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Lutar, amar e sofrer entre as Mães pela Diversidade

Luchar, amar y sufrir entre las Madres por la Diversidad

Resumo

Este artigo parte da interlocução com a associação Mães pela Diversidade do estado de Goiás, Brasil, para analisar a performance do “ativismo materno” que combate violências cometidas contra filhos e filhas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexos, queers e outras expressões de gênero (LGBTIQ+). Por meio de registros etnográficos verbais e desenhados, proponho refletir sobre os modos como emoções são dramatizadas para a confecção de lutas que, dentre outras coisas, visam à busca por justiça, denúncia de violação de direitos humanos e construção de uma malha de apoio mútuo.

Palavras-chave:
ativismo materno; movimento LGBTIQ+; violência; emoções; antropologia visual

Resumen

Este artículo parte del diálogo con la asociación Mães pela Diversidade (Madres por la Diversidad) de Goiás para analizar la actuación del activismo materno que combate la violencia contra hijos e hijas lesbianas, gays, bisexuales, travestis, intersexuales, queer y otras expresiones de género (LGBTIQ+). A través de registros verbales y dibujos etnográficos, yo pretendo reflexionar sobre las formas en que se dramatizan las emociones para la creación de luchas que apuntan, entre otras cosas: la búsqueda de la justicia, la denuncia de violaciones de derechos humanos y la construcción de una malla de apoyo mutuo.

Palabras clave:
activismo materno; Movimiento LGBTIQ+; violencia; emociones; antropología visual

Abstract

This article is based on the author’s dialogue with the association Mães pela Diversidade (Mothers for Diversity), an NGO located in the Brazilian state of Goiás, to analyze the performance of “maternal activism” opposed to violence against lesbian, gay, bisexual, travesti, transgender, intersex, queer and other non-straight gender expressions (LGBTIQ+). Through verbal and drawn ethnographic records, I propose to reflect on the ways emotions are dramatized in social and political struggles that claim for justice, denounce the violation of human rights, and building a network of mutual support.

Key-words:
activist mothering; LGBTIQ+ movement; violence; emotions; visual anthropology

Introdução

O amplo salão do Centro Internacional de Convenções do Brasil, em Brasília, estava abarrotado de gente durante a cerimônia de abertura das Conferências Conjuntas de Direitos Humanos, em 2016. O evento promovido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República reuniu mais de 7 mil pessoas para debater políticas públicas relacionadas a segmentos sociais historicamente destituídos de poder no Brasil. Enquanto figuras públicas se revezavam no púlpito para proferir discursos, um grupo vestido de branco fazia um silencioso ato na plateia, ao estender uma colcha de retalhos que podia ser observada à distância. Cada retalho trazia o nome de uma vida ceifada pela violência homofóbica ou transfóbica no país. As pessoas que conduziam o ato eram ativistas do movimento Mães pela Diversidade, organização não-governamental brasileira de mães, pais e outros familiares de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexos, queers e outras expressões de gênero (LGBTIQ+).

No centro do grupo, o aposentado Avelino Fortuna mantinha uma expressão dolorosa. A colcha suturava sua história de ativismo à história de seu filho, Lucas Fortuna, jornalista, árbitro de vôlei e militante dos movimentos LGBTIQ+ e estudantil. Lucas era nacionalmente reconhecido por auxiliar na construção do Encontro Nacional Universitário da Diversidade Sexual e de Gênero (ENUDSG) e por iniciar um movimento de homens que vestiam saias para afrontar a cis-heteronormatividade. Além disso, havia ajudado a fundar o Colcha de Retalhos, grupo criado em 2003, no contexto da Universidade Federal de Goiás (UFG), cujas ações tiveram amplo impacto na história do movimento LGBTIQ+ do estado.

Desenho 1:
A colcha das Mães pela Diversidade

O grupo, essa primeira Colcha de Retalhos que Lucas ajudara a erguer, atualizava-se naquela erguida pelas Mães pela Diversidade em Brasília e representada pelo Desenho 1. Ali, o nome do jornalista reaparecia entre os mais de 300 pedaços de pano. Em novembro de 2012, aos 28 anos, ele fora assassinado no Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, onde realizava uma viagem a trabalho. Enquanto o contexto e o modus operandi da morte sinalizavam um crime homofóbico, os assassinos foram condenados por latrocínio. Após a perda, Avelino Fortuna tornou-se parte das Mães pela Diversidade e passou a usar saias e carregar a foto de Lucas em palestras, protestos e Paradas do Orgulho LGBTIQ+ em diversas cidades do país. Essa é uma das formas como mães e pais de LGBTIQ+ têm atuado ao lado do movimento LGBTIQ+ brasileiro e ao longo de uma ampla malha de mães ativistas que atuam no Brasil e na América Latina. Ao reivindicar justiça, elas contabilizam crimes, pranteiam as vítimas fatais e protestam também contra a negligência do Estado. Além disso, são responsáveis por acolher outras pessoas que também perderam filhos/as para a violência ou que carregam conflitos psicológicos e familiares por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero de suas/seus filhas/os.

Este artigo recupera notas e desenhos etnográficos feitos em diálogo com as Mães pela Diversidade de Goiás entre 2016 e 2018, quando eu produzia minha dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás. Minha intenção aqui é analisar como o grupo tem confeccionado lutas em torno da performance da maternidade. Para isso, no tópico “Lutar”, traçarei uma breve revisão histórica sobre o surgimento de movimentos sociais de mães de LGBTIQ+ no Brasil, destacando os esforços das ativistas em combater ações e discursos do Estado que elas denunciam como governanças LGBTIQfóbicas. Em seguida, no tópico “Amar”, apresentarei a descrição etnográfica de um encontro de ativistas goianas e refletirei acerca das estratégias políticas circunscritas em emoções, sobretudo o amor e o sofrimento. Já em “Sofrer”, examinarei a dramatização coletiva do luto durante a manifestação da ONG na Parada do Orgulho LGBTIQ+ de São Paulo, em 2017. Por fim, nas considerações finais, discutirei alguns aspectos sobre a produção da identidade mãe de LGBTIQ+ ao longo da confecção da maternagem da ação política.

Os desenhos que incorporo a essas palavras são registros de meu diário de campo, feitos com o objetivo de criar uma etnografia visual. Embora os significados das imagens cruzem o conteúdo verbal, elas não foram empregadas para complementar ou ornamentar o texto escrito. Recorri ao desenho pois ele “pode ser entendido como um processo, uma maneira de pensar, observar, conhecer, descrever e revelar” (Azevedo, 2016: 24AZEVEDO, Aina. 2016. Desenho e antropologia: Recuperação histórica e momento atual. Cadernos de Arte e Antropologia. 2016. vol. 5, no. 2, p. 15-32.). Utilizei as imagens como modo de grafar e enquanto uma metodologia que me permitiu ampliar as relações com as interlocutoras de pesquisa: enquanto as Mães referiam-se a mim como o “menino que está nos desenhando”, as ilustrações eram requisitadas e celebradas por elas. Da leitura que as ativistas faziam das imagens de campo, surgiram conversas e ideias que me levaram a desmembrar situações complexas e acessar intuições de análise.

Por esse motivo, este trabalho também pretende colaborar com a ideia de que desenhar é um jeito de conhecer por meio do fazer (Ingold, 2013INGOLD, Tim. 2013. “Drawing the line.” In: Making: Anthropology, archeology, art and architecture. New York: Routledge. p. 125-141.). Muitas vezes, só pude costurar linhas de argumentação através das inspirações que surgiram ao tracejar o papel com minha caneta nanquim e tinta aquarela, materiais que utilizei. Não se trata de um empreendimento meramente estético ou artístico. Como sugere Michael Taussig (2013TAUSSIG, Michael. 2013. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago, Londres: The University of Chicago Press.), trata-se de uma tentativa de duplicar a submersão na participação-observante. Assim, proponho que essas imagens sejam lidas como linhas que traduzem experiências visuais, imaginárias e subjetivas com as quais frequentemente me deparei em campo e que raramente pude verbalizar.

Lutar: a gestação do ativismo de mães de LGBTIQ+ nas arenas do Estado

Mães de LGBTIQ+ brasileiras têm formado malhas de apoio mútuo e mobilizações políticas desde a década de 1990, a exemplo do Grupo de Pais de Homossexuais (GPH), criado em São Paulo pela psicanalista Edith Modesto em 1997 (Oliveira, 2013OLIVEIRA, Leandro. 2013. Os sentidos da aceitação: família e orientação sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado. Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Embora não sejam pioneiras ou exclusivas, as Mães pela Diversidade têm adquirido crescente visibilidade entre essas iniciativas. Atuantes em 24 estados brasileiros por meio de coordenadorias regionais, a associação organiza espaços de sociabilidade e de protesto que perpassam também o ciberespaço por meio das redes sociais. Por isso, a frase “estamos em quase todos os lugares” é reiteradamente dita pelas participantes para construir uma aparente onipresença da ONG em espacialidades que vazam as esferas da casa e da rua, ou das relações familiares, sociais e políticas.

O coletivo foi oficialmente fundado em 2014 e institucionalizou-se como organização não-governamental em 2018. Contudo, sua origem pode ser esticada a alguns anos antes, sobre um evento que marca a simbólica relação de mães de LGBTIQ+ com o Estado. Como destaca Regina Facchini (2018FACCHINI, Regina. 2018. “Múltiplas identidades, diferentes enquadramentos e visibilidades: um olhar para os 40 anos do movimento LGBTI.” In: GREEN, James; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Mariza (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. São Paulo: Alameda. p. 536.), essas mães emergem entre o movimento LGBTIQ+ brasileiro em um contexto marcado pela multiplicação de categorias identitárias, de formatos de mobilização e de estratégias de negociação com instâncias estatais. Trata-se de um momento visível a partir de 2010, em que as lutas de ativistas LGBTIQ+ passam a lidar com o recrudescimento de uma “ofensiva conservadora” que não têm medido esforços em destruir “estruturas governamentais de combate ao racismo, à desigualdade de gênero e à LGBTfobia” (Facchini, 2018: 324FACCHINI, Regina. 2018. “Múltiplas identidades, diferentes enquadramentos e visibilidades: um olhar para os 40 anos do movimento LGBTI.” In: GREEN, James; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Mariza (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. São Paulo: Alameda. p. 536.) e em “pressionar mais fortemente o Executivo contra direitos sociais e direitos sexuais e reprodutivos” (Facchini, 2018: 323FACCHINI, Regina. 2018. “Múltiplas identidades, diferentes enquadramentos e visibilidades: um olhar para os 40 anos do movimento LGBTI.” In: GREEN, James; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Mariza (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. São Paulo: Alameda. p. 536.).

Nesse período, discursos de ódio opostos aos direitos de pessoas LGBTIQ+ acumulavam-se nas bocas de parlamentares em Brasília. Destacam-se os pronunciamentos do atual presidente Jair Bolsonaro, à época deputado federal filiado ao Partido Progressista, reconhecido pela articulação com segmentos religiosos e conservadores no Congresso. Como registra Vanessa Leite (2019LEITE, Vanessa, 2019. “Em defesa das crianças e da família”: Refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos “conservadores” em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana. agosto 2019. no. 32, p. 119-142.), o então deputado liderava a difusão de pânicos morais que posicionavam sexualidades, expressões de gênero e noções de família no centro de discussões sobre proposições de políticas públicas:

Em 2010 a relação com os evangélicos se estreitou poderosamente após Bolsonaro se promover como liderança contra o que ele denominou de “kit gay”. Naquele ano, ele integrava a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e, ao debater o projeto que ficou conhecido como Lei da Palmada, declarou: “Se o filho começa a ficar, assim, meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento”, enquanto dizia representar os defensores das crianças e dos adolescentes (Leite, 2019: 134LEITE, Vanessa, 2019. “Em defesa das crianças e da família”: Refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos “conservadores” em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana. agosto 2019. no. 32, p. 119-142.).

“Kit gay” é a expressão usada por detratores para se referirem pejorativamente ao projeto Escola Sem Homofobia, elaborado através da parceria do movimento LGBTIQ+ e diferentes organizações não-governamentais. Com a chancela do Ministério da Educação (MEC), o projeto visava combater violências homotransfóbicas através da distribuição de materiais pedagógicos entre professores e estudantes do país. Desde sua apresentação até o “engavetamento”, congressistas da bancada da bíblia alegavam que a proposta representaria uma ameaça à “família tradicional brasileira” - ou ao modelo cis-heteronormativo de família -, pois disfarçaria meios de “aliciar” e “desvirtuar” crianças e adolescentes (Leite, 2019LEITE, Vanessa, 2019. “Em defesa das crianças e da família”: Refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos “conservadores” em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana. agosto 2019. no. 32, p. 119-142.).

Nos veios dessa controvérsia, Bolsonaro chegou a afirmar em entrevista a um veículo de comunicação: “Não quero que grupo gay crie com o MEC currículo de escola para o primeiro grau [...]. Nossos filhos agora terão que ser gays para ter esse direito? Alguém vai ter orgulho de ter um filho gay?” (Leite, 2019: 126LEITE, Vanessa, 2019. “Em defesa das crianças e da família”: Refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos “conservadores” em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana. agosto 2019. no. 32, p. 119-142.). Essas declarações exemplificam alguns modos como governantes brasileiros têm produzido enquadramentos normativos de gênero e sexualidade consubstancialmente a moralidades em torno da família de origem. Nessa lógica, enunciados do Estado que visam à “proteção” da família interpelam ofensas a mães e pais de pessoas LGBTIQ+ ou às ações de cuidado que envolvem o maternar e o paternar.

Assim, em reação às falas de Jair Bolsonaro, a rede de ativismo virtual All Out convidou mães de LGBTIQ+ para participar de uma campanha lançada em 2011 dentro do Senado Federal, em Brasília, e exposta em praças públicas do Rio de Janeiro no ano seguinte. Denominada Mães pela Igualdade, a campanha exibia fotografias e depoimentos de cerca de 20 mulheres das regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. A maioria delas surgiam abraçadas a suas filhas/os, enquanto expressavam feições e testemunhos felizes, exaltando categorias afetivas como orgulho, cumplicidade, respeito, admiração e, com mais frequência, o amor. Por outro lado, algumas mães apresentavam semblantes sérios, contando histórias de como perderam filhos/as por meio da homofobia. Outras repudiavam a incapacidade de parlamentares em garantir a laicidade preconizada pela Constituição Federal de 1988, conforme relatava a brasiliense Ângela Moysés:

Como mãe, preocupada com o índice alarmante a que chegou a homofobia em nosso país, é que me choco quando líderes religiosos e políticos sobem aos púlpitos, às tribunas e vão à mídia para despejarem seus “conhecimentos” sobre a homossexualidade, proferindo (in)verdades absolutas, baseadas em crenças e opiniões pessoais, contaminando as plateias com seus conceitos errôneos sobre o assunto e instigando a sociedade contra pessoas cujo único “pecado” ou “crime” é amarem seus iguais. Como mãe, eu conclamo nossos governantes a garantirem a laicidade do Estado e a punirem a homofobia que vitima nossos e nossas jovens homossexuais diariamente.

Após essa campanha, as mães fundaram o coletivo Mães pela Igualdade, que se desmembrou dois anos depois por conta de discordâncias internas. Da dissidência desse grupo, surgiu a associação Mães pela Diversidade. Às mulheres que gestaram o movimento, uniram-se alguns pais, avós e outros familiares. Além disso, o movimento incorporou profissionais do direito, medicina, assistência social e outras áreas; membros de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e também representantes de grupos de ativismo LGBTIQ+, como o A Revolta da Lâmpada, de São Paulo.

Desde então, as Mães pela Diversidade têm sido convocadas para falar, celebrar, prantear e mostrar suas bandeiras, cartazes, colchas e outras estratégias de luta visuais e emotivas. É assim que a associação transita entre programas de entrevistas, videoclipes de cantoras de MPB e funk, narrativas jornalísticas e até ficcionais, a exemplo do modo como as ativistas remediaram os conflitos de uma personagem que se recusava a relacionar-se com seu filho transexual na trama de uma telenovela brasileira em 2017.

A massiva aparição do ativismo de mães de LGBTQI+ nessa conjuntura social é propícia, uma vez que antes que as mães lutassem rente ao movimento LGBTIQ+, o movimento LGBTIQ+ já lutava maternalmente (Facchini, 2018FACCHINI, Regina. 2018. “Múltiplas identidades, diferentes enquadramentos e visibilidades: um olhar para os 40 anos do movimento LGBTI.” In: GREEN, James; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Mariza (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. São Paulo: Alameda. p. 536.). Melhor dizendo, desde a década de 1970 grupos de ativismo LGBTIQ+ brasileiros já desempenhavam o que se esperava das famílias de origem e, mais especificamente, dos trabalhos de cuidado exercidos pelas mães, como o registro de agressões, o reconhecimento de corpos, o enterro digno de mortos e outras ações que tem feito do movimento LGBTIQ+ “o lugar de acolhida das inquietações, dos receios e das dores e da construção da esperança de projetos de vida possível de um conjunto muito diverso de sujeitos” (Facchini, 2018: 313FACCHINI, Regina. 2018. “Múltiplas identidades, diferentes enquadramentos e visibilidades: um olhar para os 40 anos do movimento LGBTI.” In: GREEN, James; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Mariza (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. 1. São Paulo: Alameda. p. 536.).

A fim de mergulhar nessas ideias, apresentarei em seguida registros etnográficos de dois distintos momentos em que dialoguei com as Mães pela Diversidade.

Amar: narrativas de acolhimento entre micropolítica de emoções

Enquanto Mães pela Diversidade de São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco promoviam palestras, faziam piqueniques ou vigílias na frente de fóruns, em Goiás o coletivo atuava na figura individual de Avelino Fortuna até 2017. Avelino justificava a dificuldade em reunir outras mães de LGBTIQ+ ao acionar o lugar-comum que prega Goiás à imagem de costumes e governos conservadores e provincianos.

Como têm discutido cientistas sociais que trabalham sobre a região, esse estereótipo é atravessado por contradições que remontam a um “essencialismo estratégico” utilizado por militantes para justificar suas lutas (Braz et al., 2011BRAZ, Camilo; MELLO, Luiz; PERILO, Marcelo; MAROJA, Daniela. 2011. Para além das fronteiras: parcerias e tensões em torno da construção da cidadania na perspectiva do movimento LGBT em Goiás. Estudos de Sociologia. Vol. 2. Nº 17.). A exemplo disso, ativistas LGBTIQ+ locais descrevem que a capital Goiânia vacila entre o tradicional e o moderno ao ser identificada tanto como um lugar permeado de situações discriminatórias e carente de espaços de lazer para pessoas LGBTIQ+, quanto como uma das primeiras e únicas cidades do país a oferecer cirurgias de redesignação sexual a pessoas transexuais desde 1999, por meio do Hospital das Clínicas (Braz et al, 2011BRAZ, Camilo; MELLO, Luiz; PERILO, Marcelo; MAROJA, Daniela. 2011. Para além das fronteiras: parcerias e tensões em torno da construção da cidadania na perspectiva do movimento LGBT em Goiás. Estudos de Sociologia. Vol. 2. Nº 17.).

Apesar disso, o estreitamento de alianças entre grupos religiosos fundamentalistas e os poderes legislativo, executivo e judiciário, e os consequentes entraves a negociações entre movimento LGBTIQ+ e Estado, por vezes, têm aproximado Goiás de seu lugar-comum. Isso pode explicar por que mobilizações políticas LGBTIQ+ surgiram em Goiás somente a partir dos anos 1990 (Braz, 2014BRAZ, Camilo. 2014. “De Goiânia a ‘Gayânia’: notas sobre o surgimento do mercado ‘GLS’ na capital do cerrado.” Revista Estudos Feministas. Nº 22(1). p.277-296.). Em regiões do Sudeste e do Nordeste, por outro lado, os primeiros registros de ativismo LGBTIQ+ referem-se às lutas travadas contra a repressão da ditadura civil-militar ainda no fim dos anos 1970 e, na década seguinte, como reação à negligência do Estado em relação à pandemia de HIV/Aids (Facchini, 2011FACCHINI, Regina. 2011. “Histórico da luta de LGBT no Brasil.” Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - Caderno Temático 11. p.10-19.).

Embora a entrada da associação Mães pela Diversidade no contexto goiano também possa ser considerada tardia, há registros de mães que já lutavam na região tempos antes, como a costureira Tânia Cardoso Fortuna, mãe do jornalista Lucas Fortuna, que comparecia a Paradas do Orgulho LGBTIQ+ de Goiânia, usando sua peculiar boina em cores de arco-íris, antes mesmo que o marido Avelino ingressasse na militância. Ela também já havia tentado reunir em sua casa mães de ativistas LGBTIQ+ do Colcha de Retalhos em meados dos anos 2000. Mas o grupo, denominado Mães do Colcha, não resistiu às perdas que envolveram a família: alguns meses antes do assassinato do filho, Tânia foi acometida por um aneurisma e faleceu (Novais, 2018NOVAIS, Kaito Campos de. 2018. Gestos de amor, gestações de lutas: uma etnografia desenhada sobre o movimento Mães pela Diversidade. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal de Goiás, Goiânia.).

Durante 2017, acompanhei as tentativas de Avelino Fortuna em ampliar o movimento em Goiás. À época, ele dividia a coordenação regional com a gestora de recursos humanos Rosana Cintra. Ambos tentavam convocar ativistas por meio das redes sociais e de visitas informais a algumas famílias. Um desses encontros ocorreu em abril daquele ano na casa de Helenice Soares, na periferia de Aparecida de Goiânia. O enredo de afetos, memórias e projetos trocados nesta visita orienta algumas de minhas análises sobre ativismo materno. O cenário deste registro foi composto pela pequena sala da família Soares, cuja localidade e características sinalizavam uma situação econômica de baixa renda. Embora abarrotada de moradores e visitantes, duas mães e o pai protagonizaram a cena. Essas três pessoas partiam de variadas experiências de maternagem e de militância, que atravessavam suas diferentes posições sociais de gênero, sexualidade, classe e raça.

A anfitriã Helenice, mulher negra de 45 anos, estudara até o ensino médio e trabalhava como auxiliar de limpeza e serviços gerais em uma empresa que atendia hospitais públicos. Era divorciada, mas voltara a conviver com o ex-marido após reconciliação. Ela conhecera a associação por meio de seu filho, um jovem transexual de 18 anos que era amigo do filho de Rosana Cintra. Rosana, por sua vez, tinha 38 anos, era formada em gestão de pessoas e no momento estava desempregada; morava em Goiânia, autodenomina-se parda e era casada. Por fim, Avelino Fortuna, 63 anos, era aposentado, viúvo, branco, residente de Santo Antônio de Goiás, município do cordão metropolitano de Goiânia. Os três ativistas identificavam-se como heterossexuais.

Helenice contou que, antes que o filho lhe revelasse ser um homem trans, ela não sabia o que significava a palavra trans e, até aquele instante, ainda interpretava a expressão de gênero dele pela identidade feminina que lhe fora outorgada no nascimento. Ainda que levasse anos para compreender e se acostumar aos novos nome e pronome do filho, Helenice não se afastou dele, pois desde aquele momento lhe surgiu uma preocupação: ela passou a notar, em suas palavras, “o quanto que esse povo sofre só de chegar num lugar. Só de chegar num ponto de ônibus. Eu nunca tinha percebido esse sofrimento”.

Para se referir a esse sofrimento, ela narrou um episódio em que o filho fora agredido por um grupo de homens dentro do banheiro de um terminal de ônibus em Goiânia. Em seguida, a mãe disse que ficou reconhecida na vizinhança como uma “mãe extraterrestre”, pois ao contrário de outras que “não aceitavam”, queriam “bater” e “jogar fora”, ela permanecera próxima ao filho: “O meu amor parece que aumentou. Gente, se eu pudesse colocar numa redoma, deixar lá, só eu cuidar, ficar cuidando ali, para não sair lá fora e sofrer tanto...”.

Avelino, por outro lado, expôs que chegou a colocar a vida do filho em risco quando soube que ele era gay. E descreveu que aceitar a sexualidade de Lucas tornou-se um longo processo pedagógico crivado por microagressões que gradativamente desembocaram em relações mais afetuosas. Assim como Avelino, Rosana contou que a relação com o filho a princípio se cravejou de descontinuidades e conflitos. Depois, ela referiu-se à recuperação desse relacionamento como um dispendioso processo de transformação pessoal que se assemelhara ao tratamento hormonal de redesignação de gênero feito pelo filho: “Da mesma forma que um tratamento hormonal demora, nós também estamos em tratamento. Nós também estamos numa transformação”.

Parafraseando a célebre frase de Simone de Beauvoir, a conversa das três ativistas indica que não se nasce mãe de LGBTIQ+, torna-se. O devir dessa identidade perpassa um contraditório processo de confecção de parentesco que, em vocabulário êmico, surge como aceitação. Como preconiza Leandro de Oliveira (2013OLIVEIRA, Leandro. 2013. Os sentidos da aceitação: família e orientação sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado. Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), as ligações de parentesco entre filhos/as LGBTIQ+ e suas mães, pais e famílias de origem envolvem a negociação de responsabilidades, emoções e compromissos que devem ser vislumbrados a partir da noção maussiana de dádiva. Assim, a aceitação torna-se algo a ser dado, recebido e retribuído: quando a família não dá aceitação suficiente, a pessoa LGBTIQ+ pode ressentir-se; quando a família oferece aceitação excessiva, quem a recebe torna-se obrigado a retribuí-la, “a tal ponto que ‘deixar de retribuir’ é um curso de ação que pode ser retratado como pouco confortável, quase como uma espécie de sacrifício” (Oliveira, 2013: 150).

Esse trânsito de dádivas diagnostica as hierarquias dos relacionamentos alinhavados entre pessoas LGBTIQ+ e seus familiares. Por esse motivo, sujeitos LGBTIQ+ têm problematizado a ideia de aceitação, pois ela pressupõe que a família de origem seja o único e mais valorizado espaço de trocas e vínculos emotivos. Ao contrário disso, a família de origem tem sido frequentemente denunciada como uma instituição violenta para aquelas/es cujas expressões sexuais e de gênero transbordam a cis-heteronormatividade. Consequentemente, a aceitação pode não ter dimensão relevante para sujeitos LGBTIQ+, que têm estabelecido malhas de amizade e de cuidado por meio das chamadas “famílias de coração” (Henning, 2014HENNING, Carlos Eduardo. 2014. Paizões, Tiozões, Tias e Cacuras: envelhecimento, meia idade, velhice e homoerotismo masculino na cidade de São Paulo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Unicamp.). Apesar disso, e ainda que a aceitação seja pronunciada e vivida por diferen-

tes formatos e intensidades entre as ativistas, essa categoria ainda é empregada para simbolizar uma sequência de práticas e emoções que envolvem a tentativa de aliviar e reconfigurar tensões familiares. A aceitação representa, portanto, a dramatização da ligação familiar entre filhos/as LGBTIQ+ e suas mães/pais, do mesmo modo que “a dádiva dramatiza o vínculo existente entre doador-receptor” (Rezende e Coelho, 2010: 91REZENDE, Claudia Barcellos; COELHO, Maria Claudia. 2010. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV. 136 p.).

Desenho 2:
Estudo sobre o armário: filhx sai, mãe entra.

Com isso reforço o argumento de que a relação materna-filial resulta de uma gestação politizada. Helenice, Rosana e Avelino expuseram também que a ausência desse esforço político pode fazer com que mães se sintam coagidas a esconder o fato de que maternam sujeitos LGBTIQ+ para corresponder às expectativas cis-heterossexistas de família (Sedgwick, 2007SEDGWICK, Eve Kosofsky. 2007. “A Epistemologia do Armário.” Cadernos Pagu . Campinas, Nº 28.). Como representado no Desenho 2, as mães podem adentrar a conhecida estrutura que confinava suas filhas/os: o armário, ou nos termos de Eve Sedgwick (2007SEDGWICK, Eve Kosofsky. 2007. “A Epistemologia do Armário.” Cadernos Pagu . Campinas, Nº 28.), o regime epistemológico e político capaz de apagar, violentar e silenciar pessoas LGBTIQ+. Em meu desenho, substituí a estrutura do armário pela metáfora do aquário para tentar me aproximar de algumas ideias que ouvi de interlocutores para se referir a esse regime, como a transparência de suas bordas, a falta de ar, o afogamento, o sufoco, o aperto e o engasgo.

O armário das mães de LGBTIQ+ também gera a elas sacrifícios e dilemas. Por um lado, implodir esse “confinamento” pode ter relação, como percebeu Arthur Costa Novo (2017), com a alta recorrência de divórcios entre as mães do grupo e seus maridos. Permanecer no armário, no entanto, representa a recusa em relacionar-se com os/as filhos/as e, consequentemente, de protegê-los/las das homotransfobias. É por isso que Avelino repetiu para Helenice e Rosana a frase que tem constantemente proferido em suas falas públicas: “Os pais e mães que não saem do armário junto com os filhos estão assinando o atestado de óbito dos filhos”.

Ao fim do encontro, após contar a forma como enlutar-se pela morte do filho fez dele ativista, Avelino disse: “Cada LGBT que é assassinado, eu sinto como se meu filho estivesse sendo assassinado de novo. E isso me dói demais. Então meu objetivo é que, com essa luta, a gente consiga que pai nenhum tenha que fazer o que eu fiz: sair daqui para ir reconhecer o corpo do meu filho lá em Pernambuco. A gente não nasceu para sofrer, a gente nasceu para ser feliz”.

Desenho 3:
Estudo do símbolo.

Em diferentes momentos desse diálogo, amor e sofrimento foram conjurados para representar as composições políticas que as Mães pela Diversidade criam dentro de suas relações familiares. O aumento do amor, que Helenice disse ter sido responsável por ativar suas medidas de cuidado, não é uma sensação isolada no grupo. Na verdade, o amor é um dos signos mais usados ali (Costa Novo, 2017COSTA NOVO, Arthur Leonardo. 2017. “’Mães Pela Diversidade’: as políticas da parentalidade em um grupo ativista de mães e pais de pessoas LGBT.” Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos). Florianópolis.). Ele surge enquanto palavra escrita, cantada e gritada. Toma a forma do verbo amar, frequentemente conjugado ao lado do verbo lutar. Surge como o conhecido lema da associação: “Tire seu preconceito do caminho que vamos passar com nosso amor”. Materializa-se visualmente nos pôsteres que elas carregam, nas postagens de suas redes sociais e no ícone que simboliza o grupo, representado pelo Desenho 3. Aliás, foi tracejando esse coração pintado em arco-íris que entendi por que desenhar também é conhecer pelo fazer. Mesmo após encarar o ícone tantas vezes, ao desenhá-lo eu reconheci que, além do coração, há ali a representação de dois corpos na iminência de um abraço: outro código visual para dizer sobre amor. Em certo momento da visita na casa da família Soares, Rosana referiu-se ao amor também como alternativa para as contraditórias relações mantidas por meio da aceitação: “Eu sei que o papel das Mães pela Diversidade é mostrar que o amor pelos seus filhos é maior do que o que a sociedade impõe. [...] O amor, ele está além disso. O amor não é aceitar. Não tem que aceitar nada. Quem sou eu para aceitar alguma coisa? Eu tenho que compreender. Eu tenho que amar. Eu tenho que apoiar e eu tenho que estar presente. E eu pude chegar nessa conclusão através das histórias que eu fui acompanhando”.

Logo, nesse contexto, amar assemelha-se mais a uma estratégia de insurreição contra normas cis-heterocentradas do que ao mito do amor materno. As emoções que emergem nessas falas não devem ser lidas como reações passivas, involuntárias, fruto de interações psicológicas e hormonais ou carentes de racionalidade. Antropólogas e pensadoras feministas têm denunciado que a ruptura epistemológica entre emoção e razão, historicamente perpetuada pela tradição filosófica ocidental, é capaz de associar emoções a normas sexistas de feminilidade, de forma que, “com seus comportamentos tidos pelo senso comum e pela medicina como estreitamente regulados pelos hormônios, as mulheres seriam mais instáveis emocionalmente e, portanto, menos racionais” (Rezende e Coelho, 2010: 25REZENDE, Claudia Barcellos; COELHO, Maria Claudia. 2010. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV. 136 p.).

Como supõe Alison Jaggar (1997JAGGAR, Alison. 1997. Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista. In: JAGGAR, A.; BORDO, Susan R. Gênero, Corpo, Conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.), razão e emoção não são instâncias opostas que indicariam o binarismo “atividade/passividade”. Ao contrário disso, emoções são tanto “trajetórias através das quais nos engajamos ativamente e até construímos o mundo” (Jaggar, 1997: 166JAGGAR, Alison. 1997. Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista. In: JAGGAR, A.; BORDO, Susan R. Gênero, Corpo, Conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.) quanto indicações de conhecimento, na medida em que podem revelar “nossa percepção mais profunda de que estamos numa situação de coerção, crueldade, injustiça ou perigo” (Jaggar, 1997: 175JAGGAR, Alison. 1997. Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista. In: JAGGAR, A.; BORDO, Susan R. Gênero, Corpo, Conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.). Nessa perspectiva, o amor tem sido acionado como um agenciamento: “insurge-se contra qualquer determinação de ordem social que se oponha à vivência plena desse sentimento” (Rezende e Coelho, 2010: 55REZENDE, Claudia Barcellos; COELHO, Maria Claudia. 2010. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV. 136 p.).

As interações que se sucederam na sala de Helenice Soares em abril de 2017 levaram à criação de projetos que alavancaram a mobilização de mães de LGBTIQ+ em Goiás. Sete meses após a visita, essas três pessoas voltaram a se reunir com mais outras trinta: a maioria mães, mas também alguns pais e filhas/os. Este que foi considerado o primeiro encontro oficial das Mães pela Diversidade em Goiás foi realizado em uma sala do Centro de Referência Estadual da Igualdade (CREI), em Goiânia. Durante essa reunião, percebi que o amor manifesto no primeiro diálogo entre Helenice, Rosana e Avelino saltava da dimensão das relações que elas mantinham com seus filhos em casa e ondulava sobre uma dimensão mais ampla, que compreendia a malha formada pelo grupo de mães, pelo movimento LGBTIQ+ e pelas pessoas LGBTIQ+, sendo elas suas filhas ou não. No discurso que marcou o início do encontro, Rosana disse:

Somos mães e muitas vezes somos as primeiras a fechar a porta e o coração para nossos filhos e filhas diferentes. Mas também somos mães que, independente de qualquer coisa, precisamos amar nossos rebentos. Mães para toda obra! Mães de todas as diferenças, mães para apoiar, ajudar e estender a mão. Mães para lutar com garra e coração. Mães guerreiras, militantes e que enfrentam a sociedade de cabeça erguida batendo no peito e dizendo: meu filho tem valor! Meu filho vai ser quem ele é, sem máscaras, sem dor e cheio de amor!

Desenho 4:
Abraço coletivo, nós de apoio.

Essa modelagem alquímica de emoções particulares em lutas coletivas pode ser entendida como micropolíticas das emoções, termo que indica a potencialidade das emoções “para dramatizar, reforçar ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual” (Rezende & Coelho, 2010: 78REZENDE, Claudia Barcellos; COELHO, Maria Claudia. 2010. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV. 136 p.). Não só o amor, mas sentimentos envoltos em experiências de dor também transbordam da casa para a rua e de sensações isoladas a experiências coletivas. O Desenho “Abraço coletivo, nós de apoio” demonstra visualmente a expansão das emoções individuais para a teia de ativistas. Esse é um dos registros desenhados que recupera um poderoso caso de micropolíticas emotivas que mescla manifestações de amor e pranteamento e que ocorre anualmente em meados de junho, quando Mães pela Diversidade de todas as regiões do Brasil peregrinam massivamente até a Parada do Orgulho LGBTIQ+ da cidade de São Paulo, considerada o maior evento do tipo na América Latina.

Sofrer: “É essa luta que me mantém vivo”

Descritas pela antropóloga Regina Facchini (2011FACCHINI, Regina. 2011. “Histórico da luta de LGBT no Brasil.” Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - Caderno Temático 11. p.10-19.) como signos distintivos do movimento LGBTIQ+ brasileiro contemporâneo, as Paradas do Orgulho têm unido festa, reivindicação por direitos, respeito, solidariedade e ajudado a transgredir o senso quantitativo da categoria “minoria” por meio da convocação de multidões às ruas. Trata-se de um formato de mobilização que “sobrevive às críticas de despolitização e segue fazendo com que bairros, cidades, estados e o país tenham de refletir, ainda que temporariamente, sobre a existência e as demandas de LGBTIQ+” (Facchini, 2018: 321).

Desenho 5
Mães de LGBT em marcha na Parada de São Paulo de 2017.

Alguns meses após o encontro na casa da família Soares, ainda em 2017, acompanhei Avelino Fortuna em sua jornada interestadual até a Parada paulistana. Ali, ele apresentou-me às suas amigas Mães pela Diversidade como “o filhão que trouxe lá de Goiás”, indício de que meu empreendimento etnográfico tem sido marcado por trocas de subjetividades e afetações. Assim, há tempos já não éramos mais ligados só pelos fios da pesquisa .

Como uma forma de reabitar seus traumas, o ativista goiano tem perfilhado outras pessoas LGBTIQ+ por onde passa. Foi no terreno do luto que ele alterou seu modo de paternar, passando a exercer as lutas herdadas de seu filho e de sua esposa. Nesse contexto, enlutar-se deve ser percebido do modo como propõem Rezende e Coelho (2010REZENDE, Claudia Barcellos; COELHO, Maria Claudia. 2010. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV. 136 p.): uma série de manifestações de pesar prescritas por enquadramentos socioculturais. De acordo com Veena Das (2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press.), essas expressões de sofrimento tornam-se obrigações para com os mortos e que não representam a tentativa de superar as perdas, mas de refazer a rotina, desdobrando e repetindo a memória do padecimento, a fim de expressar “gestos que marcam a insistência em tornar a violência uma perda visível” (Das, 2007: 194, tradução minha).

Percebi algumas sobreposições entre essas visões analíticas sobre a linguagem do luto e as experiências de campo. Na Parada, Avelino deu materialidade para a violência homofóbica e para seu sofrimento ao vestir coisas que pertenciam a suas perdas: a boina colorida de Tânia e as saias que remetiam a Lucas. É se deslocando entre essas simbologias de maternagem que Avelino é comumente chamado de pãe. Acredito que a criação dessa categoria de parentesco que mistura as palavras pai e mãe diz, primeiro, sobre essa invocação da memória de Tânia. Segundo, diz sobre uma carência em torno do que socialmente se entende por paternidade. Assim, é como se, sozinho, o termo pai não desse conta das políticas de cuidado e afeto desempenhadas pelas mães. De fato, Avelino é um dos poucos pais a “vestir a camisa” e se engajar nas atividades do grupo. E, de certa forma, a identidade pãe parece conceder-lhe permissão para praticar o ativismo feito pelas mães.

Desenho 6:
Na linha de frente.

Além disso, Avelino usa saias em ocasiões de protesto. A saia não deve ser interpretada somente como um signo de feminilidade ou como um objeto pronto, inalterado. Trata-se de uma coisa, ou como propõe Ingold (2012INGOLD, Tim. 2012. “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais.” Horizontes Antropológicos. junho 2012. ano 18, no. 37, p. 25-44.), um parlamento de fios em constante transformação. Avelino usou uma saia pela primeira vez no velório de Lucas: uma peça roxa, de tecido duro e pesado. Mas a saia que ele vestia na Parada tinha textura leve, rodopiante e era estampada com imagens de São Jorge empunhando uma espada entre rosas vermelhas. O pãe me explicou que essa nova saia não remetia mais à dor da primeira, mas a um “grito de liberdade de um povo oprimido”.

As demonstrações de luto do pãe ramificaram-se de sua história particular e se alçavam para as centenas de Mães pela Diversidade. Quando as Mães deixaram a rua onde se organizavam e caminharam rumo à Avenida Paulista (Desenho 5), a micropolítica da dor se via ao longo do grupo, que vestia as mesmas camisetas e que cantava em uniformidade: “Sai, sai da frente! Sai, que com as Mães é diferente!”. As Mães percorreram o corredor de gente até o caminhão de som onde ocorria a cerimônia de abertura da Parada. Sobre esse caminhão estavam organizadores do evento, celebridades, representantes de movimentos LGBTIQ+ e do governo de São Paulo. Avelino foi um dos convidados para discursar em nome da associação. Ele disse:

Boa tarde, mundo! [...] Apesar da minha dor de ter perdido o meu filho para a homofobia, o meu coração está explodindo de alegria de poder estar aqui com vocês continuando a luta que era dele. [...] É essa luta que me mantém vivo, pelo carinho, pelo amor que eu tenho recebido da comunidade, da população LGBT, e, principalmente, das minhas Mães pela Diversidade que me acolheram. Então, que tenhamos a maior Parada LGBT do mundo! Pelo fim de toda a violência contra os LGBTs! Que cessem as mortes e que proliferem o amor, a liberdade e o direito de ser o que é! Um abraço e, como dizia meu filho, um beijo na boca de cada um!

Essa fala reiterou a narrativa de militância que o pãe contara antes na casa da família Soares. Nela, emoções e situações aparentemente dicotômicas - a tristeza e a alegria, o perder e o ser acolhido - foram entrelaçadas como forças-motrizes do engajamento político. Assim como a saia, o discurso também dizia sobre a transformação no curso do luto do pãe. Como lembra Regina Facchini a partir de uma leitura de Veena Das: tornar-se ativista muitas vezes implica “um modo de reinscrever a própria história, de construir a possibilidade de voltar a habitar um mundo devastado pela violência” (Facchini, 2018: 313).

Desenho 7:
Rede de mães e números de violência

Após a abertura, o grupo de mães partiu para o primeiro dos mais de 15 trios elétricos que se enfileiravam na Paulista (Desenho 6). As interlocutoras me explicaram que esse lugar de prestígio informava que elas seriam responsáveis por “lutar na linha de frente”, “guiar” e “abençoar” as aproximadamente três milhões de pessoas que seguiam atrás. Essas falas também indicam modos em que as ativistas articulam algumas noções de maternidade. Particularmente, a noção de abençoar ressoa em simbologias cristãs. Por outro lado, há também uma ideia de que a posição de guia descreve a tentativa das ativistas em maternar os sujeitos envolvidos na Parada. Entre os momentos de “fervo” que acompanhavam a marcha, as militantes vez ou outra tomavam o microfone para dizer sobre suas lutas. Elas referenciavam as vítimas de LGBTIQfobia para demonstrar a necessidade coletiva de cuidar das vidas de pessoas LGBTIQ+. Outras vezes, os casos eram lembrados para denunciar discursos LGBTIQfóbicos que partiam de governantes; para clamar ao Estado pelo reconhecimento da LGBTIQfobia como crime; ou para proteger as famílias de origem dos custos gerados pela violência. Assim, mesmo quem não havia experienciado perdas também performava as micropolíticas emotivas, ao expressar o medo de que filhos/as se tornem o que elas frequentemente chamavam de “estatística”, em referência aos altos dados quantitativos de vítimas de LGBTIQfobia no Brasil. Traduzo o trabalho de proteção das mães contra essas estatísticas no Desenho 7.

Considerações Finais

O caminhão de mães de LGBTQI+ percorreu a extensão da Parada paulistana cobrando por justiça e narrando histórias de amor, de acolhimento e de violência. Como apontam cientistas sociais que pesquisam movimentos liderados por familiares de vítima de violência, mães são peças indispensáveis para a denúncia de violação de direitos humanos. Afinal, como provoca Márcia Pereira Leite: “Quem melhor poderia falar da dor, do sofrimento e da perda, e ao mesmo tempo, de perdão e tolerância, de reconciliação e paz, senão as ‘mães’?” (2004: 154).

Esse processo foi chamado pelo antropólogo Roberto Efrem Filho (2017EFREM FILHO, Roberto. 2017. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Unicamp.) de maternagem da ação política: estratégias de invocação de mães ou emoções e atos historicamente forjados nos sentidos da maternidade para a confecção de ativismo. Ao observar os rituais de reivindicação de justiça feitos por movimentos LGBTIQ+ e campesinos da Paraíba e de Pernambuco, Efrem Filho argumentou que sequer se faz necessária a presença literal de uma mãe. O que deve ser performado em público são as convenções sociais que circundam a ideia de uma mãe, aquela “que encarna o trabalho de cuidado que pode ser levado ao extremo, principalmente se os sinais do sofrimento intraduzível e incomparável estiverem suficientemente à vista” (Efrem Filho, 2017: 201EFREM FILHO, Roberto. 2017. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Unicamp.).

Tornar-se mãe aqui deve ser percebido como propõem pensadoras da antropologia e dos feminismos, que têm demonstrado que as noções de parentesco e de maternidade são relações feitas ao longo do tecido sociocultural, estabelecidas conforme construções de gênero, sexualidade e raça, e atravessadas por relações de poder (Strathern, 1995STRATHERN, Marilyn. 1995. “Necessidade de pais, necessidade de mães.” Revista Estudos Feministas . Ano 3, p. 303-329.; Hill Collins, 2000HILL COLLINS, Patricia. 2000. “Black Women and Motherhood.” In: Black Feminist Thought - knowledge, consciouness, and the politics of empowerment. 2. New York, London: Routledge. p. 173-200.). Conforme Marilyn Strathern, as sociedades ocidentais têm produzido hierarquias entre o maternar e o paternar ao considerarem as mães indispensáveis para a criação de filhas/os, enquanto pais “podem na verdade abandonar os filhos desde o nascimento sem serem vistos como monstros desnaturados ou ameaças ao sistema social” (1995: 312STRATHERN, Marilyn. 1995. “Necessidade de pais, necessidade de mães.” Revista Estudos Feministas . Ano 3, p. 303-329.). Desse modo, o zelo, a proteção e o provimento de sustâncias afetivas e nutritivas têm sido historicamente inscritos em corpos femininos ou nos sentidos do maternar.

Por um lado, essa assunção ameaça condicionar o agenciamento feminino às responsabilidades domésticas e familiares. Mas partindo da interpretação de Strathern (2006STRATHERN, Marilyn. 2006. Gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas, SP: Editora Unicamp.) de que o domínio do lar nem sempre remete à dominação e à passividade, tenho argumentado que a casa, a família e a maternidade também potencializam a agência política das Mães pela Diversidade. Baseio-me nas assertivas de Roberto Efrem Filho de que “as experiências de maternagem da ação política não reproduzem formas de dominação”, pois “o trabalho de cuidado é luta política” (2017: 202EFREM FILHO, Roberto. 2017. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Unicamp.). Fundamento-me, sobretudo, nos relatos de ativistas que têm demonstrado que amar suas filhas/os LGBTIQ+ representa também um esforço político contra as agressões simbólicas e físicas que imperam nas relações das famílias de origem (Novais, 2018NOVAIS, Kaito Campos de. 2018. Gestos de amor, gestações de lutas: uma etnografia desenhada sobre o movimento Mães pela Diversidade. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal de Goiás, Goiânia.). Nesse sentido, tornar-se mãe distancia-se do essencialismo calcado nas experiências de conceber, gestar e parir; aproxima-se, conforme Efrem Filho (2017EFREM FILHO, Roberto. 2017. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Unicamp.), a uma performatividade de gênero. Adiciono a essa premissa que tornar-se mãe perpassa noções de parentesco constituídas na trança entre gênero e raça. Após empreender uma revisão literária nos estudos de feministas negras, sobretudo nos trabalhos da norte-americana Patricia Hill Collins (2000HILL COLLINS, Patricia. 2000. “Black Women and Motherhood.” In: Black Feminist Thought - knowledge, consciouness, and the politics of empowerment. 2. New York, London: Routledge. p. 173-200.) e da brasileira Lélia Gonzalez (2018GONZALEZ, Lélia. 2018. Primavera para as rosas negras - Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Rio de Janeiro: Diáspora Africana.), aprendi que mães negras têm criado ações políticas para combater a exploração colonial, altos índices de violência racial, as desvantagens de acesso a direitos e serviços básicos e outras desigualdades históricas fundadas no racismo. Como também sugere Patricia Hill Collins (2000HILL COLLINS, Patricia. 2000. “Black Women and Motherhood.” In: Black Feminist Thought - knowledge, consciouness, and the politics of empowerment. 2. New York, London: Routledge. p. 173-200.), uma das principais características da maternidade de mulheres negras é sua potencialidade em catalisar ações políticas. Após narrar o caso de uma mãe negra que lutou para proteger o filho de uma situação de violência, Hill Collins conclui: “A maternidade a politizou” (2000: 194HILL COLLINS, Patricia. 2000. “Black Women and Motherhood.” In: Black Feminist Thought - knowledge, consciouness, and the politics of empowerment. 2. New York, London: Routledge. p. 173-200.). Assim, a socióloga chama de activist mothering - ou maternagem ativista - o modo como as obrigações diárias empreendidas por mães negras se moldam em táticas de enfrentamento às múltiplas opressões que cruzam suas vidas.

A socióloga cita ainda as Madres de La Plaza de Mayo, que desde 1970 buscam suas filhas/os “desaparecidas/os” pela ditadura militar argentina, para argumentar que “não apenas mulheres negras, mas aqueles/as que se preocupam com mulheres negras também podem acessar o poder associado com a maternagem ativista” (Hill Collins, 2000: 194, tradução minha). Desse modo, é possível concluir que práticas políticas forjadas por mulheres negras têm sido reconstituídas por outras ativistas e outros movimentos sociais.

A maternagem da ação política pode ainda ser encenada por militantes que, sendo mães ou não, recebem relativa aprovação para “mobilizar ‘narrativas maternais’ e a ‘agir maternalmente’” (Efrem Filho, 2017: 200EFREM FILHO, Roberto. 2017. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Unicamp.). Essa é uma linha importante para interpretar por que a ONG rejeita nomear-se por meio de outras categorias de parentesco, embora reúna também alguns pais, tias e avós. Ao manter a identidade “Mães”, e não “pais”, as ativistas negam a tentação normativa da língua portuguesa em tornar masculino qualquer substantivo coletivo que inclua a mínima presença de homens. Sobretudo, elas indicam que o grupo funda suas práticas políticas na performance dessa maternagem ativista.

Assim, tenho percebido que as Mães pela Diversidade usam os repertórios políticos feitos na confluência de construções de gênero e raça em torno da maternidade para criar um curioso quadro. As propostas e agendas da associação comumente negligenciam desses repertórios as discussões sobre enfrentamento ao racismo ou sobre os modos como o racismo imiscui-se às LGBTIQfobias. Essa ausência tem-se tornado visível também por conta da baixa participação de mulheres negras, de contexto periférico e de baixa renda no movimento (Novais, 2019NOVAIS, Kaito Campos de. 2019. “Aprendizados sobre maternagem ativista a partir das Mães pela Diversidade e do pensamento feminista negro.” Revista Humanidades Inovação. Edição Especial: Epistemologias e Feminismos negros. vol. 6, no. 16, p. 67-81.; Costa Novo, 2017COSTA NOVO, Arthur Leonardo. 2017. “’Mães Pela Diversidade’: as políticas da parentalidade em um grupo ativista de mães e pais de pessoas LGBT.” Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos). Florianópolis.).

No entanto, as Mães pela Diversidade selecionam desses repertórios a dramatização da proteção, do cuidado, do amor e do sofrimento para, ora colar os cacos dos arranjos familiares quebrados pela LGBTIQfobia que circula dentro de casa, ora combater a LGBTIQfobia que circula na rua e nos discursos e práticas do Estado. Essa expressão pública do amor concomitante ao luto assemelha-se aos rituais de pranteamento coletivo analisados por Efrem Filho (2017EFREM FILHO, Roberto. 2017. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Unicamp.). São momentos em que as mães encenam o reconhecimento de filhos/as LGBTIQ+ como vidas precárias, ou suscetíveis de serem agredidas e exterminadas.

Nos termos de Judith Butler, esse reconhecimento tem íntimo vínculo com as ações de cuidado, pois “é exatamente porque um ser vivo pode morrer que é necessário cuidar para que ele/ela possa viver” (Butler, 2015: 32BUTLER, Judith. 2015. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Desse modo, só se pode enlutar-se pela morte de alguém se, primeiro, essa vida for apreendida como viva.

A autora nos indica ainda que os processos e conflitos da arena do Estado atuam no controle da comoção coletiva para regular vidas que devem ser lamentáveis. Na mesma linha de pensamento, Berenice Bento (2018BENTO, Berenice. 2018. “Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação?” Cadernos Pagu, Campinas, Nº 53.) denuncia o potencial do Estado para cunhar técnicas sistemáticas de promoção de vida e de morte. Necrobiopoder é a forma como a autora nomeia esse conjunto de técnicas, referindo-se a “atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia que retira deles a possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser eliminados e outros que devem viver” (Bento, 2018: 7BENTO, Berenice. 2018. “Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação?” Cadernos Pagu, Campinas, Nº 53.).

A partir desse conceito, Bento argumenta que, além de promover desigual distribuição de reconhecimento de humanidade, o Estado promove a eliminação de “corpos que poluem a pureza de uma nação imaginada, um tipo de ‘correia de transmissão’ de uma Europa também imaginada: branca, racional, cristã, heterossexual” (2018: 4BENTO, Berenice. 2018. “Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação?” Cadernos Pagu, Campinas, Nº 53.). Nesse contexto, as mães de vítimas surgem como sujeitos políticos, morais e afetivos que guerreiam contra as zonas de morte administradas pelo Estado, como interpretam Vianna e Lowenkron:

Ao insurgirem-se contra essa lógica reivindicando justamente a ilegitimidade de tais mortes, bem como acionando politicamente o idioma da reprodução e do cuidado para dotar de vida pública os mortos, as “mães de vítimas” também buscam disputar e alterar combinações entre guerra, reprodução, proteção e domesticidade que continuam sendo relevantes no fazer Estado (em especial Estado-nação) (2017: 29VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. 2017. “O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens.” Cadernos Pagu , Campinas. Nº 51.).

Embora o trecho acima se refira às mães que combatem as violências que atingem, em grande parte, pessoas negras de comunidades periféricas do Rio de Janeiro, acredito ser possível estender a análise para o ativismo feito pelas Mães pela Diversidade. As lutas que essas mães de LGBTIQ+ estabelecem em suas relações familiares ou em suas aparições públicas também empreendem um embate contra o necrobiopoder e os enquadramentos normativos de luto regulados pelo Estado. Reivindicando que as mortes de pessoas LGBTIQ+ sejam potencialmente lamentáveis, as mães lutam para que as vidas delas/es sejam reconhecíveis.

Desenho 8:
Lucas Fortuna presente.

É o que faz Avelino Fortuna ao expor a fotografia de Lucas durante a caminhada da Parada paulistana. Márcia Pereira Leite chama essa expressão visual de foto-símbolo: retrato utilizado por movimentos sociais para destacar atributos como juventude e vitalidade de vítimas de violência, de modo a ajudar na feitura da “narrativa das mães sobre a impropriedade e o absurdo daquela morte” (Leite, 2004: 170LEITE, Márcia Pereira. 2004. “As mães em movimento”. In: BIRMAN, Patrícia e LEITE, Márcia Pereira. (orgs.) Um mural para a dor: movimentos cívico religiosos por justiça e paz. Porto Alegre, Ed. UFRGS. P.141-190.). Na construção gráfica do Desenho 8, voltei a dar atenção a essa vivência de campo, praticando a noção de que o desenho permite dobrar o ver para ver além (Taussig, 2013TAUSSIG, Michael. 2013. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago, Londres: The University of Chicago Press.). Enquanto na participação-observante estive atento para a forma como as lutas eram ditas pelas ativistas, foi ao desenhar que reparei que grande parte das lutas das Mães pela Diversidade também se manifesta imageticamente. Além da foto-símbolo de Lucas e de outras filhas/os vítimas de homotransfobia, balões, fantasias, colchas, cartazes e coreografias produziam uma narrativa visual de lutas, frequentemente apresentada em cores do arco-íris associadas às causas LGBTIQ+. Se por um lado as imagens feitas pelas Mães pela Diversidade intervieram em minha maneira de grafar a etnografia, por outro lado meus desenhos também foram apropriados pelo grupo e se tornaram parte do repertório visual das ativistas, que passaram a publicá-los em suas redes sociais.Assim, argumento que desenhar - como meio de observar, narrar, refletir, dialogar, revisitar o campo, participar e apresentar a pesquisa - é um processo metodológico que contribui para adensar a dimensão subjetiva de empreendimentos etnográficos. Ao tracejar a expressão facial do pãe me lembrei do momento em que ele desenrolou o banner que trouxera de Goiânia: seu rosto trazia marcas de tristeza, em contraste com o grande sorriso do filho. E, ainda, lembrei-me do cartaz se movimentando para as mãos de outras mães, o que me leva a entender que aquela foto-símbolo, longe de inerte, passiva ou imóvel, era parte da expressão coletiva do amor e do luto.

Referências Bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2020
  • Aceito
    23 Out 2020
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