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Amor de mãe: mobilizando sentimentos e afetos na sustentação de uma denúncia e na reconstrução do cotidiano

A mother’s love: mobilization of feelings and affections in supporting a missing person’s report and rebuilding daily life

Amor de madre: movilizando sentimientos y afectos en la sustentación de una denuncia y en la reconstrucción del cotidiano

Resumo

Entre mães e familiares de vítimas do Estado, a possiblidade de vivenciar e de elaborar o luto está intensamente vinculada ao reconhecimento público da denúncia. No entanto, mobilizações e demandas são respondidas com represálias; as mortes e desaparecimentos não são plenamente percebidos como problemas sociais e reconhecidos enquanto homicídios. Por meio de um estudo de caso, que se arrasta por quinze anos sem solução jurídica, intenciono interpretar a expressão dos sentimentos maternos como recurso político e de sensibilização. Observo uma biografia moral e afetiva como ampliação discursiva e emocional de experiências maternas desencadeadas e construídas ao longo da percepção do evento crítico que é o desaparecimento forçado e analiso modalidades de afirmação que se desenrolam quando a violência é movimentada na fronteira entre denúncia e relações correntes.

Palavras chave:
maternidade; violência; dignidade; reconhecimento; denúncia

Abstract

For mothers and relatives of victims of the State, the chances of experiencing grief are closely linked to public acknowledgement of a missing person’s report. However, mobilisations and demands are met with retaliation; deaths and disappearances are not fully perceived as social problems or acknowledged as homicides. By means of a fifteen-year case study still legally unsolved, my aim is to interpret the expression of motherly feelings as a political and sensitising resource. My contention is that a moral and affective biography is a discursive and emotional enlargement of motherly experiences that are triggered and constructed throughout the perception of an enforced disappearance as a critical episode. Moreover, I analyse modalities of assertion that take place whenever violence is performed at the border between a missing person’s report and current relations.

Keywords:
maternity; violence; dignity; acknowledgement; missing person’s report

Resumen

Entre las madres y los parientes de victimas del Estado, la posibilidad de vivir y elaborar el luto está intensamente vinculada al reconocimiento público de la denuncia. Sin embargo, las movilizaciones y demandas son respondidas con represalias; las muertes y desaparecimientos no son plenamente entendidos como problemas sociales o reconocidos como homicidios. A través de un estudio de caso que se ha desarrollado por quince años sin solución jurídica, mi objetivo es interpretar la expresión de los sentimientos maternos como recurso político y de sensibilización. Observo una biografía moral y afectiva como una ampliación discursiva y emocional de experiencias maternas desencadenadas y construidas a lo largo de la percepción de un desaparecimiento forzado como un evento crítico. Además, analizo las modalidades de afirmación que se desarrollan cuando la violencia se mueve en la frontera entre la denuncia y las relaciones vigentes.

Palabras clave:
maternidad; violencia; dignidad; reconocimiento; denuncia

Maísa1 1 Os nomes são fictícios. mudou-se do interior de Goiás para Aparecida de Goiânia aos dezessete anos, com o marido e o primeiro filho. Aproximadamente quinze anos depois, aconteceu a separação conjugal. Na ocasião do desaparecimento, em abril de 2005, a ruptura do casamento era recente e o segundo filho, de doze anos de idade, Nelson Ferreira, estava com o pai, como vinha acontecendo aos fins de semana. Naquela sexta-feira, depois de decidir animar uma festa de som automotivo, o pai de Nelson resolveu mandar o garoto para a casa da mãe antes do previsto. O menino fazia então o trajeto de volta no carro do pai, que seria utilizado mais tarde na festa, conduzido por um rapaz de vinte e um anos, quando ambos foram abordados pela polícia em um setor de Aparecida de Goiânia.

Anos depois dos desaparecimentos, nas audiências de acusação, vinte e oito testemunhas, entre elas conhecidos de Maísa, contaram como foi a abordagem: em uma esquina de um setor de Aparecida de Goiânia, Nelson aguardava enquanto a polícia revistava o amigo do pai, os dois já fora do carro, o rapaz de mãos para o alto, encostadas em uma parede. Em seguida, o garoto e o jovem foram colocados novamente no carro, com mais um policial, e seguiram para um destino desconhecido, escoltados por dois carros da polícia. Câmeras de um posto de gasolina registraram as últimas imagens de Nelson, que naquele ponto do trajeto foi levado para o banco traseiro do automóvel. Meses depois o inquérito revelaria, por meio de escutas telefônicas, que o jovem condutor do carro tinha conflitos com os agentes policias que o abordaram2 2 Trechos do inquérito foram publicados em relatórios de comissões parlamentares. . Maísa se lembra de que o rapaz “tinha uns problemas com a polícia”.

Quando o pai de Nelson se deu conta de que uma tragédia poderia ter acontecido, iniciou buscas em delegacias, hospitais e institutos médico-legais (IMLs). Tentou poupar a ex-esposa, dedicando-se sozinho às primeiras buscas, de modo que Maísa só foi comunicada do desaparecimento no sábado, de acordo com ela, quando o evento já começava a ser noticiado na televisão.

Horas depois de receber a notícia, Maísa já acompanhava a polícia, os bombeiros e a perícia em um setor residencial cheio de lotes baldios onde o carro do pai de Nelson foi encontrado queimado, sem as rodas e o som automotivo, adereços que teriam mais valor do que o próprio veículo, como avaliou Maísa. Todas as primeiras buscas foram noticiadas na mídia local. A casa dela ficou cheia de repórteres nos dias seguintes ao desaparecimento.

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Entre mães e familiares de vítimas do Estado, a possiblidade de se vivenciar e elaborar o luto está intensamente vinculada ao reconhecimento público da responsabilidade dos representantes de Estado. No entanto, mobilizações e demandas são respondidas com represálias; as mortes e desaparecimentos não são plenamente percebidos como problemas sociais e o reconhecimento público das mortes como homicídios raramente acontece. Nessas circunstâncias, a literatura acadêmica tem convergido no sentido de notar que a problematização da violência, emoções e sentimentos ganha a forma daquilo que tem sido chamado de “maternagem da ação política” (Efrem Filho, 2017EFREM FILHO, Roberto. 2017. “A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima”. Dossiê: Conservadorismos, Direitos, Moralidades e Violência. Cadernos Pagu. n.50.), o que aproxima a proposta deste artigo de abordagens como a de Adriana Vianna e Juliana Farias (2011VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , v.37, julho-dezembro de 2011, pp. 79-116.), Fábio Araújo (2007ARAÚJO, Fábio Alves. 2007. Do luto à luta: a experiência das mães de Acari. Mestrado em Sociologia com Concentração em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), Natália Lago (2019LAGO, Natália Bouças do. 2019. Jornadas de visita e luta: tensões, relações e movimentos de familiares nos arredores da prisão. Tese (Doutorado em Antropologia Social), FFLCH/USP.), Paula Lacerda (2014LACERDA, Paula. 2014. “O sofrer, o narrar e o agir: dimensões da mobilização social de familiares de vítimas”. Horizontes Antropológicos, n. 42, pp. 49-75.) e Roberto Efrem Filho (2017EFREM FILHO, Roberto. 2017. “A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima”. Dossiê: Conservadorismos, Direitos, Moralidades e Violência. Cadernos Pagu. n.50.), que analisam situações em que denunciantes e vítimas mobilizam noções de gênero ligadas à maternidade, de modo que a publicização da intimidade e da dor opera na legitimação de denúncias. Desse modo, todos esses trabalhos, com maior ou menor intensidade, observam como o feminino se inscreve no fazer militante.

Por meio de um estudo de caso, que se arrasta por quinze anos sem solução jurídica, intenciono interpretar a expressão dos sentimentos maternos como recurso político e de sensibilização. Em um primeiro momento, procuro interpretar uma biografia moral e afetiva como ampliação discursiva e emocional de emoções maternas desencadeadas e construídas ao longo da percepção de um evento crítico (Das, 2020DAS, Veena. 2020. Vida e palavras: a violência e a sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp. 311p.), o desaparecimento de um filho. Em um segundo momento, busco analisar modalidades de afirmação que se desenrolam e são reclamadas quando a violência é movimentada na fronteira entre denúncia e relações correntes.

Utilizo o termo “caso” ao longo do texto não apenas para evidenciar uma opção metodológica, “o estudo de caso”, mas porque, como observa Vianna (2014VIANNA, Adriana. 2014. Violência, Estado e gênero: entre corpos e corpus entrecruzados. In: SOUZA LIMA, A. C. de; GARCIA-ACOSTA, V. (orgs). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília: ABA. 308p.), ele é recorrentemente usado entre familiares de vítimas e por outros agentes sociais que compõem o trabalho coletivo de singularização das mortes. Além disso, também como considera a autora, a ideia de “caso”, quando aproximada das formulações de Boltanski (2000BOLTANSKI, LUC. 2000. El amor y la Justicia como competencias - Tres ensayos de sociologia de la acción. Buenos Aires: Amorrortu Editores.), nos remete a aspectos pragmáticos da denúncia, a recursos utilizados com o objetivo de que a denúncia se estabeleça e seja reconhecida como uma causa política.

A maternidade como lugar de luta política: como um drama produz uma luta

Meu primeiro contato com Maísa aconteceu por meio da mediação de um grupo que atuou na década de 2000 na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Goiás, doze anos depois do desaparecimento de Nelson. Nossa primeira conversa foi pelo telefone, quando me apresentei. Com a informação de que nos últimos anos raramente ela saía de casa, pressupus que essa reserva poderia ter como resultado uma recusa para entrevista e diálogo. Para minha surpresa, Maísa disse que me receberia. Mais tarde eu entenderia como ela mantém o dever de memória com o filho, mesmo que distante da militância em espaços públicos.

Cerca de dois meses depois, na manhã de uma segunda-feira, cheguei na casa dela, em um bairro popular de Aparecida de Goiânia, região metropolitana de Goiânia. Fui com a imagem do ano de 2005 na memória, a da mulher jovem, bastante magra (o sofrimento fez com que ela perdesse peso nos primeiros anos do desaparecimento) e abatida, retratada nos jornais naquele período. Depois que toquei a campainha, abriu o portão alguém que identifiquei aos poucos: era Maísa. Depois de me apresentar, ela conduziu a conversa e contou, enquanto adentrávamos o seu espaço doméstico, que aquela era a casa da sua mãe, com quem morava há alguns anos. Prosseguiu me informando que ao lado daquela residência estava a sua própria casa e sugeriu que fôssemos para lá, porque lá estavam “coisas” pelas quais eu poderia me interessar. Pegou as chaves e a acompanhei à casa “vizinha”.

Enquanto adentrávamos, ela advertia que estava tudo muito sujo porque já não conseguia mais estar por ali. E era mesmo essa a impressão que a casa vazia com seus móveis e objetos passava: tudo em seu devido lugar, como se ninguém estivesse vivendo por ali, poeira sobre os móveis, sobre o chão, folhas de árvores nas áreas externas, em contraste com a casa da mãe onde estava alojada, que revelava desvelo. Durante a entrevista, Maísa me contou que ainda permaneceu na sua casa alguns anos depois da morte do filho, mas que já não conseguia, pois tudo lhe fazia recordar de Nelson.

Foi ali, na própria casa cheia de repórteres, nos momentos iniciais do drama, que Maísa forneceu as primeiras entrevistas para jornais escritos e televisivos, suas manifestações de incompreensão e de dor. A repercussão midiática do evento - em meio ao sofrimento, à urgência de encontrar o filho e à necessidade de que se fosse feita justiça para um crime que lhe parecia indubitável e inaceitável - ocorreu concomitantemente à movimentação de agentes políticos em torno do drama. Naqueles mesmos dias aproximou-se dela também o “pessoal dos direitos humanos”. Em meio a essa agitação, Maísa começou a se dar conta do drama vivido.

Ao rememorar as circunstâncias que o precipitaram, ela explica que o filho fazia questão de estar com o pai aos fins de semana, com quem era “muito apegado”; conta que naquela sexta-feira, depois de enviar o garoto para a casa dela, o ex-marido fora comunicado por conhecidos sobre a abordagem policial e depois de ligar para Nelson e não obter resposta tornava-se mais forte a suspeita dele e de outros conhecidos de que algo muito grave poderia ter acontecido; lembra que foi uma amiga quem lhe deu a notícia - “uma amiga muito amiga, que acompanha minha vida desde quando eu tive os meus meninos” - e o choque que sentiu quando tomou conhecimento do desaparecimento, perdendo a consciência e os sentidos e tendo de ser conduzida para o hospital. Revolta-se ao rememorar a abordagem: “Por que eles não deixaram meu filho ali mesmo?”.

À pergunta se segue uma resposta que apenas reafirma a intensidade de sua incompreensão e do seu dilaceramento: “Hoje eu acredito que foi uma queima de arquivo”. Mas a pergunta não é retórica. Tendo por referência a dignidade, antes ela expressa a dificuldade de operar com uma racionalidade inconcebível e inaceitável emocionalmente. Há, na fala, a denúncia da banalidade:

Mas nem por isso eles tinham o direito de... né... Se ele era bandido [o jovem que dirigia o carro], se ele era... no caso dele era na cadeia, não era morto. Né, e meu filho estava... pra mim ele estava no lugar errado, com a pessoa errada, na hora errada. Foi o que aconteceu com ele. Hoje, eu acredito que foi uma queima de arquivo, entendeu?

Maísa procura refletir sobre o processo de autorização, “o direito” que teria desencadeado a sua tragédia pessoal. Ela conclui que o filho estava no “lugar errado” (distante dela e da família), com a “pessoa errada” (envolvida com atividades ilegais), na hora errada (momento em que agentes de Estado, possivelmente movidos por sentimentos de vingança, encontraram oportunidade para um “acerto de contas”). Mas se o jovem que conduzia o filho estava envolvido com atividades ilegais, ainda assim não é possível admitir o direito de matar.

A indicação do desaparecimento de Nelson como provável resultado da eliminação de uma testemunha de um crime compunha uma série de denúncias de abusos de agentes dos serviços de segurança em Goiás. Dois meses antes do desaparecimento de Nelson, no processo de remoção de duas mil e quinhentas famílias do Parque Oeste Industrial, dois homens haviam sido mortos, quatorze pessoas feridas e oitocentas outras haviam sido detidas. A truculência policial na Região Metropolitana de Goiânia era denunciada por repórteres e agentes políticos, como ficou registrado em documentos parlamentares. Nos recortes de jornais3 3 Os jornais estavam recortados de modo que informações como data, título do jornal e caderno nem sempre estavam presentes. Tive permissão para fotografar esse material. Pude retornar às imagens, ler os textos daquelas manchetes e optei por me apropriar do material assim mesmo, como ele foi incorporado ao arquivo pessoal de Maísa. e documentos guardados, é possível perceber que Maísa acompanhou nos jornais locais, na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego) e nos movimentos sociais essa denúncia de “institucionalização da vingança” entre agentes da segurança pública no estado. Farias (2020FARIAS, Juliana. 2020. Burocracias e violências de Estado: analisando a trajetória documental de um caso de execução sumária. In: FERREIRA, L.; LOWENRON, L. (orgs). Etnografia de documentos: Pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. Rio de Janeiro: E-papers. 218 p.) descreve a institucionalização da vingança entre agentes da segurança pública como o resultado dos sentimentos de que matar é cumprir um dever, uma necessidade; de que entre a polícia e o traficante há uma guerra, operando o sentimento de vingança de maneira institucionalizada.

No quarto do garoto, uma cama no centro, um guarda roupa à direita, uma mesa à esquerda, um banner com uma foto: ele em meio a outros garotos, um time de futebol - o garoto frequentava um clube desportivo nos últimos cinco anos que antecederam ao seu desaparecimento e participou de alguns campeonatos. Perguntei se antes ali dormia também seu filho mais velho. Maísa respondeu que sim, mas que com a insistência dela em fazer daquele cômodo uma espécie de templo para Nelson, o filho mais velho (que hoje já não mora mais com ela) passou a dormir em outro quarto. Todo o espaço era a materialização da dolorosa estima pelo filho, ausente há anos, precisamente há doze anos. No quarto estavam os objetos de Nelson: as roupas, os móveis, o último caderno de escola, os uniformes de futebol; e também a coleção de recortes de jornais com matérias a respeito das buscas e da luta pelo reencontro, os exames médicos e outros papéis que documentam o drama. Os registros de memória e os documentos que ela me mostrava encaminhavam-me para espaços e temporalidades diversos. Além disso, revelavam aquela dupla tessitura, de que falam Vianna e Farias (2011VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , v.37, julho-dezembro de 2011, pp. 79-116.), que ocorre quando compromissos já existentes levam à rua “... e os compromissos feitos na rua abrem as portas das casas, os álbuns de fotos e algo sobre as histórias pessoais e familiares que não cabem na ‘luta’ (p.85)”. Direcionavam-me para a construção de biografias afetivas e morais; para o aprendizado e compartilhamento de rituais e tecnologias de protesto que não eram resgatados em detalhes no exercício de rememoração, mas que estavam ali registrados naqueles papéis.

Enquanto conversávamos, Maísa detalhava as atividades da rotina do garoto, dava “provas” de que tinha presença efetiva na vida dele. A rotina estava sob seu controle, “do colégio para casa e da casa para a escolinha de futebol”. Exibia o caderno escolar com as últimas atividades realizadas e fotos do garoto em meio a outros jovens de um clube de futebol. Contava que Nelson era apaixonado por futebol. A inocência do garoto também era posta em relevo: o filho era uma criança, era infantil, quando comparado a outros garotos da mesma idade. Nelson, com doze anos, tinha interesses de criança. Nas palavras de Maísa, ele “era inocente de tudo, o sonho do meu filho era ser jogador”. As aspirações profissionais em relação ao esporte eram um “sonho” e misturavam-se com as brincadeiras no quintal de casa e nos “campinhos”4 4 Espaços de brincadeira de futebol nos bairros populares, geralmente sem grama. do setor onde morava: “aqui em casa ele tinha uns golzinhos, era tudo marcado, como se fosse um campo de futebol”.

Mãe e filho eram emocionalmente próximos, era o garoto quem a consolava nos momentos em que se sentia deprimida em razão da recente separação conjugal. Ela demostrava que estava presente na vida do filho, na rotina dele, e isso não corroboraria as conjecturas de um possível envolvimento do garoto com o tráfico de drogas. Ainda, para Maísa, a relação com o filho era de estima, proximidade e orgulho: “E o Nelson, não era porque era o Nelson, mas o Nelson era uma criança muito especial, ele era muito bom, ele era uma criança muito educada”.5 5 Maísa afirma que houve tentativas de associar o filho ao tráfico com sugestões de que seu filho fosse aviãozinho. Essa sugestão, no entanto, não ganhou força.

Era a partir de Maísa que a família se redefiniria. O filho confirmava essa capacidade, quando consolava a mãe, entristecida com o processo de separação: “mãe, fica assim não [abatida e entristecida com a separação] que nós vamos ser felizes... nós três aqui [ele, a mãe e o irmão mais velho]...”. Como lembra Araújo (2007ARAÚJO, Fábio Alves. 2007. Do luto à luta: a experiência das mães de Acari. Mestrado em Sociologia com Concentração em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), há toda uma construção moral do que seja a mãe. Mãe é quem coloca o filho no mundo e sempre vai estar por perto protegendo, cuidando, é quem não vai embora. Ainda, como destaca Araújo, nos termos dessa construção moral que opera de forma efetiva frequentemente, mãe “nunca consegue esquecer”.

Da perspectiva de Maísa, o que legitima sua denúncia são a responsabilidade e autoridade maternas. Essa interpretação parece se consolidar porque embora se coadunem com princípios cívicos, que são referência no espaço público, suas demandas não são reconhecidas e legitimadas. Tornar públicas as relações pessoais com o filho, a sua dor e o seu sofrimento são investimentos narrativos que a ajudam a reclamar Nelson enquanto vítima, e ela mesma como demandante de justiça. Em circunstâncias de reivindicação da vítima enquanto tal, trazer o filho para perto de si nos relatos afasta conjecturas de atividades ilícitas e torna-se um investimento narrativo fundamental de chancela moral, como observa Efrem Filho (2017EFREM FILHO, Roberto. 2017. “A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima”. Dossiê: Conservadorismos, Direitos, Moralidades e Violência. Cadernos Pagu. n.50.).

Camisetas e cartazes com imagens do garoto são guardados. Neles, destaca-se a frase “Vítima de violência policial”. O garoto desaparecido desde uma abordagem policial não poderia ser mais um jovem desaparecido, um entre tantos outros, ocultado pelo anonimato das estatísticas ou esquecido em pastas de arquivos. Ele tinha um rosto exibido e reclamado, o rosto do menino Nelson Ferreira, nos cartazes do Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial (CGFVP), destacado, no centro, em tamanho maior, rodeado pelos rostos de outras vítimas.

Judith Butler (2019BUTLER, Judith. 2019. Vida Precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica Editora. 189p.) problematiza a relação entre representação e humanização. Lembra que nem sempre a personificação humaniza. Naqueles protestos de mães, era feito um árduo investimento a fim de que a morte de Nelson e dos demais fossem socialmente pranteadas, a fim de que a imagem do rosto do garoto, uma criança, sensibilizasse a opinião pública quanto à precariedade da vida.

A repercussão midiática do desaparecimento e as manobras de chancela moral direcionadas à Maísa e ao filho contribuíram para que as mortes de Nelson e do homem que dirigia o carro, Márcio, ganhassem nos primeiros meses algum tratamento das agências de investigação e de segurança pública: os desaparecimentos se tornariam objeto de inquérito policial e de instrução processual. Naquele mesmo período, mesmo com fortes indícios criminais, outros desaparecimentos permaneciam sem serem investigados em Goiás. Diferentes instâncias do Estado, por meio da ação de seus agentes, se intercalavam na gestão do caso, de modo que ele não se sustentava juridicamente enquanto homicídio. Em relatório parlamentar da Comissão de Direitos Humanos, o assistente de acusação listava o que ele chamava de “condutas questionáveis das várias autoridades encarregadas de acompanhar o caso”. O trabalho da polícia técnica, a investigação do caso pela própria polícia militar e o tratamento dado às provas pelo juiz responsável pelas sentenças eram questionados. Em uma primeira sentença, em agosto de 2005, os acusados pelo desaparecimento de Nelson e de Márcio foram absolvidos.

Representantes políticos, militantes dos direitos humanos e agentes religiosos mobilizavam-se no sentido de organizar a ação política de familiares de vítimas e, no ano de 2006, Maísa participaria da fundação do CGFVP, comitê que foi formado e teria como sede uma instituição formada por jovens católicos. Ela conta que o número de mulheres participantes era alto, de quase quarenta, e que sempre apareciam novos casos de vítimas. Havia também alguns pais, mas a presença majoritária era de mulheres. Com algumas dessas mulheres Maísa ainda mantém contato. Elas eram mães de jovens e de homens assassinados, e também mulheres de vítimas da desocupação do Parque Oeste Industrial. Nas palavras de Maísa, eram chamadas somente de “mães”. De modo correlato ao que observaram Vianna e Farias (2011VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , v.37, julho-dezembro de 2011, pp. 79-116.), no relato de Maísa a maternidade não aparecia apenas como uma condição específica. Todas aquelas mulheres ali se tornavam mães porque performavam “um modo específico de habitar o espaço público” por possuírem inscrito no feminino o seu fazer militante.

Nas reuniões do comitê, essas mães compartilhavam suas dores e colocavam-se a par do andamento de seus processos judiciais. Nos recortes de jornais retirados de gavetas havia fotos das mulheres que compunham o comitê, cartazes produzidos para os protestos, imagens de rituais de protesto e pranteamento. Em um deles, um ato realizado no ano de 2007, 31 cruzes foram expostas na Praça Bandeirantes, no centro de Goiânia, simbolizando os mortos. Naquele período e nos anos seguintes, missas e cultos foram realizados em homenagem ao garoto.

Embora tenha gerado investigação quase que imediata e tido repercussão na mídia e entre agentes políticos, o desaparecimento de Nelson não se sustentou enquanto denúncia. Para Maísa, a lembrança das expectativas ao longo das instruções e julgamentos vem acompanhada de lembranças dos reveses da justiça: “dizem que ainda pode ter outro julgamento”. Pensando em todo esse processo, ela fala da força pessoal que a moveu desde o início: “durante seis meses minha vida era levantar cedo, ir para o Fórum e ficar lá até o fim do dia... o dia inteirinho lá sem comer, sabe?...”. A primeira sentença seria anulada pelo Tribunal de Justiça de Goiás. Em 2008, depois de uma nova instrução processual, foi proferida uma sentença em desfavor dos acusados. O processo foi ainda encaminhado para julgamento pelo Tribunal de Júri. No entanto, os acusados apresentaram recursos e em 2011 foram despronunciados. Ainda hoje há desdobramentos judiciais e o caso não foi solucionado.

Encontra-se nos recortes de jornais o registro de duas covas rasas descobertas em uma chácara na zona rural de Aparecida de Goiânia, no mesmo período em que o caso de Nelson era investigado. A matéria jornalística anunciava que embora tivesse sido cogitado que uma das ossadas fosse de uma criança, os agentes da polícia técnica não teriam dado informações oficiais sobre o assunto. Um policial militar que fazia a segurança do espaço teria dito aos repórteres que a região era frequentada por praticantes de “magia negra” e que no lugar havia sido encontradas tigelas de barro, charutos e outros objetos associados às práticas. O título da matéria, “Mistério”, e o seu conteúdo relacionavam objetos materiais das religiões afro-brasileiras, supostamente encontrados no lugar, às ossadas, de maneira a associar os crimes a esses rituais.

Maísa lamentava, no entanto, que nunca tinha recebido os laudos do Instituto Médico Legal, embora por mais de uma vez tenha encaminhado as radiografias dos dentes e de um dos braços do filho, respectivamente feitas durante tratamento dentário e quando Nelson sofreu uma fratura no braço: “Eles nunca me deram a resposta”. Essa ausência de respostas enche-a de dúvidas. A ausência ou as linhas de investigações limitadas, como observa Efrem Filho (2017EFREM FILHO, Roberto. 2017. “A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima”. Dossiê: Conservadorismos, Direitos, Moralidades e Violência. Cadernos Pagu. n.50.), podem contribuir para que o “improvável se some a diversas outra hipóteses mais ou menos (im)prováveis”. Acrescento que isso se dá mesmo quando não há uma explicação formal de Estado (solução) para o contexto de vitimização reclamado.

A indiferença institucional e as dificuldades em ser atendida nas várias instituições governamentais (corregedoria da Polícia Militar, delegacias, Instituto Médico Legal) sobressaem nas falas de Maísa. Recentemente, ela recebeu um laudo que diz referir-se àquela ossada encontrada na chácara. O resultado teria sido negativo, ou seja, os restos mortais não são os de seu filho. No entanto, persiste a dúvida acerca das demais ossadas no IML que nunca foram examinadas.

No período da pesquisa, Maísa me deu testemunhos de como a violência sofrida adentrava o seu cotidiano e do modo como ela movimentava essa violência. Uma das circunstâncias que me direcionava para esses aspectos de experiência e de agência era a angústia de Maísa em torno de um procedimento burocrático. Ela tinha dificuldades de escriturar sua casa sem o atestado de óbito. Aquele embargo sintetizava uma série de tantos outros desencadeados pelo desaparecimento. Alguns anos depois ela decidiria providenciar um documento de ausência e se reinstalar na “própria” casa. Trato no próximo tópico desses testemunhos e dos esforços de “reabitar” o cotidiano (ao que tudo indica, esforços sempre presentes, pontuais apenas quando sistematizados analiticamente).

O repertório político associado à capacidade do habitar

Com auxílio da Defensoria Pública, Maísa fez nos primeiros meses de 2019 a petição daquilo que ela imaginava que seria uma “certidão de ausência”. Seis meses depois percebeu-se autora de uma “ação declaratória de morte presumida sem declaração de ausência”, e sete meses depois da audiência, dirigindo-se ao cartório, tinha em mãos uma “certidão de registro de óbito por morte presumida”.

Maísa conta como foi difícil ouvir na audiência de instrução e julgamento o resgate das circunstâncias do desaparecimento e dos eventos desencadeados pelo drama. O texto da sentença, assinado pelo juiz da Vara de Família e Sucessões, explicava a solução do ordenamento jurídico: a declaração de ausência é um processo moroso que não precisa ser percorrido para a declaração de morte presumida. Lembrava que o desaparecimento de Nelson já completava quatorze anos e que havia decorrido o tempo em que caberia à justiça se concentrar no instituto da ausência com vistas a proteger os direitos do ausente. Por fim, era acolhido o parecer do Ministério Público de que “inexistia dúvidas acerca do falecimento de Nelson” e de que a certidão de morte presumida era condição para “a prestação de tutela jurisdicional efetiva”6 6 Diferentemente da ação declaratória de morte presumida com ausência, a ação declaratória de morte presumida sem ausência é um pedido de sucessão definitiva da direção dos bens (pelos herdeiros, cônjuges, por aqueles que têm direito dependente sobre os bens do ausente ou ainda por credores de obrigações vencidas e não pagas), quando a probabilidade de volta do ausente é praticamente inexistente. Na ação de morte presumida sem ausência, a personalidade jurídica não é destruída e os direitos do ausente são resguardados caso ele apareça, mesmo a sucessão definitiva encerrando o instituto de ausência. Reconhece-se que a existência da pessoa natural termina. .

Nos dias seguintes à audiência, quando o processo era movimentado, Maísa manifestava alguma incompreensão e resistência. Por que receber uma certidão de óbito por morte presumida favorecê-la-ia mais do que uma declaração de ausente? Prestes a pegar o documento no cartório, refletindo sobre o termo “morte presumida”, ela considerava que o resultado tinha sido “... o pior. Eu queria que eles colocassem alguma coisa lá... ter uma certidão de óbito e não ter enterrado ele, não ter nada dele é muito triste”. Fazendo um balanço, concluía que não tinha sido favorecida, porque tivera expectativas de que o documento registrasse algo sobre as circunstâncias da morte, que “colocassem alguma coisa lá”. Trazia-lhe angústia ter uma certidão de óbito e não ter o corpo do filho, “não ter nada dele”. “Não ter nada do filho” parece uma expressão que remete à urgência de ter os restos mortais e o reconhecimento público da morte.

Estudando ocorrências policiais de desaparecimentos, Ferreira (2011FERREIRA, Letícia. 2011. Uma etnografia para muitas ausências: O desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social. Tese (Doutorado em Antropologia Social), UFRJ/Museu Nacional/PPGAS.) analisa diferentes propósitos de registros e de investigações em torno do desaparecimento de pessoas. A autora nota que o registro policial do evento pode atender a diferentes interesses, não necessariamente à busca da pessoa desaparecida, como o desenrolar de procedimentos administrativos relativos ao desembargo de herança e a questões trabalhistas. O desaparecido enquanto pessoa jurídica possui direitos e deveres, e atestar o seu desaparecimento pode ser condição para a emissão da declaração de ausente. Logo, este documento é condição para que “bens, direitos e responsabilidades sejam redistribuídos”. Faz lembrar ainda, citando Mariza Peirano (2006PEIRANO, Mariza. 2006. De que serve um documento? In: PALMEIRA, M.; BARREIRA, C. (orgs). Política no Brasil: visões de antropólogos. Rio de Janeiro: NuAP/ Relume Dumará.), que possuir e portar um documento é condição para o reconhecimento social e não possuir um documento exigido esvazia de reconhecimento social aqueles indivíduos que não o possuem.

Parece-me importante observar como em circunstâncias bastante específicas como essa aqui analisada, a emissão de um documento pode ser sentida como uma destituição. A certidão de morte presumida, embora permita a Maísa escriturar a casa, tem um peso simbólico que ela recusa, porque o óbito decorrente de justificação judicial não lhe é totalmente inteligível, e mesmo naquilo que é inteligível, não parece ser suficientemente razoável e não a permite viver e elaborar o seu luto. A possibilidade de rearticular o “dever de memória” com o filho, de reanimar o enfrentamento, de não compactuar com uma omissão, surgem então como reações à emissão da certidão de óbito.

Maísa mantém o ritual de marcar as datas do desaparecimento e do aniversário do filho com entrevistas para jornais, que ela geralmente concede na casa onde viveu com o filho até seu desaparecimento. Atendendo aos pedidos do filho mais velho - que propôs a mudança como algo emocionalmente positivo para todos eles -, há poucos meses ela se desfez dos móveis do quarto de Nelson e o cômodo passou a acomodar a mãe de Maísa, uma senhora de oitenta e seis anos. Nos últimos meses, a casa passou por essa e por outras modificações. As paredes, que eram mantidas em cor verde, como na época em que lá vivia o filho desaparecido, estão com cor mais clara. Aqueles objetos e fotos que atestam os esforços de construção de uma denúncia permaneceram guardados e continuam compondo imagens das matérias jornalísticas sobre o caso, agora sob um fundo branco (a nova cor da casa).

Essas matérias mobilizam as emoções e sentimentos da perda materna, relembram os detalhes da abordagem policial, as imagens do carro encontrado queimado horas depois, os julgamentos e o arquivamento do processo. Maísa conta para repórteres, assim como contou para mim, que toma muitos remédios controlados e que essas drogas têm efeitos colaterais, como o comprometimento dos dentes. Durante muito tempo, as caixas vazias das drogas eram sempre expostas por ela e fotografadas nas imagens feitas para as reportagens, e eu mesma vi essas embalagens acumuladas em uma caixa, no antigo quarto de Nelson, depois de terem sido retiradas de cima do armário de roupas.

Em que pese o modo como esses relatos são mediados e explorados nas matérias jornalísticas, eles nos transferem para modalidades de afirmação que reclamam dimensões da dignidade associadas àquilo que Marc Brevriglièri (2016BREVIGLIÈRI, Marc. 2016. “Pensar a dignidade sem falar a linguagem da capacidade de agir: uma discussão crítica sobre o pragmatismo sociológico e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth”. Terceiro Milênio: Revista Crítica de Sociologia e Política. Janeiro a junho de 2016, Vol. 6, nº 1, pp. 11-34.) chama de “capacidade do habitar”. O habitar, sistematiza o pesquisador, é uma forma de se engajar no mundo que encontra segurança na manutenção de um estado ou espaço familiares.

Concentrar quase todos os esforços e energias nas buscas pelo filho, em protestos, na luta por esclarecimento nas esferas da justiça durante muito tempo - isso foi o que manteve Maísa em pé. Fora disso, pouca coisa parecia fazer sentido, mas aquela também era uma circunstância vivida com muita dor. O filho mais velho, mesmo morando na mesma casa com ela, durante longos períodos não teve nenhum tipo de atenção materna, foi “abandonado”, como ela explica. A dificuldade de cumprir o luto ainda hoje é acompanhada pela dificuldade de atender às expectativas afetivas e de responder a necessidades pessoais e afetivas.

Maísa frequentemente diz “quase nunca saio de casa”. Se a frase aponta em alguma medida para um esgotamento do sentido e da capacidade de agir no espaço público, defendo que dirigindo o olhar para elementos do cotidiano podemos perceber como nele se manifestam esforços para resistir, esforços para “reabitar”, o investimento em vínculos afetivos negligenciados em alguns períodos, como por exemplo o cuidado dedicado à mãe idosa e mesmo os esforços de cuidado consigo mesma.

O corpo que testemunha a violência não permite que ela seja esquecida; testemunha também a força pessoal no cansaço na gestão da vida ordinária, na permanência dos rituais de memória. Materializa “a transformação da mater dolorosa em mãe que luta” (Araújo, 2007:73ARAÚJO, Fábio Alves. 2007. Do luto à luta: a experiência das mães de Acari. Mestrado em Sociologia com Concentração em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), até mesmo porque a dimensão da luta nunca está ausente da maternidade, “apenas ganha destaque público após a experiência traumática vivida (Araújo, 2007:75ARAÚJO, Fábio Alves. 2007. Do luto à luta: a experiência das mães de Acari. Mestrado em Sociologia com Concentração em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.)” como bem destaca Araújo ao analisar o modo como elementos do imaginário coletivo movimentam mães na mesma medida em que elas agenciam as condições políticas do feminino. Esse é um dos modos por meio dos quais Maísa tem agenciado o sofrimento. Chamar a atenção para dimensões do habitar é também se comunicar politicamente, denunciar uma alteridade partida.

Naquelas matérias jornalísticas, a recente emissão da certidão de óbito e a resistência de Maísa ao modo como o Estado gestou este aspecto da morte de Nelson ficam registradas e são exploradas. Em uma dessas matérias, lê-se a frase atribuída a Maísa: “com esse documento posso entrar na justiça”. Em conversas que tive com ela também percebi essa expectativa e acho curioso observar como a frase evidencia a necessidade de um enfrentamento. A expectativa de Maísa se aproxima de outra, que teve repercussão política. A certidão de morte de Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do II Exército de São Paulo (DOI-Codi), foi retificada em 2013 depois que a viúva do jornalista fez solicitação à Comissão Nacional da Verdade (criada para esclarecer violações de direitos humanos no período da ditadura militar) demandando a alteração do documento. O antigo documento que tinha como causa morte “asfixia mecânica” (suposto suicídio) foi substituído por um novo, que registra que a morte foi decorrente de “lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi”. As perspectivas de que famílias de vítimas de desaparecimentos forçados ocorridos depois do período militar sejam reparadas parecem distantes. Mas um documento, o arquivamento do processo, a paralização das investigações não podem ser o seu movimento final.

Considerações finais

Ao levarem a “casa” e o doméstico, para o espaço público, mães de vítimas de violência do Estado constroem e gestam biografias morais e afetivas em que o feminino sobressai como recurso político e de sensibilização, e se adapta a diferentes contextos, em diferentes momentos da experiência da perda. A percepção do evento traumático traz a consciência da alteridade partida e é na construção da solidariedade na dor da maternidade que vínculos sociais e políticos conseguem ainda ser reclamados e em alguma medida reconhecidos.

Os casos costumam arrastar-se por anos sem solução jurídica e a manifestação na “rua”, no espaço público, nem sempre se sustenta pari passu com a indignação. Se rituais de protesto e de pranteamento, audiências parlamentares e reuniões de militância parecem distantes na memória ou não são recuperadas em detalhes, o arquivo pessoal composto de jornais recortados, de fotos, de camisetas e cartazes confeccionados para a “luta” materializam esforços de denúncia e de sensibilização, dão conta de vínculos que foram estabelecidos, solidariedades que foram forjadas, represálias e obstáculos enfrentados. Dossiês e relatórios de comissões de Direitos Humanos, manchetes de jornal, notas taquigráficas de audiências parlamentares possibilitam que episódios e circunstâncias resgatadas pela memória sejam percebidos cronologicamente e em alguma medida sejam datados pela pesquisadora.

Permanece a apresentação de si estruturada por um léxico que direciona para dores, sofrimentos, experiências e sentimentos maternos sobre os quais se articularam e se articulam denúncia e solidariedades. Nesse contexto lexical, como permitem discernir as contribuições de Vianna (2014VIANNA, Adriana. 2014. Violência, Estado e gênero: entre corpos e corpus entrecruzados. In: SOUZA LIMA, A. C. de; GARCIA-ACOSTA, V. (orgs). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília: ABA. 308p.), a palavra “mãe” é desnaturalizada e direciona para o alargamento de uma experiência, para a construção de solidariedades e para explicitação, delineamento e enunciação de conflitos.

Sujeitos marcados pela violência, que sintetizam a alteridade partida no espaço público, mostram na movimentação da violência nas relações correntes como a necessidade de enfrentamento pode permanecer mesmo nos períodos em que não há energia para a militância. Chamam a atenção para o modo como os vínculos políticos e as relações cotidianas estão entrelaçados e, explicitando o comprometimento do cotidiano e seus esforços por reabitá-lo, comunicam-se politicamente.

Referências bibliográficas

  • ARAÚJO, Fábio Alves. 2007. Do luto à luta: a experiência das mães de Acari Mestrado em Sociologia com Concentração em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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  • LAGO, Natália Bouças do. 2019. Jornadas de visita e luta: tensões, relações e movimentos de familiares nos arredores da prisão Tese (Doutorado em Antropologia Social), FFLCH/USP.
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  • VIANNA, Adriana. 2014. Violência, Estado e gênero: entre corpos e corpus entrecruzados. In: SOUZA LIMA, A. C. de; GARCIA-ACOSTA, V. (orgs). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília: ABA. 308p.
  • 1
    Os nomes são fictícios.
  • 2
    Trechos do inquérito foram publicados em relatórios de comissões parlamentares.
  • 3
    Os jornais estavam recortados de modo que informações como data, título do jornal e caderno nem sempre estavam presentes. Tive permissão para fotografar esse material. Pude retornar às imagens, ler os textos daquelas manchetes e optei por me apropriar do material assim mesmo, como ele foi incorporado ao arquivo pessoal de Maísa.
  • 4
    Espaços de brincadeira de futebol nos bairros populares, geralmente sem grama.
  • 5
    Maísa afirma que houve tentativas de associar o filho ao tráfico com sugestões de que seu filho fosse aviãozinho. Essa sugestão, no entanto, não ganhou força.
  • 6
    Diferentemente da ação declaratória de morte presumida com ausência, a ação declaratória de morte presumida sem ausência é um pedido de sucessão definitiva da direção dos bens (pelos herdeiros, cônjuges, por aqueles que têm direito dependente sobre os bens do ausente ou ainda por credores de obrigações vencidas e não pagas), quando a probabilidade de volta do ausente é praticamente inexistente. Na ação de morte presumida sem ausência, a personalidade jurídica não é destruída e os direitos do ausente são resguardados caso ele apareça, mesmo a sucessão definitiva encerrando o instituto de ausência. Reconhece-se que a existência da pessoa natural termina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2020
  • Aceito
    19 Jul 2020
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