Acessibilidade / Reportar erro

EDITORIAL

Além do Dossiê Temático “O Corpo que Incomoda: Movimentos Sociais, Corpo e Autoridade”, organizado e apresentado pelas antropólogas brasileiras Maria Claudia Coelho e Ceres Víctora, este número de Sexualidade, Saúde e Sociedade traz um conjunto de instigantes trabalhos, originários da Argentina, do México e do Brasil. Alguns deles giram em torno de dimensões significativas da discussão em torno dos direitos sexuais, tratando de temas como o consentimento nas práticas sexuais, o início das trajetórias sexuais e seus mecanismos de socialização e os limites da autonomia individual no que se refere à definição da própria identidade de gênero. Suas contribuições decorrem de distintas perspectivas, que incluem os direitos humanos, o feminismo, a demografia e a antropologia. A partir desses aportes, oferecem pistas analíticas e empíricas que permitem discutir os descompassos, as tensões e as articulações entre concepções racionalistas da pessoa humana, geralmente incorporadas a leis e sentenças judiciais, e as que emanam da experiência social de sujeitos cultural e historicamente situados.

O artigo de Rojas Cabrera et al. se fundamenta na pesquisa demográfica realizada na Argentina - Encuesta Nacional sobre Salud Sexual y Reproductiva (ENSSyR) de 2013 - com foco nos dados sobre a iniciação sexual que foi relatada pelos participantes como “voluntária”. Ao objetivar uma compreensão do evento convencionado como “a primeira vez” desde uma perspectiva geracional, os autores sugerem certos avanços nos últimos 40 anos, especialmente no que diz respeito à tomada de decisões relativas à proteção contra infecções sexualmente transmissíveis e a gravidez não planejada. O trabalho apresenta hipóteses interpretativas para a maior proporção de iniciações sexuais “voluntárias” relatadas por homens, quando comparadas às relatadas por mulheres. Os autores discutem como tendem a influenciar no relato dessa experiência o contexto e o tipo de parceria em que ocorre a iniciação sexual, somados aos valores de cada geração e às expectativas sociais diferenciadas que recaem sobre homens e mulheres.

Também refletindo sobre iniciação sexual, temos o artigo de Reis & Ribeiro, desenvolvido a partir de entrevistas em profundidade realizadas com jovens de diferentes classes sociais na cidade de Belém, capital do estado brasileiro do Pará, situado na região Norte do país. Inspirados pela noção de "roteiro sexual" (Gagnon & Simon, 1973GAGNON, John & SIMON, William. 1973. Sexual conduct: The social sources of human sexuality. Chicago: Aldine Books. 316 p.), os autores exploram as trajetórias de homens e mulheres jovens, hetero e homossexuais. Destacam, entre outros aspectos, o papel das famílias de origem e dos deslocamentos por diferentes espaços da cidade na produção e na reprodução de práticas e convenções envolvendo gênero e sexualidade. O artigo valoriza a perspectiva interseccional e aborda também os processos de constituição mútua dos imaginários e as experiências relacionadas à raça/cor e classe.

A partir da análise de uma lei do estado da Califórnia, aprovada em 2014 para coibir a violência sexual no âmbito escolar, Pérez problematiza a aparente oposição entre violência sexual e consentimento, apontando para a distância entre a lógica jurídica e as dinâmicas dos relacionamentos afetivos. A discussão colocada pela lei californiana e pelas implicações envolvidas na noção de “consentimento afirmativo” sobre a qual ela se sustenta suscita a reflexão da autora sobre a noção de liberdade sexual no contexto da América Latina. Assim, tendo por base as narrativas de universitários(as) mexicanos(as), a noção de consentimento como fruto de uma decisão racional passa a ser revista à luz de dimensões mais sutis dos relacionamentos afetivo-sexuais, orientadas por um senso prático ou por uma linguagem corporal que, na dinâmica das relações conjugais ou de namoro, norteia como e quando as relações sexuais podem ocorrer. A instigante discussão em torno dos “pontos cegos” da lei sugere, segundo a autora, que consentimento e desejo deveriam ser considerados como noções distintas, mas correlatas. A expressão formal do consentimento, tida como peça principal para avaliar a ocorrência de violência sexual sob a perspectiva da justiça, deveria ser revista posto que a decisão por manter relações sexuais é sem dúvida atravessada por relações de poder e dominação. Logo, a visibilização do desejo ajudaria a desconstruir representações associadas à aquiescência irrestrita das mulheres nos relacionamentos erótico-afetivos e a perceber os limites das ferramentas jurídicas na interpretação dos contextos de violência sexual.

Ainda na chave das dissonâncias entre os discursos jurídicos e os anseios e as experiências individuais, o artigo de Lima analisa um conjunto de acórdãos elaborados por diversos tribunais brasileiros, entre os anos de 2000 e 2014, acerca da demanda de pessoas trans por retificação da categoria “sexo” em sua documentação legal. Negando-se muitas vezes a reconhecer a autonomia individual no que diz respeito à identidade de gênero, os magistrados apoiam-se em argumentos que pretensamente visam evitar que futuros cônjuges ou namorados(as) de pessoas trans sejam enganados ou que, no jargão jurídico, incorram em “erro essencial de pessoa”. Como a análise de Lima revela, em tais argumentos subjaz a lógica que naturaliza as convenções de gênero, institui a heterossexualidade como norma e, finalmente, preserva antigas representações em cujos termos transexuais, travestis e transgêneros são percebidas como pessoas ardilosas, fraudadoras e, portanto, perigosas.

Embora tratem de questões igualmente relevantes do ponto de vista da afirmação dos direitos sexuais, os artigos de França e de Ranniery não interpelam tão diretamente o discurso jurídico. Discutindo o tema do trabalho sexual, França desloca o olhar do plano mais imediato dos direitos para o das vidas afetivo-sexuais de mulheres que se prostituem na cidade brasileira de Belo Horizonte, abordando questões como conjugalidade, maternidade e violência sexual. Sua principal contribuição é desenvolver uma perspectiva analítica que não apenas unifica o que a lei geralmente separa - o sexo tarifado das prostitutas e o sexo “desinteressado” de esposas e/ou namoradas - mas também (re)coloca as trabalhadoras sexuais no universo simbólico e moral das mulheres que, como elas, pertencem às classes trabalhadoras urbanas brasileiras.

De caráter mais ensaístico, o artigo de Ranniery aborda a trajetória da teoria queer na Educação brasileira, área na qual tal teoria teria ingressado “oficialmente” no país. A análise parte de “indícios empíricos” extraídos da produção teórica dessa área, especialmente daquela voltada à discussão do currículo. De um lado, o autor defende que, mesmo de modo contraditório e impreciso, tal teoria foi incorporada como sinônimo de “estudos sobre gênero e sexualidade” e contribuiu para consolidar estes temas como objetos legítimos de pesquisa e reflexão na Educação. Nesse plano, observa que, alinhada a perspectivas que concebem masculinidades e feminidades como construções sociais, a crítica que a teoria queer dirige a determinados binarismos ontológicos - sujeito/objeto; natureza/cultura ou homossexualidade/heterossexualidade - vê-se muitas vezes esvaziada. Do mesmo modo, ao se considerar a escola como dispositivo homogêneo de reprodução de hierarquias sexuais e de gênero, cuja contestação dependeria da ação de profissionais qualificados e autorizados, apaga-se a própria complexidade dos processos de normatização e de conformação subjetiva que ocorrem nesse espaço, além de se manter a ideia de que existem “formas estáveis e adequadas de ensinar” sobre gênero e sexualidade. Em tempos em que a crítica à suposta incorporação da “ideologia de gênero” nas escolas assola diferentes países latino-americanos, o artigo de Ranniery contribui no sentido de sofisticar a reflexão e de liberá-la de antinomias simplistas e reducionistas.

Referências

  • GAGNON, John & SIMON, William. 1973. Sexual conduct: The social sources of human sexuality Chicago: Aldine Books. 316 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) R. São Francisco Xavier, 524, 6º andar, Bloco E 20550-013 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel./Fax: (21) 2568-0599 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: sexualidadsaludysociedad@gmail.com