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Apresentação - Um Leque de Temáticas, um Arco de Sentimentos: subjetividade, emoções e políticas públicas

Este dossiê reúne um conjunto de artigos voltados para a discussão do lugar das emoções e da subjetividade em políticas públicas1 1 O dossiê toma por base o conjunto de artigos apresentados no painel “Emoções, Subjetividade e Políticas Públicas, realizado no âmbito do VII Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (Lisboa, junho de 2019). . Ao recobrir um conjunto de políticas em diversas áreas, a atenção das autoras se volta para o lugar das emoções nas políticas públicas, comumente entendidas, a exemplo de tantos fenômenos da chamada “esfera pública”, como espaços da vida refratários à ação dos afetos.

Nesse sentido, o dossiê dá continuidade à preocupação de explorar os limites e possibilidades do estudo socioantropológico das emoções, voltada para o exame da fecundidade analítica do estudo das emoções em movimentos sociais, no policiamento, em instituições e no universo do trabalho (Coelho e Durão, 2017COELHO, Maria Claudia e DURÃO, Susana. (2017). “Introdução ou Como Fazer Coisas com Emoções”. Interseções. Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, pp. 44-60.); na interseção entre emoções, gênero e sexualidade (Bispo e Coelho, 2017BISPO, Raphael e COELHO, Maria Claudia. (2017). “Emoções, Gênero e Sexualidade: apontamentos sobre conceitos e temáticas no campo da Antropologia das Emoções”. Cadernos de Campo, v. 28, n. 2, pp. 2-13.); ou em projetos de maior amplitude temática (Coelho e Rezende, 2011COELHO, Maria Claudia e REZENDE, Claudia Barcellos (orgs.) (2011). Cultura e Sentimentos - ensaios em antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FAPERJ/Contracapa.; Víctora e Coelho, 2019VÍCTORA, Ceres e COELHO, Maria Claudia. (2019). “A antropologia das emoções: conceitos e perspectivas teóricas em revisão”. Horizontes Antropológicos, v. 25, pp. 7-21), incluindo o exame de dilemas teóricos do estudo das emoções. A esses trabalhos vêm se somando recentemente, no Brasil e na América Latina, outras iniciativas de publicações conjuntas de trabalhos na área da Antropologia das Emoções, tais como os dossiês “Teorizar lo emotivo: antropología y emoción” (Sirimarco e Spivak L´Hoste, 2018SIRIMARCO, Mariana e SPIVAK L´HOSTE. (2018). “Introducción - La emoción como herramienta analítica en la investigación antropológica”. Etnografías Contemporáneas, v. 4, n. 7, pp. 7-15.) ou “Nojo, humilhação e desprezo: uma antropologia das emoções hostis e da hierarquia social” (Díaz-Benitez, Gadelha e Rangel, 2021DÍAZ-BENITEZ, María Elvira, GADELHA, Kaciano e RANGEL, Everton. (2021). “Nojo, humilhação e desprezo: uma antropologia das emoções hostis e da hierarquia social”. Anuário Antropológico, v. 46, n. 3, pp. 10-29.).

Se as áreas das políticas públicas contempladas pelas análises deste dossiê são várias, as emoções analisadas não ficam atrás na amplitude da atenção. Vergonha, humilhação, medo, confiança, ódio e compaixão compõem o foco das análises, e aqui cumpre destacar um fio que as aproxima: trata-se, em particular, de discutir os sentimentos provocados pela aplicação dessas políticas, sentimentos esses que se constituem ora em resultados paradoxais dessas políticas, ora em efeitos não pretendidos ou antevistos (embora nem por isso menos nefastos).

Maria Claudia Coelho e Helena Bomeny analisam as políticas de avaliação científica e seu impacto sobre as dinâmicas institucionais, os processos de produção de conhecimento científico e a subjetividade dos pesquisadores. Os dados analisados são um conjunto de entrevistas em profundidade realizadas com pesquisadores sênior, titulados há mais de vinte anos e vinculados a instituições de ensino e pesquisa do estado do Rio de Janeiro. As autoras se utilizam do arcabouço conceitual de Pierre Bourdieu, em particular seu conceito de histerese, para discutir os impactos subjetivos das alterações ocorridas nas políticas de avaliação científica a partir dos anos 1990, com ênfase no imperativo para a competição. O conceito de histerese, referente a um momento definido por Bourdieu como de “desencaixe” entre o campo e o habitus - ou seja, como uma incompatibilidade temporária entre a forma como a academia se organiza e as disposições subjetivas que organizam a ação individual (Hardy, 2018HARDY, Cheryl. (2018). “Histerese”. In: M. Grenfell (org.). Pierre Bourdieu - conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes, pp. 169-193.) -, é acionado para analisar a experiência desses pesquisadores, cuja socialização para o trabalho acadêmico, seus “anos de formação”, são anteriores a essas transformações. Esses pesquisadores, em momento posterior da carreira, precisam se adaptar, em seu desempenho profissional, a um conjunto de regras pautado por outros princípios. Surgem aí diversos sentimentos ligados à autoestima, como a vergonha ou a humilhação, narrados em seus relatos de situações de competição, rejeição e fracasso. Em suas conclusões, as autoras sugerem a importância de se prestar atenção a essas gramáticas emocionais engendradas pelas próprias dinâmicas da avaliação científica, uma vez que essas gramáticas, em muitos casos, provocam sofrimento, afetando assim o próprio processo de produção científica no Brasil.

Claudia Rezende aborda o Programa de Humanização do Pré-Natal e do Nascimento (PHPN) adotado pelo Ministério da Saúde no Brasil em 2000 sob uma perspectiva distinta daquela usualmente adotada pelos estudiosos das políticas públicas. Em vez de focar em sua (in)eficácia, a autora discute seus efeitos sobre um grupo a princípio estranho ao universo de abrangência do PHPN: as gestantes usuárias do sistema privado de saúde. Embora, como a autora explica, o PHPN recubra o sistema privado, sua área de fiscalização restringe-se às operadoras de planos de saúde, a quem cabe fiscalizar hospitais e médicos. Abordando relatos de mulheres que pariram após a implementação do PHPN, Rezende discute como a linguagem dos “direitos” é substituída por uma linguagem de afetos, entre os quais o “respeito”, o “carinho” e a “confiança”. Para a autora, no sistema privado de saúde a existência de diretrizes e direitos não garante à parturiente que seu parto se dê conforme desejado, planejado e combinado com o obstetra. Nesse universo, o foco principal está na confiança, entendida, à luz das considerações de Anthony Giddens, como um sentimento que compensaria o risco inerente ao comportamento futuro de sistemas e pessoas. É assim que o “carinho” e o “respeito” da equipe para com os desejos, necessidades e dificuldades da parturiente no momento do parto garantem a “confiança” que fará, no universo do sistema privado de saúde, o papel daqueles “direitos” garantidos pelo PHPN, em um instigante paradoxo que torna as mulheres usuárias da saúde privada mais vulneráveis a “desrespeitos”, devido ao raio de alcance da atuação do PHPN.

Jullyane Ribeiro toma como objeto a violência de gênero, abordada pelo prisma de um projeto de conscientização de mulheres migrantes e refugiadas desenvolvido em bairros da periferia da cidade de São Paulo. A construção do texto entrelaça dois problemas teóricos: a dimensão micropolítica das emoções e a concepção da “vítima” como uma formação contemporânea da subjetividade. A autora etnografa diversos encontros desse projeto, contrastando as percepções de seu público-alvo - mulheres migrantes ou refugiadas provenientes de países diversos - com a “pedagogia” do projeto. Nessa pedagogia, a denúncia é um instrumento-chave que visa libertar essas mulheres de uma situação de opressão, processo no qual elas devem, primeiro, reconhecer sua condição de “vítima”. O ponto do artigo, contudo, é que colocar-se nesse lugar significa, para várias dessas mulheres, e por razões distintas entre si, não uma libertação, mas a criação de novos problemas ou mesmo de uma nova forma de subjugação. Os novos problemas: a perda do sustento material provido pelo marido a ser denunciado ou a “má fama” em suas comunidades de referência. A nova forma de subjugação: a perda do lugar de liderança construído em experiências políticas prévias em seus países de origem. O percurso vítima-denúncia não é, assim, uma universalidade conforme suposto na pedagogia do projeto, comportando, ao contrário, visões multifacetadas. O momento etnográfico de abertura do texto é particularmente revelador. A fala da coordenadora de políticas para as mulheres é um misto de denúncia e testemunho, em que não só insta (a partir de seu lugar institucional) as mulheres a denunciarem a “violência de gênero” de que seriam vítimas, como o faz a partir do oferecimento de sua própria experiência como “vítima que não se calou”, sugerindo uma démarche vítima-denúncia-empoderamento, em um esforço para criar uma identificação. Mas ao menos uma mulher, Chara, sentada ao lado da etnógrafa, recusa a chave identificatória e sussurra em seu ouvido: “coitada”. A pena, como mostra a literatura especializada acionada por Ribeiro, desempenha um papel micropolítico, demarcando fronteiras e assimetrias. Assim, Chara, ao sentir pena da coordenadora, faz mais do que recusar a identificação: ela demarca a distinção entre suas experiências de vida e se atribui um lugar de superioridade, típico da relação entre aquele que dá e aquele que recebe compaixão (Clark, 1997CLARK, Candace. (1997). Misery and Company - sympathy in everyday life. Chicago & London: The University of Chicago Press. 323 p.).

O artigo de Iara Beleli analisa as políticas desenvolvidas por Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Essas políticas tiveram como foco a “defesa da família” como um projeto de governo, em estreita relação com o anti-feminismo e com a crítica à chamada “ideologia de gênero”. O ponto de partida do texto é a inclusão da famosa citação de Simone de Beauvoir (“ninguém nasce mulher”) em uma prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no Brasil, em 2015, e as reações suscitadas, fortemente marcadas por críticas virulentas ao feminismo. Beleli discute como, em oposição às “mulheres de bem”, o termo “feminista” se tornou, nesses discursos, uma categoria acusatória, associada a termos francamente pejorativos como “porcas” e “putas”, cujos sentidos são esmiuçados na análise. O artigo articula, assim, a relação entre a formulação, a implantação e a recepção desse conjunto de políticas públicas para as mulheres e os discursos de ódio presentes nas redes sociais. Para a autora, trata-se de uma forma de gestão das emoções baseada na inculcação da dúvida, com o ódio sendo um sentimento capaz de perpassar todo o tecido social, em razão da relação existente entre essa forma de violência simbólica e a “vida miúda”. Seguindo as postulações de Sara Ahmed, Beleli examina ainda a relação presente, nesse trânsito entre os planos da violência discursiva e da existência cotidiana, entre o medo - das transformações sociais - e o ódio - àqueles que defendem e se engajam na luta por essas transformações.

Sob uma perspectiva comparativa entre diversos países, Argentina, Brasil e Espanha entre eles, Adriana Piscitelli analisa as políticas de combate ao tráfico de pessoas. Seu foco está na imbricação, muitas vezes produzida, entre as políticas de combate à criminalidade e as políticas de imigração, imbricação essa condensada no conceito de “crimigração”. O medo, sentimento-chave da análise, é discutido à luz de um paradoxo: as pessoas supostamente “vítimas” do tráfico de pessoas sentem medo não daqueles que as traficam, mas sim daqueles (a polícia, em particular) que a princípio atuam para tirá-las dessa condição de “traficadas”, recorrendo a estratégias por elas muitas vezes definidas como “violência”. A situação-síntese desse medo é a deportação, ato no qual a “vítima do tráfico”, transformada em “imigrante ilegal”, é presa, eventualmente maltratada e enviada de volta a seu país de origem, muitas vezes contra a sua vontade. O paradoxo, assim, coloca, de um lado, uma retórica de proteção aos direitos humanos (que defenderia a “vítima” do tráfico de pessoas) e, de outro, criminalização e repressão (quando essa “vítima” desliza para a condição de “imigrante ilegal” e, em seguida, de “deportada”). Piscitelli discute ainda, com base em cenas etnográficas e análise de imagens, a relação entre humanitarismo e securitização, abordando a dissociação entre o medo e a compaixão: a esse deslizamento de “vítima do tráfico de pessoas” para “imigrante ilegal” corresponderia um deslizamento emocional, em que a compaixão que a vítima poderia suscitar cede lugar ao medo da “invasão” associado à figura do “imigrante ilegal”.

Cecília Luís analisa a experiência emocional associada à situação dos imigrantes “indocumentados” em Portugal. Distinguindo o refugiado do migrante econômico, a autora realiza sua pesquisa com imigrantes de diversas nacionalidades, de países asiáticos, africanos e latino-americanos (Brasil), que têm em comum uma situação paradoxal: vínculos empregatícios com pagamento de impostos sem, contudo, obterem a documentação que lhes garante a permanência no país. A autora discute uma complexa gramática emocional anunciada já na relação que os entrevistados com ela entretêm, ora marcada pelo medo - de conceder uma entrevista ou mesmo de agendar um local para ser entrevistado, em um jogo que se assemelha a um esconde-esconde -, ora pela confiança - como quando recorrem a ela para que lhes assegure de que não serão deportados. Nos dois casos, a pesquisadora é colocada no lugar de alguém dotado do poder de garantir/negar a legalização da situação, seja pelo medo de se expor ao aceitar a entrevista, seja pela atribuição do saber quanto à possibilidade da deportação. A situação de “indocumentação” gera uma rica e multifacetada gramática emocional, integrada pelo medo, pela solidão, pela indignação (diante do que consideram uma injustiça - pagar impostos, mas não ter direito aos documentos) e pela esperança. Conjugados, esses sentimentos trazem o espaço do não-pertencimento para o plano temporal, definindo a vida do migrante indocumentado como uma “vida em espera”.

Antónia Pedroso de Lima entrelaça as teorias do cuidado e o estudo das emoções para compreender os impactos das políticas de austeridade adotadas em Portugal entre os anos de 2010 e 2015. Aqui, o cuidado surge como um “mediador” entre os dois polos do tema deste dossiê. O objeto da análise são as redes de cuidado informal, criadas por família e vizinhanças, para prover as necessidades fundamentais de sobrevivência daqueles mais fortemente afetados pelas perdas salariais, cortes de pensões e desemprego causados pela adoção dessas políticas. Passa-se, assim, na feliz expressão utilizada pela autora, de um “estado-providência” para uma “sociedade-providência”. Esse conjunto de estratégias de sobrevivência, contudo, não se faz sem um alto custo emocional, como no caso da ex-secretária que fala de sua vergonha ao recorrer ao trabalho de faxina para sobreviver ou do engenheiro falido deprimido por ser sustentado pela esposa e pela filha. O ponto central da análise da autora é a relação entre os sentimentos da vergonha e da humilhação, definidos por seus impactos sobre a autoestima do sujeito, conforme aponta a literatura especializada (Scheff, 1990SCHEFF, Thomas. (1990). “Shame and Conformity: the deference-emotion system”. In: Microsociology - discourse, emotion, and social structure. Chicago and London, University of Chicago Press, pp. 71-95.) e a percepção de si como pessoa, profundamente afetada pela radical reestruturação da vida, dos projetos e do cotidiano, provocada pelas estratégias do cuidado e do provimento suscitadas pelos impactos da adoção das políticas de austeridade.

Temos, assim, um leque e um arco. O leque: as diversas áreas de atuação das políticas públicas investigadas. O arco: os sentimentos colocados em foco, os quais, na sequência que escolhemos adotar, principiam pela vergonha e pela humilhação, passam pelo medo e pelas articulações por ele estabelecidas com outros sentimentos - compaixão, ódio, confiança - e retornam à vergonha e à humilhação.

Essa disposição deliberada dos sentimentos analisados como um arco não se deu, evidentemente, por acaso. O propósito foi dispô-los de forma a propiciar a exposição de um conjunto de problemas teóricos que integram a agenda de pesquisa na área da Antropologia das Emoções.

O primeiro deles é a capacidade micropolítica das emoções. O conceito de “micropolítica das emoções” foi formulado por Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod (1990LUTZ, Catherine e ABU-LUGHOD, Lila. (orgs.) (1990). Language and the Politics of Emotion. Cambridge: Cambridge University Press.) na introdução a um volume seminal do campo. Essa “micropolítica” é a capacidade das emoções de dramatizar, reforçar ou alterar as macro relações de poder, hierarquia e autoridade no seio das quais as interações entre indivíduos se dão, suscitando sentimentos diversos. Entre esses sentimentos que são tributários das relações de poder, hierarquia ou autoridade, podemos citar, à guisa de exemplos, a gratidão (Simmel, 1964SIMMEL, Georg. (1964). “Faithfulness and Gratitude”. In: Kurt H. Wolff (org.) - The Sociology of Georg Simmel. New York, The Free Press.), o desprezo (Miller, 1997MILLER, William Ian. (1997). The Anatomy of Disgust. Cambridge: Harvard University Press. 336 p.) ou a compaixão (Clark, 1997CLARK, Candace. (1997). Misery and Company - sympathy in everyday life. Chicago & London: The University of Chicago Press. 323 p.). Na gratidão, Simmel identifica a substituição da retribuição de uma dádiva impagável por um sentimento, o qual subordinaria o receptor ao doador, colocando-o em situação de inferioridade hierárquica. Já o desprezo seria, para Miller, uma emoção de “demarcação de status”, guardando estreita relação com as formas de organização política. A compaixão, por sua vez, na leitura de Clark, demarcaria fronteiras entre grupos sociais e estabeleceria assimetrias, inferiorizando aquele que é alvo da compaixão diante daquele que a concede, servindo-nos, como no texto de Jullyane Ribeiro, para pensar os limites do alcance da pedagogia da vitimização que discute em seu texto.

Esses sentimentos, contudo, com enorme frequência não surgem sozinhos na experiência subjetiva individual, formando gramáticas em que aparecem atrelados, por vezes sob a forma de “deslizamentos”, ou seja, um surgindo em substituição ou em decorrência de outro. Exemplos dessas “gramáticas” emocionais são a articulação entre ciúme e amor, discutidos por Rezende e Coelho (2010REZENDE, Claudia Barcellos e COELHO, Maria Claudia. (2010). Antropologia das Emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV.), em relação com as formas de organização do casamento, ou a passagem da humilhação para a raiva em cenas de assassinatos (Katz, 2013KATZ, Jack. (2013). “Massacre Justo”. In: COELHO, Maria Claudia (org). Estudos sobre Interação - textos escolhidos. Rio de Janeiro, EdUERJ, pp. 211-284.), ou ainda a transmutação da raiva em desprezo e compaixão (Coelho, 2010COELHO, Maria Claudia. (2010). “Narrativas da Violência: a dimensão micro-política das emoções”. Mana, vol. 16, pp. 1-20. ).

Nos textos dessa coletânea, o estudo dos sentimentos sob a forma desses “complexos emocionais” aparece diversas vezes, tendo o medo como eixo principal. É o caso do deslizamento entre o medo e a compaixão, analisado por Adriana Piscitelli ao discutir a substituição da compaixão pela “vítima” do tráfico de pessoas pelo medo do “invasor”, quando essa vítima é transformada em um imigrante ilegal; ou da oscilação entre o medo e a confiança, ambos suscitados nos imigrantes indocumentados pesquisados por Cecília Luís em relação com a própria pesquisadora; ou ainda entre o medo e o ódio nas lutas por transformações sociais discutidas por Iara Beleli.

Esse ódio, capaz de impregnar todo o tecido social (como afirma Beleli), seria assim um sentimento que atuaria na contramão de outras emoções discutidas pela teoria social, merecedoras de atenção justamente por sua capacidade de oferecer uma resposta à indagação de como explicar a coesão e a estabilidade da vida social. É essa a chave interpretativa acionada por Simmel (1964SIMMEL, Georg. (1964). “Faithfulness and Gratitude”. In: Kurt H. Wolff (org.) - The Sociology of Georg Simmel. New York, The Free Press.) ao discutir a fidelidade - um sentimento “sociologicamente orientado”, nas palavras do autor, ou seja, que trabalha a favor da manutenção de relações criadas por motivações emocionais outras. A confiança, analisada por Claudia Rezende em outra matriz teórica, atuaria no mesmo sentido, substituindo a linguagem dos direitos pela linguagem dos afetos.

Os textos reunidos aqui nos permitem discutir ainda um outro problema de teoria social: as razões afetivas para a sujeição individual às normas sociais. Esse é o problema discutido por Thomas Scheff (1990SCHEFF, Thomas. (1990). “Shame and Conformity: the deference-emotion system”. In: Microsociology - discourse, emotion, and social structure. Chicago and London, University of Chicago Press, pp. 71-95.) em sua análise da vergonha. Para o autor, a sociologia durkheimiana, ao discutir a capacidade coercitiva do fato social, adotaria um viés essencialmente cognitivo, deixando de lado o problema da dinâmica emocional envolvida na adesão às normas. Scheff sustenta ser a vergonha o “cimento emocional” dessa adesão, formando com o embaraço analisado por Erving Goffman (2011GOFFMAN, Erving. (2011). “Constrangimento e organização social”. In: Ritual de interação: Ensaios sobre o comportamento face a face. Petrópolis, Vozes, pp. 95-109.) e com a humilhação uma “família de sentimentos” definida pela construção de uma imagem de si com base no olhar do outro.

É essa a chave interpretativa acionada pelos dois textos que escolhemos para abrir e fechar essa coletânea. No texto de abertura, Coelho e Bomeny discutem os sentimentos de vergonha e humilhação presentes em narrativas de fracassos e rejeições em pleitos de pesquisadores, discutindo o tipo de sofrimento engendrado pelo imperativo da competição presente nas atuais políticas de avaliação científica no Brasil. No texto que fecha esse volume, Pedroso de Lima discute a vergonha e a humilhação suscitadas pelas estratégias de sobrevivência a que muitos portugueses se viram forçados a recorrer diante da situação econômica provocada pela adoção das políticas de austeridade. Nos dois casos, um último tema se impõe: as possibilidades de construção da autoestima como um problema de teoria social, em estreita relação com o estudo das emoções.

O estudo socioantropológico das emoções pode, assim, “servir” para muitas coisas. Pode nos servir para compreender a relação existente entre as macro estruturas da organização social e a emergência de gramáticas emocionais específicas, que ao mesmo tempo explicam e são explicadas por elas, conforme sintetiza com clareza ímpar Arlie Hochschild (2013HOCHSCHILD, Arlie. (2013). “Trabalho Emocional, Regras de Sentimento e Estrutura Social”. In: COELHO, Maria Claudia (org.). Estudos sobre Interação - textos escolhidos. Rio de Janeiro: EdUERJ, pp. 169-209.) ao afirmar que as emoções são “o lado oculto da ideologia”. Pode nos servir para entender quais os elementos fundamentais para que a vida social seja dotada de um mínimo de estabilidade e coesão, sem as quais a co-existência seria impossível, ou as formas subjetivas de adesão às normas sociais, pavimentando assim um caminho para a análise tanto dos fenômenos anômicos, como, principalmente, dos fenômenos nômicos, tão invisibilizados sociologicamente, como discutem, cada qual por seu caminho, Erving Goffman (2013) e Elias e Scotson (2000ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro, Zahar. 228 p.). E, finalmente, pode nos servir para compreender pequenos dramas subjetivos que, apesar de individualmente vivenciados, têm raízes profundamente fincadas em aspectos da organização social e da configuração cultural, abrindo assim um caminho para o estudo daquelas formações sociais e culturais que estão na base de tantas formas de sofrimento individual, como na análise das agruras de Mozart empreendida por Norbert Elias (1995ELIAS, Norbert. (1995). Mozart - sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 152 p.).

A reunião desse conjunto de textos, ao tomar políticas públicas em diversas áreas como objetos, e acionar como viés analítico a Antropologia das Emoções, pretende oferecer uma contribuição que vai além do aprofundamento desse conjunto de problemas teóricos que integram a agenda de pesquisa na área. O momento político vivido hoje por tantos países é marcado por uma intensa polarização que acirra a dimensão emocional da vida política (Mouffe 2015MOUFFE, Chantal. (2015). Sobre o Político. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.), trazendo para o proscênio sentimentos como o medo, o ódio e a esperança, entre outros. A formulação de políticas públicas é uma das arenas nas quais se dá esse embate entre visões de mundo divergentes eivado de afetos, sinalizando para a inegável urgência de voltar o olhar antropológico para o papel das emoções na política, tal como discutido por Goodwin, Jaspers e Polletta (2001) em relação aos movimentos sociais ou como sugerido por Coelho e Oliveira (2020COELHO, Maria Claudia e OLIVEIRA, Eduardo. (2020). “Reflexões sobre o tempo e as emoções na antropologia: definições, práticas e políticas”. Sociologia & Antropologia, v. 10, n. 3, pp. 1087-1100.) em campanhas políticas recentes no Brasil. É para essa imbricação entre teoria e política na agenda de pesquisa das Ciências Sociais que esse esforço de compreensão do lugar das emoções na política - com foco específico na formulação, recepção e impacto de políticas públicas - pretende contribuir.

Referências Bibliográficas

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    O dossiê toma por base o conjunto de artigos apresentados no painel “Emoções, Subjetividade e Políticas Públicas, realizado no âmbito do VII Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (Lisboa, junho de 2019).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022
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