestir e criam performances de convencimento de acordo com o que os profissionais esperam delas, tendo como parâmetro o que aprendem, em geral, com os próprios pares17 17 Borba (2014), ao problematizar em sua pesquisa de doutoramento alguns dos obstáculos discursivos para o cuidado integral e humanizado à saúde de pessoas trans no Processo Transexualizador no Brasil, contribuiu com importantes análises para o questionamento de uma política discursiva e essencialista, majoritariamente presente nas Unidades de Atenção Especializada, que patologiza e homogeneíza as transexualidades. .

Boa parte das pessoas que demandavam essa modalidade assistencial, obrigatoriamente, precisavam se submeter às normas institucionais e às imposições diagnósticas e se enquadrar nelas, sob pena de não serem consideradas transexuais verdadeiras. Para tanto, muitas adotavam uma performance condizente com as expectativas das equipes e com os critérios nosológicos que operaram, assim, verdadeiras cirurgias sem bisturis, isso ocorre quando se incentiva ou se inibe determinados comportamentos com o objetivo de adestrar a heterossexualidade e construí-la como algo natural. Essa concepção fundamentou os critérios diagnósticos presentes na Resolução do CFM de 1997 e, posteriormente, da Resolução CFM nº 1.652/200218 18 A Resolução CFM nº 1.652/2002 substituiu e atualizou, na época, a primeira resolução do CFM a tratar desse tema, que foi a Resolução nº 1.482/97. A novidade da Resolução de 2002 foi a decisão de ofertar, a título experimental, as cirurgias aos homens trans. Além disso, essa resolução de 2002 foi revogada pela resolução nº 1.955/2010 que, por sua vez, foi revogada pela resolução nº2.265/2019. No entanto, com o intuito de respeitar o recorte temporal e histórico (1997 a 2008) feito pelo presente artigo, tais resoluções posteriores a 2008 não foram mencionadas, mas estão disponíveis para consulta nos seguintes endereços eletrônicos:https:// sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2010/1955 e https://sistemas.cfm.org. br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2265 e a partir delas muitas pessoas trans, conscientemente ou não, passaram por processos de ortopetização, adotando comportamentos e atitudes que correspondiam aos critérios estipulados pelo saber/poder médico, uma vez que, atender performaticamente às demandas das equipes que lhes assistiam, era o que lhes restavam para alcançar as transformações

corporais pretendidas19 19 É importante assinalar, todavia, que algumas pessoas trans de fato acreditavam nos critérios diagnósticos, o que nos leva a pensar na forte incidência dos processos de medicalização da vida. Cf.: Caponi, Verdi, Brzozowski & Hellmann, 2010. Ver também: BORBA, 2014. .

Esses elementos, paulatinamente, foram provocando fissuras na lógica discursiva patologizadora, dando origem a uma maior diversidade na forma de compreender a transexualidade, para além das tradicionais concepções médicas. Além disso, do ponto de vista essencialmente político, a constituição e fortalecimento de uma militância trans, sobretudo a partir dos ENTLAIDS20 20 Trata-se do Encontro Nacional de Travestis e Liberados que Atuam na Prevenção da Aids - ENTLAIDS. Cf.: Carvalho, 2018; Simpson, 2019. , também contribuiu para uma maior ampliação e diversificação desse tema, tencionando um pouco esse espaço de saberes e práticas médicas.

A partir de entrevistas com alguns ativistas do movimento de travestis e transexuais, como Alexandre Peixe dos Santos21 21 Trata-se de um ativista de longa data, homem trans, que alcançou reconhecimento nacional em função de sua luta por reconhecimento e por direitos dos homens transexuais. Integra o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT). e Keila Simpson22 22 Travesti e histórica militante do movimento de travestis e transexuais. Tem importância fundamental na constituição da Política Nacional Integral de Saúde LGBT. Entre as muitas atividades nas quais se envolveu, foi presidenta do Conselho Nacional de Saúde e também atuou como liderança da Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA. , bem como a partir de entrevistas e de parte da produção teórica de outros sujeitos envolvidos com a temática da assistência às pessoas trans no Brasil (pesquisadoras como Flavia Teixeira, Daniela Murta, Tatiana Lionço), foi possível perceber que uma das características mais marcantes dessa atuação pioneira dos profissionais naquelas unidades de saúde parece ter sido o medicocentrismo, ou seja, o predomínio da autonomia dos médicos no estabelecimento da dinâmica assistencial, o personalismo das iniciativas institucionais e a patologização dos sujeitos atendidos. O saber e o poder médico davam a tônica da organização dos atendimentos em cada uma das instituições.

É necessário apontar que, de um modo geral, os atendimentos às pessoas trans, naqueles hospitais universitários, aconteciam com a ciência/anuência da direção das unidades, embora não houvesse maior envolvimento desses gestores na administração, organização ou viabilização de tais atendimentos, uma vez que era comum que a direção hospitalar compreendesse que as atividades dirigidas às pessoas trans eram projetos profissionais e científicos específicos sob responsabilidade exclusiva de determinados médicos e não uma diretriz assistencial da instituição.

Frequentemente os(as) médicos(as) responsáveis pelo atendimento às pessoas trans, dos referidos hospitais universitários, não contavam com o envolvimento e o apoio, sequer, das próprias equipes em que eram integrados, tendo que buscar parcerias fora delas. Essa particularidade pode estar associada à expressiva atomização das práticas médicas, especialmente dentro do hospital universitário.

Tal particularidade, que constitui uma característica dos HU’s, pode representar uma vantagem do ponto de vista da “independência técnico-científica”, mas, por outro lado, também pode reverberar em isolamento e solidão do(a) profissional, especialmente quando este não encontra entusiastas do mesmo projeto23 23 No caso da assistência a pessoas trans, o motivo mais frequente da ausência de entusiastas se encontra no fato da transexualidade ser compreendida como um tema polêmico, moralmente condenável e/ou estigmatizante do/a próprio/a profissional de saúde que com ele se envolve. . Daí decorre que esse profissional acaba tendo que enfrentar sozinho(a), ou com pouco apoio, as dificuldades próprias da construção do modelo assistencial.

Esses atendimentos pioneiros aconteciam nos hospitais universitários que ofereciam essa modalidade de serviço sem articulação com a rede assistencial, uma vez que inexistiam linhas de cuidados e fluxos de atendimentos para essa modalidade de atenção24 24 Em geral, a assistência à saúde voltada para esse público tinha relação com a política de AIDS. . Essa desarticulação e a ausência de fluxos assistenciais embrionários reforçavam o isolamento institucional das unidades que ofereciam atendimento às demandas cirúrgicas desse público.

As pessoas trans ao tomarem conhecimento, através de suas próprias redes informais de relacionamento, de que determinadas unidades de saúde faziam tal atendimento, buscavam diretamente o serviço, sem qualquer tipo de encaminhamento, sendo muitas vezes o hospital universitário a primeira porta de entrada para a realização de algum tipo de cuidado que não fosse relacionado ao HIV/ AIDS. Assim, tais usuários(as) muitas vezes chegavam à atenção terciária sem nunca terem passado pela atenção primária ou secundária do SUS. Essa é uma realidade bastante presente ainda hoje em muitos contextos brasileiros.

Tal realidade não mudou, nem mesmo após a institucionalização pelo MS dos atendimentos às pessoas trans ocorrida em 2008. O fato é que até muito recentemente, essas equipes que se colocavam dispostas à realização das cirurgias de transgenitalização acabavam tendo que absorver e dar conta das múltiplas demandas e carências assistenciais que essas pessoas traziam. E, ao findarem os procedimentos de modificação corporal, essas pessoas, que nunca tinham sido recebidas pela atenção primária/secundária, não tinham para onde retornar para receberem os cuidados básicos e não relacionados com às transformações corporais, sobretudo porque esses lugares não estavam abertos e preparados para o atendimento de pessoas trans.

Esse despreparo se expressava no fato de que grande parte dos profissionais que compunham as redes primária/secundária não respeitavam o uso do nome social25 25 O nome social se refere à designação pela qual a pessoa trans se identifica e é socialmente reconhecida. Cf. Jesus, 2012. e as demais reivindicações por reconhecimento da diversidade sexual e/ou de gênero dessas pessoas, como também por acreditarem, por exemplo, que até a diarreia ou a unha encravada de uma pessoa trans devia ser de competência das unidades de saúde especializadas no Processo Transexualizador.

Tal contexto fez com que muitos(as) profissionais do Processo Transexualizador também acreditassem que as pessoas trans deveriam se constituir em “pacientes eternos”, sem possibilidade de alta, visto que não se vislumbrava, após as cirurgias, a possibilidade de cuidados em saúde adequados a elas no SUS como um todo.

É importante assinalar que não refutamos aqui a necessidade de que uma pessoa trans mantenha seu vínculo com a instituição onde passou pelo Processo Transexualizador, a título de possíveis revisões e acompanhamentos assistenciais diversos que se façam necessários, mas que isso não se configure numa “resposta eterna” para a necessidade da integralidade do cuidado, uma vez que é papel dos demais níveis do Sistema Único de Saúde oferecer, a qualquer cidadão, a atenção e o acesso a um cuidado integral, conforme preconiza a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/90BRASIL. 1990. Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. República Federativa do Brasil, DF, 19 de setembro de 1990. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm Acesso: 24 de outubro de 2021.
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). Essa descrição dos primórdios dos atendimentos voltados às pessoas trans, antes mesmo de 2008, é importante porque ajuda na compreensão das características que perduraram pós institucionalização do atendimento, e que permanecem até hoje. Tais características irão interagir com as novas determinações postas em 2008 e no posterior processo de revisão da Portaria, intervalo de tempo em que outros sujeitos políticos entraram em cena, culminando com a publicação da Portaria Nº 2803 de 2013BRASIL. 2013. Portaria 2.803 de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o processo transexualizador no SUS. Ministério da Saúde, Brasília, DF, 19 de novembro de 2013. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html Acesso: 24 de outubro de 2021.
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pelo MS. Assim, é importante considerar que, independentemente de qual seja a direção da assistência − se de baixo para cima até 2008, ou se de cima para baixo, a partir de 200826 26 Ao me referir a direção “de baixo pra cima” estou abordando os serviços que começaram assistência às pessoas trans nos diferentes estados a partir das quatro universidades que iniciaram o atendimento antes de 2008. Quando me refiro à direção “de cima pra baixo” estou falando da tentativa de organização da assistência “pelo alto”, via Ministério da Saúde, a partir de 2008. − nenhuma dessas direções considerou inicialmente o envolvimento da atenção primária em saúde na oferta e na organização desse modelo assistencial.

É importante ressaltar, ainda, que o fato desse Programa ter se iniciado “de baixo para cima”, no âmbito dos hospitais universitários, que têm uma histórica desintegração com a rede mais ampla do SUS e onde suas preocupações se dirigem mais para a pesquisa e inovação do que para a assistência, possa explicar, em parte, a desconsideração da atenção primária como partícipe e parceira na oferta desse atendimento. Além disso, para que seja possível compreender o direcionamento de “cima para baixo”, implementado na organização desse programa, é importante considerar que esse não foi um modelo assistencial inicialmente idealizado como um programa do SUS, mas literalmente “arrancado a golpes de Portarias27 27 Goulart (2001) faz observações muito contundentes ao se referir a uma dada característica presente no SUS onde se observa um formalismo, um apego às normas regulatórias sem que, necessariamente, haja construção histórica das condições materiais que permitam a existência de determinadas ações políticas. Cf.: Goulart, 2001. ” a partir de pressão de determinados sujeitos sociais e do processo judicial iniciado em Porto Alegre28 28 Trata-se do processo de Apelação Civil nº 2001.71.00.026279-9/RS, iniciado em 2001 no Rio Grande do Sul e que foi decisivo para a institucionalização do Processo Transexualizador no SUS. .

Considerações Finais

Ao longo desse estudo foi possível compreender alguns dos muitos desafios entranhados no processo de engendramento do Processo Transexualizador no Brasil. Um desses desafios repousa no fato desse programa não ter sido efetivamen te construído para se transformar no eixo de uma política pública. Ainda que os serviços pré-existentes que ofertavam, de maneira precária, a assistência nos hospitais universitários buscassem formas de serem reconhecidos e de terem suas ações legitimadas e estruturadas nacionalmente pelo MS, o que se sobressaiu nas respostas públicas, apesar de todo o processo coletivo de luta pela construção da política, foi a institucionalização e nacionalização da precariedade que já existia, isoladamente, em cada um daqueles serviços.

É preciso lembrar que o Processo Transexualizador não está fora do SUS, e, portanto, é alvo das mesmas ações - de desestruturação, desfinanciamento e deslegitimação - pelas quais passa a política de saúde desde as suas origens, sendo a expressão da crise estrutural capitalista, que desde os anos 70/80 vem orientando as respostas do Estado em sua busca por pavimentar as formas e estratégias de extração de mais valor em favor do capital.

Assim, pode-se dizer que os desafios do Processo Transexualizador são os desafios do SUS, sobretudo na perspectiva do reconhecimento de que o conjunto de normativas, princípios e diretrizes, apesar de importantes, não são suficientes para a efetivação dessa política, havendo necessidade de construção coletiva de espaços de luta em defesa do SUS, para além das normativas.

Entretanto, é inegável que a política que temos hoje foi constituída originalmente entre 1997 e 2008 a partir da realidade histórica que foi acontecendo no interior das diferentes experiências de atendimento dos hospitais universitários autorizados a ofertarem essa assistência a partir da Resolução do CFM, em 1997. Foi a movimentação típica dessas diferentes realidades em seus cotidianos prático-interventivos, junto com os desafios surgidos sistematicamente por meio e através da assistência prestada, que fez brotar as sementes que posteriormente culminaram na primeira Portaria ministerial de 2008. É nesse sentido que afirmo que o cuidado assistencial a pessoas trans surgiu de “baixo para cima”. Como já assinalado aqui, esse “de baixo”, no entanto, não significou a participação da atenção primária nem a consideração da sua necessidade, mas tão somente as unidades de ensino que prestavam a assistência.

Os desafios surgidos no cotidiano prático dos hospitais universitários diziam respeito, sobretudo, à capacidade resolutiva das equipes na oferta da assistência, tendo em vista que o atendimento se iniciava e se encerrava dentro dessas unidades. Não havia rede de suporte, não havia capacidade de resposta adequada às demandas que cresciam paulatinamente, não havia recursos financeiros para a realização das cirurgias, que competiam com os recursos destinados aos demais procedimentos realizados pelas instituições.

Por outro lado, havia questionamentos internos e externos acerca da legitimidade de tais atendimentos motivados pela transfobia, havia falta de preparo técnico das equipes que prestavam a assistência, havia poucos médicos(as) habilitados(as) a fazerem as cirurgias, havia despreparo das próprias instituições na adoção de protocolos cotidianos necessários para um atendimento que fosse destituído, ao máximo, de práticas transfóbicas, sobretudo relacionadas à transfobia institucional que se expressava por meio do desrespeito à identidade de gênero manifesta na recusa de aceitação ao nome social, na obstrução ao uso do banheiro em conformidade com a auto enunciação dos(as) usuários(as), bem como na sua não alocação em enfermarias generificadas com base no mesmo critério.

Tornando ainda mais complexo o cenário daqueles primórdios, havia uma gradativa pressão das pessoas trans que começavam a se organizar politicamente, demandando reconhecimento, ampliação da assistência e melhorias do atendimento. Sobretudo, havia o surgimento de uma lenta, mas progressiva, diversidade nas equipes de saúde que prestavam a assistência, notadamente na equipe vinculada ao Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, que acabou por contribuir para a germinação do questionamento sobre a patologização da transexualidade e sobre a cirurgia como protagonista da assistência ofertada a esse público29 29 O Hospital Universitário da UFRJ foi um dos pioneiros na assistência às pessoas trans no estado do Rio de Janeiro no período que antecedeu a institucionalização do Processo Transexualizador como uma política do SUS. A presença da psicóloga, professora e pesquisadora Márcia Arán, que compunha a equipe técnica do programa da UFRJ desempenhou um papel importante na trajetória do Processo Transexualizador no Brasil, conforme se verá ao longo deste estudo. .

Referências bibliográficas

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  • BRASIL. 2002. Resolução 1.652 de 2 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo no Brasil e revoga a resolução 1.482 de 1997. Conselho Federal de Medicina, Brasília, DF, 2 de dezembro de 2002. Disponível em: Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/ normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1652 Acesso: 24 de outubro de 2021.
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  • CONSULTA PROCESSUAL UNIFICADA. 2001. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível Nº 2001.71.00.026279-9/RS Relator: Juiz Federal Roger Raupp Rios. Apelante: Ministério Público Federal. Apelado: União Federal. Advogado: Luís Antônio Alcoba de Freitas. VOTO: “O pedido na Ação Civil Pública e as questões jurídicas envolvidas”. Disponível em: https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtValor=200171000262799&selOrigem=RS&chkMostrarBaixados=1&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=S&hdnRefId=834205127820ca88645f947960c76650&txtPalavraGerada=XJz B&txtChave
    » https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtValor=200171000262799&selOrigem=RS&chkMostrarBaixados=1&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=S&hdnRefId=834205127820ca88645f947960c76650&txtPalavraGerada=XJz B&txtChave
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Matérias Jornalísticas

  • 1
    A Resolução CFM nº 1.482 /97 normatizou e legitimou as cirurgias de transgenitalização tirando esse procedimento da clandestinidade sob a justificativa que essa era a única forma de tratamento para o “transexualismo”, entendido aqui como uma doença.
  • 2
    Roberto Farina foi um médico brasileiro e professor de cirurgia plástica na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp). Ficou conhecido na década de 1970 por, supostamente, ter sido o precursor das cirurgias de transgenitalização no Brasil. Waldirene Nogueira, primeira mulher trans operada no país teve sua cirurgia realizada por este profissional em 1971, o que resultou na cassação do registro profissional de Roberto Farina nos anos subsequentes. Cf.: Rossi, A. “Monstro, prostituta, bichinha”: como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil. BBC Brasil, São Paulo, 2018Rossi, A. “Monstro, prostituta, bichinha”: como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil. BBC Brasil, São Paulo, 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43561187
    https://www.bbc.com/portuguese/geral-435...
    .
  • 3
    Essa identificação se deu por meio de visita técnica ao Hospital Universitário da UFES, ocorrida em 2018, quando tomei conhecimento que a instituição fazia atendimentos às pessoas trans desde 1998. Em relação à UFPE, tomei conhecimento, também na pesquisa de campo para realização de Tese de Doutorado, que o mesmo iniciou os atendimentos às pessoas trans no ano de 2000.
  • 4
    Dorina Rosetta Giannetta Epps Quaglia, médica endocrinologista e psicanalista, professora da. Faculdade de Medicina da USP, fundadora do núcleo de estudos de intersexo.
  • 5
    Cf.: “Ufes possui técnica inédita no mundo para cirurgia de mudança de sexo” reportagem publicada na página oficial da UFES em 3 de maio de 2013“Ufes possui técnica inédita no mundo para cirurgia de mudança de sexo” reportagem publicada na página oficial da UFES em 3 de Maio de 2013. http://www.ufes.br/conteudo/ufes-possui-t%C3%A9cnica-in%C3%A9dita-no-mundo-para-cirurgia-de-mudan%C3%A7a-de-sexo
    http://www.ufes.br/conteudo/ufes-possui-...
    . http://www.ufes.br/conteudo/ufes-possui-t%C3%A9cnica-in%C3%A9dita-no-mundo-para-cirurgia-de-mudan%C3%A7a-de-sexo
  • 6
    Cf.: “Hospital Universitário inaugura Ambulatório de Diversidade de Gênero no ES” reportagem publicada na página oficial da UFES em 9 de junho de 2018. http://www.ufes.br/ conteudo/hospital-universit%C3%A1rio-inaugura-ambulat%C3%B3rio-de-diversidade-de-g%C3%AAnero-no-es.
  • 7
    A esse respeito, cf.: G1 “Hospital das Clínicas é habilitado para atendimento a transexuais em PE”. 14/010/2014“Hospital das Clínicas é habilitado para atendimento a transexuais em PE”. 14/10/2014. G1. Disponível em: http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2014/10/hospital-das-clinicas-e-habilitado-para-atendimento-transexuais-em-pe.html
    http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2...
    . Além de matérias jornalísticas, foi possível acompanhar as discussões envolvendo esse serviço por meio de reuniões no MS que eu acompanhava na condição de gestora ambulatorial da equipe do processo transexualizador do HUPE/UERJ.
  • 8
    Os relatos de pessoas trans denunciado mal atendimento e erro médico são públicos, notórios e recorrentes, podendo ser ilustrados por exemplo, por meio de publicações jornalísticas que dão conta da punição por perda de registro do médico Jalma Jurado, o encerramento do primeiro programa da UFPE em 2009, registrado por Tenório e Livadias, 2017TENÓRIO, Leonardo F. P; VIEIRA, Luciana. L.F; LIVADIAS, Suzana. K. (2017). “Da luta à execução do Processo Transexualizador: experiência no Hospital das Clínicas da UFPE”. In: OLIVEIRA, A. D. de; PINTO, C. R. B. (org.). Transpolíticas Públicas. 1ª ed. Campinas: Papel Social. 244 p., bem como alguns relatos contidos no livro de Arilha, Lapa & Pisaneschi, 2010ARILHA, Margareth; LAPA, Thaís de Souza; PISANESCHI, Tatiane Crenn. 2010. Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. 1ª ed. São Paulo: Oficina Editorial. 188 p..
  • 9
    As Portarias GM/MS nº 1.707, de 18 de agosto de 2008 e 457 de 19 de agosto de 2008, instituíram e definiram as diretrizes nacionais para o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde permitindo que as pessoas transexuais tivessem acesso a cirurgias de redesignação sexual pelo SUS.
  • 10
    A Portaria GM/MS nº 2803 de novembro de 2013 substituiu, alterou e ampliou as ações do Processo Transexualizador no SUS.
  • 11
    Alguns/alguns desses/as profissionais tinham compreensões distintas do significado das modificações corporais reivindicadas. Alguns/algumas tinham compreensões mais patologizantes da transexualidade outros menos. Por isso, para alguns/algumas, a autorreferência da identidade tinha menor importância do que o fato de se enquadrarem em estritos critérios diagnósticos psiquiátricos. A respeito desses critérios, cf: Bento, 2008BENTO, B. (30.08.2006). Dispositivo da transexualidade [online]. Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ). Disponível em: Disponível em: http://www.clam.org.br/destaque/conteudo.asp?infoid=1558&sid=43 [Acesso em 24.10.2021].
    http://www.clam.org.br/destaque/conteudo...
    ; Murta, 2007MURTA, D. 2007. A psiquiatrização da transexualidade: análise dos efeitos do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero nas práticas de saúde. Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Arán, 2006ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. (2009) “Transexualidade e saúde pública no Brasil”. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Agosto de 2009. Vol. 14, nº 4, p. 1141-1149..
  • 12
    Trata-se de um cirurgião plástico brasileiro, PhD em Medicina pela USP, atualmente com 84 anos. Tornou-se nacionalmente conhecido por ser o pioneiro em cirurgias de transgenitalização consideradas de qualidade no Brasil para mulheres transexuais. Em 2014, o colegiado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) decidiu que Jalma Jurado não poderia mais operar em função de processos que envolvem denúncias de lesão corporal, mutilação, exercício irregular da profissão e homicídio. Ver: G1 Globo.com (30 de junho de 2020“Justiça condena médico por morte de paciente após cirurgia plástica em 2014. reportagem publicada na página do G1.com. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2019/12/12/justica-condena-medico-por-morte-de-paciente-apos-cirurgia-plastica-em-2014.ghtml
    https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai...
    ).
  • 13
    O protagonismo das pessoas trans na luta pela construção de um modelo assistencial que contemple as necessidades gerais e específicas da população travesti e transexual tem sido expresso na produção teórica/política de algumas/alguns ativistas e pesquisadoras/res trans, como Keila Simpson, Guilherme Almeida, Fernanda Benvenutty. Cf.: Arilha, 2010; Sena e Souto, 2015.
  • 14
    Daniela Murta discorre sobre o processo histórico que culminou nesta Resolução (Murta, 2007, p.48-52).
  • 15
    A compreensão da transexualidade como uma doença psiquiatra, fundamentada nos manuais e códigos internacionais de classificação de diagnósticos tem sido duramente questionada e criticada por autores como: Arán, 2006; Murta, 2007; Bento, 2008; Lionço,2009LIONÇO, Tatiana. (19.01.2009). Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios [online]. Physis Revista de Saúde Coletiva. Vol 19, nº1, p. 43-63. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-73312009000100004&script=sci_abstract&tlng=pt [Acesso em 24.10.2021]
    https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01...
    ; Teixeira, 2009TEIXEIRA, Flávia do B. (2017). “Processo Transexualizador no SUS: um campo político e de práticas em construção”. In: UZIEL, A. P.; GUILHON, F. (org). Transdiversidades: práticas e diálogos em trânsito. 1ª ed. Rio de Janeiro: EDUERJ. 504 p., entre outros.
  • 16
    Em geral essas equipes eram constituídas por urologistas, psiquiatras, endocrinologistas, ginecologistas, cirurgiões plásticos, psicólogos e assistentes sociais. Dada a ausência de discussão e normatização em âmbito nacional para esse tipo de assistência, essas duas últimas categorias profissionais atuavam sem normativas específicas e sem que seus conselhos profissionais exercessem maiores interferências sobre sua atuação, o que dava margem - se estes profissionais não fossem ética e tecnicamente qualificados - a balizarem suas intervenções pelas diretrizes advindas das Resoluções do CFM e não de suas categorias e saberes específicos.
  • 17
    Borba (2014BORBA, Rodrigo. 2014. “Sobre os obstáculos discursivos para a atenção integral e humanizada à saúde de pessoas transexuais”. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana. Agosto de 2014. Vol.1, nº 17, p. 66-97.), ao problematizar em sua pesquisa de doutoramento alguns dos obstáculos discursivos para o cuidado integral e humanizado à saúde de pessoas trans no Processo Transexualizador no Brasil, contribuiu com importantes análises para o questionamento de uma política discursiva e essencialista, majoritariamente presente nas Unidades de Atenção Especializada, que patologiza e homogeneíza as transexualidades.
  • 18
    A Resolução CFM nº 1.652/2002BRASIL. 2002. Resolução 1.652 de 2 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo no Brasil e revoga a resolução 1.482 de 1997. Conselho Federal de Medicina, Brasília, DF, 2 de dezembro de 2002. Disponível em: Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/ normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1652 Acesso: 24 de outubro de 2021.
    https://sistemas.cfm.org.br/ normas/visu...
    substituiu e atualizou, na época, a primeira resolução do CFM a tratar desse tema, que foi a Resolução nº 1.482/97. A novidade da Resolução de 2002 foi a decisão de ofertar, a título experimental, as cirurgias aos homens trans. Além disso, essa resolução de 2002 foi revogada pela resolução nº 1.955/2010 que, por sua vez, foi revogada pela resolução nº2.265/2019. No entanto, com o intuito de respeitar o recorte temporal e histórico (1997 a 2008) feito pelo presente artigo, tais resoluções posteriores a 2008 não foram mencionadas, mas estão disponíveis para consultaCONSULTA PROCESSUAL UNIFICADA. 2001. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível Nº 2001.71.00.026279-9/RS Relator: Juiz Federal Roger Raupp Rios. Apelante: Ministério Público Federal. Apelado: União Federal. Advogado: Luís Antônio Alcoba de Freitas. VOTO: “O pedido na Ação Civil Pública e as questões jurídicas envolvidas”. Disponível em: https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtValor=200171000262799&selOrigem=RS&chkMostrarBaixados=1&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=S&hdnRefId=834205127820ca88645f947960c76650&txtPalavraGerada=XJz B&txtChave
    https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlado...
    nos seguintes endereços eletrônicos:https:// sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2010/1955 e https://sistemas.cfm.org. br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2265
  • 19
    É importante assinalar, todavia, que algumas pessoas trans de fato acreditavam nos critérios diagnósticos, o que nos leva a pensar na forte incidência dos processos de medicalização da vida. Cf.: Caponi, Verdi, Brzozowski & Hellmann, 2010. Ver também: BORBA, 2014.
  • 20
    Trata-se do Encontro Nacional de Travestis e Liberados que Atuam na Prevenção da Aids - ENTLAIDS. Cf.: Carvalho, 2018CARVALHO, M. (05.06.2018). “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas [online]. Cadernos Pagu, nº 52, p. 33-57. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S0104-83332018000100501&script=sci_abstract&tlng=pt [Acesso em 24.10.2021]
    https://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S0...
    ; Simpson, 2019SIMPSON, K.; SALES, A. (30.01.2018). Cartografias Travestis perspectivas metodológicas de guerrilhas nos diálogos com o movimento social organizado [online]. REBEH - Revista Brasileira de Estudos da Homocultura (UNILAB). Vol. 1, nº 1, p. 25-44.. Disponível em: Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/issue/view/551 [Acesso em 24.10.2021]
    https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
    .
  • 21
    Trata-se de um ativista de longa data, homem trans, que alcançou reconhecimento nacional em função de sua luta por reconhecimento e por direitos dos homens transexuais. Integra o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT).
  • 22
    Travesti e histórica militante do movimento de travestis e transexuais. Tem importância fundamental na constituição da Política Nacional Integral de Saúde LGBT. Entre as muitas atividades nas quais se envolveu, foi presidenta do Conselho Nacional de Saúde e também atuou como liderança da Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA.
  • 23
    No caso da assistência a pessoas trans, o motivo mais frequente da ausência de entusiastas se encontra no fato da transexualidade ser compreendida como um tema polêmico, moralmente condenável e/ou estigmatizante do/a próprio/a profissional de saúde que com ele se envolve.
  • 24
    Em geral, a assistência à saúde voltada para esse público tinha relação com a política de AIDS.
  • 25
    O nome social se refere à designação pela qual a pessoa trans se identifica e é socialmente reconhecida. Cf. Jesus, 2012.
  • 26
    Ao me referir a direção “de baixo pra cima” estou abordando os serviços que começaram assistência às pessoas trans nos diferentes estados a partir das quatro universidades que iniciaram o atendimento antes de 2008. Quando me refiro à direção “de cima pra baixo” estou falando da tentativa de organização da assistência “pelo alto”, via Ministério da Saúde, a partir de 2008.
  • 27
    Goulart (2001GOULART DE ANDRADE, Flávio A. (28.01.2001). Esculpindo o SUS a golpes de portaria... - considerações sobre o processo de formulação das NOBs [online]. Revista Ciências e Saúde Coletiva. Outubro de 2001. Vol.6, nº 2, p. 292-318. Disponível em: Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/630/63060203.pdf . [Acesso em 23.10.21]
    https://www.redalyc.org/pdf/630/63060203...
    ) faz observações muito contundentes ao se referir a uma dada característica presente no SUS onde se observa um formalismo, um apego às normas regulatórias sem que, necessariamente, haja construção histórica das condições materiais que permitam a existência de determinadas ações políticas. Cf.: Goulart, 2001.
  • 28
    Trata-se do processo de Apelação Civil nº 2001.71.00.026279-9/RS, iniciado em 2001 no Rio Grande do Sul e que foi decisivo para a institucionalização do Processo Transexualizador no SUS.
  • 29
    O Hospital Universitário da UFRJ foi um dos pioneiros na assistência às pessoas trans no estado do Rio de Janeiro no período que antecedeu a institucionalização do Processo Transexualizador como uma política do SUS. A presença da psicóloga, professora e pesquisadora Márcia Arán, que compunha a equipe técnica do programa da UFRJ desempenhou um papel importante na trajetória do Processo Transexualizador no Brasil, conforme se verá ao longo deste estudo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2021
  • Aceito
    02 Out 2021
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