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Vulnerabilidade programática e cuidado público: Panorama das políticas de prevenção do HIV e da Aids voltadas para gays e outros HSH no Brasil

Programmatic vulnerability and public care: Overview of HIV and Aids prevention policies for gay and other MSM in Brazil

Vulnerabilidad programática y cuidad público: Panorama de las políticas de prevención de VIH y Sida enfocadas en gays y otros HSH en Brasil

Resumo:

O recrudescimento da epidemia de HIV entre gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH) é revelador de limitações ou fracasso nas políticas de prevenção direcionadas a este grupo. Com base nas abordagens teóricas da vulnerabilidade e do Cuidado, analisamos o panorama das políticas de prevenção do HIV/aids voltados a gays e outros HSH, recorrendo a documentos nacionais que fundamentam políticas de prevenção do HIV/aids e a documentos produzidos por organizações não governamentais e pelas Conferências Nacionais LGBT. Identificamos, nos documentos analisados, três leituras acerca das políticas de prevenção: a) epidemiológica; b) da responsabilidade preventiva; c) baseada nos direitos humanos e na vulnerabilidade. A disputa, a negação e a hegemonia de cada uma dessas perspectivas nos diferentes momentos permitem compreender parte dos desafios e das barreiras enfrentados na prevenção do HIV e da aids entre gays e outros HSH. A análise efetivada mostra mudanças na intensidade e na qualidade do diálogo socioestatal. A frágil formalização e a abrangência restrita dos documentos destacam-se como limitações na efetuação de uma abordagem de prevenção efetivamente fundamentada na vulnerabilidade e nos direitos humanos, bem como na incorporação da perspectiva do Cuidado público. Reiteramos a importância do diálogo qualificado com os sujeitos implicados nas políticas para audição de suas necessidades, de seus anseios e críticas.

Palavras-chave:
vulnerabilidade em saúde; políticas de saúde; AIDS; homossexualidade; homens que fazem sexo com homens (HSH)

Abstract:

The resurgence of the HIV epidemic among gay men and other men who have sex with men (MSM) is indicative of limitations or failures in prevention policies directed to this group. Based on the theoretical approaches of vulnerability and Care, we analyze the panorama of HIV/AIDS prevention policies for gays and other MSM in Brazil using national documents that support prevention policies of HIV/AIDS and documents produced by nongovernmental organizations and by the LGBT National Conferences. We identified, in the documents analyzed, three readings that support prevention policies: a) epidemiological; b) preventive responsibility; c) based on human rights and vulnerability. The dispute, denial and hegemony of each of these perspectives at different times allows us to understand some of the challenges and barriers faced in preventing HIV and AIDS among gays and other MSM. Our analysis shows changes in the intensity and quality of the dialogue between state and society. The fragile formalization and restricted scope of the documents stand out as limitations in the effectuation of a prevention approach based on vulnerability and human rights, as well as the incorporation of the Public Care perspective. We reiterate the importance of a qualified dialogue with the individuals involved in the policies to hear their needs, aspirations and critics.

Key words:
vulnerability in health; health policies; AIDS; homosexuality; men who have sex with men (MSM)

Resumen:

El recrudecimiento de la epidemia de VIH entre gays y otros hombres que tienen sexo con hombres (HSH) revela limitaciones o fracasos de las políticas de prevención dirigidas a ese grupo. Con base en los enfoques teóricos de la vulnerabilidad y del Cuidado, analizamos el panorama de las políticas de prevención del VIH / Sida dirigidas a gays y otros HSH, recurriendo a documentos nacionales que fundamentan políticas de prevención del VIH / Sida y documentos producidos por organizaciones no- gubernamentales y las Conferencias Nacionales LGBT. Identificamos, en los documentos analizados, tres lecturas acerca de las políticas de prevención: a) epidemiológica; b) de la responsabilidad preventiva; c) basada en los derechos humanos y la vulnerabilidad. La disputa, la negación y la hegemonía de cada una de esas perspectivas en los diferentes momentos permiten comprender parte de los desafíos y barreras enfrentados en la prevención del VIH y del Sida entre gays y otros HSH. El análisis efectuado muestra cambios en la intensidad y la calidad del diálogo socio-estatal. La frágil formalización y el alcance restringido de los documentos se destacan como limitaciones en la realización de un abordaje de prevención efectivamente fundamentado en la vulnerabilidad y los derechos humanos, así como a la incorporación de la perspectiva del Cuidado público. Reiteramos la importancia del diálogo calificado con los sujetos implicados en las políticas para la audición de sus necesidades, anhelos y críticas.

Palabras clave:
vulnerabilidad en salud; políticas de salud; SIDA; homosexualidad; hombres que tienen sexo con hombres (HSH)

Vulnerabilidade programática e cuidado público: Panorama das políticas de prevenção do HIV e da Aids voltadas para gays e outros HSH no Brasil1 1 Este artigo é um produto parcial da tese de doutoramento intitulada Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens, de Gabriela Junqueira Calazans (2018), realizada no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, sob orientação de José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. Uma versão preliminar foi apresentada no Simpósio Temático 006 - “Articulações entre gênero, sexualidade e outras diferenças no cotidiano da prevenção de HIV/aids: olhares a partir de processos de mudança social”, coordenado por Regina Facchini e Thiago Pinheiro - do 13º Mundo de Mulheres e Fazendo Gênero 11, realizado em 31 de julho e 1º de agosto de 2017 em Florianópolis.

Introdução

Dados e debates que abordam a epidemia de HIV/aids no Brasil nos últimos anos têm indicado um recrudescimento da epidemia, diferentemente do discurso mais frequente ao longo dos anos 2000, que ressaltava os sucessos da resposta brasileira à epidemia (Berkman et al., 2005BERKMAN, Alan; GARCIA, Jonathan; MUÑOZ-LABOY, Miguel; PAIVA, Vera & PARKER, Richard. 2005. “A critical analysis of the Brazilian response to HIV/AIDS: lessons learned for controlling and mitigating the epidemic in developing countries”. American journal of public health. Vol. 95. N° 7, p. 1162-1172.), dava destaque às tendências de heterossexualização, feminilização, pauperização, juvenilização e interiorização da epidemia, assim como à sua estabilização (Brito, Castilho & Szwarcwald, 2000BRITO, Ana Maria de; CASTILHO, Euclides Ayres de & SZWARCWALD, Célia Landmann. 2001. “AIDS e infecção pelo HIV no Brasil: uma epidemia multifacetada”. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Vol. 34. Nº 2, p. 207-217.; Parker & Camargo, 2000PARKER, Richard & CAMARGO JR., Kenneth Rochel. 2000. “Pobreza e HIV/AIDS: aspectos antropológicos e sociológicos”. Cad. Saúde Pública. Vol. 16. (Sup. 1), n° 2, p. 89-102.). Nos anos 2010, então, se passou a salientar o crescimento da epidemia, o aumento da mortalidade por aids, os retrocessos no âmbito das respostas e ações governamentais e a fragilização da autonomia e da capacidade de controle social por parte das ONGs (Malta & Beyrer, 2013MALTA, Monica & BEYRER, Chris. 2013. “The HIV epidemic and human rights violations in Brazil”. Journal of the International AIDS Society. Vol. 16. N° 1.; Ferraz et al., 2013FERRAZ, Dulce; CALAZANS, Gabriela; TERTO‐JUNIOR, Veriano; GRANGEIRO, Alexandre & PAIVA, Vera. 2013. “AIDS in Brazil: What Keep Us Awake?” (oral presentation CS43). Second International HIV Social Sciences and Humanities Conference, 7-10 July. Paris, France.; Grangeiro, Castanheira & Nemes, 2015GRANGEIRO, Alexandre; CASTANHEIRA, Elen Rose & NEMES, Maria Inês Battistella. 2015. “The reemergence of the Aids epidemic in Brazil: Challenges and perspectives to tackle the disease”. Interface-Comunicação, Saúde, Educação. Vol. 19. N° 52, p. 5-8.; Seffner & Parker, 2016SEFFNER, Fernando & PARKER, Richard. 2016a. “A neoliberalização da prevenção do HIV e a resposta brasileira à AIDS”. In: Mito vs realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e Aids em 2016. Rio de Janeiro: Abia.a, 2016SEFFNER, Fernando & PARKER, Richard. 2016b. “Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à AIDS”. Interface-Comunicação, Saúde, Educação. Vol. 20. N° 57, p. 293-304.b).

Desde o final dos anos 2000, ganhou ênfase, conforme orientação do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids, 2007UNAIDS. 2007. Practical Guidelines for Intensifying HIV Prevention: Towards Universal Access. Geneva: Unaids.), o caráter concentrado2 2 Epidemias concentradas são definidas pelo Unaids (2007) como aquelas em que a prevalência de HIV é alta em um ou mais grupos populacionais (com prevalência maior que 5%) e baixa na população geral (prevalência menor que 1%). da epidemia de HIV/aids no Brasil (Barbosa-Junior et al., 2009BARBOSA-JÚNIOR, Aristides; SZWARCWALD, Célia; PASCOM, Ana Roberta Pati & SOUZA-JÚNIOR, P.B. 2009. “Tendências da epidemia de AIDS entre subgrupos sob maior risco no Brasil, 1980-2004”. Cad. Saúde Pública. Abril de 2009. Vol. 25. N° 4, p. 727-737.). Apesar de o maior número de casos de aids ocorrer na chamada população geral, alguns grupos são desproporcionalmente afetados pela epidemia: gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), usuários de drogas injetáveis (UDI) e mulheres profissionais do sexo (PS) (Fonseca & Bastos, 2007FONSECA, Maria Goreti & BASTOS, Francisco Inácio. 2007. “Twenty-five years of the AIDS epidemic in Brazil: principal epidemiological findings, 1980-2005”. Cad. Saúde Pública [Internet]; 23 (Suppl 3): S333-S343. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2007001500002&lng=en >. [Acesso em 17.03.2018].
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; Malta et al., 2010MALTA, Monica; MAGNANINI, M.M.F.; MELLO, Maeve; PASCOM, Ana Roberta Pati; LINHARES, Yara & BASTOS, Francisco Inácio. 2010. “HIV prevalence among female sex workers, drug users and men who have sex with men in Brazil: a systematic review and meta-analysis”. BMC Public Health: 1-16. Disponível em:: Disponível em:: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20529289 [Acesso em 27.07.2018].
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). No entanto, esse reconhecimento no âmbito público não se deu sem tensionamento, tendo havido resistência por parte do governo (Ferraz et al., 2013FERRAZ, Dulce; CALAZANS, Gabriela; TERTO‐JUNIOR, Veriano; GRANGEIRO, Alexandre & PAIVA, Vera. 2013. “AIDS in Brazil: What Keep Us Awake?” (oral presentation CS43). Second International HIV Social Sciences and Humanities Conference, 7-10 July. Paris, France.).

Nos dados mais recentes, observa-se importante incremento de novos casos de infecção pelo HIV entre gays e outros HSH. Tal fato começou a ser evidenciado por meio de uma revisão sistemática e de metanálise dos estudos sobre a prevalência da infecção pelo HIV nestas populações. Identificando-se prevalência combinada3 3 Nos diferentes grupos estudados. de 13,6% entre HSH, 6,2% entre PS e 23,1% entre usuários de drogas (reunindo tanto UDI como usuários de drogas não injetáveis), enquanto na população geral calcula-se, até hoje, prevalência de 0,6% (Malta et al., 2010MALTA, Monica; MAGNANINI, M.M.F.; MELLO, Maeve; PASCOM, Ana Roberta Pati; LINHARES, Yara & BASTOS, Francisco Inácio. 2010. “HIV prevalence among female sex workers, drug users and men who have sex with men in Brazil: a systematic review and meta-analysis”. BMC Public Health: 1-16. Disponível em:: Disponível em:: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20529289 [Acesso em 27.07.2018].
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). Posteriormente, com o objetivo de conhecer melhor a epidemia nesses grupos, foram realizados, nos anos de 2009 e 2016, inquéritos abrangentes de vigilância epidemiológica e comportamental (behavioral surveillance surveys - BSS) da epidemia de HIV e de outras infecções de transmissão sexual (IST), que incluíram marcadores biológicos e utilizaram metodologia de amostragem por redes sociais (respondent-driven sampling - RDS). Comparação entre as prevalências de HIV entre gays e outros HSH, identificadas nos dois estudos, indicam incremento significativo, de 12,1% (95% IC: 10,0-14,5) em 2009 para 18,4% (95% IC: 15,4-21,7) em 2016 (Kerr et al., 2018KERR, Ligia et al. 2018. “HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling”. Medicine. Vol. 97, nº 1 Suppl.). Análise apresentada no último Boletim Epidemiológico de Aids e IST do Ministério da Saúde (Brasil, 2017aBRASIL. 2017a. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Aids e IST. Brasília: Ministério da Saúde.) mostrou que houve crescimento de 32,9% nos últimos dez anos na proporção de casos de aids entre HSH, passando de 35,6% em 2006 para 47,3% em 2016.

Apesar de se configurar como um dos segmentos populacionais mais atingidos pela epidemia de HIV/aids no Brasil (Beloqui, 2008BELOQUI, Jorge Adrian. 2008. “Risco relativo para Aids de homens homo/bissexuais em relação aos heterossexuais”. Rev. Saúde Pública. Vol. 42, p. 437-442.; Barbosa-Junior et al., 2009) e de seu forte engajamento na resposta à epidemia desde os seus primórdios nos anos 1980 (Calazans, 2018CALAZANS, Gabriela Junqueira. 2018. Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.), gays e outros HSH têm sido negligenciados pelas políticas de aids. Análise da política de incentivo do Ministério da Saúde para a resposta à aids de estados e municípios, no ano de 2006, identificou que somente 1,5% do conjunto dos recursos investidos foi gasto com os segmentos de gays e outros HSH e travestis (Grangeiro et al., 2009GRANGEIRO, Alexandre; ESCUDER, Maria Mercedes; CASTILHO Euclides Ayres de et al. 2009. Análise da política de incentivo do Ministério da Saúde para a resposta de estados e municípios à aids [relatório de pesquisa]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo., 2012GRANGEIRO, Alexandre; ESCUDER Maria Mercedes; SILVA, Sara R.; CERVANTES, Vilma & TEIXEIRA, Paulo Roberto. 2012. “Características da resposta à Aids de Secretarias de Saúde, no contexto da política de incentivo do Ministério da Saúde”. Saúde Soc. Vol. 21. N° 4, p. 954-75.). Nesse sentido, compreendemos que a persistência ou o recrudescimento da epidemia de HIV/aids entre gays e outros HSH é revelador de limitações ou fracasso nas políticas de prevenção implementadas (Pinheiro, 2015PINHEIRO Thiago Félix. 2015. Camisinha, homoerotismo e os discursos da prevenção de HIV/aids. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Calazans, 2018).

Neste artigo nos propomos a analisar documentos que fundamentam políticas de prevenção do HIV/aids voltados a gays e outros HSH com vistas a contribuir para a compreensão sobre como vêm sendo configurados, desde o início das respostas à epidemia, políticas, ações e serviços que pretendem oferecer medidas de proteção do HIV e da aids para gays e HSH. Nosso pressuposto é de que estes se constituem de diferentes leituras acerca da doença, da epidemia e de abordagens preventivas, calcadas em distintos conceitos operativos, recursos tecnológicos e modalidades de gestão, bem como de diferentes níveis e qualidades de diálogo com necessidades, desejos e anseios dos sujeitos gays e outros HSH, conformando possibilidades e respostas à epidemia de HIV/aids.

Este estudo fundamenta-se nos conceitos de vulnerabilidade e Cuidado4 4 Adotamos o termo cuidado em maiúsculas quando nos referimos ao conceito reconstrutivo (Ayres, 2004) para diferenciar da noção de cuidado como equivalente à atenção em saúde e ao ato de cuidar. (Ayres et al., 2003AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita; FRANÇA-JÚNIOR Ivan; CALAZANS, Gabriela Junqueira & SALETTI-FILHO, Haraldo César. 2003. “O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios”. In: CZERESNIA, Dina & DE FREITAS, Carlos Machado (orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz. p. 121-144.; Ayres, 2004) que pretendem contribuir para a reconstrução das práticas de saúde. O conceito de vulnerabilidade propõe uma renovação das formas de construção de diagnósticos de saúde, de modo a ampliar a compreensão das necessidades de saúde, incorporando, para além dos saberes biomédicos e epidemiológicos, saberes originários dos campos das ciências sociais e humanas, assim como saberes práticos - de ordem leiga e cotidiana - daqueles envolvidos nos cenários sob diagnóstico. Partindo de tais diagnósticos ampliados, o conceito de Cuidado, por sua vez, volta-se para a construção de práticas de saúde que considerem a autonomia dos sujeitos e seus saberes acerca da saúde e da vida.

Os diagnósticos baseados no quadro da vulnerabilidade almejam caracterizar, particularizadamente, determinantes sociais e políticos dos processos e das relações multicausais que produzem diferentes conformações da epidemia. A perspectiva da vulnerabilidade traz importante inovação ao tomar em consideração ações, programas e políticas de saúde e o conjunto de saberes, tecnologias, instrumentos e serviços como parte dos determinantes das condições de saúde que se pretende conhecer e transformar. Dessa forma, nos parece mais adequado trabalhar com a noção de “processos de saúde-doença-cuidado”, reconhecendo a íntima interdependência entre tais momentos na apreensão e na intervenção nas questões de saúde (Ayres, 2009AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita. 2009. “Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução de vulnerabilidade”. In: MARTINS, M.A.; CARRILHO, F.J.; ALVES, V.A.; CASTILHO, C.G. & WEN, C.L. (orgs.). Clínica médica. Vol. 1. Barueri: Manole. p. 437-455.; Ayres, Paiva & França-Jr, 2011AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita; PAIVA, Vera & FRANÇA-JÚNIOR Ivan. 2011. “From natural history of disease to vulnerability: changing concepts and practices in contemporary public health”. In: PARKER, R. & SOMMER, M. (eds.). Routledge handbook of global public health. Abingdon: Taylor and Francis. p. 98-107.).

O conceito de Cuidado propõe reconstruir as intervenções técnicas em saúde buscando reconciliá-las com a dimensão prática da vida - as primeiras marcadas por uma leitura individual-universalista e instrumental dos processos de saúde-doença-cuidado, e a segunda, pelos sentidos singulares que assume a experiência vivida desses processos. Assim, o conceito de Cuidado aqui adotado aponta para o sentido existencial das experiências de adoecimento - seja físico ou mental - e das práticas de saúde, sejam de promoção, proteção ou recuperação da saúde como o horizonte que permite compreender e transformar criticamente as práticas de saúde (Ayres, 2004AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita. 2004. “Cuidado e reconstrução das práticas de saúde”. Interface-Comunicação, Saúde, Educação. Vol. 8, p. 73-92.).

Apesar de usualmente articulado à dimensão das relações interpessoais entre usuários e profissionais de saúde, trabalhamos aqui com o entendimento da dimensão pública do cuidado, que nomeamos como cuidado público (Ayres, 2011AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita. 2011. “O cuidado e o espaço público da saúde: virtude, vontade e reconhecimento na construção política da integralidade”. In: PINHEIRO, R. & SILVA JÚNIOR, A.G. (orgs.). Cidadania no cuidado: o universal e o comum na integralidade das ações de saúde. 1. ed. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-Cepesc. p. 27-44.) - compreendido como conjunto de políticas, serviços e ações que implicam diretamente na vulnerabilidade dessa população - com vistas a refletir sobre as políticas públicas de prevenção de HIV/aids (Calazans, 2018CALAZANS, Gabriela Junqueira. 2018. Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.).

Método

Trata-se aqui de uma construção hermenêutica (Gadamer, 1991), por meio da qual interpretamos as políticas partindo de uma totalidade de sentido pré-configurada pelas preocupações que motivaram esse estudo, mas que se reconfiguraram à medida que o material interpretado foi enriquecendo essa pré-compreensão e apontando novas possibilidades interpretativas e, portanto, outras preocupações práticas.

Para construir um panorama das políticas de prevenção do HIV e da aids voltadas para gays e de outros HSH no Brasil, foram examinados documentos acerca das políticas, dos serviços e das ações de saúde, cuidado e prevenção do HIV/aids direcionados ou que remetem a tal população. Para a seleção desses documentos, efetuamos busca no website5 5 www.aids.gov.br e http://www.aids.gov.br/pt-br/centrais-de-conteudos/biblioteca_busca do Programa Nacional de Aids6 6 Ao longo de sua história, o programa nacional de aids teve variadas designações, assim como esteve subordinado a diferentes instâncias do Ministério da Saúde. No momento de redação deste artigo, está nomeado como Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV) e subordinado à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. Dada a dificuldade em saber a denominação correspondente a cada diferente momento histórico abordado no estudo, optamos por tratá-lo como programa nacional de aids de forma indiscriminada a partir daqui. Entendemos que tal denominação se articula à forma como a literatura internacional se refere às instâncias de coordenação nacional das políticas de aids. Consideramos relevante destacar, no entanto, a compreensão, amplamente compartilhada no campo da aids, de que o programa não se restringe às instâncias governamentais, mas espera-se que possa ter papel de coordenação dos diferentes atores (Teixeira, 1997; Galvão, 2000, Laurindo-Teodorescu & Teixeira, 2015; Calazans, 2018). e na Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde.7 7 http://bvs.saude.gov.br Foram selecionados materiais produzidos pelo governo federal com foco nas políticas de prevenção de HIV/aids voltadas a gays e outros HSH, assim como políticas mais amplas e estruturantes relativas à saúde integral e à promoção da cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).

Adicionalmente, foram consultados gestores, técnicos governamentais e ativistas dos movimentos sociais de aids e LGBT para a indicação de documentos atinentes à temática.8 8 A produção de materiais impressos e eletrônicos de referência técnica e política no campo da aids é muito profícua. Notamos, assim, que parte dos materiais publicados não se encontra mais disponível para localização on-line. Foi possível observar isto quando, em uma entrevista voltada ao projeto de pesquisa mais amplo em que se insere esta pesquisa documental, o entrevistado referiu-se e indicou para compor esta pesquisa um material que ele escreveu sob encomenda do Programa Nacional sobre a prática do bareback (sexo intencionalmente desprotegido, “a pelo”). Conseguimos localizar algumas poucas referências bibliográficas ao mesmo, mas não acessar o documento propriamente dito (Jesus, B. de, 2002). Barebacking. Brasília: Programa Nacional de DST/AIDS, Ministério da Saúde). O período de rastreio dos materiais abrangeu o intervalo de tempo entre os meses de março de 2017 e janeiro de 2018.9 9 Neste ínterim, o website do Programa Nacional sofreu profunda reformulação e muitos dos documentos localizados no início da pesquisa foram retirados e não se encontram mais disponíveis, mas haviam sido salvos por nós em um repositório pessoal para a realização desta análise. Para a localização dos materiais foram utilizados os seguintes termos: prevenção, homossexual, homossexuais, gay, gays, homens que fazem sexo com homens, HSH, HIV, aids. Foram localizados grande diversidade e volume de materiais disponíveis nos websites, mas pequena quantidade quando aplicados os critérios do estudo em pauta.

Ao longo dos anos 2010, identificamos uma importante inflexão no âmbito das políticas de prevenção, que se deslocaram do enfoque nos segmentos populacionais mais afetados para o enfoque em abordagens e tecnologias preventivas, tais como a profilaxia pós-exposição (PEP), a profilaxia pré-exposição (PrEP) e a prevenção combinada. Decidimos incluir os documentos voltados a tais abordagens e tecnologias preventivas porque sua implementação frequentemente tem focalizado o segmento populacional de gays e outros HSH.

Com vistas a trazer a voz dos sujeitos aos quais se destinam tais políticas de prevenção, incluímos dois outros conjuntos de documentos: a) materiais produzidos por organizações do movimento social de aids, por sua importância em um momento de disputa acerca dos rumos da política de prevenção e cuidado em HIV/aids para gays e outros HSH e por terem como foco a discussão acerca de políticas públicas de prevenção e de enfrentamento da epidemia; b) anais e relatórios produzidos pelas Conferências Nacionais LGBT - espaço de participação socioestatal para definição de prioridades no âmbito das políticas públicas voltadas a estes segmentos populacionais.

Primeiramente, procedemos a uma breve caracterização dos materiais identificados no que tange ao seu caráter e às suas implicações para o universo das políticas públicas de prevenção. A apreciação dos documentos foi orientada por uma grade de análise que buscou identificar: a) os propósitos do documento; b) o tipo de construção discursiva sobre a aids e a infecção pelo HIV; c) as práticas recomendadas e os discursos preventivos veiculados; d) as leituras da epidemia que orientaram as políticas de prevenção propostas ou defendidas. Ao caracterizarmos a autoria dos documentos governamentais, buscamos identificar em que medida sua elaboração se deu em diálogo com a sociedade civil organizada.

Na apresentação dos resultados, procedemos à caracterização de um panorama das políticas públicas de prevenção para contribuir com o entendimento do contexto de produção e recepção dos referidos documentos. Posteriormente, inspirados por Girard (2012GIRARD, Gabriel. 2012. Risque du sida et structuration des sociabilités homosexuelles: analyse sociologique des normes de prévention en France, 1989-2009. Ph. D. Thèse, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).), damos destaque à análise das leituras identificadas nos documentos analisados, que orientam a proposição de estratégias para o enfrentamento da epidemia nesse segmento. Buscamos, por fim, refletir a respeito das implicações das diferentes leituras sobre a epidemia para a proposição do cuidado público a gays e outros HSH, cotejando pontos em comum e em disputa nas leituras efetuadas em documentos governamentais e documentos que expressam perspectivas da sociedade civil.

Resultados

Dentre os materiais analisados (Quadro 1) encontram-se documentos publicados pelo Ministério da Saúde, em sua maior parte pelo Programa Nacional de DST/aids, mas também pelo Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Há ainda materiais publicados pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Presidência da República. Por fim, há alguns documentos publicados por organizações não governamentais que atuam no campo da aids.

Quadro 1
Documentos analisados.

Os documentos governamentais identificados mostram pequena formalização das políticas públicas de prevenção de HIV/aids no Brasil. Para tal consideração, levamos em conta a noção de hierarquização das normas derivada das teorias do direito (Aith, 2006AITH, Fernando Mussa Abujamra. 2006. Teoria Geral do Direito Sanitário Brasileiro. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.) - usada como referência no campo do planejamento e gestão das políticas de saúde - que localiza a Constituição Federal no topo da pirâmide normativa, seguida de emendas constitucionais, leis (complementares, ordinárias, delegadas, medidas provisórias), decretos e disposições administrativas (resoluções, instruções normativas, portarias, políticas, planos e normas administrativas). Notamos assim que, dentre os documentos imediatamente atinentes à prevenção de HIV/aids, o único documento com caráter normativo é o Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de Aids e DST entre Gays, outros Homens que fazem Sexo com Homens (HSH) e Travestis (Brasil, 2007BRASIL. 2007. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de Aids e DST entre Gays, outros Homens que fazem Sexo com Homens (HSH) e Travestis. Brasília: Ministério da Saúde.). Os demais documentos focados em prevenção têm caráter predominantemente pedagógico, de apresentação de diretrizes, subsídios e orientações para o desenvolvimento das práticas preventivas por profissionais de saúde e de outras áreas, assim como por ativistas e militantes. No escopo das políticas de equidade - sejam as políticas de saúde integral ou de direitos humanos - observamos maior formalização, com a Política de Saúde Integral LGBT (Brasil, 2012BRASIL. 2012. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Ministério da Saúde.) e o programa Brasil sem Homofobia (Brasil, 2004BRASIL. 2004. Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Brasil Sem Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília: Ministério da Saúde.). De qualquer forma, todos os documentos governamentais identificados caracterizam-se como disposições administrativas, podendo, mais facilmente, ser revogados na alternância de gestores.

Chama a atenção, ainda, que os documentos voltados às políticas de equidade não se refiram ao HIV/aids, apesar da relevância da epidemia para alguns destes segmentos populacionais e de o tema ser objeto de preocupações da sociedade civil e do movimento social organizado - tanto nos debates realizados no âmbito das Conferências como nos documentos elaborados pelas ONG/aids.

Panorama das políticas de prevenção do HIV e da aids voltadas para gays e outros HSH

A primeira resposta governamental à epidemia de aids no Brasil ocorreu no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES/SP) e foi provocada pela demanda de uma posição governamental diante do novo problema de saúde enfrentado pela comunidade homossexual, expressa em 1983 por um grupo de militantes gays (dos grupos Somos, em fase de extinção, e Outra Coisa). Desta demanda e de seu reconhecimento por parte de técnicos e dirigentes da SES/SP nasceu o Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, o primeiro estabelecido no Brasil (Teixeira, 1997TEIXEIRA, Paulo Roberto, 1997. “Políticas públicas em AIDS”. In: PARKER, R. (org.). Políticas, Instituições e AIDS: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Abia. p. 43-68.; Galvão, 2000GALVÃO, Jane. 2000. AIDS no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Abia.).

O Programa Nacional se consolidou apenas a partir de 1986/1988 na estrutura do Ministério da Saúde. Após um período inicial, até o início dos anos 1990, houve grande desencontro entre as mensagens das campanhas governamentais brasileiras, o discurso internacional e as ONG. A partir de 1992, as políticas de prevenção do HIV e da aids tiveram como foco o financiamento, centralizado por parte do Programa Nacional, de projetos de intervenção comportamental voltados aos segmentos populacionais em maior risco para a infecção e maior vulnerabilidade. Isso ocorreu por toda a década de 1990 até o início dos anos 2000 e foi nomeado por Jane Galvão (2000GALVÃO, Jane. 2000. AIDS no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Abia.), em seu livro AIDS no Brasil, o período da “ditadura dos projetos” (: 106). O financiamento de tal política foi possível por meio de empréstimos articulados junto ao Banco Mundial por acordos nomeados AIDS I e II.

Data de 1996 o primeiro material incluído neste estudo, o Manual do Multiplicador Homossexual (Brasil, 1996BRASIL. 1996. Ministério da Saúde. Manual do Multiplicador - Homossexual. Brasília: Ministério da Saúde.) dirigido a “membros do próprio grupo” (: 5) que seriam multiplicadores e monitores atuando por meio da educação de pares no desenvolvimento de intervenções comportamentais junto a “‘homossexuais com comportamento de risco’, visa[ndo] exatamente substituir tais condutas perigosas por comportamentos de baixo ou nenhum risco” (: 31). Para a elaboração deste documento, o PN-DST/AIDS contou com a colaboração do antropólogo Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia (GGB, Salvador/BA), e do ativista David Harrad, do Grupo Dignidade (Curitiba/PR).

A década de 1990 marcou a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) no país e, com isso, transformaram-se gradualmente as relações interfederativas para assegurar sua efetivação. A partir do início dos anos 2000, uma mudança gradual começou a ocorrer no âmbito das políticas governamentais, buscando-se integrar o financiamento das políticas de aids à dinâmica de financiamento do SUS por meio das transferências fundo a fundo. Tal mudança impôs a necessidade de descentralização das políticas de aids, do âmbito do governo federal para a gestão de estados e municípios. Buscou-se assegurar com tais mudanças maior compromisso e responsabilização pela execução das ações por parte das gestões estaduais e municipais. Manteve-se, no entanto, o compromisso de que 10% dos recursos transferidos deveriam ser repassados para o financiamento de projetos de prevenção desenvolvidos por ONG, com seleção, acompanhamento e avaliação por parte de estados e municípios (Brito, 2017BRITO, Ivo. Entrevista a Gabriela Junqueira Calazans. Brasília, julho de 2017.).

Nesse contexto, em 2002, o PN-DST/Aids publicou o Guia de Prevenção das DST/Aids e Cidadania para Homossexuais10 10 O Guia foi organizado por Lilia Rossi (assessora técnica da Unidade de Prevenção, da Coordenação Nacional de DST e aids) e teve como autores: Francisco Pedrosa (Grupo de Resistência Asa Branca, Grab, Fortaleza/CE), Glademir Lorenzi e Célio Golin (Nuances - Pela Livre Orientação Sexual, Porto Alegre/RS), Jacqueline Rocha (Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids de São José do Rio Preto/SP), Janaína Dutra (Associação de Travestis do Ceará), Kátia Guimarães (Secretaria Executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras), Lilia Rossi, Liza Minelly e Salange Stercz (Associação Nacional de Travestis, Curitiba/PR), Luís Felipe Rios (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, ABIA, Rio de Janeiro/RJ), Luiz Ramires (Lula, Corsa - Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor, São Paulo/SP), Luiz Mott (GGB, Salvador/BA), Miriam Martinho Rodrigues (Revista Um Outro Olhar e do Boletim Ousar Viver - São Paulo/SP). (Brasil, 2002BRASIL. 2002. Ministério da Saúde. Guia de Prevenção das DST/Aids e Cidadania para Homossexuais. Brasília: Ministério da Saúde.) destinado a profissionais das áreas de saúde, direitos humanos e assistência social, assim como a lideranças homossexuais, agentes de saúde, multiplicadores de formação e todas as pessoas que trabalhavam na prevenção das DST e aids, em organizações governamentais ou não governamentais no intuito de “subsidiar técnica e conceitualmente o desenvolvimento de programas e ações nessas áreas que tenham como alvo prioritário os homossexuais” (Brasil, 2002: 7). Para sua concepção e elaboração, houve a colaboração de lideranças do movimento homossexual brasileiro envolvidas em projetos e ações nos campos da saúde, aids, defesa de direitos humanos e cidadania. Ao tratar da metodologia de intervenção proposta, incentiva a articulação com a comunidade e com o poder público local, em particular com os serviços de saúde. Menciona, ainda, como importante marco no âmbito do movimento, a fundação de uma instância de articulação socioestatal nomeada Fórum de Organizações com Trabalhos de Prevenção das DST/Aids para Homens que Fazem Sexo com Homens do Estado de São Paulo11 11 Foi instituído em 1999 e durou, pelo menos, até 2002. (Fórum HSH/SP) e refere que tal experiência estaria sendo replicada no país. Os conceitos operativos de prevenção que orientam este Guia são o empoderamento e as intervenções comportamentais com vistas a

sugerir e apontar alternativas de comportamento que, no caso da prevenção das DST/HIV/aids, visa a diminuir ou a eliminar os riscos de se infectar pelo HIV/aids nas relações sexuais [...] pautadas no respeito à autonomia das pessoas diante de sua orientação sexual, de suas práticas sexuais, e de respeito à expressão plena de seu afeto e desejo (Brasil, 2002: 57).

No final dos anos 1990, análises do Programa Nacional de DST/Aids passaram a indicar transformações no perfil da epidemia de HIV e aids no Brasil articuladas ao que se nomeou tendências à juvenilização, heterossexualização, feminização, interiorização e pauperização da epidemia (Parker & Camargo Jr., 2000PARKER, Richard & CAMARGO JR., Kenneth Rochel. 2000. “Pobreza e HIV/AIDS: aspectos antropológicos e sociológicos”. Cad. Saúde Pública. Vol. 16. (Sup. 1), n° 2, p. 89-102.; Brasil, 2002). Tais análises embasaram a ampliação dos grupos aos quais se dirigiam as ações de prevenção. Dessa forma, o Guia afirma que

[...] alguns grupos populacionais podem, devido às desigualdades sociais, se tornar mais susceptíveis à epidemia pelo HIV/aids. Este fenômeno é chamado de vulnerabilidade social. Analisando dados epidemiológicos sobre as pessoas infectadas pelo HIV/aids, podemos identificar fatores que determinam a maior vulnerabilidade de alguns segmentos populacionais. No caso brasileiro, por exemplo, a epidemia tem crescido entre os jovens, as mulheres, no interior do país e entre pobres, continuando estabilizada em patamares elevados entre homossexuais e bissexuais. Por que isso? O que faz os homossexuais masculinos serem mais vulneráveis à epidemia do HIV/aids do que outros grupos populacionais? (Brasil, 2002: 24).

Partindo da compreensão de que a vulnerabilidade seria composta pela interação entre diversos fatores individuais, sociais e políticos, o Guia (Brasil, 2002) descreve que a falta de acesso à informação, à autonomia, à autoestima, ao trabalho, à escola e à aceitação social seria um dos elementos que compõem a vulnerabilidade. Dedica ainda um capítulo inteiro aos direitos humanos com vistas à promoção da cidadania plena dos homossexuais.

Pouco depois, em 2004, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) instituiu o programa Brasil Sem Homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual (Brasil, 2004), voltado à promoção da cidadania de tais segmentos a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação. O material, no entanto, não faz menção ao HIV e à aids.

A partir de 2005, organizações vinculadas aos movimentos de aids começaram a apontar tendências ao recrudescimento da epidemia de HIV e aids entre gays, outros HSH e travestis. Foram organizados documentos, seminários e publicações entre 2005 e 2007 para expressar tal preocupação e demanda (Pecoraro, 2006PECORARO, Marina. 2006. “AIDS e homossexualidade: 25 anos”. Boletim ABIA - Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS. Nº 54, p. 10-11.; Pela Vidda, 2006PELA VIDDA. 2006. “Homossexuais e Aids, a epidemia negligenciada”. Cadernos Pela Vidda. Junho 2006. Ano XVI, no 42.; Pela Vidda & Abia, 2007PELA VIDDA & ABIA. 2007. Pela Vida/SP e ABIA divulgam propostas para enfrentar a epidemia da AIDS entre homossexuais [on-line]. ABIA. Disponível em: http://abiaids.org.br/pela-vidasp-e-abia-divulgam-propostas-para-enfrentar-a-epidemina-da-aids-entre-homossexuais/26408. [Acesso em 13.06.17].
http://abiaids.org.br/pela-vidasp-e-abia...
). Entre eles, destaca-se um número especial dos Cadernos Pela Vidda intitulado Homossexuais e Aids, a epidemia negligenciada (Pela Vidda, 2006) e o seminário Homossexuais e Aids no Brasil: esquecer ou enfrentar? (Pela Vidda & Abia, 2007), que agregam propostas com vistas à “revisão da agenda governamental de prevenção em HIV/Aids para homossexuais” e o “aprimoramento das ações de prevenção” (Pela Vidda & Abia, 2007).

Como resultado de tal demanda, foi elaborado em 2007 o Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de Aids e DST entre Gays, outros Homens que fazem Sexo com Homens (HSH) e Travestis (Brasil, 2007) com propostas de metas e atividades para serem desenvolvidas no período de 2007 a 2011 e a indicação de que estados e municípios deveriam desenvolver planos congêneres. Para sua elaboração, contou como subsídio com o produto da reunião promovida por Pela Vidda e Abia (2007). Esperava-se inicialmente que, ao final desse período, o plano fosse avaliado e renovado. Sua avaliação, no entanto, teve como caráter seu encerramento (Brito, 2017) tanto por mudanças no âmbito da gestão das políticas de aids no país como pelo entendimento de que no contexto da implantação, a partir de 2011, da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2012), a política de prevenção do HIV e da aids estaria subsumida e assegurada. De forma significativa, o documento desta política não aborda a prevenção de HIV/aids.

Nesse ínterim, foram realizados diálogos entre representantes governamentais e integrantes dos movimentos sociais com o intuito de orientar políticas públicas voltadas às necessidades e aos direitos da população LGBT,12 12 Como tem sido discutido por autores que tratam do movimento social em torno das diferentes expressões da sexualidade e de gênero no Brasil, desde os seus primórdios no final dos anos 1970 até os dias atuais, tal movimento teve diferentes denominações e segmentações, tais como movimento homossexual, gay, GLBT, LGBT, entre outros (Facchini, 2005; Simões & Facchini, 2009). Apesar de estarmos atentos a tal fenômeno, isto não integrou a análise apresentada neste artigo. sendo que a própria elaboração das chamadas políticas de equidade se deram em resposta a demandas do movimento social, como as anteriormente mencionadas: programa Brasil sem Homofobia e Plano de Saúde Integral LGBT. Em 2008, aconteceu a 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - GLBT (Brasil, 2008BRASIL. 2008. Presidência da República. Anais da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - GLBT. Brasília: Presidência da República.) como parte da agenda que celebrou os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e com o objetivo de subsidiar a revisão e a atualização do Programa Nacional de Direitos Humanos. Em 2011, em sua segunda edição, o evento passou a se chamar 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT (Brasil, 2011BRASIL. 2011. Presidência da República. Conselho Nacional LGBT. Anais da 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT. Brasília: Presidência da República.), como um fórum para avaliação da efetividade das ações previstas no Plano Nacional de Políticas Públicas para a População LGBT, desenvolvido a partir da 1ª Conferência. A 3ª Conferência ocorreu em 2016 e seu relatório final aposta na “busca pela implementação das políticas públicas demandadas, com a garantia de que seu acompanhamento seja feito por meio de um processo participativo mais abrangente” (Brasil, 2016BRASIL. 2016. Presidência da República. Relatório final - 3ª Conferência nacional de políticas públicas de direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Presidência da República.: 6). Das três conferências, resultaram propostas, diretrizes e/ou deliberações que sintetizam os caminhos percorridos em diferentes eixos desse diálogo - inclusive saúde - e almejados a partir dele.

No cenário internacional do campo das políticas de prevenção de HIV/aids, desde 2006 e com maior destaque a partir de 2012, fortaleceu-se o debate acerca das chamadas novas tecnologias de prevenção biomédica do HIV. As principais destas tecnologias estão associadas ao uso de antirretrovirais para fins de prevenção (pré e pós-exposição ao vírus e no tratamento das pessoas soropositivas para o HIV, assegurando a sua não transmissibilidade). No Brasil, após a superação de um silêncio inicial a respeito desses novos métodos de prevenção, em 2015 foi publicado o Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia antirretroviral pós-exposição de risco à infecção pelo HIV13 13 A profilaxia pós-exposição (PEP) consiste no uso de medicamentos antirretrovirais tomados por um período de 28 dias consecutivos por pessoas sabidamente soronegativas, com vistas a evitar a infecção, quando houver possível ou sabida exposição ao vírus. Sua oferta passou a ser preconizada como método de prevenção da infecção pelo HIV para indivíduos identificados com os grupos populacionais mais afetados pela epidemia que tenham vivido situação de exposição ao vírus, desde 2008, tendo sido efetivamente implantada a partir de 2010. Sua proposição se deu, neste primeiro momento, como recomendação no documento suplementar de Recomendações para terapia antirretroviral em adultos infectados pelo HIV - 2008 (Brasil, 2010). Em sua proposição inicial, havia três diferentes protocolos - envolvendo orientações de diferentes medicamentos e distintos momentos de recomendação da adoção da tecnologia - para os casos de recomendação de uso de PEP em função de exposição por acidente ocupacional com objetos perfurocortantes, violência sexual e exposição sexual consentida. Somente em 2015 foram integrados os protocolos. (PCDT-PEP), porém sem nenhuma menção a gays e HSH ou outra população específica (Brasil, 2015BRASIL. 2015. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Antirretroviral Pós-Exposição de Risco à Infecção pelo HIV. Brasília: Ministério da Saúde.).

Em 2017, foi a vez do Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pré-exposição14 14 A PrEP consiste na tomada diária de um comprimido de antirretrovirais para prevenir a infecção pelo HIV e foi implantada no país em 2017, após a realização de uma série de estudos que demonstraram sua eficácia e a possibilidade de ser incorporada como política pública de prevenção. A PrEP é a única tecnologia de prevenção que tem seu acesso restrito a somente alguns grupos populacionais no Brasil. (PrEP) de risco à infecção pelo HIV (PCDT-PrEP). A partir do argumento de que a eficácia da PrEP foi demonstrada em pessoas com risco aumentado de infecção pelo HIV, esse documento indica como prioritário o uso da profilaxia pelos segmentos em que a epidemia brasileira se concentra, tais como os gays e HSH, embora argumente que o pertencimento a um desses grupos - por não ser suficiente para caracterizar o aumento do risco - deve ser articulado à caracterização das práticas sexuais, parcerias e contextos que conformam a exposição ao vírus (Brasil, 2017BRASIL. 2017b. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para Profilaxia Pré-exposição (PrEP) de risco à infecção pelo HIV. Brasília: Ministério da Saúde;b). Também em 2017, o Ministério da Saúde publicou o documento Prevenção Combinada do HIV: bases conceituais para profissionais, trabalhadores e gestores de saúde (Brasil, 2017BRASIL. 2017c. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada do HIV: bases conceituais para profissionais, trabalhadores e gestores de saúde. Brasília: Ministério da Saúde.c). Consta no documento uma lista de colaboradores, que reúne pesquisadores, professores universitários, ativistas dos movimentos sociais de aids e LGBT, técnicos e gestores locais de saúde, entre outros. Em consulta a alguns deles, identificamos tratar-se dos integrantes de um Grupo de Trabalho (GT) de Prevenção formado em agosto de 2016, pouco após o golpe parlamentar e a mudança de gestão no âmbito do Programa Nacional.

Apesar de se considerar a proposição deste GT um avanço significativo, ainda mais em um cenário tão adverso, há forte entendimento de que existe grande fragilidade no diálogo entre a coordenação do Programa e a sociedade civil na atualidade. O documento foi demandado pelo GT ao PN para que refletisse o entendimento do Ministério da Saúde quanto ao termo “prevenção combinada”15 15 Entre os pontos controversos sobre o termo, há entendimentos que o reduzem à combinação de diferentes tecnologias biomédicas de prevenção e outros que articulam prevenção biomédica, comportamental e estrutural - que foi o modelo adotado pelo PN no referido documento. que tem tido diferentes interpretações no campo. Assim, os integrantes do referido GT não participaram da escrita do documento, mas enviaram suas contribuições ao texto elaborado por técnicos do PN por e-mail e estimularam a realização de uma consulta pública,16 16 A consulta pública realizada no primeiro semestre de 2017 incorporou algumas das críticas, mas não efetivou mudanças estruturais, que foram recomendadas. que é mecanismo frágil de participação social - apesar do potencial alcance - dado que só permite a escuta das críticas e das sugestões, mas não o efetivo debate. Nesse processo houve posicionamento crítico ao documento - tanto em sua abordagem conceitual como em sua forma, já que se trata de um documento extenso e com pouco foco, o que dificulta o controle social.

Neste documento apresenta-se a Prevenção Combinada como um novo paradigma de prevenção do HIV. As referências aos gays e HSH consideram aspectos, tais como estigma, discriminação e barreiras de acesso, que têm contribuído para que esse segmento seja afetado desproporcionalmente pela epidemia.

Leituras das políticas de prevenção para gays e outros HSH: campo de disputas

A partir da análise dos documentos citados, identificamos ao longo da trajetória de políticas de prevenção para gays e outros HSH três leituras empreendidas na elaboração e na proposição de estratégias para o enfrentamento da epidemia neste segmento, conforme inspiração em Girard (2012GIRARD, Gabriel. 2012. Risque du sida et structuration des sociabilités homosexuelles: analyse sociologique des normes de prévention en France, 1989-2009. Ph. D. Thèse, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).): a) leitura epidemiológica; b) leitura da responsabilidade preventiva; e c) leitura a partir dos referenciais dos direitos humanos e da vulnerabilidade.

Pela denominação de leitura epidemiológica, nos referimos aos materiais que recorrem a este tipo de parâmetro para apontar o impacto da epidemia no segmento de gays e outros HSH e justificar ou demandar políticas ou ações específicas. O Manual do Multiplicador (Brasil, 1996) mobiliza dados imprecisos e impactantes sobre a estimativa de número de gays no Brasil, proporção de homossexuais mortos por aids a cada dia para justificar a importância do papel dos monitores a serem formados pelos multiplicadores. O Guia de Prevenção (Brasil, 2002BRASIL. 2002. Ministério da Saúde. Guia de Prevenção das DST/Aids e Cidadania para Homossexuais. Brasília: Ministério da Saúde.) sinaliza destaque para os homossexuais como “grupo populacional mais atingido pela epidemia” em nível mundial. O Plano de Enfrentamento (Brasil, 2007) recorre a dados comparativos de incidência e proporção de casos entre HSH e a população geral para evidenciar o impacto e caracterizar a epidemia neste grupo, destacando a urgência da política de enfrentamento. O PCDT-PrEP (Brasil, 2017b) utiliza índices de prevalência para caracterizar as populações com maior risco, prioritárias para a oferta da profilaxia. No documento sobre Prevenção Combinada, apresenta-se que “apesar de controlados na população brasileira de um modo geral, os índices epidemiológicos permanecem em níveis elevados em alguns estratos sociais específicos” (Brasil, 2017c: 8) e que a redução de tais índices convoca ao aprimoramento das estratégias de prevenção do HIV, tomando-se em conta o “acúmulo teórico recente e as novas tecnologias de prevenção surgidas nos últimos anos” (Brasil, 2017c: 13).

Os Cadernos Pela Vidda (Pela Vidda, 2006) alertam para o recrudescimento da epidemia entre gays e outros HSH e apresentam perspectiva crítica sobre a leitura epidemiológica da epidemia de HIV/Aids ao apontarem a existência de vidas humanas por trás dos “frios dados estatísticos”. Além disso, neste último material, um pesquisador, ativista do movimento de aids, apropria-se de metodologias epidemiológicas utilizadas pelo Ministério da Saúde para apresentar análise em que demonstra a desproporção do risco relativo para aids entre homens homossexuais quando comparados com homens heterossexuais (Beloqui, 2006BELOQUI, Jorge Adrian. 2006. “Risco relativo para Aids dos homossexuais masculinos no Brasil”. Cadernos Pela Vidda. Junho de 2006. Ano XVI. No 42, p. 16-9.). As propostas do seminário organizado por Pela Vidda e Abia, além de ressaltarem a necessidade de se admitirem tanto a gravidade da epidemia do HIV/Aids quanto a alta incidência entre HSH, indicam que - dada a alta incidência de casos de infecção por HIV, aids e outras DST - o financiamento para ações e políticas de prevenção voltadas ao grupo dos HSH deveria ser proporcional à representatividade epidemiológica do grupo na epidemia, além da necessidade de novos modelos de vigilância epidemiológica (Pela Vidda & Abia, 2007).

O programa Brasil Sem Homofobia (Brasil, 2004), o Plano de Saúde Integral (Brasil, 2012) e os Anais e Relatório das Conferências Nacionais de LGBT (Brasil, 2008, 2011, 2016) não mencionam dados epidemiológicos acerca do HIV e da aids entre gays e outros HSH.

O recurso aos dados epidemiológicos, como argumento capaz de justificar ações específicas para o segmento de gays e outros HSH, remete a uma instância primária de comprovação e convencimento da necessidade de direcionamento das políticas de prevenção do HIV e da aids aos segmentos em que se concentra a epidemia. Nesse sentido, trata-se ainda da demanda por um cuidado público atento às populações mais atingidas e às suas especificidades. Este argumento esteve centralmente presente nas primeiras respostas à epidemia, dado o visível impacto da aids na comunidade homossexual. Nesse período, no entanto, sua conformação segundo a lógica dos grupos de risco e da proposição de estratégias de isolamento sanitário expressou a tradução dos indicativos epidemiológicos do que deveriam ser as prioridades da política de prevenção em características identitárias que atualizaram processos de estigmatização das sexualidades não heterossexuais (Ayres et al., 2012AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita; PAIVA, Vera & FRANÇA-JUNIOR, Ivan. 2012. “Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos”. In: PAIVA, V.; AYRES, J.R. & BUCHALLA, C.M. (orgs.). Vulnerabilidade e direitos humanos - prevenção e promoção da saúde: da doença à cidadania. Livro I. Curitiba: Juruá. p. 71-94.).

No período subsequente - final dos anos 1990 e primeira metade dos anos 2000 - a participação de gays e outros HSH no perfil epidemiológico da aids foi suplantada pelo reconhecimento de que a aids configurava uma ameaça à população em geral e de que havia uma tendência à heterossexualização da aids (Parker, 1994PARKER, Richard. 1994. A construção da solidariedade: AIDS, sexualidade e políticas no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Abia/IMS/UERJ.), tendo sido resgatada a partir das análises que apontaram a concentração da epidemia brasileira (Brasil, 2000BRASIL. 2000. Coordenação Nacional de DST e Aids. Bela Vista e Horizonte: estudos comportamentais e epidemiológicos entre homens que fazem sexo com homens. Brasília: Coordenação Nacional de DST e Aids.; Fonseca & Bastos, 2007FONSECA, Maria Goreti & BASTOS, Francisco Inácio. 2007. “Twenty-five years of the AIDS epidemic in Brazil: principal epidemiological findings, 1980-2005”. Cad. Saúde Pública [Internet]; 23 (Suppl 3): S333-S343. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2007001500002&lng=en >. [Acesso em 17.03.2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Malta et al., 2010MALTA, Monica; MAGNANINI, M.M.F.; MELLO, Maeve; PASCOM, Ana Roberta Pati; LINHARES, Yara & BASTOS, Francisco Inácio. 2010. “HIV prevalence among female sex workers, drug users and men who have sex with men in Brazil: a systematic review and meta-analysis”. BMC Public Health: 1-16. Disponível em:: Disponível em:: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20529289 [Acesso em 27.07.2018].
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/2052...
; Veras et al., 2014VERAS, Maria Amélia; CALAZANS, Gabriela Junqueira; RIBEIRO, Manoel C.S.A.; OLIVEIRA, Carmem A.F.; GIOVANETTI, Márcia R.; FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora L. & MCFARLAND, William & The SampaCentro Study Group. 2014. “High HIV prevalence among men who have sex with men in a time-location sampling survey, São Paulo, Brazil”. AIDS Behav. Novembro de 2014). A demanda pelo cuidado específico passou, desse modo, a dialogar com o desafio de superar a perspectiva estigmatizante na atuação com os segmentos mais vulneráveis ao HIV e à aids.

A leitura epidemiológica está apoiada em uma perspectiva de cuidado pelo fornecimento de informações e alerta à população ou aos grupos mais atingidos quanto à gravidade e às particularidades da situação epidêmica. Para além de justificar as demandas por ações específicas, ela fundamentou o trabalho preventivo centrado no conhecimento, o que, por um lado, ampliou a divulgação das informações a respeito do HIV e da aids e dos modos de se prevenir, mas, por outro, sustentou - em diferentes momentos - certa expectativa de que o acesso ao conhecimento fosse elemento central e suficiente ao cuidado público. É necessário ressaltar que, apesar de adotarem tal leitura, os documentos das ONG/aids expressam sua crítica a ela ao destacarem que, subjacente aos dados, há vidas e ao reivindicarem investimento proporcional à gravidade da situação epidêmica.

A perspectiva da responsabilidade preventiva expressa a importância destinada, nas ações e nas políticas de HIV e aids, à responsabilização individual em face da prevenção, ora ressaltando a que grupos essa responsabilidade diz respeito, ora enfatizando os modos de se responsabilizar pelas práticas preventivas. Nesse sentido, o Manual do Multiplicador Homossexual (Brasil, 1996) destaca que não somente os gays se infectam com o HIV, mas também os heterossexuais, e que a transmissão do vírus depende da troca de fluidos corporais e da prática ou não do sexo seguro. O Guia de Prevenção (Brasil, 2002) detalha o risco biológico e comportamental de infecção pelo HIV, enfatizando a responsabilidade individual com foco nas práticas sexuais, independentemente da orientação sexual dos indivíduos. O Plano de Enfrentamento (Brasil, 2007) aponta que homossexuais masculinos usam camisinha mais frequentemente, assim como se testam mais do que heterossexuais.

O documento de propostas dos grupos Pela Vidda e Abia (2007) indica a necessidade de dar visibilidade ao risco e à gravidade da epidemia entre gays e HSH, assim como proceder à avaliação cuidadosa das experiências passadas e das metodologias já adotadas para

[...] redefinir e atualizar as mensagens, materiais, campanhas, abordagens e estratégias de incentivo a mudanças de comportamento e sexo mais seguro entre os homossexuais, com ações adaptadas às atuais práticas, culturas e percepções de risco (Pela Vidda & Abia, 2007).

A perspectiva da responsabilidade preventiva expressa a centralidade que a abordagem comportamental adquiriu na prevenção do HIV e da aids, operando a lógica de comportamentos (seguros ou de risco) despidos dos aspectos socioculturais, isto é, isolados dos contextos e das condições em que ocorrem (Gagnon, 2006GAGNON, John. 2006. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond.). Como a responsabilização pelos comportamentos recai decisivamente sobre o indivíduo, uma consequência bastante presente tem sido a atribuição de culpa às pessoas pela infecção ou mesmo pela exposição a esta, o que tem implicações significativas na conformação do cuidado concebido nesses cenários.

Apesar de podermos identificar nesta perspectiva um propósito de sensibilização dos indivíduos para a prevenção, com o intuito de agregar algum sentido às informações acerca do HIV e da aids, tal sentido não é construído intersubjetiva ou participativamente nas interações caracterizadas como cuidado. Ele é preconcebido como um objetivo: uma mudança comportamental específica a ser alcançada, tal como ilustra um trecho do Manual do Multiplicador (Brasil, 1996):

Convide dois ou três dos participantes a darem sua opinião final sobre o que acharam da oficina, se aprenderam coisas que não sabiam e sobretudo se pretendem só praticar sexo sem risco. É assim que os crentes reforçam a fé e a convicção daqueles que se converteram (: 41).

Outros materiais posicionam-se criticamente à perspectiva da responsabilidade preventiva. A publicação do grupo Pela Vidda (2006) considera precipitada a conclusão do Ministério da Saúde de que as maiores proporções de relato de uso de preservativo e de realização do teste anti-HIV entre gays e HSH, em comparação com homens heterossexuais, atestariam o “suposto sucesso às poucas ações de prevenção dirigidas aos gays” (: 4), bem como critica lógicas de financiamento de projetos de prevenção que tiveram como consequência a “desomossexualização da epidemia” (: 6).

O PCDT-PrEP (Brasil, 2017b), apesar de inserir o uso da profilaxia no âmbito do gerenciamento de risco, afirma que a abordagem sobre as escolhas deve considerar a influência dos pertencimentos culturais, inserções comunitárias e histórias de vida na adoção dos métodos de prevenção. O documento sobre Prevenção Combinada (Brasil, 2017c), ao criticar a noção de grupos de risco por embasar “situações de violação de direitos e garantias fundamentais”, ressalta que esta perspectiva aumenta o preconceito e o estigma contra as pessoas vivendo com HIV “ao responsabilizá-las pela epidemia de modo exclusivo, e não aos determinantes e condicionantes sociais” (: 22).

No entanto, o deslocamento do foco da prevenção dos segmentos populacionais mais afetados para as abordagens e as tecnologias preventivas - presente nestes documentos mais recentes - reforça o entendimento de cuidado como estímulo à adesão aos esquemas prescritos pelos profissionais de saúde, visando assegurar a aceitação e a colaboração dos usuários. Assim, mesmo a referência a noções como “autonomia” e “direitos” apresenta-se condicionada à finalidade de potencialização da adesão a tratamentos, no caso dos soropositivos, ou a tecnologias de prevenção, no caso dos soronegativos. Tal abordagem do cuidado atribui maior relevância às interações dos sujeitos - compreendidos como usuários ou pacientes - com as equipes e os profissionais de saúde, de forma a deixar em segundo plano outras formas de apoio social e comunitário.

Os Anais e Relatório das Conferências Nacionais de LGBT (Brasil, 2008, 2011, 2016) não se detêm na abordagem da prevenção de HIV/aids a partir de leitura da responsabilidade preventiva.

Por fim, a leitura a partir dos referenciais dos direitos humanos e da vulnerabilidade enseja tentativas de articular, nas políticas e nas ações de prevenção do HIV e da aids, os aspectos socioculturais que conformam as práticas sexuais e preventivas, especialmente a partir da atenção às singularidades dos grupos mais afetados pela epidemia e aos constrangimentos sociais que enfrentam. O arcabouço conceitual da vulnerabilidade (Mann et al., 1993MANN, Jonathan; TARANTOLA, Daniel J.M. & NETTER, Thomas W. (orgs.). 1993. A AIDS no mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.; Ayres et al., 2012AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita; PAIVA, Vera & FRANÇA-JUNIOR, Ivan. 2012. “Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos”. In: PAIVA, V.; AYRES, J.R. & BUCHALLA, C.M. (orgs.). Vulnerabilidade e direitos humanos - prevenção e promoção da saúde: da doença à cidadania. Livro I. Curitiba: Juruá. p. 71-94.) foi desenvolvido com a proposta de orientação das ações preventivas que abarcassem a inclusão dos direitos humanos a partir de uma perspectiva abrangente (dimensões individual, social e programática) da exposição dos indivíduos ao HIV/aids.

Nesta perspectiva, o Manual do Multiplicador (Brasil, 1996) faz referência aos direitos humanos no que diz respeito à orientação sexual, à prevenção da violência e à garantia legal da cidadania, porém sem incorporar o referencial da vulnerabilidade. O Guia de Prevenção (Brasil, 2002) traça associação entre vulnerabilidade ao HIV e desigualdades sociais, indicando a necessidade de combater o preconceito, o estigma e a violência e de promover a cidadania para enfrentar, em especial, a vulnerabilidade social. O Plano de Enfrentamento (Brasil, 2007) aponta a necessidade de que os esforços de prevenção - resposta programática - sejam concebidos em respeito à diversidade de identidades e práticas sexuais, aos diferentes contextos, espaços e culturas sexuais, bem como à exclusão e à violência, que determinam a suscetibilidade ao HIV/aids dos segmentos enfocados.

Embora o documento da Política de Saúde Integral (Brasil, 2012) não trate de prevenção de HIV especificamente, recupera a história da atuação dos movimentos de gays e travestis no redirecionamento das estratégias da prevenção e do cuidado das pessoas em relação ao HIV/aids. O PCDT-PrEP (Brasil, 2017b) ressalta o impacto das situações de discriminação a que gays e HSH estão sujeitos no aumento de sua vulnerabilidade ao HIV/aids e atrela a eficácia da PrEP à retirada das barreiras de acesso dessas populações à rede de saúde de modo a garantir seu direito à saúde. O documento sobre Prevenção Combinada (Brasil, 2017c) destaca a contribuição do estigma e da discriminação na conformação das barreiras de acesso de gays e HSH aos serviços de saúde. A referência às intervenções estruturais, que integram o rol de estratégias de prevenção a serem combinadas, é vinculada ao objetivo de “evitar que preconceitos, discriminações ou intolerâncias se convertam em formas de alienação ou relativização dos direitos e garantias fundamentais à dignidade humana e à cidadania” (: 21). Por outro lado, a Prevenção Combinada é apresentada como um modelo ou paradigma de prevenção do HIV que, então, supera os paradigmas do risco e da vulnerabilidade.

Os Cadernos Pela Vidda (2006) apontam aspectos programáticos que fragilizam as ações das ONG, promovendo crises de continuidade, financiamento e sustentabilidade, assim como irregularidade e ausência de monitoramento e avaliação das ações desenvolvidas. Apontam, ainda, desvios nos esforços de prevenção para os homossexuais ao deslocarem a prioridade e o financiamento das ações para outros grupos vulneráveis por meio da caracterização de tendências - que nem sempre se confirmaram - assim como pelo direcionamento de recursos destinados às políticas de aids para a promoção da cidadania homossexual (como no caso do financiamento para as Paradas do Orgulho), sem assegurar o desenvolvimento de ações específicas de prevenção. Em direção semelhante, as propostas do seminário organizado por Pela Vidda e Abia estabelecem um conjunto de propostas de ação que articulam uma análise minuciosa da vulnerabilidade de homossexuais masculinos, particularmente em suas dimensões programática e social (Pela Vidda & Abia, 2007).

Nos Anais da 1ª Conferência Nacional GLBT (Brasil, 2008), a temática do HIV aparece em diversas deliberações na perspectiva dos direitos humanos e da dimensão programática da vulnerabilidade. Foram deliberadas desde medidas de garantia de implantação e fortalecimento das ações de prevenção - como a implantação do Plano de Enfrentamento da Aids entre gays, HSH e travestis e da Atenção Integral à Saúde da população LGBT vivendo com HIV e aids - até a ampliação das políticas de modo a incluir a cobertura de pessoas jovens, de baixa renda, nas fronteiras do país e com deficiência. Os Anais da 2ª Conferência (Brasil, 2011) apresentam como diretriz a garantia do acesso universal, integral e equânime de LGBT às ações de promoção, prevenção e tratamento, especialmente das DST/HIV/aids, e direcionam considerável atenção às pessoas vivendo com HIV/aids em diferentes diretrizes. No Relatório da 3ª Conferência (Brasil, 2016), propõe-se, de forma mais genérica, o incentivo à promoção da saúde no campo da prevenção e da assistência às IST/HIV/aids na população LGBT.

Em relação às anteriores, essa leitura ampliou a compreensão da problemática abordada e o espectro de dimensões e aspectos a serem considerados na prevenção, tendo possibilitado, em especial, a inclusão do combate ao estigma, discriminação e violência ao escopo do trabalho preventivo. Todavia, se essa inclusão pôde ser realizada - em alguns momentos da história de enfrentamento da epidemia - no nível mais central da construção da política de prevenção, teve menos sucesso em sua efetivação junto ao trabalho preventivo efetivado na ponta, no âmbito dos serviços de saúde e de outros equipamentos sociais (Pinheiro, 2015). Nesse sentido, esteve presente na esfera do delineamento de propostas de um cuidado público a gays e outros HSH, mas possivelmente ausente das práticas de cuidado ofertadas por profissionais e serviços de saúde.

Outra contribuição desta perspectiva se expressa na possibilidade de tematizar diferentes aspectos da vulnerabilidade programática, tais como as barreiras ao acesso, o preconceito e o estigma no âmbito dos serviços, as inflexões na política, na definição de focos e prioridades, no financiamento. Cotejando a forma como aspectos da vulnerabilidade programática foram abordados nos diferentes documentos analisados, identificamos maior especificidade nos diagnósticos e nas propostas de ação presentes nos documentos das organizações não governamentais e nos produtos da participação socioestatal. O caráter crítico de tais documentos reforça a percepção de importantes limitações das políticas de prevenção implementadas até o momento. Na análise dos documentos produzidos no contexto das Conferências LGBT, chama a atenção que a pauta da aids tenha estado mais presente e mais diversificada na 1ª Conferência, tornando-se quase ausente na terceira.

Tal leitura permitiu ainda a abordagem das intervenções de caráter estrutural - tais como mudanças na legislação que coíbam discriminação e preconceito, garantia de políticas de enfrentamento das desigualdades sociais aos segmentos mais vulneráveis, fomento ao protagonismo e ao empoderamento e o fortalecimento do SUS.

Identificamos, no entanto, algumas limitações na abordagem das dimensões da vulnerabilidade social e programática nos documentos analisados. A inexistência de documentos mais formalizados e abrangentes no âmbito das políticas públicas de aids e de prevenção - não há em vigência, no momento, um plano nacional de enfrentamento da epidemia, abrangente ou voltado especificamente a gays e HSH - não permite identificar compromissos e ações endereçados à definição de estratégias estruturais de enfrentamento da epidemia e ao seu controle social.

Há também forte tendência à abordagem da vulnerabilidade social como restrita às implicações das experiências de preconceito, estigma e violência, mediada por noções individualizantes do social, tais como autoestima, autonomia e consciência. Frequentemente, as estratégias de cuidado apresentadas enfatizam o empoderamento e o protagonismo individual ou do grupo. Sem negar que haja implicações nos modos de subjetivação em função de contextos sociais violentos e discriminatórios, é importante reconhecer que se trata de processos relacionais, sendo mais produtivas, assim, noções como as de processos de estigmatização e discriminação. A forma como a leitura dos direitos humanos e da vulnerabilidade se efetiva nos documentos analisados exige mediações que orientem o desenvolvimento de ações que permitam a construção de respostas.

A abordagem mais frequentemente adotada de vulnerabilidade tende a não tematizar dimensões estruturais das desigualdades sociais. De forma que há tensão persistente entre, de um lado, a noção de “autonomia” expressa sobretudo em termos de “liberdade de escolha” e da capacidade e responsabilidade individuais para a tomada de decisões e, de outro, a perspectiva de que a desigualdade, em suas múltiplas formas e expressões, solapa a capacidade individual de elaborar e incorporar conceitos aos repertórios individuais e coletivos de prevenção e cuidado. Como se a aposta em uma “pedagogia da autonomia” fosse permanentemente desafiada e contradita por uma percepção drástica dos efeitos das desigualdades estruturais, o que, em contrapartida, tende a favorecer perspectivas de “autocuidado” e de “empoderamento” em termos mais individualizantes.

Conquanto os documentos governamentais de diretrizes de prevenção mais recentes enfatizem a necessidade de consideração de pertencimentos culturais, inserções comunitárias e histórias de vida na adoção dos métodos de prevenção - expressando concepções oriundas da vulnerabilidade - isto se dá em articulação com a perspectiva da responsabilidade individual pela prevenção. Esta perspectiva se conserva em uma política de prevenção que dá cada vez mais destaque às tecnologias e aos métodos preventivos acessados por meio de abordagens individuais, em que a dimensão da adesão se mostra central. A literatura sobre prevenção há muito evidencia que a mudança de comportamentos individuais está articulada à mobilização comunitária e a transformações de contextos intersubjetivos (Parker, 1998PARKER Richard. 1998. “Teorias de intervenção e prevenção”. In: PARKER, Richard & TERTO JR., Veriano (orgs.). Entre homens: homossexualidade e AIDS no Brasil. Rio de Janeiro: Abia.; Kippax & Stephenson, 2012KIPPAX, Susan & STEPHENSON, Niamh. 2012. “Beyond the Distinction Between Biomedical and Social Dimensions of HIV Prevention Through the Lens of a Social Public Health”. Am J Public Health. Vol. 102. N° 5, p. 789-799.). Assim, na utilização de quaisquer dos métodos preventivos, seria importante - no âmbito da política de prevenção - o desenvolvimento de ações voltadas à mobilização comunitária e à promoção do debate público acerca da prevenção, dimensões pouco exploradas nas diretrizes estudadas.

Considerações finais

Este estudo buscou contribuir com as análises da vulnerabilidade de gays e outros HSH ao HIV e à aids, com foco em sua dimensão programática, ao analisar documentos atinentes às políticas de prevenção. Compreendemos, assim, que as diferentes leituras acerca da epidemia e de seus determinantes e das abordagens preventivas, seus conceitos operativos e recursos tecnológicos, presentes nas políticas de prevenção e explicitadas nos diferentes documentos analisados, produzem e são produtoras de distintos contextos da resposta à epidemia de aids entre gays e outros HSH.

No intuito de incorporar os saberes daqueles diretamente implicados pelas políticas de prevenção, procuramos - em um esforço ainda incipiente - colocar em diálogo as perspectivas apresentadas por documentos governamentais e não governamentais que, como esperado, não são exatamente concordantes entre si; às vezes se complementam, noutras se contrapõem. A disputa, a negação e a hegemonia de cada uma dessas perspectivas nos diferentes momentos permitem compreender parte dos desafios e das barreiras enfrentados na prevenção do HIV e da aids entre gays e outros HSH.

É importante destacar que há mudanças nos documentos ao longo do tempo com a progressiva incorporação discursiva da perspectiva da vulnerabilidade e dos direitos humanos. No entanto, isto ocorre também com o reforço da perspectiva da responsabilidade preventiva, tendo em vista a natureza das proposições que conformam as políticas de prevenção mais recentes. Identificamos ainda algumas limitações na efetuação de uma abordagem de prevenção efetivamente fundamentada na vulnerabilidade e nos direitos humanos nos documentos analisados, tais como a frágil formalização e a abrangência restrita dos documentos, o que redunda em barreiras a uma política de caráter participativo e ao seu efetivo controle social. Essa configuração se contrapõe tanto às abordagens em saúde baseadas em direito, que tem a accountability (responsabilização) como um de seus valores, como à efetiva incorporação da perspectiva do Cuidado público - que implica o diálogo qualificado com os sujeitos envolvidos nas políticas para audição de suas necessidades, de seus anseios e críticas.

Neste sentido, a análise efetivada mostra mudanças na intensidade e na qualidade do diálogo sociedade-Estado, o que se expressa significativamente nos distintos arranjos - envolvendo o PN e outros atores do campo da aids - que deram origem aos diferentes documentos analisados. Compreender a dinâmica dos processos envolvidos nesse diálogo possibilita vislumbrar o reconhecimento dos militantes dos movimentos sociais e de integrantes dos próprios grupos implicados - gays e outros HSH, bem como travestis, transexuais femininos, PS, UDI etc. - como partícipes na construção das políticas. Por fim, com vistas a aprofundar a incorporação dos conceitos de vulnerabilidade e Cuidado - para efetivação de melhores diagnósticos e a proposição de políticas, serviços e ações mais potentes e convenientes - entendemos ser promissor para o enfrentamento da epidemia aprofundar análises das políticas de prevenção incorporando a perspectiva de tais sujeitos, bem como investigações sobre a perspectiva dos sujeitos concernidos no uso de serviços e ações preconizados pelas políticas de prevenção.

Agradecimentos

Agradecemos aos pareceristas que em muito contribuíram para o adensamento de nossas reflexões, assim como aos participantes do Simpósio Temático “Articulações entre gênero, sexualidade e outras diferenças no cotidiano da prevenção de HIV/aids: olhares a partir de processos de mudança social”, do 13º Mundo de Mulheres e Fazendo Gênero 11, que discutiram a primeira versão deste trabalho instigando seu aprofundamento e sistematização.

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    Este artigo é um produto parcial da tese de doutoramento intitulada Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens, de Gabriela Junqueira Calazans (2018), realizada no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, sob orientação de José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres. Uma versão preliminar foi apresentada no Simpósio Temático 006 - “Articulações entre gênero, sexualidade e outras diferenças no cotidiano da prevenção de HIV/aids: olhares a partir de processos de mudança social”, coordenado por Regina Facchini e Thiago Pinheiro - do 13º Mundo de Mulheres e Fazendo Gênero 11, realizado em 31 de julho e 1º de agosto de 2017 em Florianópolis.
  • 2
    Epidemias concentradas são definidas pelo Unaids (2007) como aquelas em que a prevalência de HIV é alta em um ou mais grupos populacionais (com prevalência maior que 5%) e baixa na população geral (prevalência menor que 1%).
  • 3
    Nos diferentes grupos estudados.
  • 4
    Adotamos o termo cuidado em maiúsculas quando nos referimos ao conceito reconstrutivo (Ayres, 2004) para diferenciar da noção de cuidado como equivalente à atenção em saúde e ao ato de cuidar.
  • 5
    www.aids.gov.br e http://www.aids.gov.br/pt-br/centrais-de-conteudos/biblioteca_busca
  • 6
    Ao longo de sua história, o programa nacional de aids teve variadas designações, assim como esteve subordinado a diferentes instâncias do Ministério da Saúde. No momento de redação deste artigo, está nomeado como Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV) e subordinado à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. Dada a dificuldade em saber a denominação correspondente a cada diferente momento histórico abordado no estudo, optamos por tratá-lo como programa nacional de aids de forma indiscriminada a partir daqui. Entendemos que tal denominação se articula à forma como a literatura internacional se refere às instâncias de coordenação nacional das políticas de aids. Consideramos relevante destacar, no entanto, a compreensão, amplamente compartilhada no campo da aids, de que o programa não se restringe às instâncias governamentais, mas espera-se que possa ter papel de coordenação dos diferentes atores (Teixeira, 1997; Galvão, 2000, Laurindo-Teodorescu & Teixeira, 2015LAURINDO-TEODORESCU, Lindinalva & TEIXEIRA, Paulo Roberto. 2015. Histórias da aids no Brasil. 2 vols. Brasília: Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.; Calazans, 2018).
  • 7
    http://bvs.saude.gov.br
  • 8
    A produção de materiais impressos e eletrônicos de referência técnica e política no campo da aids é muito profícua. Notamos, assim, que parte dos materiais publicados não se encontra mais disponível para localização on-line. Foi possível observar isto quando, em uma entrevista voltada ao projeto de pesquisa mais amplo em que se insere esta pesquisa documental, o entrevistado referiu-se e indicou para compor esta pesquisa um material que ele escreveu sob encomenda do Programa Nacional sobre a prática do bareback (sexo intencionalmente desprotegido, “a pelo”). Conseguimos localizar algumas poucas referências bibliográficas ao mesmo, mas não acessar o documento propriamente dito (Jesus, B. de, 2002). Barebacking. Brasília: Programa Nacional de DST/AIDS, Ministério da Saúde).
  • 9
    Neste ínterim, o website do Programa Nacional sofreu profunda reformulação e muitos dos documentos localizados no início da pesquisa foram retirados e não se encontram mais disponíveis, mas haviam sido salvos por nós em um repositório pessoal para a realização desta análise.
  • 10
    O Guia foi organizado por Lilia Rossi (assessora técnica da Unidade de Prevenção, da Coordenação Nacional de DST e aids) e teve como autores: Francisco Pedrosa (Grupo de Resistência Asa Branca, Grab, Fortaleza/CE), Glademir Lorenzi e Célio Golin (Nuances - Pela Livre Orientação Sexual, Porto Alegre/RS), Jacqueline Rocha (Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids de São José do Rio Preto/SP), Janaína Dutra (Associação de Travestis do Ceará), Kátia Guimarães (Secretaria Executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras), Lilia Rossi, Liza Minelly e Salange Stercz (Associação Nacional de Travestis, Curitiba/PR), Luís Felipe Rios (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, ABIA, Rio de Janeiro/RJ), Luiz Ramires (Lula, Corsa - Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor, São Paulo/SP), Luiz Mott (GGB, Salvador/BA), Miriam Martinho Rodrigues (Revista Um Outro Olhar e do Boletim Ousar Viver - São Paulo/SP).
  • 11
    Foi instituído em 1999 e durou, pelo menos, até 2002.
  • 12
    Como tem sido discutido por autores que tratam do movimento social em torno das diferentes expressões da sexualidade e de gênero no Brasil, desde os seus primórdios no final dos anos 1970 até os dias atuais, tal movimento teve diferentes denominações e segmentações, tais como movimento homossexual, gay, GLBT, LGBT, entre outros (Facchini, 2005FACCHINI Regina. 2005. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond.; Simões & Facchini, 2009SIMÕES, Júlio Assis & FACCHINI, Regina. 2009. Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.). Apesar de estarmos atentos a tal fenômeno, isto não integrou a análise apresentada neste artigo.
  • 13
    A profilaxia pós-exposição (PEP) consiste no uso de medicamentos antirretrovirais tomados por um período de 28 dias consecutivos por pessoas sabidamente soronegativas, com vistas a evitar a infecção, quando houver possível ou sabida exposição ao vírus. Sua oferta passou a ser preconizada como método de prevenção da infecção pelo HIV para indivíduos identificados com os grupos populacionais mais afetados pela epidemia que tenham vivido situação de exposição ao vírus, desde 2008, tendo sido efetivamente implantada a partir de 2010. Sua proposição se deu, neste primeiro momento, como recomendação no documento suplementar de Recomendações para terapia antirretroviral em adultos infectados pelo HIV - 2008 (Brasil, 2010BRASIL. 2010. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Recomendações para terapia antirretroviral em adultos infectados pelo HIV - 2008. Suplemento III - Tratamento e prevenção. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.). Em sua proposição inicial, havia três diferentes protocolos - envolvendo orientações de diferentes medicamentos e distintos momentos de recomendação da adoção da tecnologia - para os casos de recomendação de uso de PEP em função de exposição por acidente ocupacional com objetos perfurocortantes, violência sexual e exposição sexual consentida. Somente em 2015 foram integrados os protocolos.
  • 14
    A PrEP consiste na tomada diária de um comprimido de antirretrovirais para prevenir a infecção pelo HIV e foi implantada no país em 2017, após a realização de uma série de estudos que demonstraram sua eficácia e a possibilidade de ser incorporada como política pública de prevenção. A PrEP é a única tecnologia de prevenção que tem seu acesso restrito a somente alguns grupos populacionais no Brasil.
  • 15
    Entre os pontos controversos sobre o termo, há entendimentos que o reduzem à combinação de diferentes tecnologias biomédicas de prevenção e outros que articulam prevenção biomédica, comportamental e estrutural - que foi o modelo adotado pelo PN no referido documento.
  • 16
    A consulta pública realizada no primeiro semestre de 2017 incorporou algumas das críticas, mas não efetivou mudanças estruturais, que foram recomendadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2018
  • Aceito
    11 Jul 2018
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