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EDITORIAL

Considerados em conjunto, os artigos publicados neste número evocam simultaneamente variadíssimas cenas, projetadas sobre o imenso pano de fundo que constitui o contexto sociopolítico latino-americano contemporâneo. Em tais cenas, naquelas em que os investigadores participam como observadores e/ou coprotagonistas, diferentes atores se comprometem, negociando os sentidos de suas próprias práticas e de outras, vistas como "alheias". Enquanto parlamentares discutem os limites da autodeterminação sexo-genérica dos cidadãos argentinos, integrantes do Supremo Tribunal Federal do Brasil debatem o estatuto das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo; enquanto agentes estatais - conjuntamente (ou não) com investigadores e ativistas - realizam tarefas de controle sanitário de trabalhadoras sexuais e de prevenção de DST-AIDS, de promoção das condições de trabalho de mulheres trans, de amparo a mulheres que transitam ou são levadas para fora de suas fronteiras nacionais em pequenas ou grandes cidades de México, Colômbia ou Brasil, ativistas reúnem as experiências de discriminação e homofobia sofridas por homens mexicanos não heterossexuais que vivem em distintas regiões metropolitanas desse país.

Entre as análises que abordam estes cenários a partir de diversos enfoques, poderia delinear-se uma primeira constelação de discussões que giram em torno de como legislações e decisões judiciais (re)produzem e deslocam sentidos a respeito das relações sexo-genéricas. O artigo de Efrem Filho trata das retóricas dos integrantes do Supremo Tribunal Federal brasileiro inseridas no reconhecimento do estatuto conjugal para as uniões "homoafetivas", abordando o triplo processo de dessexualização, afetivização e privatização da homossexualidade. Em "Pode a <traficada> falar?", Venson e Pedro explicitam a relação entre a definição do Código Penal brasileiro para o tráfico de pessoas e uma renovada - e cada vez mais forte em nossa região - tendência abolicionista da prostituição, e mostram como os pressupostos de debilidade e passividade femininas, presentes na vitimização das "traficadas", estariam sendo reforçados por essa codificação. Por outro lado, o trabalho de Farji Neer sobre o debate parlamentar da Lei de Identidade de Gênero argentina expõe que os argumentos dos legisladores não desafiariam os dualismos nem as ficções ontológicas naturalistas das categorias homem/mulher, registrando a reivindicação desse direito em termos de reparação a vítimas de sofrimentos. Esta lei pode ser considerada, ao mesmo tempo, como um divisor de águas na regulação estatal dos corpos, já que não exige diagnósticos patologizantes como requisito para o reconhecimento legal da identidade autopercebida. O artigo do Rodrigues e Heilborn retoma - em outro registro - o problema da essencialização do binarismo feminino/masculino, a normatividade do gênero e a autonomia dos sujeitos, pondo em diálogo a desconstrução da distinção sexo/gênero proposta por Judith Butler com as imagens o filme A pele que habito, de Pedro Almodôvar.

Um segundo conjunto de questões é demarcado nos textos do Parrini, Amuchástegui e Garibi, Urrea e La Furcia, e Boivin. Seja a partir de um trabalho de campo com trabalhadoras sexuais em um município da costa ocidental mexicana, seja com investigações dedicadas a mulheres trans da cidade do Cali, Colômbia, seja através de relatos recolhidos em diagnósticos participativos realizados por uma ONG em áreas metropolitanas do México, os autores constroem reveladores mapas sociais - espaciais e simbólicos - de discriminação e violências vividas pelos sujeitos ali circunscritos e em tensão com os marcos normativo-regulamentares e as intervenções governamentais. Estes artigos chamam a atenção para como os sujeitos refazem simbolicamente, no espaço urbano e corporal, as posições de vulnerabilidade social produzidas no cruzamento de distintos marcadores sociais da diferença (raça, idade, estrangeiridade, gênero e sexualidade).

Em suma, em um horizonte de complexos processos de vitimização, politização e "naturalização" de diferentes práticas, desejos e identidades sexo-genéricas - até hoje vistas como minoritárias, marginais e condenáveis - os artigos deste número permitem pensar as profundas ambiguidades que parecem ser o preço a pagar (por legisladores, juízes, pesquisadores, ativistas e, inclusive, pelos próprios "sofredores") nas lutas travadas pelo reconhecimento social e a afirmação de direitos em nossos países.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2014
  • Data do Fascículo
    Abr 2014
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