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Espaço e sociabilidades: entre o beco e o gueto

Space and sociabilities: between the Beco and the ghetto

Espacio y sociabilidades: entre el Beco y el gueto

Resumo:

Este artigo reflete sobre o Beco dos Artistas, lugar localizado em Salvador, capital do estado da Bahia. O Beco dos Artistas é um local onde atualmente encontram-se quatro bares, e que se caracteriza por ser um espaço de sociabilidade GLS. Para muitos, é um gueto gay. No entanto, o Beco dos Artistas nem sempre foi considerado um lugar para homossexuais. No final dos anos setenta e início dos anos oitenta, manteve um vínculo muito forte com as classes artísticas e intelectuais de Salvador, e seu nome deriva disso. Meu propósito é refletir sobre a mudança de significados atribuídos ao Beco dos Artistas ao longo de sua história em termos de identidade e considerar como marcadores sociais como raça, classe e sexualidade contribuíram para a estigmatização atual do lugar. Os dados aqui analisados ​​foram obtidos através de observação etnográfica realizada de 2008 a 2010.

Palavras-chave:
Beco dos Artistas; espaço; identidade; sexualidade; estigma; Brasil

Abstract:

This article reflects about the Beco dos Artistas (Artists’ Alley), a place located in Salvador, capital city of the state of Bahia, Brazil. The Beco dos Artistas is an alley where we can find four bars, and that is characterized by being a space of GLS sociability. For many, it is a gay ghetto. However, the Beco dos Artistas was not always considered a place for homosexuals. In late seventies and early eighties, it kept a very strong link with Salvador´s artistic and intellectual classes, deriving its name from them. My purpose is to reflect about the changing meanings accorded to the Beco dos Artistas throughout its history in terms of identity, and to consider how social markers as race, class and sexuality contributed to the present stigmatization of the place. The data analyzed here were obtained through ethnographic observation carried out from 2008 to 2010.

Keywords:
Beco dos Artistas; space; identity; sexuality; estigma; Brazil

Resumen:

El presente artículo aborda el Beco dos Artistas (Callejón de los Artistas), localizado en Salvador, capital del estado de Bahía (Brasil). El Beco es un callejón que tiene cuatro bares y que se caracteriza por ser un espacio de sociabilidad GLS, para muchos, un “gueto gay”. Sin embargo, no siempre el Beco fue considerado un lugar para homosexuales. Inicialmente, mantenía una relación muy fuerte con la clase artística e intelectual de Salvador, de donde se origina su nombre. Mi objetivo en este artículo es reflexionar sobre los cambios que el significado del Beco sufrió a lo largo de su historia en términos de identidad, pensando de qué modo marcadores sociales como raza, clase y sexualidad contribuyen para la actual estigmatización del lugar. Los datos analizados fueron obtenidos a través de observación etnográfica realizada entre 2008 y 2010.

Palabras-clave:
sociabilidad; espacio; identidad; sexualidad; estigma; Brasil

Introdução

Foco do presente artigo, o Beco dos Artistas se localiza em Salvador, capital do estado da Bahia, cidade cujo tecido urbano é marcado por profundas desigualdades sociais. O contraste arquitetônico entre os suntuosos edifícios situados em bairros mais nobres da cidade e as inúmeras favelas, localizadas em sua periferia, na orla marítima ou em sua região central, torna explícita tal desigualdade. A cidade de Salvador sofre também com problemas básicos, como saúde e educação precárias e altos índices de trabalho informal, desemprego e violência. Esta última se expressa em várias modalidades, desde aquela que se origina da abissal distância entre as diferentes classes sociais até a que é fruto do preconceito racial e da homofobia. Apesar de a maior parte da população de Salvador ser negra, o índice de violência contra essa população é marcante. Por vezes, as questões raciais se encontram com as questões de classe - a pobreza em Salvador tem cor - o que torna a população negra da cidade extremamente vulnerável. Não à toa, o índice de mortes violentas é maior entre a juventude negra.1 1 Para maiores informações ver: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/11/homicidio-de-jovens-negros-cresce-cada-ano-na-ba-impunidade-permite.html. Geralmente tais mortes ocorrem tanto por disputas de gangues envolvidas com o tráfico quanto pela ação policial, que vê nos jovens negros uma ameaça em potencial. Além disso, apesar de Salvador ser considerada a terra do carnaval, cidade aberta a diferentes expressões de gênero e sexualidade, os dados do Grupo Gay da Bahia (GGB)2 2 O Grupo Gay da Bahia é a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil. Fundado em 1980, registrou-se como sociedade civil sem fins lucrativos em 1983, sendo declarado de utilidade pública municipal em 1987. Para maiores informações sobre violência contra homossexuais no estado da Bahia, ver o relatório de 2015 produzido pelo GGB e disponível em: https://grupogaydabahia.com.br/2016/01/28/assassinato-de-lgbt-no-brasil-relatorio-2015/ vêm demonstrando que a capital da Bahia ainda é um lugar extremamente violento e intolerante com a diversidade sexual e de gênero.

Nesse cenário político e urbano, o Beco dos Artistas, como é conhecida a Av. Cerqueira Lima, é uma espécie de ruela com quatro bares - o Green Bar, o Bar de Ciro, o Bar Cultural e o Camarim.3 3 Todos os nomes de estabelecimentos comerciais citados neste artigo são fictícios. Uma das extremidades desta ruela dá para a avenida principal do Bairro Garcia, a Av. Leovigildo Filgueiras, e a outra, sem saída, é ocupada por uma comunidade de moradores evangélicos. Entre a entrada do Beco e seu fim (a comunidade de moradores evangélicos) se formou uma espécie de beco que, atualmente, é um lugar de sociabilidade GLS.4 4 Opto pela sigla GLS e não LGBT por três motivos. Primeiro, pelo fato de esta sigla fazer referência a espaços de consumo voltado para um público majoritariamente homossexual, como é o caso do Beco dos Artistas, enquanto a sigla LGBT tem caráter mais político, ligado à afirmação de identidades dentro dos movimentos sociais. Segundo, porque os próprios frequentadores classificam o Beco dos Artistas como um “lugar GLS”. E, por fim, porque diante da necessidade de nominar, optei por uma sigla que, a meu ver, recorre menos a um esforço de categorização precisa dos sujeitos.

Entre os outros lugares de sociabilidade GLS em Salvador, o Beco apresenta características singulares. Há, por exemplo, um lugar chamado Beco da Off, que não é exatamente um beco, mas uma pequena rua que se localiza na Barra, um bairro de classe média e alta da cidade. Nesta rua existe uma boate chamada OFF, em cuja porta muitos gays, lésbicas e bissexuais se concentram antes de entrar. Essa boate é majoritariamente frequentada por pessoas de classe média e alta. Com o mesmo perfil da OFF, existe ainda a San Sebastian, uma boate que se localiza no bairro do Rio Vermelho, conhecido como o mais boêmio bairro de Salvador. Há também o bar Âncora do Marujo, um espaço de apresentação de travestis e transformistas, situado na Av. Carlos Gomes e frequentado por um público mais popular. Além do Âncora, dirigida ao mesmo público, temos ainda a boate Tropical, que fica no popular bairro 2 de Julho. A Tropical tem um perfil que mais se aproxima daquele do Beco dos Artistas. Muitos dos frequentadores do Beco saem de casa por volta das 8 horas da noite e vão para o Beco para o que eles chamam de “esquente” e, cerca de 1 hora da madrugada, vão para a Tropical, onde terminam a noite. Muitos frequentadores usam o Beco como lugar de passagem e é por isso que nos finais de semana os bares do Beco nem sempre funcionam depois deste horário.

Majoritariamente frequentado por jovens gays negros e de baixo poder aquisitivo, o Beco se diferencia de todos os outros lugares de sociabilidade GLS de Salvador tanto pelo tipo de público que o frequenta quanto por sua configuração espacial. Apesar das semelhanças com a boate Tropical no que diz respeito ao público, grande parte dos frequentadores do Beco não tem condições de pagar para entrar em uma boate, ainda que o estabelecimento cobre um preço mais acessível. Além disso, a localização do Beco, sua composição (ruela, bares, comunidade de moradores evangélicos como vizinhança) e dinâmica de funcionamento o diferenciam da boate Tropical.

No entanto, nem sempre o Beco dos Artistas foi um lugar de sociabilidade homossexual. Nas suas origens, o Beco tinha bares e restaurantes e que, por estar próximo de vários teatros, atraía um público ligado à classe artística e intelectual de Salvador. Esse público e suas experiências vividas povoaram de tal modo o lugar que ele, a partir daí, passou a se chamar Beco dos Artistas, nome que persiste até os dias atuais. Desde suas origens, uma série de transformações marcou esse local. Com o passar dos anos, o Beco foi adquirindo gradativamente o perfil de um espaço de sociabilidade basicamente homossexual. Muitos dos antigos frequentadores, artistas e intelectuais, quando hoje se referem ao Beco, qualificam-no como um “gueto”, ou seja, um reduto específico para gays. E, por isso, afirmam que deixaram de frequentá-lo, embora muitos deles sejam homossexuais. Se antes existia certa liberdade sexual - talvez própria do meio artístico - não havia, no entanto, um rótulo, uma marca. Aqui se estabelece um primeiro momento de mudança no caráter do espaço, assim como a atribuição a ele de uma identidade homossexual. Além de ter se tornado um ponto específico para homossexuais, o Beco/“gueto” passou a ser frequentado por um público vindo da periferia de Salvador, em sua maioria composto de negros e de pessoas com baixo poder aquisitivo. Concomitante a essa mudança de público, o Beco foi se deteriorando em termos físicos e materiais. À época da observação, o lixo se acumulava na entrada da rua, o calçamento estava esburacado, as paredes sujas e os bares haviam se tornado menos sofisticados.

Todas essas transformações fizeram com que os próprios frequentadores cunhassem uma sigla para definir o Beco: BA. Ao mesmo tempo em que o acrônimo BA remete ao nome original - Beco dos Artistas - passa a significar também, para os atuais frequentadores, baixo astral. Essa mudança semântica se dá em consonância com as transformações por que passa o lugar, que fizeram com que ficasse marcado por um forte estigma, tanto por parte do público que ali vai quanto da sociedade que o rodeia.

Apesar disso, muitas pessoas, principalmente adolescentes, continuam a frequentar o lugar e parecem ver nele um espaço de libertação em face da discriminação sofrida no bairro onde moram, no local de trabalho, na escola ou até mesmo no seio familiar. É ali, no Beco, que se sentem à vontade para expressar seus desejos, alguns para se travestirem ou, como muitos deles dizem, “para serem eles mesmos”. Vários garotos e garotas afirmam que o fato de irem ao Beco - de terem contato com pessoas que vivem e viveram experiências semelhantes, de poderem falar, trocar experiências etc. - contribuiu para que aceitassem a própria homossexualidade, vista geralmente como característica inata, quase como uma essência inerente a seu ser, ou seja, como uma identidade fixa e imutável. Foi da experiência etnográfica desenvolvida no Beco dos Artistas que foram elaboradas as questões exploradas no presente artigo que, de modo amplo, giram em torno da relação entre espaço, identidade e sexualidade. De que modo um espaço como o Beco dos Artistas, na medida em que ganha contornos de um “gueto”, pode contribuir para a conformação de uma identidade homossexual fixa e imutável - do homossexual como uma espécie à parte?

Minha inserção em campo foi relativamente tranquila. À época da etnografia,5 5 A etnografia foi realizada entre os anos de 2008 e 2010, por aproximadamente três anos, para a escrita da minha dissertação de mestrado. eu morava no Garcia, mesmo bairro em que se localiza o Beco dos Artistas, e meu interesse foi despertado pelos burburinhos que a existência de um lugar como o Beco provocava nos moradores do bairro. Além disso, um vizinho, professor da escola de teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) havia frequentado o Beco quando ele ainda não era um espaço de sociabilidade majoritariamente GLS e me colocou em contato com muitos artistas e intelectuais que frequentaram o Beco em suas origens. Além disso, um amigo era frequentador assíduo do Beco e, através dele, conheci muitas pessoas e conquistei rapidamente a confiança de um dos donos dos bares. Tudo isso facilitou meu acesso ao lugar e às informações que ali circulavam. Embora, ao frequentar o Beco, eu me vestisse de maneira muito simples, de havaianas, calça, camiseta e cabelo preso, não tenho dúvida de que o fato de ser uma mulher branca e de classe média abriu muitas portas. Por exemplo, um dos donos dos bares me tratava com muita simpatia e penso que o fato de eu me apresentar como mestranda e pesquisadora tenha exercido alguma influência sobre o seu comportamento em relação a mim.

Por outro lado, ser mulher branca e de classe média também trouxe algumas dificuldades de interação, por vezes, pela diferença de linguagem, por vezes, pela ausência de empatia em função da cor da minha pele. Uma das dificuldades que tive em campo foi, sem dúvida, lidar com os momentos em que eu era tomada como objeto de desejo por outras mulheres. Em geral, elas não acreditavam que eu estava ali como pesquisadora e sempre colocavam em questão esta posição. Para muitas, apresentar-me como pesquisadora era só uma desculpa que eu havia inventado para poder ter acesso ao lugar. Diante de suas descrenças em relação à minha posição, às vezes se tornava difícil dialogar sobre a pesquisa sem que esse diálogo se transformasse em um investimento erótico. Apesar de eu evitar falar de minha sexualidade em campo, ela era sempre questionada, tanto por mulheres quanto por homens: você é lésbica? Você é goby?6 6 Goby é uma gíria utilizada na cidade de Salvador-Ba para se referir a meninas que são visivelmente inclinadas para a homossexualidade, mas que ainda estão se descobrindo. A gíria também se refere a um estilo, a goby não é nem feminina e nem masculina, ela é um meio-termo entre a lady (lésbicas que adotam um estilo mais feminino) e o bofinho (lésbicas mais masculinizadas). Desse modo, nem sempre eu conseguia evitar que a minha sexualidade se tornasse o assunto do momento.

O Beco e sua história

O Beco dos Artistas nasce em 1978 e seu surgimento teria tido como personagem central Bastien, um homem francês que morava então na Av. Cerqueira Lima, ou seja, no atual Beco dos Artistas. Bastien possuía um restaurante no Corredor da Vitória e, ao se mudar para a Av. Cerqueira Lima, teve a ideia de fazer daquela avenida um espaço só de bares e restaurantes, criar uma sinergia para um espaço dedicado ao encontro e à diversão. Ele teria aberto, então, o La Bohême,7 7 O nome La Bohême fazia referência a uma canção francesa muito popular, composta por Charles Aznavour e por ele gravada pela primeira vez em 1965. primeiro bar no Beco. Segundo Bastien, o La Bohême tinha uma decoração rústica e original, um ambiente aconchegante. Era um bar em forma de L, de aproximadamente 9 metros e 80 assentos. Seu cardápio era de pratos agradáveis, não tipicamente “da terra”, nem tipicamente franceses. Naquela época, Salvador não tinha muitas opções e quem oferecesse um produto de qualidade podia contar com todas as condições de crescer. Foi o que aconteceu com o La Bohême. Em 1979, Bastien alugou outra casa, para ampliar o La Bohême, com o intuito de fazer um palco com vestiários para apresentações teatrais.

Em 1980, aproximadamente, Bastien abriria o Le Grill. Ele era um restaurante simples, que parecia uma cantina. Aliás, como o próprio Bastien afirma, a ideia era fazer uma “cantina dos artistas”. Bastien conta que muitos artistas frequentavam esse lugar simples para comer omelete de queijo, fritas e outros pratos à francesa. Cerca de dois anos mais tarde, em 1982, outro francês, chamado Nathan, tornou-se sócio de Bastien, que ficou responsável pelo restaurante Le Grill, já que era cozinheiro, e Nathan, pelo La Bohême, que passou a se chamar Cactus. O nome Cactus remetia à decoração do lugar que reverenciava o Nordeste. Geralmente, as pessoas jantavam no Le Grill e bebiam no Cactus.

Naquela época, a Av. Cerqueira Lima começava a se transformar no Beco dos Artistas. Como esta avenida se localiza próximo do principal teatro de Salvador - o Teatro Castro Alves - e de outros teatros menores - Gamboa e Vila Velha - e às escolas de Teatro e de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, os bares ali abertos passaram a ser o ponto de encontro da classe artística e intelectual de Salvador. O Beco viveu então uma grande efervescência, tão marcante que um frequentador batizou a Av. Cerqueira Lima de Beco dos Artistas. Este binômio se tornaria uma espécie de segunda casa da classe artística em Salvador. Atrizes e atores ali se encontravam para discutir suas peças ou para criar roteiros. Muitos cantores nacionalmente conhecidos, como Caetano Veloso, Margareth Meneses, Gilberto Gil, Lulu Santos, Zizi Possi, apresentaram-se no Beco, que também promovia espetáculos de dança, recitais de poesia, saraus e performances.

Ao longo dos anos a composição do Beco foi mudando. Os primeiros bares fecharam, mas outros foram abertos. O Beco viveu momentos cíclicos de crises - quando muitos frequentadores achavam que ele ia acabar - e de efervescência - quando mais uma vez foi retomado o espírito de festa e criatividade que animou inicialmente no lugar. Até determinado momento de sua existência, os bares sempre promoviam festas e eventos. Alguns usuários e proprietários de estabelecimentos comerciais se juntavam e promoviam, por exemplo, a queima do Judas. Como lembra Letícia, atriz e antiga frequentadora:

Teve um Judas que nós fizemos, foi feito aqui no Teatro, nós caprichamos. O Judas teve cueca, relógio, anéis e peruca, camisa rosa de seda trazida da França, calça jeans, tênis novo e meias. Era uma releitura do folguedo popular e a gente estilizou isso. Mas o Judas foi um Judas bonito. E foi convite para a Bahia toda. Então, o Beco ficou lotado e o Judas lá no centro. Puseram bomba, chamaram técnico para armar, para não causar incêndio. O Judas tinha uma camisinha na mão, porque já era a época da AIDS, como uma forma de alertar as pessoas. Muito lindo, estava assim a fina flor da Bahia artística.

A fala de Letícia mostra como o Beco era povoado por essas experiências e revela um pouco do espírito do lugar. Existia uma espécie de relação simbiótica entre as pessoas e o lugar, uma sinergia entre corpos, percepção e espaço. A experiência impregnou o Beco de sentidos, assim como o lugar acomodou, ao longo dos anos, as subjetividades, os eventos e as histórias vividas. Casey (1996CASEY, Edward. 1996. “How to Get from Space to Place in a Fairly Short Stretch of Time”. In: FELD, S. & BASSO, K. (orgs.). Senses of Place. 1ª ed. Washington: University of Washington Press.) já nos chamava a atenção para essa possível dialética entre lugares e percepção.

Não é só o sensório significativo, também é o lugar significativo. Como Feld colocou, “do mesmo modo que os lugares são sentidos, os sentidos são localizados; do mesmo modo que lugares fazem sentido, sentidos fazem lugares”. A dialética da percepção e do lugar (e ambos com significado) é tão intricada quanto é profunda e nunca tem fim (Casey, 1996CASEY, Edward. 1996. “How to Get from Space to Place in a Fairly Short Stretch of Time”. In: FELD, S. & BASSO, K. (orgs.). Senses of Place. 1ª ed. Washington: University of Washington Press.: 19, tradução nossa).

De modo geral, as pessoas que iam sempre ao Beco se conheciam, se trocavam, confraternizavam. Tudo era motivo para festa, para comemoração. Os antigos frequentadores ressaltam essa familiaridade; ressaltam o Beco como espaço onde se sentiam acolhidos, onde se sentiam à vontade, porque o lugar era a materialização dessa grande fraternidade e dessa experiência de acolhimento. Muitos falam da experiência de poderem ir sozinhos ao Beco, tranquilamente, pois sabiam que lá iam encontrar pessoas conhecidas. O encontro não era com uma pessoa em particular, mas sim com uma totalidade acolhedora - o Beco. A fala do ator Saulo é, neste sentido, elucidativa:

[...] uma vez eu cheguei ao Beco e, no primeiro bar, na primeira mesa, estava Estela e algumas outras pessoas, e alguém comentou: “hoje é o aniversário de Estela”. Ah, poxa, é seu aniversário, parabéns! Aí o pessoal da mesa ao lado falou: “poxa, hoje é o aniversário de Estela”. Aí eu saí andando e eu fui para a penúltima mesa do último bar, na calçada. Eu sentei e comecei a conversar. Um minuto e meio depois uma pessoa da mesa ao lado virou para cá e falou: “vocês sabiam que hoje é aniversário de Estela?“. Então, levou um minuto e meio para a notícia circular por todas as mesas do Beco até o final. Entendeu?

Este depoimento demonstra como o sentimento de familiaridade tomou conta do lugar/espaço8 8 Para Milton Santos (2006), o lugar é uma subespécie do espaço; o lugar é uma diferenciação no espaço total que lhe confere uma especificidade e uma definição particular sem, no entanto, deixar de carregar consigo as características mais gerais do espaço. Milton Santos (2006) define o lugar como a funcionalização do mundo e é por ele que o mundo é percebido empiricamente. O espaço, por outro lado, é uma categoria mais ampla e abstrata, é uma ordem geral que regula e coordena as ordens exclusivas de cada tempo particular; o espaço é que reúne todos com suas múltiplas possibilidades. Para Santos (2006), espaço e lugar não estão dissociados, as características particulares do lugar só se elucidam através do sentido mais amplo de espacialidade. e como o lugar/espaço acolheu esse sentido. O Beco, então, não é um espaço físico que está além da experiência vivida, mas sim é o lugar/espaço acolhedor da experiência. De certo modo, o Beco era esse lugar onde todos aqueles artistas podiam se resguardar; “podiam estar entregues de antemão ao seu vigor de essência, podiam permanecer pacificados na liberdade de um pertencimento” (Heidegger, 2001HEIDEGGER, M. 2001. “Construir, Habitar, Pensar”. In: Ensaios e Conferências. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes. p. 125-141.: 137). O Ali todos aqueles artistas podiam de-morar-se, podiam estender o seu ser sobre ele e habitá-lo em seu sentido mais amplo. Não é à toa que muitos dos antigos frequentadores se referem ao Beco como uma segunda casa. Rosa Madalena9 9 Rosa Madalena era uma antiga frequentadora do Beco, costureira e, na época, tinha muitos problemas e brigas com seu marido. Nesses momentos, ela sempre recorria ao Beco, quase como um refúgio das tensões familiares. afirma que se sentia melhor no Beco do que em sua própria casa (Mendes, 2009MENDES, Amanda & LUISE, Figueiredo. 2009. Beco dos Artistas: Experiências e descobertas desde a cachaça de D. Chica. Livro reportagem (Conclusão de curso em Jornalismo), Faculdade Dois de Julho, Salvador.).10 10 Este dado foi retirado do livro-reportagem sobre o Beco dos Artistas desenvolvido por Amanda Mendes e Luise Figueiredo, em 2009, pela Faculdade Dois de Julho, em Salvador. Para expressar esse sentimento, ela escreveu a seguinte poesia:

A tristeza e a felicidade andam de mãos dadas. Se no pôr-do-sol estou infeliz, ao nascer dele me sinto contente. Se no frio choro rios de lágrimas, no calor meu sorriso torna-se reluzente. Se na doença transmito fraqueza, na saúde demonstro uma veemente fortaleza. Se no romance não sinto o vigor da paixão, na amizade encontro segurança e afeição. Se no quarto escuro sinto medo, no efervescente Beco sinto aconchego...

Esta poesia explicita a relação de intimidade que os antigos frequentadores mantinham com o Beco, e que se traduz na sensação de familiaridade, entendida como um habituar-se através do corpo. Nesse sentido, a familiaridade guarda uma correspondência não só com o habitar - no sentido de que os outrora usuários demoravam-se no espaço e estendiam sua existência sobre ele - mas também com o habituar-se através do corpo. Como aponta Merleau-Ponty:

Trata-se de um saber que está nas mãos, que só se entrega ao esforço corporal e que não se pode traduzir por uma significação objetiva. O sujeito sabe onde estão as letras do teclado, assim como sabemos onde está um dos nossos membros, por um saber de familiaridade que não nos oferece uma posição no espaço objetivo (Merleau-Ponty, 1994MERLEAU-PONTY, Maurice. 1994. Fenomenologia da Percepção. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes.: 199).

A ligação daqueles indivíduos com o lugar/Beco era, antes de tudo, uma ligação corpórea. Era o corpo que permitia essa simbiose entre o lugar, e era a subjetividade que possibilitava esse familiarizar-se. Rosa Madalena afirma que “seus pés por si sós já sabiam o caminho do seu lugar predileto”. Isto mostra o grau de familiaridade que existia entre Rosa e o Beco, como, em geral, acontecia com outros antigos frequentadores. Se o habituar-se implica uma relação com o corpo, ele implica também uma relação com o espaço. Sobre isso diz Merleau-Ponty:

Os lugares do espaço não se definem como posições objetivas em relação à posição objetiva do nosso corpo, mas eles inscrevem em torno de nós o alcance variável de nossos objetivos ou de nossos gestos. Habituar-se a um chapéu, a um automóvel ou a uma bengala é instalar-se neles ou, inversamente, fazê-los participar do caráter volumoso de nosso corpo próprio. O hábito exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no mundo ou de mudar de existência anexando-nos a novos instrumentos (Merleau-Ponty, 1994: 199).

É como se o Beco estivesse inscrito no corpo de Rosa Madalena e como se ela estivesse instalada nele. O Beco, naquele momento, não se definia como uma posição objetiva em relação à posição objetiva do corpo de Rosa Madalena, mas fazia parte da própria extensão do seu ser. Esta é a familiaridade que marcou a relação dos antigos frequentadores com o Beco, esse habituar-se. Rosa diz que seus próprios pés continham um saber, um saber corporal que é, ao mesmo tempo, causa e efeito da familiaridade e da relação íntima com o lugar. Como afirma Ingold, “os pés tanto quanto as mãos medeiam um compromisso histórico do organismo humano, em sua totalidade, com o mundo ao seu redor” (Ingold, 2004: 332, tradução nossa).

O Beco dos Artistas - essa totalidade acolhedora - pode ser percebido como o fruto do vazamento entre corpo/percepção, lugar/espaço e experiência vivida. “As paisagens são tecidas em vidas e vidas são tecidas na paisagem, em um processo que é contínuo e interminável” (Ingold, 2004INGOLD, Tim. 2004. “Culture on the Ground: the world perceived through the feet”. Journal of Material Culture, vol. 9, n. 3. p. 315-340.: 333, tradução nossa). Tal engajamento corpóreo-perceptivo com o lugar através das experiências vividas foi o que possibilitou a emergência de um sentido, cuja expressão se materializa quando um frequentador anuncia: este é o Beco dos Artistas. E daí em diante a Av. Cerqueira Lima perde todo o seu valor semântico e torna-se o Beco dos Artistas.

Foi muito grande a força com que as experiências vividas marcaram o Beco. O desejo de encontro, a criatividade, as festas, a arte, a familiaridade entre as pessoas, tudo isso impregnou o lugar de um sentido, como um perfume forte e muito difícil de esvanecer. Ao mesmo tempo, ao longo desses anos, o Beco acolheu todas essas experiências, as exposições artísticas, os shows musicais, as peças e as performances, os amores vividos e os não vividos, as brigas, as risadas, as estórias. Só o lugar tem esse poder, o poder de acolher, e o Beco é a materialização desse poder. Casey diz:

Lugares acolhem coisas em seu centro - onde coisas conotam a variedade de entidades animadas e inanimadas. Lugares também acolhem experiências e histórias, mesmo linguagem e pensamentos. Pense apenas o que significa retornar a um lugar que você conheceu, encontrá-lo cheio de memórias e expectativas, coisas velhas e coisas novas, o familiar e o estranho e muito mais além. O que mais é capaz dessa ação acolhedora maciçamente diversificada? [...] O poder pertence ao lugar, ele próprio, e este é um poder de acolher (Casey, 1996CASEY, Edward. 1996. “How to Get from Space to Place in a Fairly Short Stretch of Time”. In: FELD, S. & BASSO, K. (orgs.). Senses of Place. 1ª ed. Washington: University of Washington Press.: 25, tradução nossa).

Mais tarde, o sentido ligado à arte que o Beco acolheu durante muitos anos começará a se perder. Com a mudança de público em termos de classe social e, ao mesmo tempo, com a formação de um sentido mais ligado à homossexualidade, outros tipos de práticas e experiências vividas passaram a impregnar o lugar e, consequentemente, outra atmosfera foi criada e outras experiências foram acolhidas.

O Beco: um espaço de sociabilidade GLS

Ao longo dos anos, o Beco dos Artistas foi se transformando, mudando de sentido, alguns bares fecharam, outros abriram e o Beco foi se tornando gradativamente um espaço de sociabilidade homossexual. Como isso aconteceu? Desde a sua origem, o Beco dos Artistas já permitia em seu interior a possibilidade das mais diversas expressões sexuais e de gênero. As pessoas se cumprimentavam com um beijo na boca, grupos de amigos se acariciavam e, em muitas performances teatrais, homens e mulheres trocavam suas posições de gênero. Mas, inicialmente, o lugar não era marcado por nenhuma identidade ligada à sexualidade; os encontros afeito-sexuais entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes eram espontâneos, podiam ou não acontecer e, em geral, eram fruto de uma convivência cujo foco não era a sexualidade, mas a música, a arte, o teatro, a política, as afinidades e os gostos em comum.

Três bares, no decorrer da história do Beco, foram fundamentais para a sua transformação lenta e gradual de um lugar de arte e encontros espontâneos para um lugar marcadamente homossexual. O primeiro bar foi o Cactus. Nathan, seu dono, era homossexual e tinha um parceiro - um negro muito bonito, segundo alguns frequentadores - que trabalhava com ele no bar. O fato de o dono do Cactus ser homossexual já atraía outros iguais desde a origem do Beco. Embora tenha havido a partir do Cactus uma frequência maior de homossexuais, ainda assim o bar não era específico para eles/elas, não existindo a afirmação de uma identidade. A fala de Diego, ator e diretor, dá uma ideia de como já havia um público gay no Beco mesmo naquela época, mas sem a formação do que ele chama de “gueto”:

O Beco, na verdade, era assim desde o começo. Ele foi um lugar que tinha bares alternativos e tinha um bar que se chamava Cactus, que já era um bar mais da galera homossexual, mas tinha muito bissexual. Nessa época, ele não era ainda, a gente ainda não tinha os guetos formados na Bahia. A Bahia tinha poucos lugares que eram guetos, muito poucos, como o Anjo Azul, que era famoso, que eram mais antigos ainda. Na verdade, por conta de ter artista e os artistas são mais permissivos, então, muitos artistas frequentavam independente da opção sexual deles (grifo nosso).

Anos depois, quando o Cactus não existia mais, surgiu um bar no Beco chamado Conexão Arco-Íris. Antes dele, o Beco vivia um período de certo marasmo, pouco movimento. Teria sido esse bar o responsável por um novo tempo de efervescência do Beco. Além de voltar a atrair a classe artística da cidade, o bar Conexão tinha como proposta conquistar o público gay, por isso o nome Conexão Arco-Íris. Nas sextas e nos sábados, dias mais voltados para o público GLS, o Beco virava um verdadeiro desfile de modas, as pessoas iam com calças de marca, muito produzidas e arrumadas. O bar Conexão não só mexeu com o Beco, como também com a cena gay de Salvador, chegando a ser noticiado por duas vezes na Sui Generis, revista gay de circulação nacional. Embora o Beco, no período do bar Conexão, ainda não tivesse o perfil de lugar com uma identidade marcadamente homossexual, uma vez que continuava a ser frequentado por um público variado de artistas e intelectuais, ele cumpria o papel de dotar o Beco desse sentido mais restrito. Diego dá um depoimento elucidativo:

O Conexão era um bar sabidamente gay, era um bar cor-de-rosa, tinha toda uma conotação, entendeu? Então, os caras que namoravam iam para lá, para se encontrar lá, para ficar lá. Tinha essa conotação. Eu ia para lá, porque eu gostava muito do dono do bar, Thiago, mas meus amigos não queriam ir, ficavam no de cá da frente. Eu ia por Thiago, porque, inclusive, era meu conterrâneo, mas a grande maioria não gostava de ficar lá por causa dessa coisa aí. Inclusive surgiu uma brincadeira que era uma brincadeira dos meninos de teatro na época: “já vai para lá porque assumiu hein, já vai lá para o fundo”. Então, os machões ficavam cá na frente, entendeu? (grifo nosso).

A fala de Diego mostra a forte ligação entre o bar Conexão e uma identidade GLS que vinha começando a se configurar no espaço. Ele foi, nesse sentido, um ponto importante na gradativa transformação do Beco em um lugar de sociabilidade GLS. O depoimento de Vítor, um dos sócios do bar Conexão, lança luz sobre a ligação de sua experiência subjetiva, suas sensações com a transformação do lugar:

Eu, particularmente, quando eu fechei o bar, algumas coisas mexeram com a minha cabeça, eu pensava que a gente acabava se agrupando com as pessoas não por ter afinidades, mas se agrupando apenas por uma orientação sexual. E aí, na sexta e no sábado é que tinha mais o público GLS, e as outras pessoas já não iam mais... O que me surpreendeu foi que o meu ciclo de amizades passou a ser com muitas das pessoas que estavam no Beco dentro do bar. Um ano e meio, quase dois anos, eu ia quase todos os dias... o choque foi muito mais em relação a mim. Quando eu vi que estava próximo das pessoas em função da orientação sexual, entendeu? Que eu estava dentro de um gueto mesmo. Eu estava me fechando naquilo. Isso me incomodou e me levou a um questionamento da condição gay, entendeu? Poxa, não é isso só! Você não se aproxima das pessoas apenas pela orientação sexual, você se aproxima por vários outros motivos (grifos nossos).

A fala de Vítor mostra como, no decorrer do processo, o Beco já havia assumido essa característica mais marcadamente voltada para o público GLS: as pessoas se encontravam ali porque tinham uma orientação sexual comum e isto se tornou o elo entre os frequentadores. A orientação sexual passou a ser um ponto definidor das relações. A verdade última dos sujeitos, como afirma Foucault (2007), se constitui como um marcador a ponto de ser, por si só, um motivo para fazer com que duas pessoas se relacionem; uma verdade compartilhada entre aqueles sujeitos e que leva, por conta de cerceamentos e coerções, a um isolamento entre pares. Nesse momento, o Beco já vai ganhando um tom de gueto, marcado pela sexualidade.

Percebe-se uma sutil relação entre o movimento da subjetividade-vida de Vítor - como suas relações estavam caminhando, o fato de ele perceber que seu ciclo de amizades estava ficando reduzido a pessoas homossexuais - e o movimento do lugar. A experiência de Vítor é contígua à transformação do lugar, cada vez mais marcado por uma identidade. O questionamento da “condição gay” é o do sentido que o lugar vinha tomando. Há ainda uma indagação quanto à capacidade restritiva e limitadora do que ele chama de condição gay e do que essa condição significa em termos de relações Beco adentro.

Por fim, um último bar exerceu sua influência para que o lugar adquirisse definitivamente uma identidade homossexual. O bar Camarim foi fundamental para a formação de um sentido de lugar ligado a práticas homossexuais que já vinha se delineando no Beco. Posso afirmar que, mais uma vez, as modificações no espaço guardaram uma relação com a subjetividade das pessoas. João, ao colocar o nome do bar de Camarim, tem em mente que, além da ligação com o ambiente artístico, pois é lá que atores e atrizes relaxam antes de entrar no palco para encenar uma personagem, este é o lugar onde as pessoas podem se sentir à vontade para serem elas mesmas.

O desejo de se sentir à vontade permeia a relação de João, proprietário do Camarim, com sua própria identidade/experiência homossexual. Ele era publicitário, e o que o fez largar essa carreira para se tornar comerciante foi a possibilidade de assumir sua orientação sexual, de encontrar um lugar onde pudesse ser ele mesmo. A fala de João é esclarecedora neste sentido:

Eu sou casado com outro cara... o principal motivo que me levou a ser comerciante e largar a carreira de publicitário e que me levou a querer ter um negócio próprio foi poder me libertar do medo de ser homossexual e, profissionalmente, ter minha carreira prejudicada pela minha opção. Então, esse medo já não faz mais parte da minha vida, eu me declaro homossexual em qualquer ambiente, para qualquer pessoa que perguntar, não tenho nenhum problema com isso (grifo nosso).

O nome Camarim, significando um espaço que permitiria às pessoas serem elas mesmas e se sentirem à vontade, não se referia, assim, somente à classe artística, mas principalmente ao desejo homossexual. Mais tarde, João colocaria uma bandeira do movimento LGBT na porta do seu bar, como se essa afirmação pública fosse o ápice da sua possibilidade de libertação do medo que marcou a sua experiência homossexual. Esse será um momento representativo da mudança do significado daquele lugar, da transformação do Beco em um espaço GLS. Mais do que uma atitude quanto ao seu bar, “levantar a bandeira” parece ter uma relação com sua própria subjetividade e com sua história. Como afirma João,

Nós percebemos que, em Salvador, as pessoas tinham muito medo de rotular seus bares como bares com uma tendência declarada GLS. Então, a gente resolveu praticamente estabelecer uma vanguarda na época e colocamos uma bandeirinha do movimento gay lá, dependurada na frente do bar para identificar que nosso bar era voltado realmente para esse público.

João decide, então, assumir esse rótulo. A bandeira do movimento LGBT passa a ser o símbolo do bar. O sentido do lugar ligado à classe artística começa a se esvanecer, enquanto aquele voltado para a homossexualidade se fortalece, mesmo arte e homossexualidade sendo duas dimensões que coexistiam no Beco desde suas origens. Mas o que significa rotular? Significa imprimir uma marca.11 11 França (2004) diz: “‘Rótulo’, neste contexto, é um termo êmico que indica de maneira ampla um processo de classificação identitária em que se interpelam determinados indivíduos de modo a produzir o seu reconhecimento como sujeitos a partir de um determinado esquema classificatório” (França, 2007: 249). Quando João levanta a bandeira do movimento LGBT, ele cria com isso uma identificação para o lugar. De um espaço livre de rótulos em relação à sexualidade, o Beco vai se delineando como um lugar eminentemente gay, voltado especificamente para esse público. João acaba por cristalizar assim, em um rótulo, experiências que, em outro grau e intensidade, já existiam e eram vividas no Beco. Ele imprime uma marca ao lugar e contribui para a construção de uma identidade relacionada ao espaço. O Beco passa, então, a aparecer nos guias turísticos de lugares gays em Salvador.

Pollak (1987POLLAK, Michael. 1987. “A homossexualidade Masculina, ou: A Felicidade do Gueto?”. In: ARIÉS, Philippe & BÉJIN, André (orgs.). Sexualidades Ocidentais. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense .) já explorava a relação entre a formação de uma identidade sexual e a emergência do que ele chama de uma geografia sexual. Para o sociólogo, diante da clandestinidade e do estigma que rondam o desejo e as práticas homossexuais, nada mais natural que a constituição de uma minoria, fundada em uma identidade sexual, que permitirá o apoio mútuo e as solidariedades básicas para a realização daquilo que ele chama de coming out. Não raro, a formação dessa identidade se dá em consonância com a instauração de uma geografia homossexual centrada no gueto.

O Beco no período da observação etnográfica: do Beco dos Artistas ao BA

Quando iniciei o trabalho de campo, entre 2008 e 2010, o Beco dos Artistas já era considerado um lugar de sociabilidade GLS. O Beco era composto por quatro bares - o Green Bar, o Bar de Ciro, o Camarim e o Bar Cultural - e pelo espaço da rua. Mas além de ser um espaço de sociabilidade GLS, o Beco passou a atrair um público jovem e negro, de baixo poder aquisitivo e proveniente da periferia de Salvador. Todos estes fatores fizeram com que um forte estigma recaísse sobre o lugar.

Paralelamente a essa mudança de perfil de seu público, ocorreu também um processo de deterioração do espaço físico. A entrada do Beco, no período de campo, era abarrotada de lixo. Existiam ali três contêineres, que não eram suficientes para acolher todo o lixo proveniente da casa dos moradores do fundo do Beco e dos estabelecimentos comerciais. O lixo transbordava dos contêineres e se espalhava pelo chão, misturando-se às pessoas que, encostadas na parede do Beco, trocavam carícias. As paredes e o poste próximos ao lixo se transformavam em mictórios e a rua ficava, por isso, empoçada de urina. Assim, por vezes, lixo, urina e pessoas pareciam uma só e única coisa.

O Beco era, de um modo geral, mal iluminado, o que gerava um clima sombrio, com o aspecto de um lugar underground. O chão do Beco era coberto de asfalto, mas o asfalto já estava bem deteriorado, e da mesma forma estavam as paredes do Beco. No entanto, entre a sujeira, existiam nas paredes alguns desenhos que pareciam ser uma marca do lugar, ao mesmo tempo em que o marcavam. Em um dos desenhos figuravam dois rapazes se beijando com um coração entre eles. O desenho, a marca que imprimiram no lugar, materializava o sentido que ele guardava naquele período.

Além de ter os bares como espaço de sociabilidade, os frequentadores também ficavam na rua e faziam dali um ponto de encontro distinto daquele dos bares. Era o espaço de maior “pegação”, que as pessoas utilizavam para namorar e se beijar de forma mais enfática. A rua era igualmente um ponto de exposição, onde os frequentadores circulavam com o intuito de trocar olhares, paquerar, com a expectativa de conhecer alguém e arranjar um(a) parceiro(a) sexual. As pessoas que ficavam na rua, segundo alguns entrevistados, ou não tinham dinheiro para consumir, ou estavam em clima de “flerte”.

A rua concentrava os fatores que mais contribuíam para a estigmatização do Beco. Era lá que se dava o uso de substâncias psicoativas, como maconha, cocaína e craque. Ali se desenvolvia uma trama de trocas sexuais. Muitos garotos se aproximavam dos frequentadores com aparência mais abastada e utilizavam a sedução para conseguir tomar uma cerveja. Era muito comum a circulação de michês, e pequenos furtos também aconteciam, geralmente atribuídos a adolescentes heterossexuais que iam para o Beco apenas para roubar celulares e dinheiro. As extremidades do Beco tornaram-se espaços onde o sexo podia ser publicizado. Ouvi vários relatos de pessoas que presenciaram casais mantendo relações sexuais no fundo do Beco.

Tudo isso gerou o que alguns frequentadores e donos de bares chamaram de “ética de tudo pode”. Para eles, o Beco se tornou o lugar onde tudo podia acontecer, o lugar da permissividade. É possível imaginar que a posição ainda marginal da prática homossexual possa ter atraído ou legitimado dentro daquele espaço outras práticas marginais, tais como o roubo, o uso de substâncias psicoativas, a explicitação do sexo - se pode a prática homossexual, tudo pode. Perlongher já chamava a atenção, em seu estudo sobre o gueto gay no centro de São Paulo, para o fato de determinados espaços homossexuais conviverem com outros códigos marginais.

[...] a massa de gays que circula pelo centro da cidade, num circuito estável e difuso, está em relações factuais de contiguidade com as demais marginálias que instalam, no espaço urbano deteriorado, suas banquinhas: prostitutas, travestis, michês, malandros e todo tipo de lúmpens (Perlongher, 1987PERLONGHER, Nestor. 1987. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense.: 26).

Além da “ética do tudo pode” alguns frequentadores e também não frequentadores e donos de bares começaram a afirmar que o Beco guardava uma espécie de “energia negativa”, pesada e incômoda. Mas o que seria essa energia negativa? Ela não é uma aura mística própria do lugar, mas está atrelada a questões sociais reais, como a cor da pele das pessoas que frequentam o Beco, a utilização de substâncias psicoativas, as formas como as pessoas se vestem, os furtos, os comportamentos sexuais e as performances de gênero que são ali vivenciadas. O Beco passa a concentrar assim tipos de práticas, pessoas e comportamentos extremamente estigmatizados (Goffman, 1980GOFFMAN, Erving. 1980. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.).

É curioso que essa perspectiva negativa do lugar seja sustentada não somente pelas pessoas que compõem o tecido social mais amplo, mas também pelos próprios frequentadores. Muitos afirmaram que estavam ali por falta de opção, que o Beco já tinha sido bom um dia, mas que agora era um lugar muito vulgar e promíscuo. No entanto, esses mesmos frequentadores continuavam a ir e a estabelecer algum tipo de identificação com o Beco dos Artistas. Tal atitude ambivalente em relação aos guetos já havia sido apontada por Wacquant:

Essa identidade unificada acaba sendo marcada pela ambivalência, já que continua maculada pelo fato de a guetização proclamar o que Weber chama de avaliação negativa de honra do grupo confinado. Dessa maneira, ela promove em seus membros sentimentos de dúvida em relação a si mesmos, dissimulação de sua origem, desvalorização perniciosa de si mesmo (Wacquant, 2004WACQUANT, Loïc. 2004. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico [on-line]. Revista de Sociologia e Política. Disponível em: <Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id= 23802314 > ISSN 0104-4478 [Acessado em 20.11.2016].
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: 160).

Guardando as devidas particularidades do objeto de pesquisa, que é com certeza diferente do tipo de gueto a que Wacquant (2004WACQUANT, Loïc. 2004. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico [on-line]. Revista de Sociologia e Política. Disponível em: <Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id= 23802314 > ISSN 0104-4478 [Acessado em 20.11.2016].
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) estava se referindo, podemos ainda assim estabelecer algumas comparações. Entre elas, o fato de que vários frequentadores do Beco emitam uma opinião muito negativa do lugar, embora continuem a ir lá. Negam que frequentam o Beco, pois isto seria “queimação” no meio gay, o que mostra o quanto a sua posição é ambivalente, no sentido de que ao mesmo tempo em que existe uma identificação com o espaço e uma necessidade de vivê-lo, aproveitando a liberdade e as vantagens que oferece, há também a interiorização da imagem negativa que é projetada sobre o lugar.

Esse contexto e todos esses fatores que contribuíram para a estigmatização do Beco cristalizaram-se no acrônimo que os próprios frequentadores cunharam para o lugar: BA ou baixo astral. Isto quer dizer que o Beco agora não é mais dos artistas como foi um dia. Retira-se toda a positividade do termo e enfatiza-se o aspecto negativo do lugar. A paródia do termo que inicialmente designa o lugar caracteriza a mudança de sentido que veio ocorrendo no Beco durante todos esses anos. A fala de Célio, responsável pelo Bar Cultural, marca bem essa passagem:

Então, o Beco dos Artistas foi criado assim. Pessoas de famílias respeitosas vinham para cá ouvir som, voz e violão, tomar cerveja, os artistas da cidade vinham para cá. Era um espaço aberto a todos os tipos de público. Quando é que começou a ser taxativo? Começou a ser taxado como beco dos viados, como beco GLS. Que começou a chamar BA, Beco GLS, beco não sei o quê? Não se chamava mais Beco dos Artistas, usava-se a sigla porque se achava mais fácil. Como chamar de BA é chamar de “Baixo Astral”. Começaram a queimar a imagem do Beco.

É explicito na fala de Célio como essa nova sigla, BA, está relacionada ao fato de o Beco ter-se tornado, ao longo desses anos, um espaço de sociabilidade GLS ou “o beco dos viados”. Ter sido cunhado de “Baixo Astral” não se resume a isso, mas nesse período a principal característica do Beco, antes de ser um lugar onde há o uso de drogas, um público de baixo poder aquisitivo e de cor de pele negra, é o fato de ele ser um beco de sociabilidade GLS. Assim, a mudança em termos semânticos de Beco dos Artistas para “Baixo Astral” corresponde à mudança na realidade empírica: de um lugar frequentado por artistas e intelectuais para um lugar de sociabilidade especificamente homossexual. Todo esse percurso mostra como o Beco foi se modificando com o tempo e como diversos fatores contribuíram para a sua estigmatização. O Beco foi perdendo sua imagem de espaço positivo, reduto da arte e cultura, para assumir uma imagem extremamente estigmatizada e negativa, sinônimo de reduto gay, negro e pobre.

Essa visão negativa do Beco contrasta, no entanto, com um espaço que está aberto de terça-feira a domingo, dias com mais gente, dias com menos gente, que ainda exerce atração sobre as pessoas. Nas sextas-feiras e nos sábados, o Beco fervilha de gente, os bares e a rua ficam cheios. O Beco traz essa ambivalência de sentido, ao mesmo tempo em que é estigmatizado, é um lugar que continua a atrair pessoas, e não só das camadas mais pobres, embora estas estejam lá em maioria, mas também das classes médias e com a presença de intelectuais que, ainda hoje, frequentam o lugar e veem ali uma possibilidade de encontro, trocas, diversão e alegria.

Beco dos Artistas: um espaço de libertação e/ou de uma liberdade guetificada?

O Beco, no período de campo, era lugar frequentado por muitos jovens, que ainda estavam se descobrindo sexual e subjetivamente. Para muitos, a primeira ida ao Beco foi a primeira ida a um espaço onde eram legítimas as práticas e os comportamentos não heterossexuais. No entanto, muitos falam da sua primeira ida ao Beco como um momento de medo.

M: [...] aí foi a época que eu fui ao Beco a primeira vez, eu fiquei escondido, gente para caralho, eu ficava com medo, porque bate. Quando você chega ali, você já fica com medo, ficava escondido ali atrás, falava não vou aparecer não. Aí, uma vez, eu fui, fiquei tipo uma hora só lá, bebi uma cerveja e fui embora. Uma hora não vale, né? Aí, certa feita que eu fui com Artur, a gente ficou até de manhã, aí foi que eu comecei andar nesses lugares, comecei a me acostumar, foi a partir daí.

Esse tipo de relato foi recorrente na fala dos atuais frequentadores. O medo de frequentar o Beco pode ser visto como um medo da própria experiência homossexual. Se Miskolci (2010MISKOLCI, Richard. 2010. Não somos, queremos. Notas sobre o declínio do essencialismo estratégico. Comunicação apresentada na Mesa Novas Perspectivas e Desafios Políticos Atuais do evento Stonewall 40 + o que no Brasil?, realizado em Salvador, em 17 de setembro de 2010.) afirma que a vergonha é a experiência comum entre gays, lésbicas, travestis, transexuais e outr@s, eu ousaria acrescentar que o medo também o é. Sedgwick já dizia que “o armário (a invisibilidade) é a estrutura definidora da opressão gay no século XX” (Sedgwick, 2007SEDGWICK, Eve Kosofsky. 1998. Epistemologia del armário. 1ª ed. Barcelona: Ediciones de la Tempestad.: 26).

Esse medo da experiência e do desejo homossexual é fruto de uma lógica heteronormativa, quer dizer, de um conjunto de regras e cerceamentos que pressupõem, de antemão, uma coerência entre sexo/gênero/desejo e prática sexual (Butler, 2008BUTLER, Judith. 2008. Problemas de Gênero. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) e que faz derivar da sexualidade heterossexual instituições sociais fundantes, como a família, o casamento e a procriação. Essa matriz simbólica e normativa que classifica e hierarquiza os indivíduos tem como fundamento a negação daquilo que é sua maior ameaça - o desejo homossexual.

Muitos frequentadores também falam do preconceito e da discriminação que sofrem em outros espaços sociais como, por exemplo, dentro da família, no bairro onde moram, na escola, no trabalho, junto à instituição policial. Praticamente todos os entrevistados tinham algum relato de violência física e psíquica por conta da experiência homossexual. Portanto, quando eles falavam do Beco, além de surgir o medo, surgiam também expressões como o acostumar-se, o aceitar-se e a sensação de libertação proporcionada pelo lugar.

Com o tempo, as práticas e os comportamentos do Beco tornaram-se “naturais” ou foram se “naturalizando”. Se, por um lado, o Beco provoca um medo inicial, por outro, ele proporciona a “naturalização”, o familiarizar-se com desejos e práticas que são estigmatizados do lado de fora. Ao ter contato com a possibilidade de expressar esse desejo dentro do Beco, os frequentadores passam a ter uma relação menos tensa não só com a homossexualidade de modo geral, mas inclusive com suas próprias sexualidades. Muitos frequentadores assumem sua sexualidade a partir do momento em que começam a frequentar o Beco ou, assim que a assumem, passam a frequentá-lo.

Essa socialização que espaços como o Beco proporciona permite que os frequentadores possam externalizar seus desejos e permite uma convivência entre pares que é fundamental para que esses desejos possam ser mais aceitos. A possibilidade de falar sobre eles, de trocar experiências, de externar preconceitos que sofrem, de dividir as dores, de ter acesso a acontecimentos e experiências de outros indivíduos têm nessa rede de solidariedade que se forma um aspecto fundamental para que esses indivíduos sejam capazes de apaziguar suas dores e libertar os conflitos subjetivos para o mundo externo, podendo assim significá-los e compreendê-los. O Beco cumpre, então, um papel de fundamental importância na aceitação do desejo homossexual e, para muitos frequentadores, é acima de tudo um espaço de libertação.

Mas para além de libertação, o Beco adquire outros significados. Ao conversar com alguns frequentadores sobre o lugar, uma das categorias que surgiram em seus discursos foi a de gueto, a identificação do Beco como um gueto. Essa identificação veio também associada a uma rejeição por lugares especificamente gays. Muitos frequentadores falavam: “eu não gosto de lugares para gays, eu venho por falta de opção”. Mas será que o Beco pode ser caracterizado como um gueto?

Loic Wacquant (2004WACQUANT, Loïc. 2004. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico [on-line]. Revista de Sociologia e Política. Disponível em: <Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id= 23802314 > ISSN 0104-4478 [Acessado em 20.11.2016].
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) procura construir gueto como um conceito sociológico e define o termo priorizando suas características mais evidentes, ligadas aos contextos de tensão e conflitos étnico-raciais. Diferencia tal tipo de gueto - cuja característica central é o confinamento espacial forçado - daquele a que chama de gueto voluntário. Os negros que habitavam o gueto norte-americano não podiam sair daquele espaço sem correr risco de repressão e, inclusive, de vida. Esta é uma situação bem distinta dos condomínios fechados, por exemplo, onde pessoas de classe média e alta se isolam, voluntariamente, para se afastar dos males da cidade ou para viver entre iguais.

Mas além desta característica, que é fundamental no argumento de Wacquant (2004WACQUANT, Loïc. 2004. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico [on-line]. Revista de Sociologia e Política. Disponível em: <Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id= 23802314 > ISSN 0104-4478 [Acessado em 20.11.2016].
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) para diferenciar os dois tipos de gueto, ele ainda aborda uma série de outros aspectos para definir o conceito. Antes de falar sobre tais características, gostaria de pensar o Beco principalmente no que diz respeito à diferenciação entre gueto voluntário e não voluntário. O Beco dos Artistas, quanto ao confinamento espacial fechado, não pode ser encaixado nem no conceito de gueto voluntário, nem no conceito de gueto forçado, que Wacquant (2004) aplica, por exemplo, ao gueto judeu de Varsóvia e ao gueto negro norte-americano. Isto porque essas formas de segregação espacial são fruto de momentos históricos muito específicos e de tensões sociais bem demarcadas.

Já o indivíduo que se identifica como homossexual ocupa uma posição muito particular em termos de estigma e segregação. Diferente do negro e do judeu, que não podiam sair do gueto, ou seja, que estavam submetidos a um sistema de confinamento espacial forçado, os homossexuais, por seu lado, podem sair e entrar no gueto com certa margem de liberdade, desde que não revelem publicamente sua homossexualidade. Nesse sentido, o indivíduo que se identifica como homossexual é passível de confinamento espacial forçado no que diz respeito às suas práticas, já que elas não podem ser publicizadas sem algum nível de constrangimento e coerção.12 12 Um jovem que frequenta o Beco pode entrar e sair do Beco sem maiores constrangimentos, desde que seu desejo homossexual não seja evidente. A partir do momento em que esse desejo se torna claro, provavelmente ele passará por algum tipo de constrangimento ou violência na vida pública. Nesse sentido, o gueto homossexual não pode ser considerado um gueto voluntário. Ao que parece, o gueto gay está em uma posição intermediária entre o gueto forçado e o gueto voluntário. É fruto de uma escolha, mas de uma escolha condicionada.

Wacquant (2004WACQUANT, Loïc. 2004. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico [on-line]. Revista de Sociologia e Política. Disponível em: <Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id= 23802314 > ISSN 0104-4478 [Acessado em 20.11.2016].
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) também reflete sobre uma série de outras características que definiriam um gueto. Ele vê o gueto como um dispositivo sócio-organizacional que usa o espaço com o fim de conciliar campos de tensões sociais. O Beco dos Artistas cumpre este papel, na medida em que se tornou um local onde podem ser vividos comportamentos que não são aceitos em outros lugares públicos. Há, então, a adequação de um campo de tensão social através da configuração do espaço. Aquilo que não poderia ser suportado no tecido social mais amplo é acomodado em um ponto específico. Como meio sócio-organizacional, o gueto, para Wacquant (2004), não é uma área natural, mas corresponde a uma forma muito peculiar de urbanização, modificada por relações assimétricas de poder. O gueto é um produto e um instrumento de poder. O Beco dos Artistas é fruto de uma relação assimétrica de poder e legitimidade entre práticas heterossexuais e não heterossexuais. Na ausência de uma sociedade heteronormativa englobante, que só consegue conceber como possíveis comportamentos e práticas heterossexuais, o Beco não existiria com as mesmas características e sob as mesmas condições.

O Beco dos Artistas também congrega outras características que guardam similaridades com o conceito de gueto de Wacquant: isolamento espacial e simbólico, estigmatização e um padrão peculiar de relações sociais que ocorrem em seu interior e que o diferenciam da cidade circundante (Wacquant, 2004). Ele é, hoje, um espaço extremamente estigmatizado, inclusive pelos próprios frequentadores; ele conjuga tanto o isolamento espacial quanto o isolamento simbólico e tem seus limites muito bem demarcados.

Muitos outros autores também recorrem ao conceito de “gueto gay”. Simões e França (2005SIMÕES, Júlio Assis & FRANÇA, Isadora Lins. 2005. “Do Gueto ao mercado”. In: GREEN, James Naylor & TRINDADE, Ronaldo (orgs.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp.) definem o “‘gueto homossexual’ como espaços urbanos públicos ou comerciais - parques, praças, calçadas, quarteirões, estacionamentos, bares, restaurantes, casas noturnas, saunas - onde as pessoas que compartilham uma vivência sexual possam se encontrar”. Perlongher (1987PERLONGHER, Nestor. 1987. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense.) utiliza a categoria “gueto gay” para descrever as zonas de sociabilidade homossexual em São Paulo e afirma a validade da noção como construção sociológica. Para este autor, a preferência dos homens homossexuais por perambularem em alguns espaços que marcam o “gueto gay” “teria sido, historicamente, a resposta à marginalização a que a sociedade global os condena; eles teriam encontrado aí um ‘ponto de fuga’ para os seus desejos reprimidos pela moral social” (Perlongher, 1987: 58). Além disso, afirma que uma das principais características do “gueto gay” é o isolamento social: “obrigados por preconceitos e discriminação amplamente difundidos no corpo social, os gays tendem a se isolar e a se agrupar entre si” (: 53). É neste sentido que, para o autor, o ‘dispositivo da sexualidade’ não se detém em conferir à homossexualidade uma demografia - uma base populacional. Instaura também uma territorialidade geográfica” (: 48).

Essa distribuição das pessoas através do espaço - e o próprio confinamento no que tange ao Beco - acaba por configurar uma relação entre espaço e identidades. Muitos garotos e garotas, no Beco, construíram uma ideia de que eles eram homossexuais e afirmavam isso com orgulho. Ao mesmo tempo, essa ideia vinha acompanhada de um forte essencialismo, como se esta fosse uma característica inata, incrustada no mais profundo do seu ser, uma característica imutável que os tornava diferentes. A ideia de diferença essencial entre indivíduos e subjetividades, polarizada no binômio heterossexual/homossexual, é consoante com um lugar que possa abrigar tal diferença. Vê-se assim como o lugar reitera essa percepção.

Isadora Lins França (2007FRANÇA, Isadora Lins. 2007. Sobre “guetos” e “rótulos”: tensões no mercado GLS na cidade de São Paulo [on-line]. Cad. Pagu, Campinas, n. 28, jun. 2007. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332007000100011&lng=en&nrm=iso&tlng=pt > [Acessado em 02.05.2011].
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) mostra em seu texto “Sobre ‘guetos’ e ‘rótulos’: tensões no mercado GLS na cidade de São Paulo” como a existência de diferentes espaços de sociabilidade homossexual está atrelada a distintas perspectivas em relação à identidade. Inicialmente, o sentido do termo GLS, quando traz a letra S, era o de “expandir as fronteiras do ‘gueto’ e abarcar, também, indivíduos que não se identificavam como homossexuais, mas que de alguma forma participavam desse universo” (França, 2007: 235). No entanto, com o passar do tempo e em função de seu uso corriqueiro, a sigla perdeu esse sentido de abertura e passou a indicar qualquer espaço dirigido a homossexuais. França (2007) fala ainda de alguns espaços que surgiram posteriormente com a proposta de se afastarem da ideia de gueto e de rótulos como GLS. Esses lugares geralmente prezam pela mistura e a indefinição de seu público. Para este autor, “a presença de estabelecimentos que se classificam a partir do princípio da diversidade sexual demonstra uma clara demanda por espaços que não se diferenciam pela orientação sexual de seus frequentadores” (França, 2007: 241) e que não fazem dessa orientação o aspecto a partir do qual é possível estabelecer uma classificação dos indivíduos.

Um trecho de um texto publicado em um número da Grindzine citado por França (2007FRANÇA, Isadora Lins. 2007. Sobre “guetos” e “rótulos”: tensões no mercado GLS na cidade de São Paulo [on-line]. Cad. Pagu, Campinas, n. 28, jun. 2007. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332007000100011&lng=en&nrm=iso&tlng=pt > [Acessado em 02.05.2011].
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) ilustra essa tendência de se afastar dos rótulos: “sem as classificações, sem as definições de um gueto, ninguém se tornaria nada por causa de um beijo ou de um sentimento”. O gueto, de algum modo, reforça a ideia da existência desse ser diferente - “o homossexual”. Se existe um lugar específico para homossexuais, então, é porque também existe “o homossexual” como uma espécie à parte e com uma essência própria. A crítica ao lugar, proveniente de alguns frequentadores, é também uma crítica a uma identidade supostamente fixa, imutável e verdadeira. Doreen Massey diz:

A política de inter-relações reflete, portanto, a primeira proposição de que o espaço também é um produto de inter-relações. O espaço não existe antes de identidades/entidades e de suas relações. De um modo mais geral, eu argumentaria que identidades/entidades, as relações entre elas e a espacialidade de que delas faz parte são todas constitutivas... a espacialidade pode ser também, desde o princípio, integrante da constituição dessas próprias identidades, incluindo as subjetividades políticas (Massey, 2008MASSEY, Doreen. 2008. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda Paredo Maciel e Rogério Haesbaert. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.: 30).

Massey encara assim o espaço como a esfera mesmo da multiplicidade e da mutabilidade. O espaço está, a todo tempo, se transformando e as configurações adquiridas por ele não são consequências de uma casualidade, mas fruto de relações e negociações políticas.

Se nenhum lugar/espaço é uma autenticidade coerente e contínua, então uma questão que é levantada é a de sua negociação interna. Se as identidades, tanto as especificamente espaciais quanto as outras, são, de fato, construídas relacionalmente, então isto coloca a questão da geografia dessas relações de construção (Massey, 2008MASSEY, Doreen. 2008. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda Paredo Maciel e Rogério Haesbaert. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.: 31).

Há, portanto, a necessidade de problematizar essa geografia e de perceber a relação que ela tem até mesmo com a formação de um sentido de comunidade e identidade, ainda que essa identidade seja construída e mutável. Sem desconsiderar a importância que o Beco dos Artistas tem para seus frequentadores no processo de aceitação da experiência homossexual e no sentimento de liberdade, ressalto que é o cerceamento de liberdade no tecido social mais amplo que torna necessária essa espécie de liberdade guetificada, e que tal cerceamento e controle só são possíveis através das categorias classificatórias identitárias que, ao mesmo tempo, compartimentalizam e excluem.

Considerações finais

A trajetória do Beco dos Artistas ao longo dos anos torna evidente que o espaço não é uma entidade abstrata, fechada em si. Ao contrário, tal percurso evidencia o diálogo do espaço com a trajetória de grupos sociais e o seu poder de acolhimento. Como diria Heidegger (2001HEIDEGGER, M. 2001. “Construir, Habitar, Pensar”. In: Ensaios e Conferências. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes. p. 125-141.), não há homem/mulher e para além deles o espaço. Ao pensar homem/mulher, já se pensa mesmo o/a homem/mulher no espaço. Portanto, o Beco dos Artistas se apresentou no decorrer do tempo como uma totalidade acolhedora das experiências vividas pelos seus frequentadores e evidenciou a conjunção que existe entre subjetividades, sentidos e lugares. Esse lugar - O Beco dos Artistas - nos mostra que também existe uma geografia das relações sociais, quando não das tensões sociais. Se inicialmente o Beco acolheu as experiências vividas pela classe artística e intelectual da cidade de Salvador, mais tarde acolheria um sentido ligado à vivência do desejo e de práticas homossexuais. Essa passagem, de um lugar dos artistas para outro específico para homossexuais, atrelada a fatores de classe e cor de pele, cria o contexto no qual o eixo que marca a relação do lugar com a sociedade mais ampla, e mesmo com seus frequentadores, é o da estigmatização.

O lugar ganha, claramente, configurações de um gueto no sentido atribuído por Wacquant (2004WACQUANT, Loïc. 2004. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico [on-line]. Revista de Sociologia e Política. Disponível em: <Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id= 23802314 > ISSN 0104-4478 [Acessado em 20.11.2016].
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), ou seja, de um dispositivo sócio-organizacional que tem a função de conciliar tensões sociourbanas. Lembremos que Bourdieu já colocava que o espaço habitado é uma espécie de simbolização espontânea do espaço social e que, portanto, “não há espaço em uma sociedade hierarquizada que não seja ele mesmo hierarquizado, ainda que tal hierarquização seja dissimulada pelo efeito de naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural acarreta” (Bourdieu, 1997: 160). Cabe pensar, então, nas hierarquias que um lugar como o Beco elucida quando se trata de sexualidade, gênero, cor de pele e classe social.

Se, por um lado, o Beco significa, antes de qualquer coisa, um espaço de libertação para seus frequentadores no que tange à sexualidade, por outro lado, ele cumpre o papel de confinar em um lugar específico práticas e comportamentos que não são bem aceitos fora dele. Esse confinamento, por sua vez, produz a relação entre lugar e identidade, de modo que o lugar alimenta um sentimento de pertencimento assim como a sensação de homossexualidade quase fruto de uma essência. Ao mesmo tempo em que o Beco dos Artistas é um espaço de libertação e de transgressão das normas de gênero e sexualidade vigentes na sociedade mais ampla, ele também é o resultado de uma hierarquia/opressão social, fruto dessas mesmas normas.

Referências bibliográficas

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  • 1
    Para maiores informações ver: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/11/homicidio-de-jovens-negros-cresce-cada-ano-na-ba-impunidade-permite.html.
  • 2
    O Grupo Gay da Bahia é a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil. Fundado em 1980, registrou-se como sociedade civil sem fins lucrativos em 1983, sendo declarado de utilidade pública municipal em 1987. Para maiores informações sobre violência contra homossexuais no estado da Bahia, ver o relatório de 2015 produzido pelo GGB e disponível em: https://grupogaydabahia.com.br/2016/01/28/assassinato-de-lgbt-no-brasil-relatorio-2015/
  • 3
    Todos os nomes de estabelecimentos comerciais citados neste artigo são fictícios.
  • 4
    Opto pela sigla GLS e não LGBT por três motivos. Primeiro, pelo fato de esta sigla fazer referência a espaços de consumo voltado para um público majoritariamente homossexual, como é o caso do Beco dos Artistas, enquanto a sigla LGBT tem caráter mais político, ligado à afirmação de identidades dentro dos movimentos sociais. Segundo, porque os próprios frequentadores classificam o Beco dos Artistas como um “lugar GLS”. E, por fim, porque diante da necessidade de nominar, optei por uma sigla que, a meu ver, recorre menos a um esforço de categorização precisa dos sujeitos.
  • 5
    A etnografia foi realizada entre os anos de 2008 e 2010, por aproximadamente três anos, para a escrita da minha dissertação de mestrado.
  • 6
    Goby é uma gíria utilizada na cidade de Salvador-Ba para se referir a meninas que são visivelmente inclinadas para a homossexualidade, mas que ainda estão se descobrindo. A gíria também se refere a um estilo, a goby não é nem feminina e nem masculina, ela é um meio-termo entre a lady (lésbicas que adotam um estilo mais feminino) e o bofinho (lésbicas mais masculinizadas).
  • 7
    O nome La Bohême fazia referência a uma canção francesa muito popular, composta por Charles Aznavour e por ele gravada pela primeira vez em 1965.
  • 8
    Para Milton Santos (2006SANTOS, Milton. 2006. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.), o lugar é uma subespécie do espaço; o lugar é uma diferenciação no espaço total que lhe confere uma especificidade e uma definição particular sem, no entanto, deixar de carregar consigo as características mais gerais do espaço. Milton Santos (2006) define o lugar como a funcionalização do mundo e é por ele que o mundo é percebido empiricamente. O espaço, por outro lado, é uma categoria mais ampla e abstrata, é uma ordem geral que regula e coordena as ordens exclusivas de cada tempo particular; o espaço é que reúne todos com suas múltiplas possibilidades. Para Santos (2006), espaço e lugar não estão dissociados, as características particulares do lugar só se elucidam através do sentido mais amplo de espacialidade.
  • 9
    Rosa Madalena era uma antiga frequentadora do Beco, costureira e, na época, tinha muitos problemas e brigas com seu marido. Nesses momentos, ela sempre recorria ao Beco, quase como um refúgio das tensões familiares.
  • 10
    Este dado foi retirado do livro-reportagem sobre o Beco dos Artistas desenvolvido por Amanda Mendes e Luise Figueiredo, em 2009, pela Faculdade Dois de Julho, em Salvador.
  • 11
    França (2004) diz: “‘Rótulo’, neste contexto, é um termo êmico que indica de maneira ampla um processo de classificação identitária em que se interpelam determinados indivíduos de modo a produzir o seu reconhecimento como sujeitos a partir de um determinado esquema classificatório” (França, 2007: 249).
  • 12
    Um jovem que frequenta o Beco pode entrar e sair do Beco sem maiores constrangimentos, desde que seu desejo homossexual não seja evidente. A partir do momento em que esse desejo se torna claro, provavelmente ele passará por algum tipo de constrangimento ou violência na vida pública.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2014
  • Aceito
    30 Ago 2016
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