Resumo
O desejo sexual das mulheres tem sido objeto de vários estudos, principalmente focando-se em sua falta ou diminuição. Este trabalho objetivou analisar, sob a perspectiva dos estudos de gênero, a narrativa de mulheres, em relacionamentos prolongados, que consideravam seu desejo sexual como muito bom. Para tanto, foram selecionadas doze mulheres, oriundas de três consultórios de ginecologia, com faixa etária variando de 32 a 78 anos. A partir da realização de entrevistas semiestruturadas e análise de conteúdo, foram encontradas 4 categorias: 1) Processo de desromantização; 2) Exercício de si mesma; 3) Parceria na relação conjugal e 4) Vitalidade e vivacidade. Aponta-se, nessas mulheres, um processo de desligamento progressivo dos papéis sexuais tradicionalmente atribuídos a elas, resultando em maior assertividade e autocentramento, refletindo-se nas suas parcerias e na forma de conduzir as suas vidas no plano pessoal e sexual.
Palavras-chave:
desejo sexual; gênero; mulher; libido; Brasil.
Abstract
The women’s sexual desire have been the subject of several studies, mainly focusing on their lack or decrease. This study aimed to analyze, from the perspective of gender studies, the narrative of women in long-term relationships who considered their sexual desire as “very good”. In this purpose, twelve women were selected, from three gynecology clinics, with ages ranging from 32 to 78 years. Starting with semi-structured interviews and content analysis, 4 categories were found: 1) Deromantization process; 2) Exercise of the inner self; 3) Partnership in marital relationships and 4) Vigor and mettle. In these women, a process of progressive disconnection from the sexual roles traditionally attributed to them is pointed out, resulting in greater assertiveness and self-centering, reflected in their partnerships and in their way of conducting their lives on a personal and sexual level.
Keywords:
Sexual desire; libido; gender; woman; Brazil.
Resumen
El deseo sexual de las mujeres ha sido objeto de varios estudios, principalmente enfocándose en su falta o disminución. Este trabajo tuvo como objetivo analizar, desde la perspectiva de los estudios de género, las relaciones prolongadas que consideraban su deseo sexual como muy bueno. Para ello, se seleccionaron doce mujeres, provenientes de tres consultorios de ginecología, con edades que variaban entre 32 y 78 años. A partir de la realización de entrevistas semiestructuradas y análisis de contenido, se encontraron 4 categorías: 1) Proceso de desromantización; 2) Ejercicio de sí misma; 3) Compañerismo en la relación conyugal; y 4) Vitalidad y vivacidad. Se señala, en estas mujeres, un proceso de desconexión progresiva de los roles sexuales tradicionalmente atribuidos a ellas, resultando en mayor asertividad y autoenfoque, reflejándose en sus relaciones y en la manera de llevar sus vidas en el plano personal y sexual.
Palabras clave:
deseo sexual; libido; género; mujer; Brasil.
Introdução
O desejo sexual tem sido objeto de interesse e estudo desde a Antiguidade, e as suas especificidades têm intrigado filósofos, psicólogos, sociólogos, médicos e a população em geral. Entre muitas definições, pode ser conceituado como uma experiência cognitiva, caracterizada por pensamentos, fantasias, motivações; uma entidade emocional enquanto interesse sexual e vontade de fazer sexo; ou um evento comportamental, como a receptividade ou a iniciação da atividade sexual (Brotto; Woo, 2012).
Segundo Butler (2004) ser homem ou mulher na nossa sociedade é uma identidade constituída pela performance, no qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia. Foucault (1979) destaca que, a partir do século XII, a sexualidade desponta como alvo de uma certa forma de poder por meio da subjetivação e práticas sociais que moldam o corpo do sujeito. A ideia de que as mulheres tinham menos “capacidade sexual” foi cristalizada a partir do século XX, quando a sexologia tornou-se um campo cada vez mais médico, e o que era comportamento recorrente foi considerado como se determinado biologicamente, imutável, invisibilizando outras influências, como a cultural (Rohden, 2002).
Hodiernamente, o desejo sexual desperta o interesse na comunidade científica principalmente pela sua falta ou diminuição, sendo a queixa sexual mais frequente entre as mulheres, variando da ordem de 8 a 55% na literatura internacional, dependendo da população estudada (Leiblum, 2012) e, no Brasil, de 11 a 75% (Wolpe et al., 2017). No nosso país, essa diminuição é quatro vezes mais comum nas mulheres que nos homens (Abdo, 2004), e a maioria das pesquisas que têm sido realizadas sobre o tema tem viés biológico na escolha da amostra e/ou na interpretação dos dados, estudando mulheres que tenham determinada doença ou estejam em determinado status hormonal (Araújo; Zanello, 2022).
Entre as mulheres, o desejo tem sido considerado não o resultado direto de fatores biológicos, mas uma interação complexa destes com outros fatores, como: psicológicos, como alterações do humor e automonitoramento crítico durante o ato sexual; socioculturais, como as crenças e valores que são o resultado do componente social que promove expectativas e idealizações sobre a atividade sexual; e, finalmente, fatores interpessoais, como a satisfação delas com o relacionamento, a qualidade da comunicação entre o casal, resultando na sua motivação para o sexo (Abdo et el., 2010; Thomas; Thurston, 2016).
A partir de uma perspectiva sociocultural, o comportamento sexual pode ser considerado como um processo aprendido, específico de contextos culturais e históricos, nos auxiliando a compreender a diferença de desejo entre homens e mulheres sob outra ótica (Bozon, 2004). Os sujeitos seriam os atores sociais, que seguiriam roteiros sexuais. Esses roteiros teriam três níveis: o cultural, que instrui o comportamento de acordo com o gênero, idade, etnicidade; o interpessoal, no qual o ator social atua de acordo com padrões institucionalizados de interação; e o intrapsíquico, no qual o indivíduo usa o seu diálogo interno com as expectativas culturais e sociais (Gagnon, 2006).
Em muitas culturas, esses roteiros se percebem a partir do binômio atividade - passividade. Ao homem cabe o papel ativo, o investir, o mito do desejo incontrolável (impossível de se renunciar), a valorização da iniciação sexual mais precoce, e de um maior número de parceiras, sequenciais ou concomitantes. Cabem à mulher, a passividade, caracterizada pelo resistir, o retardo do início da vida sexual, a ausência de iniciativa, o menor número de parceiros, o pudor e a continência sexual, além de procurar estar dentro de um padrão estético para ser considerada objeto de desejo do outro (Bozon, 2004; Gagnon, 2006; Heilborn, 2006; Zanello, 2018).
A sociedade brasileira, apesar da imagem socialmente difundida como maleável e erotizada, é caracterizada por uma sexualidade pautada por rígidos códigos de conduta relacionados ao gênero (Heilborn, 2006). O acesso à atividade sexual é assimétrico, e difere entre homens e mulheres, de acordo com os seus scripts sexuais, assinalando a quem, quando, como e a que preço, o prazer é reservado. Para as mulheres, há a expectativa que a sua prática sexual esteja associada ao amor romântico. Assim, exclusivamente para elas, a sexualidade se retira da dialética do prazer entre os parceiros e se inscreve no campo legítimo da afetividade, distanciada do erotismo (Castro, 2009).
Segundo Zanello (2018), as mulheres se subjetivam na nossa cultura através dos dispositivos amoroso e materno. No dispositivo amoroso, ser escolhida por um homem é um pilar identitário para as mulheres, que para isso, são demandadas em estar dentro de um certo ideal estético e ter um comportamento adequado a “uma mulher para casar”. Depois de escolhidas, investem assimetricamente nas relações, e são consideradas como as responsáveis por mantê-las, nem que tenham que recorrer, muitas vezes, a silêncios, renúncias, subterfúgios e à negação das suas vontades. O casamento é fonte de status social, e muitas vezes, as mulheres se “casam com ele”, independentemente da satisfação que obtenham com o parceiro e com a relação.
O dispositivo materno é o outro pilar identitário das mulheres, no qual as características da doçura, altruísmo, abnegação, empatia e disponibilidade incessante a cuidar, são naturalizadas como femininas. Aprendem a priorizar o bem estar do outro, em detrimento do próprio, estendendo os benefícios dos seus cuidados não só a filhos, cônjuge, mas, frequentemente, a todos os familiares e nas relações de trabalho. Colocar-se no centro das suas escolhas as leva ao risco de perder a aprovação social e o amor das pessoas. Em uma interesecção dos dois dispositivos, são ensinadas que apenas servindo aos homens, serão escolhidas por eles. As mulheres se subjetivam assim, no hetero-centramento (Zanello, 2018).
Dependendo do grau de reflexividade e internalização desses conceitos pelas mulheres, a expressão do desejo sexual pode variar (Heilborn; Cabral, 2013). A nossa cultura dificulta a subjetividade sexual, ou seja, a experiência de uma pessoa como um ser que se sente com direito a ter prazer e segurança sexual, e que faz escolhas ativas (Gubrium; Shafer, 2014). Não causa surpresa o fato de que mulheres de países com menos desigualdade entre os gêneros, como os da Europa, tenham mais libido e satisfação sexual, quando comparadas às de países nos quais os papéis sexuais são mais gendrados (McCool-Meyers et al., 2018).
Muitos autores apontam para a importância de valores culturais, religiosos, atitudes em relação à idade, qualidade da relação sexual, comunicação entre os parceiros, culpa relacionada à atividade sexual, na expressão do desejo sexual entre as mulheres (McCool-Meyers et al., 2018; Rosenkratz; Mark, 2018; Rubin et al., 2019; Thomas; Thurston, 2016; Tiefer; Hall, 2012). No Brasil, uma pesquisa com mulheres em relacionamentos prolongados apontou a influência de uma educação sexista, da assimetria entre as relações conjugais e o impacto da maternidade, na diminuição de libido entre elas (Araújo; Zanello, 2024).
Basson (2000), responsável por mudar o modelo de ciclo sexual vigente desde Master e Johnson, evidenciou que apenas 10% das mulheres têm desejo sexual espontâneo em relações prolongadas, como são consideradas as relações com mais de um ano de duração. As outras 90% têm o chamado “desejo responsivo”, ou seja, respondem ao desejo do outro, engajando-se na atividade sexual pelas recompensas da proximidade emocional e bem estar do parceiro, entre outros fatores.
Spurgas (2020) questiona o conceito de desejo responsivo de Basson por considerar que embora tenha tido o benefício de normalizar o padrão de desejo mais comum entre as mulheres, tirando-as da patologização definida pelo DSM III, ainda assim as coloca em um lugar de passividade e racionalidade no envolvimento sexual, desconsiderando o componente não captável, intersubjetivo do desejo, que não pode ser reduzido a comportamento ou motivação.
Considerando essas informações, e a escassez de pesquisas sobre o desejo sexual das mulheres fora da ótica da disfunção, no Brasil e internacionalmente, a presente pesquisa teve como objetivo fazer uma análise psicodinâmica, gendrada, de falas de mulheres em relacionamentos prolongados, que apresentam desejo espontâneo e forte interesse sexual.
Método
Foi realizado um estudo qualitativo, com uso de entrevistas semi-estruturadas, com 12 mulheres de uma capital brasileira. As participantes foram selecionadas em três serviços ambulatoriais de ginecologia, sendo dois públicos e um privado (em dois dos quais uma das pesquisadoras atua como ginecologista), no período de fevereiro a junho/2019. Grande parte do público atendido era de mulheres brancas e de classe média e média alta, porém com a ocorrência mais escassa da presença de mulheres com outras interseccionalidades (negras, com escolaridade mais baixa, mais pobres).
Foram distribuídos questionários a 379 mulheres que vieram consultar neste período, e que tinham um relacionamento heterossexual maior que 1 ano de duração. Neles constavam perguntas sobre dados sociodemográficos e questões relacionadas ao seu desejo e à sua vida sexual. Foram respondidos 204 questionários, e deste total, houve 21 mulheres (10,2%) que consideraram o seu desejo sexual muito bom. Entre elas, foram elencadas as participantes que preenchiam os seguintes critérios: ser mulher cis; ter interesse e disponibilidade para conceder a entrevista; e assentir com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Inicialmente, buscou-se contemplar mulheres com diversas interseccionalidades (idade-geração, escolaridade-classe, raça e tempos de relações conjugais variadas). Foram selecionadas as duas únicas mulheres negras (negra e parda) da amostra. As entrevistas foram ocorrendo de acordo com a disponibilidade das entrevistadas. Na 12ª entrevista, foi atingido o ponto de saturação não como o momento em que a coleta de novos dados deixaria de trazer relevância e esclarecimentos sobre a questão, mas como o momento factível no qual os dados apresentaram reincidência, aprofundamento, complementariedade e riqueza para o fenômeno investigado, permitindo a identificação de uma lógica interna e o estabelecimento de conexões e interconexões (Minayo, 2017).
As doze entrevistadas tinham a idade de 32 a 78 anos, com média de 54 anos. O tempo de relacionamento variou de 2 a 60 anos, sendo a média, 19 anos. Quatro participantes tinham relacionamentos estáveis, habitando em casas separadas, enquanto outras oito eram casadas e coabitavam com o marido. Cinco estavam no primeiro casamento, enquanto as outras 7 (3 casadas e 4 relações estáveis) já tinham sido casadas pelo menos uma vez anteriormente. O número de filhos variou de 0 a 5. Quanto à crença religiosa, nove não tinham religião ou não praticavam a sua religião de origem, e havia uma católica, uma espírita e uma protestante. A predominância da profissão foi de técnicas e analistas judiciárias, em 6 delas. Entre as outras seis, havia uma vigilante, uma costureira aposentada, uma empresária, uma jornalista, uma professora universitária e uma psicóloga aposentada. A renda familiar variou de 1 a 20 ou mais salários mínimos.
As entrevistas duraram cerca de uma hora e foram realizadas nos respectivos serviços de ginecologia de origem das pacientes. A entrevista se iniciava com a pergunta disparadora “fale-me sobre o seu desejo sexual”, e no decorrer dela, perguntas complementares eram feitas, de acordo com a narrativa das mulheres. Entre elas, questões sobre aspectos relacionados à educação sexual, crenças, conjugalidade, características e significado da relação sexual para cada entrevistada.
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, e, posteriormente, integralmente transcritas para a realização da análise de conteúdo. Inicialmente, duas pesquisadoras analisaram o material e levantaram os temas separadamente. Em um segundo momento, deliberaram em conjunto e elencaram quatro categorias (Bardin, 2016). Os resultados foram interpretados a partir de teorias feministas em Psicologia e abordagem sociológica da sexualidade (Bozon, 2004; Gagnon, 2006; Heilborn, 2006; Zanello, 2018). Os trechos das entrevistas que exemplificam os temas estão entre aspas ou em bloco de texto separado, e as participantes são identificadas por nomes fictícios.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília (IH/UnB), sob o número de 2.994.810/2018.
Resultados e Discussão
A partir da análise de conteúdo, foram elencadas 4 categorias, a saber: 1) Processo de desromantização; 2) Exercício de si mesma; 3) Parceria na relação conjugal e 4) Vitalidade e vivacidade. Elas serão descritas a seguir, com os trechos das entrevistas que as exemplificam.
A primeira categoria, “Processo de desromantização” diz respeito ao caminho biográfico percorrido por essas mulheres, distanciando-se do dispositivo amoroso em maior ou menor grau, desromatizando os relacionamentos e o sexo. Este processo foi marcado por algumas características, presentes nos temas “Sexo como ato erótico”, “Não se espera tudo do homem” e “Aumento da assertividade”.
O primeiro tema, “Sexo como ato erótico”, evidencia como essas mulheres construíram um significado para o sexo mais distante do romantismo e do afeto, e mais próximo do prazer físico, dando-se o direito de desfrutá-lo sem culpa. Menos culpa e menos conservadorismo estão relacionados a mais desejo sexual (Woo; Brotto; Gorzalka, 2011). Como a ampla maioria das mulheres, as entrevistadas também receberam as determinações culturais relativas à valorização da virgindade e castidade para a mulher e conceitos sobre sexo como algo sujo, errado e pecaminoso.
Em algum momento, porém, lhes foi oferecido, e incorporaram, informações com concepções positivas em relação ao exercício da sexualidade. Este agente pode ter sido a mãe, o pai, uma tia, um parceiro, um professor, um líder religioso, um terapeuta, um livro, que lhes permitiu significar o sexo como algo bom. Foi-lhes dado a oportunidade de reconhecer e aceitar o desejo que sentiam, facilitando a sua legitimação, e trazendo os benefícios da congruência (Diana et al., 2014). Observa-se a importância de uma educação sexual que não esteja focada apenas no que deve ser evitado, como doenças e gravidez, mas que reconheça o discurso do erotismo, levando a mulher a se sentir no direito de ter prazer e desejo (Gubrium; Shafer, 2014).
Esse processo é contínuo e incluiu a desconstrução de conceitos negativos durante todo o seu desenvolvimento. Cláudia, 66 anos, psicóloga, relembra quando iniciaram os seus questionamentos. ”Apesar da educação, né, que eu recebi, eu acho que eu fui vencendo esses tabus. Sempre fui questionadora desde criança, na minha cabeça”. Em alguns casos, como o de Beatriz, 54 anos, pedagoga, a psicoterapia foi mediadora dessas mudanças.
Aí, quando eu comecei a fazer terapia, eu comecei a descobrir que era natural esse interesse, esse desejo. Comecei a compreender algumas coisas que eu sentia, mas que eu escondia por baixo uma sensação de que era sujeira e que não era bom...
Espírita, ela tinha aprendido que as energias sexuais eram negativas. “Depois eu comecei a raciocinar um pouco melhor, né? Comecei a perceber que sexo fazia parte da vida”. Em relação à masturbação, Odete, 62 anos, evangélica, expõe o que acha incoerente. “A igreja ensina que a gente não deve se masturbar, mas se você estiver pensando no seu marido, você não está pensando nele? Qual o mal?”.
A descoberta do prazer físico aconteceu em momentos diferentes de vida, para cada entrevistada. Diana, 59 anos, jornalista, que começou a se masturbar ainda criança usando uma boneca de pano, tem dificuldade de entender como uma mulher saudável não consegue ter prazer. “Sabe, pô, não conhece seu próprio corpo, tá, bate uma siririca. Eu acho que fica melhor. Minha boneca foi a minha melhor professora desse tipo de coisa”. Esther, 69 anos, servidora pública aposentada, que casou virgem, descobriu o prazer sexual apenas após o término do casamento, com um parceiro que denomina “professor”.
Esse professor me fez me libertar, me ver livre, porque eu gosto, então foi me ensinando, aproveita…qual é… Não tem nem vergonha, nem pecado, nem nada, é gostoso, né.
A mulher na nossa cultura, frequentemente não se sente legitimada a acessar o sexo, a não ser pela mediação do afeto, distanciando-se, assim, do erotismo (Castro, 2009). A diferenciação de sexo como fonte de prazer por si, e não condicionado necessariamente ao afeto, foi uma mudança adquirida com o tempo. Paula, 37 anos, servidora pública, viveu essa experiência nos dois últimos anos do seu primeiro casamento.
Eu queria transar mais por mim, eu acho que foi quando eu comecei a me ver assim, eu tô com vontade, e eu vou fazer não porque eu desejo ele, mas por mim, porque eu vejo essa necessidade no meu corpo de fazer, então tem uma pessoa aqui à disposição, vamos lá!
Sabrina, 53 anos, servidora pública, também mudou de perspectiva e justifica.
Sexo é um prazer, você não precisa nem do outro pra ter prazer, você só precisa de você mesmo, e se você estiver com outro, se for o seu melhor amigo, e ele te der prazer, ele não precisa de você estar apaixonada pra ter sexo.
Representando então apenas satisfação e bem estar, o ato sexual deixa de ser algo que exija muitos pré-requisitos para ser desempenhado. Cláudia, três filhos, terceiro casamento, não tem muitas regras nessa área.
Eu acho que a gente tem que ser livre pra gente fazer o que a gente quiser. O que te fizer bem junto com seu companheiro. Se for em cima da árvore, faz em cima da árvore. Eu... não tem que ter regra, entende?
E define que tipo de problema a impede de ter sexo. “Se for muito gigante (o problema), aí atrapalha. Mas se ele for só grande… (risadas) eu consigo… aí acabou, (depois do sexo) o problema volta (risadas)…”. Odete partilha da mesma opinião. “Problemas, todos nós temos, né? Mas assim, a maneira que a pessoa fica com você na cama te dá tanta paz, que você acaba se entregando. Pra mim, sexo é um relaxamento”.
Essas falas corroboram que quanto maior a expectativa de prazer e orgasmo advinda da relação sexual, maior o nível de desejo apresentado pela mulher (Rubin et al., 2019).
O segundo tema, “Não se espera tudo de um homem”, tanto sexual quanto amorosamente, mostra o processo percorrido de desidealização do parceiro romântico como alguém que irá suprir todas as suas necessidades. Desta forma, as suas expectativas tornaram-se mais tangíveis e ajustadas à realidade. Beatriz, casada pela segunda vez há 12 anos, conta como o seu primeiro casamento serviu de aprendizado para o relacionamento atual. “A gente se relaciona com um cara achando que ele vai ser um príncipe encantado, e a chance de frustração é muito grande, e isso tem muita relação com a sintonia do casal”. Lara, 47 anos, empresária, justifica o bom convívio que tem com o marido há 21 anos.
É muito mais como você percebe, e as minhocas que você coloca na sua cabeça, do que o que ele fala, como fala e o que faz, entendeu? Se você descomplica as coisas, se você leva de uma forma natural, se você está bem com você mesma, é tudo tão mais fácil…
Essa postura se estende ao âmbito sexual, como explica Sabrina.
Nem sempre consigo chegar ao orgasmo, mas não me incomoda, não sei se porque eu me resolvo, então, me masturbando… Eu sei que nem sempre ele vai conseguir me satisfazer. Complicado isso, você conseguir satisfazer o seu parceiro 100%.
Ela considera que ele é sexualmente habilidoso, mas não prescinde de orientação. “Todo mundo eu acho, não vai acertar de primeira, saber o que tem que fazer… Aí você tem que dizer, tipo assim, às vezes está pegando com um pouco mais de força, pegue mais leve, faz assim…”. A possibilidade de ter essa comunicação íntima e falar sobre sexo com o parceiro são atitudes relacionadas ao aumento do interesse sexual (Dennerstein et al., 2009; McCool-Meyers et al., 2018).
Muitas dessas mulheres relataram acessar material de conteúdo erótico através de livros e filmes, como forma de aumentar o próprio desejo, e não se limitam a esperar que a iniciativa seja sempre do parceiro. Diana é leitora assídua. “Eu gosto muito de ler coisas picantes, que eu acho que isso me faz, me dá um envolvimento maior, aí eu procuro mais”. Arlete, 78 anos, costureira aposentada, prefere filmes, e com 60 anos de casada, 13 bisnetos, gosta de inovar.
Às vezes a gente está tendo relação e eu lembro da cena que achei excitante e coloco ela na situação. Não vejo nenhum problema. Tem gente que acha repugnante, mas é uma coisa natural da vida, todo mundo faz aquilo (risos). Mas às vezes de uma forma que você não pensou em fazer, tem umas novidades.
A partir dessa exposição ao material erótico, essas mulheres acessam mais facilmente o seu próprio erotismo, realimentando o seu desejo (Thomas; Thurston, 2016).
O terceiro tema, “Aumento da assertividade”, assinala a capacidade de dizer sim e não, e tomar a iniciativa, quando assim lhes interessa. Sabrina, 30 anos de casada, considera que o seu relacionamento sexual melhorou nos últimos anos, a partir do ponto que falou para o marido que determinadas práticas sexuais não a agradavam, como o sexo anal. Margarida, 56 anos, servidora pública, está lidando com a impotência recente do parceiro, e considera que há outras formas de prazer além da penetração. Por isso, enviou uma reportagem sobre o assunto para o marido, informando que havia “mil formas de fazer amor”. E lhe disse claramente: “É assim que gostaria de ser tratada”.
Arlete lembra que, no início do casamento, sentia vontade de procurar o marido, mas não tinha coragem, e que só após o nascimento da primeira filha, “se soltou”. Agora tem outra atitude. “Quando tenho vontade de ter relação, eu acho que tem que ir mesmo. Só porque estou velha não posso ter? Não! A vida inteira eu tive… então está aí, é pra fazer, vai fazer, vamos amar”. A assertividade, característica predominantemente ligada aos homens, é um preditor de maior desejo, excitação e satisfação sexual, e mulheres que tem uma frequência sexual determinada apenas pelo parceiro, tem menos desejo sexual (Iglesias; Sierra; Medina, 2013).
Esses três temas, portanto, apontam como a desromantização foi um processo percorrido de formas variadas de acordo com cada trajetória individual. Sair do modelo de mulher casta e passiva resultou em que estas mulheres experenciassem a sua sexualidade de forma mais coerente com os seus interesses, se apropriando do seu desejo e não se limitando a ser objeto de desejo do outro. Em consequência, o prazer advindo do sexo tornou-se a própria recompensa de iniciar o ciclo sexual, independente dos ganhos secundários advindos da satisfação do desejo do parceiro, diferenciando-as do “desejo responsivo” de Basson (2000).
A segunda categoria, “Exercício de si mesma”, destaca como essas mulheres se colocam no mundo. De forma crescente, passaram a ocupar um protagonismo em relação a si mesmas e às suas vidas, resultando em maior autocentramento. Aqui foram englobados seis temas: “Estabelecer limites”, “Pragmatismo”, “Ser proativa”, “Autoaceitação”, “Independentização” e “Necessidade de espaço e individualidade”.
O primeiro tema é “Estabelecer limites” e alude à capacidade de dizer não e demarcar até onde o outro pode ir. Diana aprendeu com a mãe, que orientava as três filhas sobre como evitar violência doméstica.” “Então, o seguinte, na hora que qualquer um vier para cima de vocês, pega a louça da casa inteira e joga em cima dele”. Gabriela, 42 anos, professora universitária, mudou nos últimos anos.
Hoje, se meu marido acorda mal humorado, eu já falo assim, “olha, você não vai estragar o meu dia”. Eu percebi que a pessoa não vai deixar de gostar de mim por isso e se deixar também é porque não preciso disso, entendeu…
Odete, vigilante, cujo marido tem uma renda bem maior, não se submeteu ao comportamento dele de chegar embriagado diariamente em casa.
Saí de casa, esse homem ficou louco e ficamos quase um ano separados, e ele insistindo, insistindo para voltar, aí eu voltei. Voltei, assim.. mas falando “olha, eu vou voltar mas você vai ficar na sua casa e eu vou ficar na minha, e você não vai beber no dia em que vier me ver.
O segundo tema, “Pragmatismo”, indica como essas mulheres tomam as suas decisões, priorizando o seu bem-estar, mesmo que isso tenha implicado em término de relacionamentos nos quais estavam envolvidas afetivamente. Preferiram ficar sozinhas a viver um relacionamento não satisfatório. Lara, empresária, rompeu um noivado com um fazendeiro.
“Não quero te ver mais não, porque a vida que eu vou ter com você não é a vida que eu quero”. Passei 2 meses chorando quase todo dia, sofrendo que nem uma condenada. Passou os dois meses, pronto! Resolveu a coisa! Uma coisa que eu ia levar pro resto da vida.
Sabrina sofreu em um relacionamento anterior, no qual era apaixonada, mas o parceiro era infiel. “Aí fiquei não, desencantou. Aí falei assim: ‘não, eu sempre fui uma pessoa muito dedicada, muito fiel, então eu exijo também essa troca’”.
O terceiro tema é “Ser proativa”, e assinala a característica de agir a que as entrevistadas se propõem. Esta maneira de lidar com as situações as deixam com o poder da escolha, como Lara explica às filhas.
Tudo que acontece é responsabilidade sua. Quando você começa a acreditar e viver em cima disso, tem muito mais controle sobre sua vida. Agora quando fica de passiva, de que ‘ah, coitada de mim’, você não tem poder!
Beatriz não sabia dançar e sentia-se constrangida por isso. Procurou ter aulas e foi num salão de dança que conheceu o atual marido. “E aí quando ele me abraçou pra dançar... aí ele... tudo mudou, né. E, assim, teve um envolvimento muito grande”.
O quarto tema, “Autoaceitação”, expõe a capacidade das entrevistadas de se valorizarem, e não se limitarem por não se enquadrar no padrão estético vigente. Foucault (1979) aponta como o poder é exercido não apenas de forma repressiva, mas, sobretudo, produtiva e constitutiva: nesta última, o sujeito ao invés de ser “obrigado” a fazer algo (de modo impositivo e coercitivo, externo), é incitado a desejar fazê-lo. No que tange ao ideal estético, isto se manifesta nas distintas preocupações com a aparência e a adoção de comportamentos para se aproximar deste ideal (Vilhena, 2005).
Ester, 69 anos, descreve como essa foi uma liberdade conquistada com a maturidade.
Não, não me acho feia, nem gorda, nem nada, acho que tá tudo bem (risos). Hoje em dia, né, com a idade, é que a gente vê essas coisas, mas quando eu era nova, aí eu me achava feia, magrinha, e hoje em dia eu pego as fotos, tão linda que eu era (risos).
Fernanda, servidora pública, aos 32 anos, considera que está acima do peso, mas trilha o mesmo caminho.
Hoje em dia eu me sinto bem, tem coisa para melhorar, mas não é essa coisa que atinge não. Então sexo é com a luz acesa, apagada, no banheiro, de qualquer jeito, não me trava não. Tô com uma barriguinha, mas vamos lá, disfarça.
Sabrina amplia este conceito. “Você tem que se dar prazer primeiro e se você sentir prazer, se você gostar de você mesma, você consegue dar prazer a quem quer que seja”.
O quinto tema, “Independentização”, evidencia o progressivo reconhecimento da existência dos próprios desejos, independentemente do desejo do outro. Lara reconhece que os seus objetivos de vida, hoje, são diferentes dos do seu marido. “A gente está um pouco desalinhado hoje, e tenho um pouco de receio de saber para onde eu quero e para onde ele quer ir”. Gabriela, 20 anos de casada, considera que depois que ela e o marido decidiram viver uma relação aberta, reconhece mais os seus desejos inclusive em outras áreas, como no trabalho. “Me sinto mais segura assim até numa conversa, no jeito de conduzir uma reunião, aí eu fico pensando nas outras mulheres que não tem segurança, se isso interfere na vida delas quanto interferiu na minha…”. Odete, 23 anos de casada, compara a fase atual do relacionamento com o início. “Hoje é uma coisa mais firme, mais madura, hoje a gente está mais consciente do que quer na vida, pelo menos do que eu quero”.
Na sexualidade, essa “Independitização” também é evidente. Fernanda acha um absurdo mulheres que usam a abstinência sexual como forma de castigar o marido.
Eu fico, gente, não tem como, é um prazer seu, como é que você fica sem fazer isso? Eu acho difícil a mulher usar um benefício dela contra ela mesma. Agora, se você não gosta do negócio ao ponto de achar fácil abrir mão disso por bobeira, alguma coisa tem que ser revista.
Arlete é solidária com o marido, mesmo quando não está com desejo, mas reconhece a diferença. “Quando eu não tiver com vontade, eu não consigo me realizar [ter orgasmo], assim, mas procuro ajudar ele a realizar. O meu desejo é o meu. Eu não estou conseguindo, mas se tudo pode, vai”.
O sexto tema, “Necessidade de espaço e individualidade”, revela o quanto essas mulheres prezam pela oportunidade de estarem consigo mesmas e de terem identidade própria, independentemente de serem parte de um casal. Sabrina, aposentada, preocupa-se em saber como será quando o marido se aposentar. “Eu gosto que ele trabalhe, tenha o momento de sair com os amigos, jogar bola… Eu também tenho, saio, posso ir na casa de alguém e não fica aquela coisa só os dois, o tempo todo junto”.
Ester, que já foi casada, hoje opta pelo relacionamento em casas separadas. “Gosto de ter alguém, mas não grudado em mim. Moro só e adoro, me sinto bem. Eu saio sempre, tenho amigas, tenho namorado, tô muito bem”. Diana tem os limites bem definidos no seu casamento de 20 anos.
Eu não tenho conta conjunta com o meu marido, ele não paga as minhas contas, entendeu? Eu não sei a senha dele do celular, ele não sabe a minha. Ele não vasculha a minha bolsa, não fica tomando conta de mim de jeito nenhum.
Segundo Perel (2009), o aumento da segurança e intimidade que caracterizam os relacionamentos prolongados podem paradoxalmente diminuir o desejo sexual, por contrariar o senso de incerteza, novidade e separação que o alimentam, sendo a justificativa para que mesmo em relacionamentos afetivamente satisfatórios, o desejo sexual não encontre mais lugar. A necessidade de liberdade e autonomia é essencial ao desejo. A autora considera que distância e diferenciação são elementos fundamentais para manter a energia erótica e o mistério.
O fato dessas mulheres manterem a sua individualidade e a sua independência pode ser um dos aspectos que contribui para manter uma vida sexual satisfatória, que resiste ao tempo.
Estes seis temas apontam para um modo de se posicionar na vida que foi presente em todas as mulheres entrevistadas. Assumiram a gerência das suas escolhas e consequências, e se colocaram como prioridade na própria vida, caminhando para o autocentramento. Afastando-se do dispositivo amoroso e das performances mais comuns às mulheres, estando mais atentas às próprias necessidades e vontades, vivem de uma forma mais próxima à vida que consideram satisfatória, incluindo a sexual.
A terceira categoria é “Parceria na relação conjugal”, e mostra a existência de relações amorosas mais simétricas, nas quais o investimento é mais igualitário entre os parceiros. Inclui quatro temas: “Aceitação mútua”, “Cumplicidade e amizade”, “Sentir-se amada e assumida” e “Bom entrosamento sexual”.
O primeiro tema, “Aceitação mútua”, traz a característica de se poder ser como é, na relação a dois. Fernanda descreve como o convívio dela e do marido mudou desde que manifestou a ele o desejo de frequentar casas de swing. “A gente conversa tudo sobre tudo, o tempo inteiro. Quebraram-se os pudores”. Arlete lida com a impotência do marido com paciência e compreensão. “Falo pra ele: ‘calma, hoje não dá, amanhã dá. Sua cabeça está cheia, vamos deixar para depois’”.
Beatriz se enche de orgulho ao falar do marido. “Ele observa a natureza das pessoas e observa a natureza dele. E ele aceita tudo, com muita facilidade. Assim, é tudo muito natural pra ele”.
O segundo tema é “Cumplicidade e amizade”, e expõe como esses relacionamentos se baseiam na reciprocidade e companheirismo e são mais igualitários. Arlete revela como é a sua convivência com o marido. “Se eu estiver aqui e ele tiver comendo, vem me dar comida na boca e eu a mesma coisa que ele. E quanto mais velho está ficando, parece que mais unido a gente está, sabe?”.
Margarida, tem estratégias para manter o vínculo com o marido, mesmo morando em casas separadas. “Nós vamos no cinema na quinta…mas aí a gente janta, conversa, morre de rir. E a gente faz caminhadas todos os dias juntos, pilates…”. O apoio do marido foi fundamental para Diana ser aprovada no concurso público. “Chegava final de semana, ele levava os quatro filhos, dois deles e dois meus para o clube, dava comida, e eu no cursinho”.
O terceiro tema, “Sentir-se amada e assumida”, aponta características destas relações nas quais os parceiros conseguem ser afetivos com as mulheres, que se sentem por conseguinte, valorizadas e queridas. Gabriela, 42 anos, teve alguns relacionamentos curtos até conhecer o marido aos 22 anos. “Com ele foi diferente, ele teve essa preocupação sempre, de assim, eu me valorizar. Ele me ensinou a gostar do meu corpo”. Cláudia descreve os mimos do seu companheiro há 14 anos. “Ele é uma pessoa que me valoriza muito. Compra roupa íntima para mim, sabe? E aquilo ali a gente faz uma festa. Isso eleva o sentimento afetivo da mulher com a pessoa”. Beatriz se sensibilizou com a atitude que o atual marido teve desde o namoro. “Eu gostei da decisão dele, não ficou assim, titubeando. O fato dele se entregar assim facilitou muito a minha aceitação. Porque eu estava acostumado a um jogo de, assim: quero, não quero…”.
O quarto tema, “Bom entrosamento sexual”, indica como a afinidade, boa comunicação e cumplicidade desses casais se estende ao âmbito sexual, convertendo-se em uma atividade extremamente compensatória para as mulheres. Paula conta como o marido é diferente de seu parceiro anterior, o qual era viciado em pornografia. “Ele percebe pela minha respiração, pelo meu olhar, pelo meu jeito de mexer, se eu tô curtindo, se eu não tô. O outro cara era chegar, meter, gozar e acabou”. Diana, que teve uma grande afinidade com o marido desde o início, conta como acontece agora, após 20 anos.
Ele me conhece, sabe nos mínimos detalhes, e eu conheço também. Então sexo é uma coisa prazerosa para os dois. Ele não tem vergonha de mim, nem eu dele, então isso é bom porque a gente fala quando quer, quando deixa de ser, eu acho que a gente foi aprendendo um com o outro.
Esses quatro temas evidenciam o quanto relações mais simétricas, sem que os papéis tradicionais de gênero estejam tão demarcados, podem resultar em maior satisfação na parceria. Por um lado, temos mulheres mais assertivas, mais apropriadas dos seus desejos, e permanecendo com a capacidade de se doar no relacionamento. Por outro, temos homens que não se furtam de demonstrar afeto, menos egocentrados, e atentos ao bem-estar das parceiras.
Bozon (2003) aponta que uma maior igualdade entre homens e mulheres leva a maior reciprocidade do desejo. A qualidade da relação conjugal e sexual, caracterizada por mais confiança, intimidade, respeito, comunicação, afeição, preliminares, toque sensual, perspectiva de prazer advinda da relação, são aspectos diretamente relacionados ao desejo sexual (Basson, 2000; McCool-Meyers et al., 2018; Rosenkratz; Mark, 2018; Rubin et al., 2019). A intimidade crescente com a convivência, que poderia prejudicar o erotismo (Perel, 2009), pode resultar em níveis crescentes de desejo, desde que este parceiro seja considerado valioso, e o relacionamento, especial (Birbaum et al., 2016).
A quarta categoria é “Vitalidade e vivacidade”. Trata-se da qualidade presente nas entrevistadas de sentirem prazer em aspectos variados da sua vida, de terem energia para buscarem, aprenderem coisas novas, e estarem em evolução constante. São mulheres que desejam ativamente, mantêm vários interesses e buscam experenciá-los com liberdade e prazer.
Arlete, que se considera mais ativa que o marido, adora viajar e costurar.
Eu mexo o dia inteiro, se não tiver o que fazer dentro de casa, eu lavo roupa, passo roupa, costuro, eu gosto de sentar na máquina e fazer alguma coisa. Porque de costura eu digo que eu gosto, eu amo fazer nessa vida!
Paula nunca se limitou quando estava solteira.
Pensava, sabe, ah eu quero hoje ir dançar forró, e não tem ninguém pra ir comigo, eu vou sozinha mesmo. Assim, eu acho que uma das melhores viagens que eu fiz foi pra Madrid sozinha. Aí eu saí, conheci um monte de lugar, um monte de coisa, assim, na minha hora, no meu tempo, exatamente o que eu queria, e tal.
Em algumas situações, essa energia trouxe conflitos com a parceria. Cláudia atribui a isso o motivo de ter se separado do primeiro marido.
Porque eu acho que a... a... minha vontade de viver era diferente da dele. Assim, eu tinha muito fogo, eu queria dançar, eu queria trepar muito... (Risadas). Eu queria fazer várias coisas, eu tinha muita energia de vida. E ele já tava mais chinelão, assim.
Beatriz também considerou esse fato na sua separação. “Eu tinha sonhos que ele não tinha, tipo assim... Eu queria estudar... Eu fiz mestrado, eu fiz pós graduação depois disso tudo, e ele não tem nem o curso superior. Ele disse que não precisava”. Lara, que tem cinco filhos, quer investir nos seus projetos pessoais e deixou o marido apreensivo.
Chega de ser mulher, de ser mãe, eu quero ser eu agora! E isso veio muito forte e como veio muito forte, eu acho que passei uma insegurança muito grande para ele no sentido de que, sei lá, essa mulher vai levantar vôo e vai sumir.
A culpa é um mecanismo pelo qual a cultura interfere na sexualidade, inibindo o comportamento sexual e os processos cognitivos em situações relacionadas ao sexo, como as fantasias (Woo; Brotto; Gorzalka, 2011). As mulheres pesquisadas, desejando ativamente, identificam as suas fantasias, característica mais rara entre as mulheres, e sentindo-se validadas como seres sexuais, as vivem sem culpa. Margarida, muito criativa, conta o que ainda gostaria de realizar.
Eu tenho uma fantasia sexual, de fazer amor ali no... não é amor, é fazer sexo mesmo, até seja com qualquer pessoa essa fantasia minha. De um dia bem chuvoso, daquelas chuvas bem torrenciais, fazer sexo ali na Esplanada dos Ministérios. Nem que eu seja presa, mas eu quero fazer sexo na chuva, sabe. Aqueles pingos ardendo no meio da minha face.
Paula já viveu muitas aventuras sexuais.
Então assim, eu tento não me culpar pelas minhas coisas, porque eu acho que a vida já tem muita coisa que pesa nas nossas costas. E se eu ainda ficar arrumando mais coisa pra pesar nas minhas costas, é pior, né, então o que eu puder fazer pra me amar, pra me fazer feliz, pra... eu procuro esse rumo na minha vida.
Arlete, do alto dos seus 78 anos, ensina como ser feliz. “Orientação melhor é assim: faça o que te dá vontade e seja feliz! É isso mesmo, tá com vontade, faz. Tem que amar e deixar o pau quebrar! (risos)”.
Nesta categoria evidencia-se a disposição das entrevistadas de caminharem na vida no sentido do seu bem estar, fazendo escolhas e agindo em conformidade com elas. Mesmo com idades, interesses, níveis sócio econômicos diversos, têm em comum o fato de gostarem da forma como vivem ou de ter coragem de mudá-las quando não estão de acordo. São lúcidas nas suas escolhas e não se paralisam na culpa. Têm muitos interesses na vida, além do relacionamento conjugal, obtendo prazer de várias fontes. O desejo sexual que elas manifestam é um dos aspectos do modo que vivem a vida, buscando intensidade e satisfação.
Conclusão
O desejo sexual é um fenômeno complexo, que envolve fatores biológicos, sócio-culturais, psicológicos e interpessoais, e varia no curso da vida de uma mesma pessoa. A análise dos discursos dessa amostra de mulheres com alto interesse sexual e desejo espontâneo em relações prolongadas, ainda que representem a minoria entre as mulheres, nos revela uma faceta, entre tantas, dessa complexidade.
Depreende-se a partir das suas falas, que elas passaram por um processo, partindo muitas vezes do lugar da passividade e dos estereótipos de gênero reservados à mulher como objeto de desejo do outro, para um lugar no qual reconheceram e agiram em prol das suas próprias vontades.
Por meio da “Desromantização” questionaram as crenças conservadoras que receberam e buscaram encontrar a congruência dos seus sentimentos e percepções. Conseguiram se subjetivar como seres sexuais, se dando o direito de escolha e de prazer. No “Exercício de si mesma” desenvolveram traços na maneira de interagir com o mundo, que as colocaram no centro das suas escolhas. Quando em relacionamentos não satisfatórios, marcados por infidelidade ou falta de afeto, por exemplo, não se submeteram a mantê-los e estabeleceram os seus limites. Investiram na sua auto estima e independência afetiva e financeira, o que lhes deu autonomia para fazer escolhas.
Em “Parceria na relação conjugal”, observou-se o estabelecimento de relações baseadas na cumplicidade, intimidade, afeto e erotismo, que se instituíram assim desde o início ou foram construídas com o tempo. A maioria dessas mulheres teve um casamento anterior sem essas características, e dizendo não ao que consideravam insatisfatório, possibilitaram a si mesmas viverem experiências mais estimulantes e desfrutarem de convivências mais harmoniosas. Escolheram os relacionamentos que queriam, ao invés de serem escolhidas.
Por fim, mesmo com perfis sociodemográficos diferentes, essas mulheres apresentaram em comum a “Vitalidade e vivacidade”. Demonstraram a força e a energia com que enfrentam os desafios, integrando o exercício saudável da sua sexualidade com um prazer que extrapola às outras áreas da sua vida.
Buscaram ativamente este lugar no qual se encontram, desvinculando-se dos scripts rigidamente gendrados, distanciando-se dos dispositivos amoroso e materno, e caminhando para o autocentramento, em benefício delas, dos parceiros, e de nós, que tivemos o privilégio de escutá-las.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
14 Nov 2023 -
Aceito
19 Set 2024