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VARTABEDIAN, Julieta. 2018. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences. 1ª ed. Londres: Palgrave Macmillan. 246 p.

VARTABEDIAN, Julieta. . 2018. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences . 1ª ed. Londres: Palgrave Macmillan. 246p.

I wanted another life for myself. My dream was to become a travesti, to transform myself, to be beautiful and it was my own choice of becoming a travesti. Then nature helped me a little, and [laughing] I became the woman I am today … Most come [to Rio de Janeiro] in search of success, to make a living, to become a travesti, to be transformed as the great majority arrive as gay, without experience.

So they come in search of transformation. I came here, I was inspired by Reyna [her madrinha], I saw that body, that beautiful travesti so I was doing little by little. I may not be like her but I’m getting there, I’m fine, I’m well transformed. (Samanta, personal interview, 8 September 2008, Rio de Janeiro) (VARTABEDIAN, 2018, p. 229VARTABEDIAN, Julieta. 2018. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences. 1ª ed. Londres: Palgrave Macmillan. 246p.)

Neste livro, Julieta Vartabedian nos apresenta uma etnografia multisituada junto a travestis brasileiras que se encontravam trabalhando no mercado sexual, levada a cabo durante alguns meses de 2008 na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, como também de forma intermitente entre 2009 e 2011 na cidade de Barcelona, Espanha. Ainda que a autora tenha circulado por estas duas cidades, o trabalho de campo realizado no Rio de Janeiro possui maior vulto em sua etnografia e análise, de modo que seu trabalho etnográfico em Barcelona só pode ser lido a partir de sua experiência no Brasil.

Isto revela como, ao focarmo-nos no universo das travestis em situação de prostituição no Brasil, acabamos por encontrar a Europa como uma espécie de seu outro constitutivo: os fluxos migratórios em torno da prostituição de travestis e mulheres transexuais brasileiras na Europa inscreve tal continente tanto material como simbolicamente junto às possibilidades de trabalho para as travestis no Brasil. E a autora percorre muito bem todos esses fluxos, traçando uma verdadeira rede que abarca migrações do interior do Brasil para uma metrópole como o Rio de Janeiro e desta para países europeus como França, Espanha e Itália, narrando fluxos históricos (com destaque para a primeira geração de travestis brasileiras que aportou em Paris nos anos 1970); contemporâneos (por exemplo, as diversas lógicas corporais que localizam as travestis nas mais diversas regiões de prostituição das cidades); e simbólicos (a promessa de uma vida melhor e menos mortífera na Europa em comparação àquela vivida no Brasil). No Rio de Janeiro, Vartabedian inseriu-se principalmente no lendário bairro da Lapa, em especial no casarão, descrito por ela como uma espécie de “‘centro social’ [social centre] (traduções minhas) onde os assuntos das travestis profissionais do sexo da área eram organizados e resolvidos. O casarão era comandado por Reyna, uma liderança travesti e trabalhadora sexual na Lapa” (p.9). Cabe ressaltar que além desta sua inserção junto ao mercado sexual trans na Lapa, a autora também pode acompanhar para sua etnografia dois projetos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, em 2008: o “Projeto Damas”, que oferecia formação profissional e possível inserção no mercado formal de trabalho para travestis e mulheres transexuais; e ações que orientavam para casos de exploração sexual e distribuição de preservativos e gel lubrificante em locais de prostituição feminina de rua na cidade. Em Barcelona, a autora manteve contato bastante próximo com uma liderança travesti brasileira que vivia há mais de 18 anos na Espanha, como também acompanhou visitas semanais feitas por uma travesti da ONG Stop Sida à região do Camp Nou, principal zona de prostituição travesti de Barcelona.Samanta à época vivia no casarão e é presença constante no relato da etnografia, tanto que sua fala citada na epígrafe desta resenha é bastante ilustrativa de ao menos duas formas que temos de ler o trabalho de Vartabedian: como uma etnografia “clássica” acerca da vida de travestis que se prostituem nas cidades do Rio de Janeiro ou de Barcelona, o que aproxima seu trabalho de similares como Kulick (1998KULICK, Don. 1998. Travesti: Sex, Gender and Culture among Brazilian Transgendered Prostitutes. Chicago: University of Chicago Press.), Benedetti (2005BENEDETTI, Marcos. 2005. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond.), Pelúcio (2009PELÚCIO, Larissa. 2009. Abjeção e Desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume , Fapesp.) e Duque (2011DUQUE, Tiago. 2011. Montagens e Desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Annablume.); e como uma etnografia sobre os processos de construção do corpo e embodiment daquilo tido e contextualizado como beleza com fins de distinção social, o que a aproxima particularmente dos trabalhos de Edmonds (2010EDMONDS, Alexander. 2010. Pretty Modern: Beauty, Sex, and Plastic Surgery in Brazil. Durham: Duke University Press.) e Jarrín (2017JARRÍN, Alvaro. 2017. The Biopolitics of Beauty: Cosmetic Citizenship and Affective Capital in Brazil. Oakland: University of California Press.). Não à toa, todos estes trabalhos são citados por ela e aparecem em diálogo com sua etnografia, mostrando seus esforços de compreensão do corpo também como um projeto de si que guarda singularidades, ao mesmo tempo em que seu embodiment só se torna possível na sua relação com seu contexto social.

Talvez o maior mérito do trabalho de Vartabedian seja mostrar como os fluxos migratórios dentro e fora do Brasil, os processos sociais locais e transnacionais de produção de si e o embodiment da identidade travesti se encontram conectados de diversas formas e âmbitos. Deste modo, a construção de uma feminilidade travesti tida como bela - grande foco de seu trabalho - não pode ser dissociada do contexto social, econômico e político que a possibilita. E, ao mesmo tempo em que a autora reconhece e dá ênfase a este processo de subjetivação situado e multidimensionado, abre espaço para os desejos, afetos, relações e, quiçá, certa autonomia e/ou agência que também compõe toda e qualquer produção de si. Justamente por isso, a autora finaliza seu trabalho com uma espécie de manifesto intitulada “Paradoxos travestis no mundo contemporâneo”,, no qual reitera de modo mais literal todos os paradoxos presentes na vida das travestis que foram suas interlocutoras. Assim, destaca tanto o que poderia ser visto como suas singularidades, como os processos de transformação corporal, como também se esforça para relacionar suas vidas e relações ao todo social, como a admiração e a violência que na maior parte das vezes as acompanha.

Neste sentido, podemos afirmar que, paralelo às discussões mais diretamente relacionadas aos estudos trans presentes neste trabalho, o livro de Vartabedian também gira em torno do paradoxo do corpo como veículo de distinção e mobilidade social, ao mesmo tempo em que isso se dá em uma “sociedade estritamente hierárquica que deixa uma margem muito pequena para transgressão e ascensão social” (p.81, tradução minha). E esta talvez seja a principal questão sobre a qual o trabalho da autora gira como um todo e que é materializada através daquilo que será nomeado como beleza na vida dos sujeitos. Diversos exemplos são analisados pela autora, em sua etnografia, acerca dos sentidos deste embodiment da beleza na vida das travestis em situação de prostituição. Alessandra, uma de suas interlocutoras, que trabalhava como bombadeira (figura que realiza aplicações de silicone líquido industrial em outrem), relatou que “depois de três dias ou uma semana sem trabalhar, elas querem colocar ainda mais silicone porque acreditam que vão ganhar dinheiro novamente” (p.150), o que pode ser analisado como o embodiment de uma lógica de consumo que tem o corpo como objeto. Ao invés de perceberem a falta de trabalho como uma sazonalidade que pode ser comum ao trabalho sexual, como a autora pontua, as travestis pareciam sentir e localizar no corpo este suposto fracasso em conseguir clientes. Isto nos mostra como a beleza torna-se e é manipulada como um capital social que visa promover uma distinção, mesmo numa sociedade de pouca mobilidade social. A produção desta distinção social através do corpo no Brasil também foi analisada por Edmonds (2010EDMONDS, Alexander. 2010. Pretty Modern: Beauty, Sex, and Plastic Surgery in Brazil. Durham: Duke University Press.), nos dos projetos de apagamento de traços lidos socialmente como negroides através de cirurgias plásticas em camadas populares no Rio de Janeiro; e por Jarrín (2017JARRÍN, Alvaro. 2017. The Biopolitics of Beauty: Cosmetic Citizenship and Affective Capital in Brazil. Oakland: University of California Press.), ao destacar a insistência de usuárias cisgêneras deste mesmo serviço público em conceber suas cirurgias (classificadas pela medicina como estéticas) como reparadoras a fim de justificá-las moralmente como uma necessidade.Deste modo, a beleza aparece como um capital social que busca promover distinção através da construção de um corpo feminino (moralmente) belo tanto para mulheres trans como cisgênero. Assim, percebemos como no trabalho de Vartabedian ora as feminilidades trans e cisgêneras se aproximam - como naquilo que ela descreve como uma espécie de economia geopolítica encarnada que irá localizar cada sujeito em determinado ponto de prostituição a partir de sua beleza e conformação corporal -, ora se diferenciam, como na rigidez como parecem (ao menos num nível público) ser constituídas as práticas sexuais e relações afetivas entre travestis, clientes e maridos. É notável o seu trabalho etnográfico que visa pedagogicamente deslocar o olhar exotizante que por vezes acompanha a figura das travestis, ao mesmo tempo em que busca descrever e narrar de forma mais densa suas trajetórias e processos de constituição de si.

Em todos estes exemplos citados acima vemos ecoar o já mencionado paradoxo do corpo como projeto de distinção social, o qual apesar de ganhar “novos ares” num contexto transnacional, continuará sendo manipulado e conformado da forma similar ao que se passa no Brasil: se a intentada ascensão social através do embodiment da beleza acaba sendo pouco possível por aqui, no contexto espanhol etnografado pela autora as políticas de migração que colocam o sujeito sob ameaças constantes serão o limite dos projetos de distinção social. A beleza será, então, um meio capital através do qual poderá obter-se o “sucesso”, marcado por algum grau de inserção e permanência na Espanha, ao se performar o embodiment de certa “brasilidade”: como já analisado por Piscitelli, no caso das brasileiras trabalhando no mercado sexual cisgênero espanhol há uma “sexualização da nacionalidade” que as coloca como “tendo saída” neste mercado (2009PISCITELLI, Adriana. 2009. As fronteiras da transgressão: a demanda por brasileiras na indústria do sexo na Espanha. Sexualidad, Salud y Sociedad-Revista Latinoamericana, n. 1, p. 177-201.). O mesmo se passa com as travestis da parte transnacional da etnografia de Vartabedian em Barcelona, que não encontram ali um efetivo coeficiente de reconhecimento ou mobilidade social a não ser no embodiment da hiper-sexualizada e estereotipada figura da “mulata” (brasileira) para o mercado sexual.

Insisto nesta equação que conjuga a beleza como um projeto encarnado de distinção social com uma sociedade hierarquizada em que o coeficiente de ascensão social é muito baixo, pois é algo central nos contextos sociais que Vartabedian muito bem descreve. Tal lógica se mostra tão forte e presente que será, por exemplo, no próprio mercado sexual, que tanto conforma este protótipo encarnado de sujeito, que as travestis também encontrarão a valorização efetiva da feminilidade e beleza por elas tão desejadas e construídas como um projeto de si ao longo de toda vida. Em um novo paradoxo, a lógicaque se inscreve é bastante próxima dos dizeres de Rodríguez (2014RODRÍGUEZ, Juana María. 2014. Sexual futures, queer gestures, and other latina longings. New York and London: NYU Press.), ao afirmar a potência de vida “para aqueles que se atrevem a buscar lascas de prazer na névoa tóxica que nos cerca”, mesmo - ou principalmente, como uma espécie de vingança - “para aqueles que escrevem em um mundo onde ser parados, revistados, detidos, e violados simplesmente por ocuparem o espaço público como um sujeito não-branco tornou-se uma realidade legalmente autorizada” (Rodriguez, 2014, p.181RODRÍGUEZ, Juana María. 2014. Sexual futures, queer gestures, and other latina longings. New York and London: NYU Press., tradução minha). No fim, estes são processos situados de constituição de sujeito a partir de “experiências [ao mesmo tempo] corpóreas, sexuais e espaciais” (Vartabedian, 2018, p.214VARTABEDIAN, Julieta. 2018. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences. 1ª ed. Londres: Palgrave Macmillan. 246p., tradução minha), como precisamente conjuga a autora.

Um último comentário acerca do trabalho de Vartabedian merece ainda ser feito: dez anos se passaram entre a etnografia feita no Rio de Janeiro em 2008 e sua posterior publicação em livro, o que dá certo tom nostálgico à leitura das cenas descritas por ela, sabendo de antemão que possivelmente diversas de suas interlocutoras não estão mais entre nós. Nesta década que se passou, tivemos o falecimento de figuras lendárias tanto da Lapa do casarão como do grupo das artistas tidas como pioneiras na visibilidade travesti na cena pública no Brasil. Mais do que um saudosismo de um passado recente que não existe mais, estas mortes não deixam de mais uma vez nos mostrar o embodiment da precariedade e vulnerabilidade na vida das travestis no Rio de Janeiro e no Brasil, em especial porque, como tem sido apontado pelo movimento social trans, em boa parte dos casos algum tipo de violência ou violação que sempre parece ter tido estado à espreita ao longo de suas vidas acabaram se fazendo presentes de modo indelével nas causas de suas mortes. Não deixa de ser um triste ponto final para os paradoxos que a autora tanto insiste em marcar, como nas palavras com as quais encaminha o fechamento do livro: “elas encarnaram [embodied] os paradoxos de uma sociedade (brasileira) que entrelaça desejo, beleza e dinheiro, mas também violência, criminalização e morte” (p.235VARTABEDIAN, Julieta. 2018. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences. 1ª ed. Londres: Palgrave Macmillan. 246p.).

Referências bibliográficas

  • BENEDETTI, Marcos. 2005. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond.
  • DUQUE, Tiago. 2011. Montagens e Desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Annablume.
  • EDMONDS, Alexander. 2010. Pretty Modern: Beauty, Sex, and Plastic Surgery in Brazil. Durham: Duke University Press.
  • JARRÍN, Alvaro. 2017. The Biopolitics of Beauty: Cosmetic Citizenship and Affective Capital in Brazil. Oakland: University of California Press.
  • KULICK, Don. 1998. Travesti: Sex, Gender and Culture among Brazilian Transgendered Prostitutes. Chicago: University of Chicago Press.
  • PELÚCIO, Larissa. 2009. Abjeção e Desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume , Fapesp.
  • PISCITELLI, Adriana. 2009. As fronteiras da transgressão: a demanda por brasileiras na indústria do sexo na Espanha. Sexualidad, Salud y Sociedad-Revista Latinoamericana, n. 1, p. 177-201.
  • RODRÍGUEZ, Juana María. 2014. Sexual futures, queer gestures, and other latina longings. New York and London: NYU Press.
  • VARTABEDIAN, Julieta. 2018. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences 1ª ed. Londres: Palgrave Macmillan. 246p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020
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