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LUPTON, Deborah. 2018. Fat. 2ª Ed. Nova Iorque: Routledge. 128p.

LUPTON, Deborah. . 2018. Fat.2ª Ed.Nova Iorque: Routledge. 128p.

Em seu livroLUPTON, Deborah. 2018. Fat. 2ª Ed. Nova Iorque: Routledge. 128p. “Fat”, a socióloga Deborah Lupton, professora da University of New South Wales, na Austrália, posiciona a gordura corporal como um artefato sociocultural. Investigando-a a partir dos discursos e práticas em torno dos corpos gordos, a autora explora os pontos centrais dos debates públicos sobre corpos gordos, privilegiando perspectivas críticas que desestabilizariam a existência de uma “epidemia da obesidade”.

O livro, já considerado importante obra do campo científico dos estudos críticos sobre obesidade/fat studies (“estudos sobre a pessoa gorda”), busca situar as razões pelas quais corpos gordos são tão estigmatizados na contemporaneidade, oferecendo uma análise dos múltiplos discursos e práticas que buscam disciplinar, controlar e eliminar tais corpos. Além disso, o texto posiciona-se de forma analítica também sobre o próprio campo científico, privilegiando os posicionamentos críticos acerca do tema.

Uma resenha da segunda edição do livro é justificada pela transformação entre as edições. Como um campo científico e político emergente, muitas abordagens se reconfiguraram nos cinco anos que as separam: cada capítulo foi reelaborado com novas informações e análises, e foram incorporados novos capítulos sobre representações virtuais e ativismo virtual, pelo crescimento da centralidade desses espaços para a construção do campo. Tal incorporação também reflete os mais recentes interesses de pesquisa da autora, voltando-se para a sociologia digital e o estudo das novas mídias digitais.

A primeira edição do livro (publicada em 2013) era propositalmente curta: parte de uma série chamada “Shortcuts: Little Books on Big Issues”, o objetivo do livro era apresentar uma sucinta introdução a um grande tema. Com o grande sucesso da obra, uma nova edição sai da série e, agora incorporando as novas discussões de um vivo campo que se modifica no tempo presente, ganha o dobro do tamanho em conteúdo. Ao que parece, não há atalhos fáceis nesse campo. A nova versão conta também com nova capa. Na primeira, um pedaço de manteiga borbulhava em uma frigideira, em metáfora pouco sutil. A segunda edição traz cinco versões da Vênus de Willendorf cobertas por recortes de páginas de livros sobre dietas, estilizadas pela artista Brenda Oelbaum e chamadas “Diet Guru Venus”. Existe uma discussão no campo dos fat studies sobre a estátua ser compreendida como a representação de uma deusa, já que possui barriga, pernas, quadris e genitália proeminentes. Ativistas e pesquisadoras, no entanto, contestam a associação com uma divindade: poderia tratar-se, apenas, da representação de uma mulher gorda.

O livro está estruturado em seis capítulos, o primeiro nomeado como Introdução. Já nas primeiras páginas, a autora aborda uma questão linguística fundamental de todo o campo científico: o uso das terminologias “gordo/a”, “acima do peso” e “obeso” para descrever pessoas. Para boa parte dos ativistas, o uso dos termos “acima do peso”, “sobrepeso” e “obeso” carregam consigo estigmas próprios da medicalização e patologização de tais corpos, referenciando-se a partir de um peso considerado ideal. A reapropriação do termo gordo/a (“fat”, que também significa gordura) sem conotação negativa é apresentada como uma alternativa fora da nomenclatura biomédica.

Ainda na introdução, a autora apresenta a noção de “obesidade” como um construto social, argumento central ao campo dos fat studies, apontando a proximidade entre os estudos críticos sobre o corpo gordo e a pesquisa sociológica em torno da medicalização. Nessa perspectiva, destaca-se a tendência da biomedicina a criar problemas médicos, e a patologização da gordura corporal teria similaridades históricas com as noções de histeria e homossexualidade como doenças. Segundo a autora, ao considerar doenças como construções sociais, não se pretende negar a existência biológica dessas e sim compreender que, inevitavelmente, a biomedicina realiza uma interpretação das manifestações físicas a partir de crenças e pré noções. Nesse caso, a gordofobia e os significados morais da gordura corporal interfeririam no que se entende como “doença da obesidade”. A autora apresenta questões centrais para os campos que olham criticamente para o fenômeno da “epidemia da obesidade”: como se estabelecem os discursos dominantes a respeito do corpo gordo? Como se articulam interesses ao redor das práticas e narrativas hegemônicas? Seria possível subverter tais lógicas?

No segundo capítulo, Lupton apresenta diferentes enquadramentos a respeito de corpos gordos: a perspectiva antiobesidade e as perspectivas críticas, que incluem a crítica biomédica, a visão político-liberal, os questionamentos a respeito da ética médica, os estudos críticos sobre a obesidade/fat studies e o ativismo gordo. Diferentemente da introdução, que inicia com uma narrativa em primeira pessoa a respeito de um programa de televisão pautado pela repulsa a pessoas gordas, “The Biggest Loser”, a autora assume um tom mais descritivo neste capítulo, ainda que privilegiando as perspectivas críticas.

A autora acerta em apresentar uma importante distinção interna à lógica de combate à obesidade que, muitas vezes, passa despercebida. O discurso antiobesidade, ou seja, aquele que existe em torno da ideia de que corpos gordos são doentes e que devem ser eliminados, é, em sua maioria, de responsabilização do indivíduo pelo peso corporal, como nas campanhas de saúde britânicas que Lupton apresenta. Mas há, também, um discurso que culpa o ambiente dito “obesogênico”, a facilitação do acesso de uma população mais pobre às comidas ultra processadas e a modernidade pelo aumento de peso da sociedade, e este também mantém o foco na extinção e no combate ao corpo gordo.

Dentre as perspectivas críticas, a mais usual é aquela que se lança contra preceitos comuns na biomedicina: os esforços concentram-se na análise ou na produção de “evidências científicas” para desafiar os saberes médicos a respeito de corpos gordos. Além de produzirem novos dados de pesquisa, pesquisadores alinhados a tal crítica afirmariam, por exemplo, que não existem evidências suficientes a corroborar a noção de que mais gordura corporal implica necessariamente em mais risco de doença; assim como não haveria evidência substancial de que perda de peso necessariamente melhora a saúde sem a modificação de hábitos considerados menos saudáveis.

A autora também reforça que tal perspectiva, que critica os investimentos da indústria da dieta e defende a autonomia dos corpos, acaba por vezes alinhada a grupos da direita liberal que têm interesse em menos controle estatal, assim como a lobbies de grandes indústrias alimentícias, empresas de fast-food e think tanks pelo livre mercado. Outra perspectiva apresentada é a focada na questão ética: o juramento de “não prejudicar”, um dos princípios da bioética e da prática médica, é ferido quando se trata de promover a perda de peso. O discurso de “combate à obesidade” sugere, na verdade, um combate ao corpo gordo, reforçando a justificativa do interesse na melhora da saúde. A utilização de discursos e imagens com o objetivo de envergonhar pessoas gordas até que decidam mudar seus corpos para não sofrerem mais discriminação é chamada por Lupton de “pedagogy of disgust” (“pedagogia da repulsa”). Tal perspectiva pode ser vista desde abordagens em círculos íntimos até as campanhas nacionais de saúde pública. A popularização da cirurgia bariátrica é questionada por essa perspectiva, pois se trataria da mutilação do estômago, órgão corporal que não estaria em si machucado ou doente.

Encerrando o capítulo, a autora apresenta o próprio campo científico interdisciplinar dos “critical weight studies/fat studies”, no qual ela mesma se insere, que analisa os estudos sobre corpos gordos de uma perspectiva sociológica/antropológica. Inspirados pelo feminismo, pela teoria queer, pelos estudos sobre a deficiência, diferentes pesquisadores propõem debates, perguntas e soluções em tal campo. Lupton destaca, por fim, os ativistas gordos, que reconhecem e lutam contra a existência das opressões estruturais que impedem o acesso pleno à cidadania pelas pessoas gordas, considerando que nem todos os acadêmicos dos fat studies se definem como ativistas.

O terceiro capítulo trata de diversas formas de monitoramento e regulações dos corpos gordos, a partir de uma perspectiva da vigilância. Nesse momento, a autora se distancia daqueles que argumentam que há apenas uma intenção consciente de ódio aos corpos gordos por parte da saúde pública, acreditando em uma maior complexidade dessa imensa rede de atores implicados no campo médico. Não descarta, no entanto, o poder autoritário do saber médico enquanto instituição na construção da “epidemia da obesidade”, trazendo sistemas de crenças e pré-noções sobre o corpo gordo para a análise científica e carregando consigo potente legitimidade.

Lupton reforça a arbitrariedade e as dificuldades de determinar o que pode ser, de fato, considerado excesso de gordura corporal, e as fronteiras entre “acima do peso” e “obeso/a”, assim como as mudanças de parâmetros ao longo do tempo, modificando profundamente os conceitos de normal e patológico. Ainda assim, métodos homogeneizantes, punitivos e paternalistas estampam campanhas de saúde pública de combate à obesidade, com o objetivo de “chacoalhar” o sujeito e fazê-lo “correr atrás” do emagrecimento, seja através de pesagens nas escolas ou de protocolos médicos. Aqui, Lupton retoma a “pedagogia da repulsa” e demonstra o quanto o discurso norteia as estratégias de controle e vigilância dos corpos de crianças sob a justificativa de combate à “obesidade infantil”.

Com a popularização de abordagens de monitoramento virtual, como aplicativos para celulares focados em emagrecimento, aparelhos medidores e relógios, também se fortalecem novas formas de biopolítica digital, de responsabilização individual e de governo dos corpos. Geralmente voltados para contagem de calorias e registro de informações sobre sono, atividade física e consumo de alimentos, tais softwares reforçam a noção de que a disciplinarização e o monitoramento constante e minucioso dos corpos são os mecanismos ideais para atingir um corpo mais próximo da norma.

No quarto capítulo, a autora apresenta as moralidades ao redor do corpo gordo como transgressão às normas, com raízes na cultura judaico-cristã. Aqui, argumenta que a moralização da gordura é anterior ao processo de medicalização e que teria raízes na relação entre alimentação, jejum, ascetismo e corpo magro como resultado de desenvolvimento espiritual e aproximação com Deus.

Já com a predominância do discurso sobre a saúde, a associação entre gordura corporal e doença fez recair sobre o corpo gordo as moralidades que cercam o adoecimento, como desordem, caos e falta de controle. Como cidadão considerado menos produtivo para a lógica da sociedade, aquele que adoece é menos valioso e, no caso do que se entende como obesidade, emerge também um entendimento moral do ganho de peso como resultado de escolhas de “estilo de vida”, de forma a associar corpos gordos à comida em excesso e sedentarismo. Em seguida, Lupton analisa a representação de corpos gordos na mídia, dando ênfase especialmente às plataformas digitais, passando por programas de TV que posicionam tais corpos como grotescos, imagens com ênfase em abdômens sem cabeça - “headless fatties”, como cunhado por Charlotte Cooper (2007COOPER, Charlotte. 2007. Headless fatties. Charlotte Cooper Website [Online]. Disponível em: Disponível em: http://charlottecooper.net/fat/fat-writing/headless-fatties-01-07 . [Acesso em 04/10/2020.]
http://charlottecooper.net/fat/fat-writi...
) -, blogs e revistas com análises dos corpos de celebridades, aplicativos que “engordam” pessoas em fotos como piada e também vídeos no YouTube. Ao mesmo tempo, destacam-se também conteúdos em todas as redes focados em corpos magros como inspiração, voltados para alimentação saudável e exercícios físicos, mas que exaltam corpos magros (e majoritariamente brancos) como os que são detentores de saúde (como no caso da hashtag #thinspiration).

A autora também elabora sobre a noção de repulsa e nojo a partir da desumanização e monstrualização daqueles que escapam à norma, seja por raça, orientação sexual ou identidade de gênero, idade, deficiência. Na sequência, dedica-se à intersecção de gênero, apresentando as principais interpretações feministas dos discursos sobre a gordura corporal e o lugar da gordura corporal nos corpos masculinos e na construção das masculinidades.

O quinto capítulo trata da experiência corporificada de existir em um corpo gordo a partir do sofrimento e do estigma, tema amplamente explorado em debates públicos, no campo dos fat studies e também nos capítulos anteriores do livro. O capítulo se debruça sobre narrativas encarnadas em primeira pessoa, publicadas em fóruns online e redes sociais, de forma a visibilizar o preconceito vivido por conta da discriminação de tais corpos. O último tópico do capítulo fica por conta da controversa discussão sobre a possibilidade de existir em um corpo gordo ser visto como um tipo de deficiência. Tal proposta se baseia na ideia de que tais corpos possuem limitações físicas, o que provavelmente justifica a localização da discussão no capítulo sobre sofrimento, mas reforça ainda mais o estigma a respeito das capacidades de pessoas gordas.

No sexto capítulo, que conclui o livro, Lupton elabora sobre o ativismo gordo e sobre a contribuição do movimento para a mudança de paradigma no discurso público em direção a políticas de aceitação de corpos maiores, mas também sobre lugares de fala e a construção de conhecimento implicado. Mesmo com décadas de atuação de organizações nacionais em prol dos direitos das pessoas gordas, Lupton posiciona a Internet de forma central e estratégica na disseminação do ativismo.

A autora sinaliza também uma virada na disseminação a partir dos conteúdos visuais na Internet, seja através de manifestações artísticas, como a imagem que estampa a capa do livro; no uso de redes sociais como o Instagram para a divulgação de fotos (especialmente selfies) nas quais os indivíduos escolhem como serão retratados; e também os conteúdos eróticos que buscam posicionar homens e mulheres gordos como atraentes e sexualmente ativos. Muitos ativistas, no entanto, criticam a ênfase dada a conteúdos sobre estética, aceitação corporal e autoestima, deixando de lado a luta coletiva por direitos.

O capítulo também versa sobre argumentos centrais do ativismo gordo. Aqui, a autora aponta que, quando ativistas afirmam que corpos são “naturalmente gordos” a partir de conceitos como genética e diferenças em metabolismo, haveria um retorno a um essencialismo científico. Em vez de questionar o saber biomédico como validação, os argumentos buscariam outras verdades científicas que se sobreporiam às noções cristalizadas sobre peso, saúde e gordura corporal.

No tópico seguinte, a autora aborda outra questão sensível interna ao movimento: haveria espaço para o desejo de emagrecer e para o emagrecimento por parte de feministas engajadas na luta antigordofobia? Lupton escolhe a história de Samantha Murray, feminista com importante produção teórica a respeito das políticas antigordofobia e que, anos depois, submeteu-se a uma cirurgia bariátrica, vista por muitos no movimento como uma mutilação do próprio corpo, de forma a exemplificar que, muitas vezes, o ativismo e a elaboração teórica não são capazes de solucionar as dificuldades de existir com um corpo gordo em uma sociedade gordofóbica.

Em seguida, a autora elabora sobre a própria experiência enquanto pesquisadora magra e sobre o que considera como ética em sua pesquisa: ela acredita, como outros, que debater o poder do discurso do combate à obesidade e do estigma em relação à gordura corporal a partir de uma perspectiva crítica deve ser feito por pesquisadores em corpos de todos os tamanhos, mas afirma que esta posição não é um consenso.

O penúltimo tópico antes da conclusão diz respeito às críticas ao ativismo gordo e à positividade corporal. Sem distinguir os dois movimentos, de raízes e objetivos distintos, a autora apresenta críticas à falta de espaço no movimento para sentimentos ambivalentes a respeito de ser uma pessoa gorda; às abordagens voltada para o amor-próprio, que não endereçam o preconceito e o estigma social; ao foco nos discursos e nas representações, que acaba por deixar de lado condições materiais. Em seguida, Lupton apresenta futuros caminhos possíveis em torno de dois eixos: conhecimentos corporificados e abordagens materialistas, que levariam em consideração as perspectivas e a localidade dos corpos que produzem o conhecimento em prol de reconhecer, desafiar e transformar as práticas de opressão a pessoas gordas.

Nas páginas finais, a autora expõe sua leitura de que há uma dinâmica mudança constante a respeito dos paradigmas da “epidemia da obesidade” e enxerga algumas tendências, como uma resistência contínua ao discurso hegemônico e às práticas de controle do biopoder, mas também a diminuição de recursos estatais em campanhas de “combate” e aumento da vigilância por meio de dados pessoais online. O texto encerra recuperando algumas das questões centrais trazidas pelo livro como um convite para o debate não somente sobre gordura corporal, mas sobre noções de subjetividade nas sociedades ocidentais contemporâneas, especialmente no que tange vigilância, saúde e doença, tecnologias e distinções corpo/mente.

Não somente um material introdutório e fonte de pesquisa, o livro condensa anos de sólido debate acadêmico, público e principalmente político acerca da existência e permanência de corpos gordos na sociedade como cidadãos plenos, autônomos, desejantes e detentores de direitos.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020
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