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CASTILHO, A. L. Partido da Terra: como os políticos conquistam o território brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012, 239 p.

CASTILHO, A. L.. Partido da Terra: como os políticos conquistam o território brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012. 239

O livro do jornalista Alceu Luís Castilho não é uma obra acadêmica como tradicionalmente estamos acostumados. No entanto, apresenta o relato de uma minuciosa investigação científica que raramente verificamos em trabalhos desta natureza. Seu objetivo encontra-se definido já na primeira página da Apresentação: “dimensionar a posse da terra por políticos eleitos usando como fio condutor as declarações de bens entregues por eles mesmos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)” (p. 9) quando do registro de suas candidaturas. Disso decorre um problema: ainda que obrigados por força de lei a prestarem conta de seus patrimônios, as declarações dos candidatos são prenhes de números incompletos, valores defasados e não revelam a real dimensão da riqueza acumulada pela elite política deste país. Uma tarefa sem dúvida tão ousada quanto importante para a compreensão do poder político dos donos da terra.

Ciente das dificuldades decorrentes da falta de transparência ou dos limites das informações coletadas, o jornalista-pesquisador analisou quase treze mil declarações – disponíveis a qualquer cidadão – de políticos eleitos (e não eleitos) nos pleitos de 2008 e 2010, dentre candidatos a prefeitos, vice-prefeitos, deputados estaduais, deputados federais, senadores (e seus suplentes), governadores, vice-governadores e vice-presidente da República. Para o ano de 2006, a investigação centrou-se apenas nos vinte e sete senadores eleitos e nos seus cinquenta e quatro suplentes.

Para atingir os objetivos, Castilho estruturou a obra em cinco capítulos, fora a Apresentação e as Conclusões: 1) O Território [subdividido em: i) Donos do Brasil; ii) Políticos latifundiários; iii) Marcha para o Oeste; iv) Pará: onde vale tudo; v) Um Brasil muito particular]; 2) O Dinheiro [i) Quanto valem as terras; ii) Exemplos de propriedade; iii) No rumo do agronegócio; iv) Os rei do gado]; 3) A Política [i) Movimento suprapartidário; ii) Em ação: a bancada ruralista; iii) A hora da votação; iv) Famílias e clãs; v) Eleições: mais que “currais”]; 4) Ambiente [i) madeira abaixo; ii) Amazônia despedaçada; iii) O arco do desmatamento]; 5) Excluídos [i) Escravizados; ii) Mortos; iii) Ameaçados].

Seguindo esta estrutura de capítulos, que dá uma boa ideia do conteúdo da obra, explicitados os objetivos e definidas as fontes de informação, o autor procura responder a três principais perguntas: 1) quantos hectares de terras possuem os políticos eleitos?; 2) quantos bois cada um deles têm?; 3) quantas madeireiras são de sua propriedade?. Assim, o jornalista tenta dimensionar a força e o tamanho da bancada ruralista e procura apreender como ela reafirma continuamente o controle político sobre o território brasileiro. Além disso, sua pesquisa desnuda os interesses latifundiários, por dentro dos parlamentos e executivos, que perpetuam o poder de uma elite tradicionalmente reacionária e resistente às mudanças mais prementes do país quando o assunto é distribuição de ativos, riquezas e rendas. O autor apresenta em detalhes as articulações e caminhos políticos de como a elite latifundiária sustenta sua dominação territorial que marca a secular história de organização socioespacial do Brasil.

Após percorrer o caminho investigativo para responder as perguntas mencionadas, o autor chega à conclusão de que o tamanho da bancada ruralista no Congresso Nacional encontra-se subestimado, contrapondo-se a um dos principais pesquisadores críticos da questão agrária brasileira, o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, para quem tal tamanho é superestimado. Segundo Castilho, “[...] uma reportagem do Valor Econômico dizia, em março de 2010 (sic), que a bancada ruralista que tomava posse tinha 266 deputados e senadores. E que 59% dos seus integrantes estavam nos partidos da base aliada do governo Lula. O levantamento foi feito pela ONG Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Contudo, esses levantamentos na linha ‘sim ou não’ não mostram a dimensão exata do fenômeno, não necessariamente relacionado à posse da terra pelos parlamentares. Discordo (neste ponto) do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da USP, uma das principais referências brasileiras em Geografia Agrária. Ele considera o poder da bancada ruralista superestimado. Penso o contrário: que ele é subestimado” (p. 113-114).

Ao apresentar o tamanho e o poder dessa bancada, o livro fornece elementos para pensarmos sobre duas questões que historicamente se mantiveram como centrais para a alavancagem dos processos de acumulação capitalista no Brasil, tanto em sua dimensão rural quanto urbana. Elas ajudam a entender o porquê da dificuldade de levar adiante a reforma agrária no país e a concomitante inclusão de uma massa de homens e mulheres apartada do direito à terra: 1) o controle do território como fonte de poder político e econômico que atravessa este país verticalmente – do mais recente município emergente nos grotões da fronteira agropecuária ao governo federal que tem em sua base suprapartidária de apoio um número considerável dos ruralistas identificados pelo autor; 2) a superexploração da força de trabalho, inclusive pela manutenção de formas pré-capitalistas de submissão dela ao capital. A primeira representa a força do capital agrário-financeiro; a segunda, a submissão dos trabalhadores despossuídos de terras que veem no estatuto da violência a forma corriqueira de sua expropriação.

Em relação ao segundo ponto, as evidências contra trabalhadores apresentadas no quinto capítulo são marcantes: violência, persistência do trabalho escravo, uso de trabalho infantil, condições insalubres e desumanas nos locais de trabalho e de acomodação de homens e mulheres, utilização da velha caderneta para aprisionar o trabalhador ao novo coronel, pistolagem, assassinato, dentre outras. Além dessas formas de exploração do trabalho, são evidenciadas outras que asseguram o crescimento do patrimônio dos donos do poder e que inviabilizam a democratização do acesso à terra: uso privado do patrimônio público em terras de políticos, privatização da força pública para garantir a inatacabilidade da propriedade dos senhores da terra, manutenção do velho patrimonialismo presente desde o início de nossa formação, compra e venda de gado em transações suspeitas, dentre outros.

A lista é grande e esses são alguns exemplos descritos na obra que retratam as velhas práticas de dominação dessa elite rural, mesmo quando o que se vê, especialmente no mundo urbano, é a face moderna do agronegócio que, não raramente, se alimenta da situação de penúria e desmandos sobre os excluídos, intermediado por práticas pouco recomendadas como as listadas acima. Por trás de tudo isso, um rasto de exploração e privatização arbitrária do território, necessárias à manutenção do poder político da elite latifundiária. O que não significa, como lembra o próprio autor, que tudo que envolva esse meio seja ilegal e que todos que fazem parte da bancada ruralista adotem procedimentos ilegais.

A ênfase sobre o controle do território coloca em evidência o processo de itinerância da agricultura rumo às áreas de fronteiras - fenômeno já descrito por alguns autores e que é resgatada à sua maneira por Castilho no capítulo Território (especialmente no subitem A Marcha para o Oeste). Uma itinerância caracterizada pelo uso predatório da terra e que marca uma forma de ocupação extensiva pela incorporação de novos rincões, ao mesmo tempo em que é também intensiva, pela ferocidade com que a força de trabalho é consumida (vide, mais uma vez, o capítulo Excluídos, no qual o autor apresenta as formas pré-capitalistas de exploração de trabalhadores, com farta documentação jornalísticas sobre trabalho escravo em terras de políticos eleitos, mas não apenas). Essa itinerância continua tendo importância decisiva no espraiamento da população pelo território e na formação de novos municípios que acompanham a marcha da agropecuária.

É importante lembrar, embora isso não faça parte da análise do autor, que desde a época colonial a formação de núcleos de povoamento cuja constituição se dá a partir da marcha da agricultura e pelo avanço da pecuária extensiva possibilitou aos capitais locais imobilizados em propriedades fundiárias desmobilizarem-se e obterem verdadeiros ganhos do fundador pelo uso e apropriação da terra (rural e urbana). Isto possibilitou às elites locais forte articulação com as correntes de comércio internacional, só possível pelo ferrenho controle do território, base de produção das atividades primário-exportadoras que apresentam papel importante nas exportações brasileiras e atividades principais de nossa economia. Este início de século XXI atesta bem isso e mereceria tratamento pelo autor!

Vale lembrar também que, no passado, conforme demonstrado por outros autores, a agricultura era itinerante porque utilizava técnicas predatórias que rapidamente esgotavam o solo e exigiam novas áreas para sua continuidade. No entanto, o caráter predatório continua, conforme pode ser atestado no capítulo Ambiente, do livro de Castilho. Isso ocorre mesmo com a incorporação e uso de pacotes tecnológicos que aumentaram a produtividade e eficiência da produção agrícola do país, o que deixa claro a insustentabilidade do modelo latifundiário-agroexportador brasileiro tal como vem sendo praticado. Os exemplos oferecidos no capítulo mencionado ilustram bem esse ponto, especialmente quando se refere ao arco do desmatamento: conjunto de 43 municípios que mais desmatam em seis estados no país. Segundo o autor, “o arco do desmatamento no Brasil, além de coincidir com o arco do trabalho escravo e com a matança de camponeses, é também o arco da posse de latifúndios por políticos de todo país” (p.172).

Em relação aos políticos, duas observações do autor são importantes para entendermos a lógica desse modelo de dominação territorial com exclusão social, pavimentado nos corredores do Congresso Nacional. A primeira é que se trata de um sistema político ruralista, muito mais do que uma simples bancada ruralista. Os interesses latifundiários, embora com intensidades diferentes, perpassam todos os partidos que possuem em seus quadros políticos latifundiários com algum mandato eletivo. As exceções, segundo o autor, são o PSOL e o PC do B, embora este último tenha, na figura de seu líder maior no Congresso, grande responsabilidade no resultado final do Código Florestal Brasileiro que atendeu aos interesses latifundiários.

Com uma bancada suprapartidária que tem no PMDB e no PSDB “os partidos brasileiros que abrigam mais políticos com terra” (p. 103), não é de se estranhar que em determinado momento, mais da metade dos quarenta representantes da Comissão de Agricultura no Congresso fosse formada por proprietários de terra. Um clássico caso de legislar em causa própria, atentando contra os princípios básicos da ética e ilustrando o sentido patrimonialista de imbricação do público e privado que norteia a ação desse grupo político.

Um segundo aspecto refere-se ao financiamento de campanha e a forma desigual com que a bancada ruralista alavanca recursos nos processos eleitorais. Como lembra o autor, “as doações de campanhas são determinantes para escolha dos representantes. E essa lógica não poderia ser diferente em relação ao chamado agronegócio – ou mais especificamente, às empresas de alimentos, moinhos, usinas, frigoríficos, madeireiras” (p. 148). A lista de empresas é longa, mas cabe destacar que muitas delas são de propriedade dos próprios políticos. Elas são, também, proprietárias de grandes extensões de terras.

Como não é possível determinar pelas declarações do TSE as terras dessas empresas, não é difícil para o autor concluir que a quantidade de terras dos políticos analisados é muito maior do que se verifica oficialmente a partir das declarações. Basta mencionar que empresas de apenas cinco políticos – o senador Blairo Maggi (PR-MT), o prefeito de Lucas do Rio Verde (MT), Marino Franz (PPS), o deputado federal Newton Cardoso (PMDB-MG), o prefeito de Pompeu (MG), Joaquim Reis (PPS) e o deputado federal João Lyra (PTB-AL) – somam 1,1 milhão de hectares. Com o financiamento privado de campanha, as empresas do agronegócio brasileiro fazem a diferença no processo eleitoral ao garantir o aporte de recursos necessário para a vitória de seus aliados. Com isso, interdita-se a solução agrária brasileira!

Além disso, o controle da terra não ocorre apenas sobre suas áreas cultiváveis, mas também no campo da extração mineral. Assim como o agronegócio, o Brasil tem se inserido nas correntes internacionais de comércio por meio da mineração, estendendo o leque de possibilidades para as elites fundiárias ampliarem seu domínio sobre o solo e o subsolo. No livro, infelizmente, somente em alguns poucos trechos a questão da mineração é abordada, como se vê no capítulo O Dinheiro, no subitem No rumo do Agronegócio, no qual o autor dedica duas páginas ao tema, na passagem intitulada Abaixo da terra. Há políticos citados no livro como latifundiários, mas que operam, também, na mineração. Isto indica que o seu poder sobre (e sob) o território é muito maior e vai além da questão do latifúndio agropecuário como normalmente aparece a questão. Ademais, como é amplamente conhecido, as empresas mineradoras também são grandes financiadoras de campanha e isso mereceria um tratamento maior no livro.

O autor oferece importante caminho para associarmos o problema agrário brasileiro à questão urbana, ainda que não tenha se proposto a tanto. Ambas questões - agrária e urbana - fazem parte de uma totalidade marcada pelo controle do território e pela exclusão social. Não por acaso, ao tratar dos excluídos e ameaçados, o tema da migração dos trabalhadores (tanto no sentido rural-rural quanto no sentido rural-urbano) aparece recorrentemente ao longo do texto. A lembrança, ao final do livro, do episódio do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), dá boa pista para juntarmos as duas questões que vão além dos propósitos da obra. A referida associação pode ser conferida nos exemplos dados por Castilho de famílias latifundiárias (ver subitem Famílias e clãs no capítulo A Política) que criaram municípios e cativaram para si o comando de suas prefeituras, reproduzindo um mandonismo local que nos remete à obra de Victor Nunes Leal, intitulada Coronelismo, enxada e voto, de 1948, pertinentemente citada pelo autor. Muitos desses municípios – mas não apenas esses - reproduzem os mesmos problemas urbanos verificados em outras regiões do país, em áreas de antigas ocupações, indicando que o crescimento promovido pela expansão do agronegócio, ainda que produza riqueza significativa, não reverbera em condições de vida melhor para as populações rurais e urbanas.

Portanto, em um mesmo processo articulam-se o avanço privado e extensivo das terras para agricultura e pecuária, bem como a especulação imobiliária rural e urbana e os problemas dela decorrente. Tudo isso reforça uma possível interpretação, não discutida pelo autor, de que a questão fundiária no país faz parte de uma só totalidade a englobar o campo e a cidade, embora a questão urbana não seja objeto desta obra. Esse movimento parece se repetir ao longo de toda a história brasileira, inclusive mais recentemente, com o avanço do agronegócio, o que merece estudos detalhados. As informações apresentadas pelo autor são um ponto de partida auspicioso para o aprofundamento da questão por outros pesquisadores que se aventurarem nessa empreitada.

Por fim, é possível questionar a simplicidade com que pensa o problema do mundo rural brasileiro ao tentar reconstituir, pelo fio condutor numérico, a relação política x território, quando afirma que nossa história é a de um país “ainda rural – e arcaico” (p. 10). Com isso, não leva em conta as relações entre esse mundo territorialmente dominado por uma elite fundiária conservadora/reacionária e outras formas, inclusive mais “modernas”, que esse arcaico assume. Talvez não tenha discorrido sobre isso porque não lhe era objeto direto de preocupação no momento de sua pesquisa, já que como estudante de Geografia dificilmente desconheceria o tema. Mas entender as metamorfoses deste arcaico é central para compreendermos a sua imbricação na acumulação de riqueza no mundo urbano (e não apenas rural) e globalizado que articulada, em múltiplas escalas, as diferentes frações do capital numa economia dominada pela financeirização.

Diante disso, teria sido fundamental o livro estabelecer a ligação do velho rural com o novo rural e o urbano, ou seja, explicar como esse arcaico, ao mesmo tempo que mantém as tradicionais formas de atuação que o autor tão bem descreve, também se moderniza (ou se alia a setores considerados modernos), o que torna a questão, neste século XXI, muito mais complexa do que o velho dualismo arcaico x moderno que predominou no debate das ciências sociais no Brasil até os anos oitenta do século anterior. Tampouco é possível afirmar que o Brasil continua rural, como fez o autor. E isto não apenas porque mais de 85% da população encontra-se nas cidades, mas porque é nelas que o controle da produção agropecuária encontra-se, especialmente nas sedes dos grandes grupos do agronegócio e do capital financeiro a eles articulados, ambas localizadas no mundo urbano.

No entanto, isso não o impede de oferecer elementos para entendermos melhor a histórica dificuldade para solução da questão agrária do país. Embora exaustivo no detalhamento dos dados tabulados, o livro não é uma simples descrição de informações estatísticas. Ele é também um esforço considerável que nos ajuda a entender as conexões entre a formação do poder local/territorial de uma elite retrógrada e avessa a um projeto de nação (mesmo quando ela ganha - na aparência - discurso nacional e moderno, como no caso do agronegócio) e as formas de perenização de seu poder na organização socioespacial e política do Brasil, que o atravessa federativamente desde municípios de diferentes portes em todas as regiões do país até a União.

Assim, ao colocar o sistema político como eixo para análise da dominação do território, o livro fornece ingrediente a mais para o seu estudo, normalmente reduzido, entre economistas e geógrafos, a pesquisas sobre a estrutura produtiva, à relação capital x trabalho, ao poder das corporações e ao papel do Estado que, conjuntamente, dão forma e modificam as estruturas socioespaciais dos lugares. Entender o funcionamento do sistema político em suas múltiplas escalas (do local ao nacional) e utilizar as fontes pesquisadas neste livro é algo que abre boas perspectivas de diálogo com os esforços de economistas, geógrafos e outros cientistas sociais que abordam a temática.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    jan-apr 2014

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2013
  • Aceito
    23 Jan 2014
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