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Políticas sexuais contemporâneas: disputas e resistências

O lançamento do número 26 de Sexualidade Saúde e Sociedade - Revista Latino-Americana tem significado particular para sua equipe editorial. Vivemos um momento sem precedentes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), instituição que sedia o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) e sua revista. Desde o ano passado, a UERJ vem sendo fortemente afetada pelos efeitos da corrente crise política e econômica brasileira e que se manifesta de modo dramático no estado do Rio de Janeiro. Nos últimos meses, a universidade viu seu financiamento cair a quase nada. Funcionários, técnicos e professores ficaram sem receber seus salários; alunos ficaram sem receber suas bolsas; e projetos de pesquisa e extensão tiveram suas dotações suspensas. Apesar disso, conseguimos manter as atividades vinculadas à revista. A finalização de mais um número é, portanto, prova da energia que anima o movimento de resistência em defesa da universidade pública e gratuita no Brasil, sem a qual este número não existiria.

Além disso, este número tem especial significado para quem vê com preocupação o acirramento dos conflitos em torno dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos em toda a América Latina, com o fortalecimento de discursos conservadores. Para além dos artigos contidos no dossiê “Fundamentalismos”, que conta com apresentação própria, os demais textos aqui publicados dedicam-se, de um modo ou de outro, a refletir sobre este conflitivo contexto político. E, em estreito diálogo com os artigos do dossiê, o fazem de diferentes maneiras. Em comum, a nada fácil tarefa de problematizar binarismos simplistas, como os que opõem ciência e religião, direito e arbítrio, proteção e violência ou tratamento e repressão.

A questão dos direitos humanos das mulheres comparece de modo expressivo através da discussão de temas que permanecem nas fronteiras da possibilidade de sua plena afirmação, como são exemplarmente os casos da prostituição, da violência doméstica e do aborto. Sobre o primeiro tema reflete Martha Cecilia Ruiz, cujo artigo, além de trazer à discussão o caso equatoriano, trabalha o fenômeno relativamente pouco explorado das migrações entre países do chamado Sul Global (Equador-Peru-Colômbia). Acompanhando literatura crítica desenvolvida em relação a outros contextos nacionais e outros fluxos migratórios, a autora explora o modo pelo qual o discurso dos direitos humanos, forjado para o combate ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, pode se converter, a despeito do interesse das supostas “vítimas”, em meio de controle rígido de fronteiras e de afirmação de identidades nacionais. Estefania López Ramirez e Gladys Rocío Ariza Souza, ambas da Universidad de Antioquia (Colômbia), voltam-se para a estratégica categoria de “superação”, conforme aparece no contexto das análises sobre violência doméstica, e a ela dedicam cuidadosa revisão bibliográfica. Em relação ao tema do aborto, temos dois textos originais que aprofundam a discussão sobre os entrelaçamentos entre religião, moralidade, ciência e direito. O artigo de María Eugenia Monte analisa recente decisão da Suprema Corte argentina em relação aos procedimentos legais para acesso ao aborto em casos de violência sexual, segundo previsto em lei. Conforme a autora, com esta decisão, a Corte estabeleceu que os juízes devem agora recorrer à ciência, a uma equipe formada por “médicos qualificados”, para estabelecer a “veracidade” do abuso reportado e para autorizar a interrupção da gravidez. Silencia-se assim a voz das mulheres vítimas de violência sexual. Para tal decisão, contribuiu o ativismo dos grupos provida, cuja intensa movimentação na Argentina é o tema da instigante etnografia de Pablo Gudiño Bessone. Em seu artigo, Gudiño aponta para o aggiornamento das posições católicas antiaborto, que se apresentam agora amparadas em discursos científicos, apoiadas em princípios da bioética.

É ainda sobre o complexo entrelaçamento entre ciência, religião e política que trata o artigo de Ana Tereza Acatauassú Venâncio e Pilar Belmonte. Sua atenção recai sobre as discussões legislativas ocorridas em 2003, no estado do Rio de Janeiro, em torno de um projeto de lei que visava permitir a alocação de recursos públicos para financiar instituições voltadas à “cura” de homossexuais, ou seja, à sua transformação em heterossexuais. O projeto, finalmente rejeitado, era apoiado por organizações de psicólogos cristãos, que invocam a ciência em apoio à sua causa e lutam contra resoluções do Conselho Brasileiro de Psicologia que, desde 1999, considera este tipo “tratamento” antiético.

Finalmente, dois artigos de cunho histórico abordam discursos médicos na Argentina da primeira metade do século XX. Conforme discutido por José Ignacio Allevi, o caráter normativo da medicina, alinhada a preceitos morais e a princípios religiosos, aparece claramente quando se trata da “inversão sexual” que, entre as paredes da Penitenciaría Nacional de Buenos Aires, é dada à observação do médico-legista Francisco de Veyga. Porém, como explora Nadia Ledesma Prietto é também no âmbito da medicina que emergem vozes dissidentes em relação à moral sexual vigente. Este é o caso dos médicos Juan Lazarte e Manuel Martín Fernández que, alinhados à crítica política anarquista, posicionaram-se pela defesa do prazer sexual (heterossexual por certo) independentemente da reprodução, pela autonomia sexual das mulheres e pela legalização do divórcio. De certo modo, os ecos dessas vozes, mais liberais ou mais conservadoras, ainda ressoam nas posições que polarizam a política sexual contemporânea.

Em conjunto, os artigos deste número e o dossiê que o acompanha ajudam a compor o complexo cenário em que nos situamos. No campo (bio)político em que se desenvolvem as atuais lutas em torno da sexualidade, enredam-se discursos de vários matizes - científicos, morais, religiosos, éticos; cada um deles tensionado internamente por posições divergentes e às vezes antagônicas. É das sucessivas configurações assumidas por tais tensões e enredamentos que dependem os horizontes possíveis dos direitos sexuais e reprodutivos. Por ora, nenhum avanço parece se mostrar plenamente assegurado; nenhum retrocesso parece ser impossível.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017
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